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Identidade cultural

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Atualizado em 6 de dezembro de 2012 14:50

 

"Cerca de 700 pessoas participaram na tarde desta quarta-feira (7) da segunda passeata do dia contra a corrupção na avenida Paulista, em São Paulo. Como no ato da manhã, que reuniu 500 pessoas, a manifestação foi convocada pela rede social Facebook".

Folha online, 8/9/2011

Tenho notado algo em que talvez você já terá reparado: o número de filmes que têm sido feitos tendo a África como personagem, se assim posso dizer. Não é isso que me chama a atenção, até porque não tenho interesse especial por aquele continente. É que tais filmes poderiam muito bem ter sido feitos no Brasil, que ninguém notaria, pois o cenário é o mesmo. Ruas sem calçamento, negros e negras, talvez alguns quase-negros, como diz o Caetano, aqueles arremedos de casas, crianças barrigudinhas correndo por todo lado. E palmeiras na praia, vergadas pelo vento, lembrança do tempo da Pangéia.

A história é o de menos, pois o que fica é o distanciamento cultural entre aqueles personagens e a Europa ou os Estados Unidos, com personagens de filmes mais palatáveis, se é que posso usar a palavra. Quem se importa com miséria é intelectual, dizia-se outrora.

Minha amiga não concorda com minhas observações. "Eu não me considero uma africana" diz ela, exalando o inconfundível perfume estrangeiro que deve ter comprado no free shop e agitando umas tantas pulseiras de metal amarelo que bem pode ser ouro. Quem duvidaria? Pois experimente passar uma tarde na Praça da Sé, desafio. "Deus me livre! Se eu fizer isso, me internem. Aquela gente horrorosa que passa por ali, bêbados caídos por toda parte, números circenses de quinta categoria, os eternos leitores de bíblia, aqueles cabelos desgrenhados, dentes mal alinhados e faltando alguns, roupas medonhas e aquela mulatice que não termina mais. Nem pensar!".

Acontece que aquilo é que é o verdadeiro Brasil, minha amiga. O Jardim Europa onde resides cercada por grades e guardas em todas as esquinas da calçada, todos com o mesmo tipo de corte de cabelo e mesma cor de roupa, com walkie-talkie o tempo todo na mão, estrangeirismo, aliás, que ficou desatualizado depois da invenção do celular, esse sim um autêntico anda-e-fala, é um oásis num deserto de miséria, de que, com muito esforço, uma parcela de nossa população se vai libertando. Quantos brasileiros se vestirão como você? Freqüentarão os restaurantes que você freqüenta? Fará as viagens que você faz? Terá a pele da cor da tua? Os olhos azuis da cor dos teus? Quando você pensa na África do Sul você pensa nos loiros ou nos negros?

"A troco de quê esse discurso de uma esquerda retrô? Coisa mais superada!".

O escândalo dos mensalões foi aquilo que foi e o chamado povo brasileiro continuou a preparar-se para o carnaval; o escândalo sanguessuga deu no que deu e o povo discutindo o preço dos ingressos do Fla-Flu. O próximo capítulo desse esquerdismo avant la lettre é uma emenda constitucional para contemplar a possibilidade de reeleições em número ilimitado. Nada mais democrático. "Ou você tem dúvida a respeito da seriedade da apuração da mais recente eleição ocorrida no país?" conclui ela.

É claro que estou provocando aquela que o Nelson Rodrigues chamaria de granfina de nariz de cera, até porque no tempo dele não se falava em para-choque de silicone.

Milton Santos, geógrafo brasileiro respeitado no Exterior, que era negro, entrou no avião, aqui no Brasil, com destino aos Estados Unidos. A comissária de bordo, toda gentil, cobriu-o de salamaleques. Ditos em inglês. E ele: "É assim mesmo. Negro entrando em avião, no Brasil, só se for estrangeiro".

Já o meu dileto amigo Paulo Rangel, ex-membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, negro careca que lembra jogador de basquete norte-americano, vinha, há alguns anos, em seu BMW pela avenida Copacabana. Uns policiais militares estendem o braço, mandando parar. Revólver na mão, fazem o Dr. Rangel sair do carro, mãos sobre o capô do veículo, pernas abertas, e dão-lhe uma revista geral. Pedem seus documentos e tomam um susto inimaginável.

"Aí você lhes deu voz de prisão, por abuso de autoridade?" pergunta alguém na roda de chope.

"Claro que não. Negro em BMW no Brasil ou é cantor, ou jogador de futebol ou traficante" exagera ele. "Como não sou cantor conhecido nem jogador famoso, os homens foram pelo quod plerumque accidit", sentenciou o ex-promotor, todo culto, hoje desembargador por óbvio merecimento.

Pois aí está: os negros, que se libertaram há pouco mais de 100 anos, têm tudo para impor-se culturalmente, deixando de ser considerados cidadãos de segunda categoria, independentemente de proteção legal, de que os bons alunos não necessitam. Eu mesmo, que nada tenho de negro, pois descendo de espanhol e italiana, estudei a vida toda com bolsa de estudos. Isso apenas me fez dedicar-me mais aos estudos do que certamente eu me dedicaria se alguma vez meu pai tivesse pago minha mensalidade escolar. Não estudei de graça por ser inferior, mas, ao reverso, porque alguém percebeu que aquele menino, cuja família não dispunha de recursos financeiros, mereceria uma chance. E eu, como qualquer negro, qualquer branco, ou qualquer mulato deve fazer, não desperdicei a oportunidade que me foi dada.

Essa discussão, que é interminável, ganha neste começo de novo século um novo e precioso dado: a classe operária acha que, de fato, chegou ao Paraíso. O resultado é pessoas desabituadas ao diálogo reivindicarem direitos e mais direitos, esquecidas de que todos nós que vivemos em sociedade equilibramo-nos nos dois pratos da balança: o que prevê nossos direitos e o que estatui os nossos deveres. As mulheres, que chegaram ao mercado de trabalho sendo exploradas pelos empregadores, hoje não aceitam qualquer tipo de trabalho. Cozinhar, lavar roupa e arrumar casa alheia? Nem a peso de ouro. Quando alguma delas aceita ser entrevistada, inverte-se a ordem natural das coisas e ela passa a entrevistar a candidata a patroa, indagando quais os hábitos dos moradores da casa. "Quantos jantares a senhora oferece a convidados num mês?" indagou uma das candidatas. "Além do preço da condução, quero vale-refeição" exigiu outra. "Você fala algum outro idioma?" perguntou a patroa a uma candidata, indignada diante da arrogância da pretensa "secretária do lar", como algumas querem ser chamadas.

O Egito acaba de demonstrar que é possível fazer revolução sem derramar (muito) sangue, algo digno de ser imitado. Mas, quantos anos tem o Brasil? Quantos anos tem o Egito? Na Líbia e em vários outros países, com população muitíssimo inferior à do nosso, milhares de pessoas vão às ruas, dispostas a pagar o preço do atrevimento. No Brasil também. Para pedir a liberação da maconha.

Talvez alguém tenha a bela ideia de, em sinal de protesto, um dia plantar vassouras verde e amarelas em Brasília. Quer apostar que algum comerciante local acaba levando pro depósito aquela tentação colorida? Deve ser efeito da água do lago Paranoá.