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África do Sul Connection nº 39

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Atualizado às 07:57

O papel da esperança no constitucionalismo da África do Sul

"Esperança é uma arma poderosa e nenhum poder na Terra pode lhe privar dela", escreveu Nelson Mandela, em 23 de junho de 1969, numa carta a sua então esposa, Winnie Mandela, enquanto estava preso na Ilha Robben, na Cidade do Cabo. Dia 15 de dezembro de 2013, aos 95 anos, ele seria sepultado em Qunu, uma aldeia num vale estreito repleto de campinas, cortado por riachos de água cristalina e rodeado de colinas verdejantes, onde passou a infância na companhia de seus pais. A atmosfera da África do Sul, ao contrário do que se supunha, era de celebração. Não havia desespero. Todos reverberavam um sentimento de profundo orgulho.

O jovem da etnia isiXhosa, virou um advogado militante e, posteriormente, um ativista político capaz de grandes renúncias pelo compromisso de livrar o seu povo do apartheid, o modelo que dividia o país segundo a cor da pele das pessoas.

De Soweto, nos arredores de Joanesburgo, Mandela, aquele homem alto, forte, carismático, praticante de boxe, que cultivava hábitos refinados, deu uma demonstração do seu caráter diante da condenação iminente à pena de morte. "Lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra", disse. "Tenho cultivado o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal no qual deposito a esperança de viver e alcançar. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer", foi a última declaração diante do juiz que tinha a sua vida nas mãos.

No tribunal, 150 lugares eram destinados a não-europeus. Mandela cerrou o punho da mão direita, ergueu-o e gritou: "Amandla!". A palavra da língua isiXhosa significa "poder". A massa respondeu: "Ngawethu!" ("Para nós!"). O juiz bateu o seu martelo exigindo ordem. Posteriormente, ao proferir o veredicto, ele converteu a pena de morte por crime de sabotagem em prisão perpétua. Nelson Mandela saiu acorrentado pelas mãos e pés, vestindo a roupa de guerreiro da sua etnia. A kaross consiste numa pele de leopardo, tradicional aos isiXhosa. Era dia 12 de junho de 1964.

Dentro do furgão negro, passando no meio dos que seguiam em vigília diante do tribunal, Mandela e seus companheiros mostraram os punhos cerrados através das barras da janela do veículo. "Era a esperança de que a multidão conseguisse nos enxergar, não sabendo se ela conseguiria", anota Mandela, em sua biografia Longa Caminhada até a Liberdade (Nossa Cultura, 2012, p. 462). A multidão enxergou e entoou o hino "Nkosi Sikelel' iAfrica" (Senhor, abençoe a África). Uma das exortações diz: "Senhor, abençoa a nossa nação. Faça cessar as guerras e o sofrimento".

Quase três décadas depois, livre, Nelson Mandela propôs a reconciliação. "Peguem suas armas, suas facas, suas 'pangas', e joguem ao mar. Eles me deixaram preso 27 anos e eu os perdoei. Se sou capaz de perdoar, vocês também são!", ordenou, em cadeia nacional de televisão, em 1990, enquanto o país se desmanchava em sangue na luta entre brancos e negros, e também entre os próprios negros de etnias diversas, como os sangrentos conflitos entre os Zulu, os isiXhosa e os Inkatha. A iniciativa introduziu o componente das lutas em busca de direitos fundamentais: a esperança.

"Nunca perdi a esperança que essa grande transformação ocorreria", afirmou Nelson Mandela, quando viu o fim do nefasto apartheid. Só a esperança seria capaz de assegurar a continuidade da luta contra a discriminação. Ela é o combustível que alimenta o movimento, que o estimula, permitindo que a marcha não perca o seu foco, nem se renda aos obstáculos com os quais lutas tão desafiadoras como estas tendem a se defrontar. Também é dessa esperança que se estabelece laços de ajuda comunitária, que protege os grupos cujos objetivos e ideais costumam ser comuns ou pelo menos próximos, dando legitimidade ao triunfo da felicidade coletiva.

Estamos falando de uma marcha formada por grandes contingentes de pessoas, durante décadas, motivada pela crença sincera de que o acesso a um amanhã melhor é algo pela qual vale à pena esperar, cujos líderes pedem uma postura não-violenta, mas altiva, corajosa e insurgente contra a força do poder. Esse movimento viveu suas crises de esperança, envolvendo, em suas estratégias, práticas violentas.

Corrompe a marcha baseada na esperança tanto um governo autoritário quanto movimentos violentos, pois ambos dividem a sociedade, fragmentam as expectativas, acabam com a coesão necessária para ampliar a força do grupo e, ao final, inevitavelmente guiados pelo ódio, abraçarão a revanche, que é a negação da esperança, uma vez que o ápice desta, sempre e sempre, deve ser a reconciliação.

Uma nação adoece quando seus líderes, direta ou indiretamente, plantam ou toleram o medo, o ódio, a divisão e a revanche na mente das pessoas. O solo passa a ser irrigado com torrentes de sangue que fazem germinar o rancor passado de geração para geração. Mesmo se falarmos dos últimos anos, o constitucionalismo desenvolvido na África do Sul difere do que se tenta impor agora na Tunísia ou Líbia, uma vez que aquele foi sustentado por um sentimento de esperança cujo fruto foi a reconciliação da nação, enquanto os movimentos vistos nos outros dois países têm por marca uma altercação entre medo e violência, cujo resultado final, como se vê, tem sido a revanche.

"Hoje, todos nós, com a nossa presença aqui... outorgamos glória e esperança para uma liberdade recém-nascida", disse Nelson Mandela, em 10 de maio de 1992, na posse como presidente da África do Sul, num anfiteatro formado pelos Union Buildings, em Pretória. Dias antes, no salão do Hotel Carlton, em Joanesburgo, ele dividia o pódio com a senhora Coretta Scott King, esposa do outro guerreiro da liberdade, Martin Luther King Jr. Estavam unidos a uma multidão que comemorava a vitória nas eleições.

O encontro era muito simbólico. Martin Luther King, no discurso "Eu Tenho um Sonho", finalizou com a frase: "Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança". Sthéphane Hessel diz que a mensagem de Nelson Mandela e de Martin Luther King "é uma mensagem de esperança na capacidade das sociedades modernas ultrapassarem os conflitos por meio de uma compreensão mútua e de uma paciência vigilante. Para alcançá-la, devemos nos basear nos direitos, cuja violação, qualquer que seja o autor, sempre há de provocar nossa indignação" (Indignai-vos! Leya, 2011, p. 32). Esta convicção se tornou imortal.

A África do Sul, tendo de optar entre o medo e a esperança, na tentativa de lutar para estabelecer a sua nova ordem constitucional, optou por esta última. Não que não tenha sucumbido à tentação do ódio em muitos episódios. Sabemos que a violência deu o tom das manifestações em certas ocasiões. Contudo, a meta dos guerreiros da liberdade nunca foi o ódio ou a revanche. O sentimento condutor era a esperança de que, um dia, todos estariam juntos, vivendo na terra que escolheram para sua existência.

A esperança na luta por direitos fundamentais é paciente, porque acredita que o futuro propiciará a concretização de suas convicções. Apesar do engajamento e da firmeza, sabe que a violência a corrompe, razão pela qual dela deve se afastar. Além disso, reconhece o valor da ajuda recíproca ao grupo interessado em dias melhores, ainda que haja, em alguns pontos, divergências. É um movimento moderno, que compreende o mundo dos direitos fundamentais como algo de valor e pelo qual se deve lutar. Sua marca é a experiência de reconciliação em países como a África do Sul.

Eis, então, o grande sentimento que possibilitou que um país mergulhado num conflito civil, fruto de um governo racial, fosse o senhor de sua própria travessia rumo à democracia constitucional: a esperança. Uma lição que, em tempos de tamanha desesperança, é fundamental para todos nós.