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O comportamento social entre dois mundos

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Atualizado às 08:12

Este início de ano no Brasil está sendo tão surreal (ou, talvez, apenas e tão somente "real"?) que não há como não tentar pensar um pouco no assunto. É verdade que muito material foi publicado e está disponível, embora as alternativas de solução para os problemas não sejam tão claras. Um dos aspectos que chamam a atenção é o do comportamento das pessoas, não só da ira daqueles que pedem mais sangue como  o de uma espécie de apatia que atinge uma outra parte. É sobre esse último aspecto do comportamento social que trago alguns pontos para nossa reflexão.

Meu amigo Outrem Ego perguntou: "Diante da barbárie, o que fazer? O que dizer?" e disse que estava espantado com as reações: "A imagem de cabeças humanas sendo arrumadas em fileiras como se fossem vasos deveria chocar tanto que seria capaz de gerar uma comoção ou uma paralisia. Mas, não. O limite do possível ou do inacreditável esticou-se a tal ponto que parece que nada mais choca verdadeiramente".

Ele observou que as pessoas reagem com ferocidade ou apatia, pois a vida continua e as alternativas de ação não são muito amplas nem conhecidas. Muitos pontos podem ser abordados. Vejamos aquele que envolve as comunicações dos dias que correm.

Na sociedade capitalista contemporânea da imagem televisiva e do marketing de massas, tudo foi edulcorado com uma plasticidade que acabou por camuflar a realidade. Os fatos reais na época da comunicação global são percebidos quase que "literalmente" como virtuais. E também quase tudo se massificou, homogenizou-se e banalizou-se. Acostumamo-nos com a morte diária de pessoas por crimes que parecem impossíveis de ser evitados, por acidentes de trânsito causados por irresponsáveis, com a corrupção em amplos setores da sociedade,  a começar pelo poder político, com guerras sem fim no mundo afora, com imagens de atrocidades múltiplas, com a imigração em massa dos refugiados de guerra, com catástrofes climáticas em todos os lugares do globo, com adultos mendigando comida e dinheiro nas esquinas, com crianças abandonadas vivendo em sarjetas, com problemas de desemprego, miséria etc.

Por outro lado, afora o noticiário escandaloso ou das tragédias humanas e ambientais, a mídia televisiva, ao mesmo tempo (e de forma paradoxal), mostra-nos uma realidade diferente. A publicidade, que a mantém, apresenta sem parar um mundo perfeito, com homens e mulheres lindos, produtos e serviços perfeitos, sonhos possíveis de serem realizados. Podemos frequentar as melhores escolas, os melhores restaurantes, os melhores estabelecimentos comerciais, os melhores shopping centers; podemos também ter contas nos melhores bancos, que nos propiciam as menores taxas de juros nos empréstimos, os maiores rendimentos nas aplicações, o melhor atendimento pessoal etc. Aliás, "todos" são os melhores, de tal modo que não há maus fornecedores. No mundo ideal da propaganda comercial (e também da propaganda política), tudo funciona.

Vivemos, pois, entre dois mundos: o real, que nos atordoa com sua dura violência diária e o ideal, que nos oferece a esperança de uma vida melhor. E o que se observa em boa parte dos indivíduos é um enorme desânimo, uma espécie de letargia imposta pela impossibilidade de, de um lado, entender o mundo e, de outro, um "não saber o que fazer" para nele atuar visando à sua transformação para melhorá-lo.

E, conforme dito por meu amigo, como, apesar de tudo, a vida continua, observando as pessoas divertindo-se em passeios, parques, teatros, restaurantes e lojas, parece que elas fazem o que querem. Consomem e são felizes, especialmente aqueles que detêm poder aquisitivo. Mas, há mazelas: olhando-se de perto algumas pessoas, descobre-se, muitas vezes, uma exagerada individualidade egoística, uma solidão, um afastamento entre as pessoas; há um crescimento enorme da intolerância; um endurecimento dos corações; um aumento do desprezo e um certo pouco-caso, como se nada fosse "conosco" ("não é comigo" e "não tenho nada a ver com isso").

Estabelece-se, assim, o também paradoxo da esperança prometida, sentida em conjunto com a esperança perdida. Queremos ser felizes, mas como só podemos realizar essa felicidade pela via do mercado, nos frustramos, pois a verdade é que, comprar, cada vez mais, bens materiais não preencherá o vazio de nossas almas. Quem procura felicidade no mercado morrerá frustrado. Trava-se uma luta surda e, às vezes, nem tão surda pelo emprego, pelo cargo, pela posse de objetos.

Será mesmo que, como se diz, nesta sociedade do espetáculo tudo se assemelha? Confundimos o mundo das imagens televisivas e cinematográficas com as do mundo real? A violência das telas é apenas a continuidade da violência da vida concreta? Após olhar cabeças (humanas e reais) rolando, basta desligar a tevê ou o iphone e ir jantar? Ou dormir? Aliás, por falar em dormir, durma-se com um barulho desses.