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A biografia como produto de consumo - parte II

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Atualizado em 27 de novembro de 2013 13:27

Continuo hoje a desenvolver o tema iniciado há três semanas a respeito das biografias. Como antecipei, pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte.

Lembro, antes de ir em frente, o que apontei ao final do artigo anterior: não se deve confundir a pesquisa e escrita do biógrafo com o direito de opinião e de liberdade de expressão garantidos no texto constitucional. Estes são mais amplos, pois dizem respeito ao direito que as pessoas têm ao livre pensar e de se manifestar sobre fatos e ideias, fazendo comentários e exercendo seu direito de crítica, além, claro, de também poderem produzir textos, obras de arte em todas as vertentes, trabalhos científicos e se expressar livremente a favor ou contra todos esses produtos de comunicação. Naturalmente, o direito do biógrafo está inserido no da liberdade de expressão intelectual, artística e científica, mas seu campo de atuação é mais restrito, pois visa examinar e mostrar a vida de um terceiro, como, aliás, assegura a etimologia da palavra de origem grega: bíos (vida) e gráphein (escrever).

Prossigo agora, tentando resolver o imbróglio que envolve de um lado biógrafos, escritores e historiadores e, de outro, os biografáveis. Esse problema exige do intérprete uma solução que supere o conflito existente entre dois direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal (CF), o da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX do art. 5º) e o da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (inciso X do mesmo artigo).

Como resolver o conflito?

A doutrina há muitos anos apresenta uma saída para esse tipo de contradição ou oposição e, nesse caso, ela deve se dar pelo uso do princípio instrumental da proporcionalidade (que é implícito no sistema jurídico constitucional) e a utilização das diretrizes e luzes maiores lançadas na própria Constituição Federal pelo supraprincípío da dignidade da pessoa humana firmada no seu artigo 1º, inciso III.

Antes de ingressar propriamente no tema que nos interessa, falarei de outros temas ligados à questão e também farei um proposta e um pedido a você, leitor: a da realização de um exercício para ver se conseguimos, de fato, saber como poderia um biógrafo falar de nossa intimidade. Começo por esta proposta.

Um exercício sobre nossa intimidade

Eis o teste:

Pense numa questão sua, que somente você conhece. Pode ser uma lembrança de infância, uma paixão nunca declarada por uma amiga ou um amigo, um sofrimento guardado e escondido do mundo por uma questão de escolha ou impossibilidade de comunicação, ou alguma dor oriunda da incompreensão de um ente querido; ou ainda, simplesmente fatos ocorridos, memórias guardadas como retratos tirados na vida, como simples ocorrência felizes, alegres e fugazes, como fotos que iluminam o céu de sua memória; ou, também, fatos vividos, bem ou mal vividos, marcantes e que geraram sentimentos que são só seus e que faltam palavras para descrever; ou, então, pense nas partes de seu corpo que só você conhece ou que só divide com a pessoa amada ou mais: pense em suas entranhas, suas dores no peito, na barriga ou seus prazeres. Enfim, coisas que todos nós temos na intimidade e que somente nós mesmo podemos aferir, definir e talvez comunicar. Pense nelas. Agora, responda:

Como é que uma terceira pessoa, um estranho, alguém que sequer participou de sua vida pessoal, como um parente ou um colega, alguém quem não participou de seu ciclo de amizades, como é que essa pessoa poderia falar de sua intimidade com alguma propriedade? Você acredita que ela seria capaz de narrar fatos, descrever imagens, apresentar sentimentos, emoções e relações de seu universo íntimo? Sem ao menos conversar com você?

Veja que a psiquiatria e a psicanálise mostram que nem mesmo nas próprias memórias do indivíduo é possível confiar plenamente. Com o passar do tempo elas mudam. E a mudança não acontece apenas por questões problemáticas, traumas ou recalques; elas mudam pelo simples fato de que o tempo vai apagando certas linhas; novas experiências e conhecimentos vão sendo incorporados, de tal modo que o sujeito acaba por "reescrever" se próprio passado. Sem ele querer, isso acontece. Se quiser, claro, mais ainda.

As emoções do passado se modificam. O que foi tristeza em certo momento - por exemplo, a dor pela morte de uma pessoa querida - após certo período muda (Aliás, é até uma defesa natural para não se ficar sofrendo a vida toda). No momento seguinte e logo após a morte de alguém próximo, a lembrança entristece e faz chorar. Anos depois, essa pessoa que se foi pode ser relembrada com saudade e às vezes até com frescor, como quando a lembrança traz os bons momentos vividos juntos.

Meu amigo Outrem Ego fez esse teste e me disse: "Um estranho não consegue essa penetração e suas palavras não podem descrever o quadro adequadamente. Nenhum estranho conseguiria definir minhas emoções. Nem eu consigo...".

Censura?

Há um equívoco enorme em misturar o direito que tem uma pessoa de preservar sua intimidade como a ideia de censura. É verdade que alguns o fazem de má-fé apenas para confundir e também para se utilizar de um topos (uma máxima do senso comum) a favor de sua tese. Sempre gera um forte efeito acusar alguém de estar fazendo censura. Mas, ao contrário do que pregam, não há censura.

A atriz Marília Pera entrou na polêmica das biografias e disse muito bem:

"Quem tem mais de 50 anos, sofreu os tempos da ditadura, da censura, o medo de expressar seus sentimentos.

Tive vários espetáculos censurados, fui presa, passei pelos horrores que quase todas as pessoas envolvidas nessa polêmica atual sobre biografias passaram.

Hoje, vivendo numa democracia, é justo que desejemos narrar nossas verdades reprimidas durante anos. Mas a verdade depende da maneira que cada um de nós enxerga e sente um acontecimento.

O biografado, o dono da vida, pode sofrer muito com as verdades narradas, mesmo que os excelentes biógrafos e as pessoas que opinam sejam sinceros e competentes.

Considero golpe baixíssimo xingar de reacionário aquele que necessita preservar seus sentimentos, seus familiares, a vida privada"1.

E como também bem definiu a advogada Eliane Y. Abrão: "Censura é o que se impôs à imprensa, ao teatro, ao cinema, nos anos de chumbo, proibidos de noticiar ou denunciar o que se passava nas ruas, nos porões das delegacias, nas contas públicas, nos encontros sombrios entre políticos e governantes. Censura é o medo que se apresenta em discussões politicamente legítimas em regimes de opressão. Censura é o que impõem às redações determinados veículos no sentido de proibir a divulgação de temas julgados prejudiciais a seus interesses econômicos ou ideológicos, dirigindo a atividade de comunicação. Muito diferente é o resguardo que alguns entendem que devam fazer sobre sua vida pessoal, assunto de sua exclusiva deliberação, isto é, da coibição de excessos, que normalmente pautam ações de quem vive em sociedade"2.

Ou, como realçou Marília Pêra na entrevista citada: "É criancice chamar de censor o editor que corta palavras para adequar a matéria ao assunto e ao espaço. (...).Já tive cenas, palavras e remunerações cortadas no produto final de um filme, de uma obra de televisão, de entrevistas. Ficaram perdidas. Paciência! (...)Numa simples entrevista para um órgão de divulgação, o apagar de algumas palavras ou a banal supressão da pergunta do entrevistador pode nublar o sentido de uma frase! Mas, assim será, ainda que depois ocorram esclarecimentos. É muito sutil"!

Realmente. Não há censura. Tanto é verdade que as pessoas estão de manifestando livremente sobre este e outros temas e à vontade. Aliás, como mostrei no meu artigo anterior, muitas delas se manifestam raivosamente, ofendendo quem pensa diferente. Elas parecem ter dificuldade de conviver com opiniões contrárias e com terceiros que lutam por seus direitos na justiça. Parecem mesmo - paradoxalmente - não conviver bem com a ausência da censura e com os limites éticos e legais impostos por um sistema constitucionalmente estabelecido, fruto de longa luta pela implementação das liberdades que vieram para assegurar a opinião de todos - até dos que discordam deles...

Há pessoas que não precisam cumprir a lei?

Alguns, ao que indica suas manifestações, postulam estar acima da lei. Naquele mesmo manifesto dos historiadores, que citei no artigo anterior, cujo trecho endossei, há outro que parece querer dizer que eles não se submetem nem devem se submeter à lei! Veja:

"A biografia não é uma causa jurídica. Não pode ser controlada pelos legisladores nem cerceada pelos tribunais"3.

"Como assim?", perguntaria indignado meu amigo Outrem Ego.

Uma das grandes conquistas das sociedades democráticas foi exatamente o do estabelecimento em lei, especialmente nos textos constitucionais, dos direitos e garantias fundamentais de que gozam as pessoas de cada nação. Ninguém está ou pode estar acima ou fora da lei, nem seus principais governantes, o Presidente da República, Ministros de Estado, Governadores, políticos em geral, juízes em todas as instâncias, os religiosos etc.

Ora, uma coisa é reconhecer que há conflitos entre os direitos e garantias estabelecidos e lutar pela prevalência de um sobre outro. Outra coisa, muito diferente, é defender que existem pessoas ou grupos vivendo numa sociedade democrática que não devem se submeter às leis. A luta por posições assumidas e modos de interpretação dos princípios e normas vigentes é democrática e bem vinda; a defesa da exclusão de alguns da submissão ao sistema é não só antiquada como autoritária.

Espionagem

Vejamos a interessante questão da espionagem, tema que suscitou discussões nas últimas semanas e gerou crises entre países. De forma rara, numa unanimidade nacional, ou melhor, mundial, todos criticaram a invasão da privacidade dos chefes de estado e demais autoridades públicas de várias nações. Eles foram espionados como agentes públicos (portanto, no papel social público) e também como pessoas humanas (no papel social privado). Espionar passou a ser sinônimo de invasão ilegal, de violação da privacidade e da intimidade das pessoas.

Meu amigo Outrem Ego disse: "Ninguém aceitou as espionagens, mas como ficam os biógrafos? Eles poderiam espionar? Poderiam invadir a privacidade das autoridades e demais pessoas públicas? Os fins justificam os meios? Se assim for, parece-me claro que os espiões norte-americanos têm fortes motivos a favor da espionagem: segurança nacional e prevenção contra o terrorismo. Qual o fundamento para que o biógrafo espie, xerete, fuce, espione mesmo?"

Penso que a comparação é válida, pois serve para mostrar como se pode invadir a privacidade das pessoas. A violação da privacidade feita pelo biógrafo, muitas vezes, como já apontei alhures, serve para matar a curiosidade do público, serve para aplacar a sanha consumista dos leitores, ávidos por escândalos, intrigas, segredos de alcova e todas as outras espécies de pimentas. O picante atrai e, portanto, vende.

Ora, se não se pode ouvir conversas privadas nem observar as pessoas em sua intimidade com a desculpa de se promover a segurança nacional ou prevenir-se contra atentados terroristas então, como é que se poderia admitir a mesma invasão por intrusos que querem apenas fazer anotações à guisa de curiosidades, sem qualquer interesse público? E olha que o espião ouve, vê e anota, mas não conta (só para seus superiores hierárquicos). Já o biógrafo não só olha, vê e anota como mostra para todo mundo. Aliás, para quanto mais pessoas melhor, pois aumenta as vendas.

No momento em que terminava de escrever este texto vi a notícia de que a terceira comissão da Assembleia Geral da ONU aprovou na terça-feira (dia 26-11-2013) uma resolução impulsionada por Alemanha e Brasil contra espionagem e a favor da privacidade. O texto irá ao plenário para votação no fim do ano4.

A resolução é expressa na defesa da inviolabilidade da privacidade das pessoas: "Reafirmamos o direito à privacidade, segundo o qual ninguém deve ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou sua correspondência".

Como base para o texto a resolução cita o artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. É importante anotar que o inciso X do art. 5º da Constituição Federal brasileira segue a mesma linha da inviolabilidade prevista nesses documentos internacionais. Vale a pena, pois, transcrevê-los:

"Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques" (artigo XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948).

"1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação.

2. Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas" (artigo 17 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de Dezembro de 1966)

Como resolver o conflito existente entre liberdade de expressão e respeito à vida privada e intimidade?

Minha proposta, seguindo, então, parte da doutrina, é a de que o intérprete lance mão do princípio da proporcionalidade - que é instrumental e implícito no sistema jurídico - e, a partir dele, resolva a pendenga na direção do respeito ao outro princípio, o da dignidade da pessoa humana (que é um supraprincípío constitucional).

É o que desenvolverei na próxima semana.

__________

1In Folha de São Paulo, edição on line, de 15/10/2013.

2Biografias e Direitos Humanos, artigo publicado em de 24/11/2013.

3Trecho do Manifesto assinado por 220 historiadores.

4Colhi o material em InfoAbril. Mas, foi publicado em vários sites.