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A insensatez ganha marcha

terça-feira, 20 de março de 2018

Atualizado em 19 de março de 2018 13:27

O assassinato de Marielle Franco é apenas
mais uma peça a formar um mosaico

Está cada dia mais claro que as eleições presidenciais deste ano terão importância diminuída, dado que a crise de representatividade não será superada (vide meu artigo de 6/2/18- "Eleições em importância"). Sem reformas estruturais no campo político, notadamente no que diz respeito às eleições e ao funcionamento dos partidos, teremos "mais do mesmo". De fato, o que se pode vislumbrar são dois cenários distintos face à constatação de que o presidente da República continuará sujeito à desorganização partidária no Congresso: ou o primeiro mandatário aderirá ao "parlamentarismo de exploração" que vige por aqui ou haverá ruptura desse processo, eventualmente menos democrática. Esse último cenário vem ganhando cores novas.

Há que se notar que a emergência de reformas estruturais profundas no campo econômico (previdência social, reforma tributária, privatizações, etc.) e no campo social (educação básica, reforma universitária, pobreza extrema, etc.) não permitirão que os arranjos congressuais para sustentar o governo deixem de apresentar enorme gap com a realidade do país. Os delírios dos palácios brasilienses têm ampliado à crise de representatividade vez que o distinto cidadão vislumbra que por aqueles lados do Planalto Central não existem soluções para os seus problemas concretos.

De outro lado, aqui e ali está mais evidente que os caminhos da política no Brasil passam pelo recrudescimento do autoritarismo, da violência e da insensibilidade. As soluções imaginadas para a conflagrada agenda nacional estão saindo do curso do tão comentado "Estado Democrático de Direito" para crescente instabilidade institucional. Os sinais são múltiplos e não formam um conjunto que permitem fixar um diagnóstico razoável de onde estamos. Muito menos para onde iremos. Certo é que os exemplos são múltiplos.

Preocupa-nos imensamente que no campo do Judiciário a jurisprudência civil e criminal, apenas para citar duas, está se tornando verdadeiro "queijo suíço". Não se sabe se o que se vê são os vazios não preenchidos ou as substâncias que os contornam. A consequência da alta imprevisibilidade jurisprudencial dos tribunais, especialmente os superiores, é que os juízos éticos, os quais são, no caso, necessariamente normativos, não estão mais a pautar o senso do dever-ser social. Assim, estamos a tropeçar em comezinho casuísmo. Não precisa ser "cientista político" para saber que o juízo de valor judicial dá fisionomia concreta e inafastável para o tratamento dos desvios sociais. Portanto, o Estado-juiz deve ser o guia-mestre pronto a punir perante o caso concreto que se configura antijurídico (e portanto, não-ético no sentido político), ao mesmo tempo em que previne abstratamente o mau comportamento social.

Ora, quando se tem errática jurisprudência, avanços temerários da força policial do Estado, quando se aceita passivamente a intervenção militar como parte da solução dos dramas civis ou quando se registra crescentes dúvidas de que há ilegalidade nos mandatos de prisões e buscas, está-se a caminhar em pantanoso campo. Em verdade, estamos enfiando debaixo do tapete aqueles básicos direitos civis, de natureza subjetiva. Passa-se do campo da valorização do sujeito político - o tal cidadão que tem o poder do voto, mas que dele não usufrui vantagem social - para a realidade objetiva da violência e da violação normativa pela qual se procura satisfazer a frustração (crescente) da sociedade. Em palavras metafóricas, aceita-se crescentes ondas de bravatas de Jair Bolsonaro, desde que ele tire o traficante da viela da favela onde se mora.

O problema de todo esse cenário de incerteza em torno do Estado-juiz é que a demanda por mais transigência em relação ao dever-ser do "Estado Democrático de Direito" é que há probabilidade concreta de adentrarmos em perigosa espiral que, como se sabe, só se esgota quando certa explosão (sócio-política) forja outro movimento de pacificação. A ortodoxia que vige nas variáveis econômicas diverge da heterodoxia que se verifica na sociedade brasileira em termos políticos e sociais: cada vez mais se despreza a ordem estabelecida sem que se coloque outra ordem sobre a original. Não à toa, os tais movimentos sociais fazem barulho "nas ruas", mas o que funciona mesmo são os ouvidos moucos de Brasília que tem a caneta e o poder de legislar na mão. Enquanto isso, amontam-se cadáveres nas ruas, estudantes sem aulas, universidades que não funcionam, hospitais falidos, ônibus e trens queimados, policiais criminosos, corrupção por todos os poros do Estado e assim vai.

Como se vê, fatos como o assassinato de Marielle Franco é apenas mais uma peça a formar um mosaico ainda sem forma da crescente desordem social e política. Não difere, nesse sentido, da incerteza dos tribunais em relação ao tratamento das prisões (ou não) em segunda instância, da falta de orçamento de uma eleitoreira intervenção militar no Rio de Janeiro, do massacre das prisões cearenses ou do ranking desastroso da educação brasileira. Pode não estar clara ainda a imagem desse mosaico, mas não resta dúvida que estamos na construção de um quadro como Guernica.

A passividade da sociedade brasileira diante de seus verdadeiros dilemas, problemas e dramas é impressionante. Mais ainda, deixa boquiaberto ao analista dessa realidade que verifica que a pacificação social é abandonada pelas esferas mais elevadas do Estado.

O caminho do momento é perigoso como o trajeto entre a rua dos Inválidos, no Centro do Rio de Janeiro e a rua Joaquim Paralhes, no Estácio, onde morreu Marielle Franco. Fato inesperado, mas já pressentido.