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Afinal, podem os precedentes ser utilizados no Direito de Família?

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Atualizado em 30 de junho de 2016 12:55

Mônica Cecilio Rodrigues

Diante das inovações trazidas pelo Código de Processo Civil referente as ações de família, em aula que comentava as normas processuais pertinentes ao referido direito, surgiram algumas indagações relativamente as modificações havidas; e também estarrecimentos, v.g., o mandado de citação sem acompanhamento da petição inicial (vide artigo 695, parágrafo primeiro do CPC).

E levando adiante a aula com outras explicações sobre as novidades do processo, surgiu então uma pergunta interessante de um aluno inconformado com as variadas e contraditórias decisões que envolvem Direito de Família nos Tribunais e também na Corte Superior, no seguinte diálogo:

- Professora, o NCPC esta aí, mas percebemos que a insegurança jurídica continua a mesma. "Bronca que dá em Francisco, nem sempre serve para o Chico"! Para que mudar todo o processo se o Judiciário continuará com decisões para todos os gostos, principalmente no Direito de Família?

- Caríssimo, respondi desolada, é realmente verdadeira esta sua observação. Mas agora com o NCPC a pretensão é uniformizar as decisões em casos idênticos, mantê-las estáveis e coerentes - lhe respondi. Mas já sabendo que esta péssima expectativa dele só seria rechaçada com uma mudança cultural no proceder das decisões pelos Tribunais.

E continuei tentando despertar 'uma nova opinião já formada sobre tudo':

- Podemos observar que o artigo 9261  do CPC preocupou em determinar como serão editadas as súmulas, para que possa propiciar uma descrição dos fatos e com isto serem utilizadas com mais segurança e adequação aos casos subsequentes, o que poderíamos denominar de técnica do precedente.

E o aluno entusiasmado com a novidade me retorna a pergunta:

- Professora, então o que seria precedente? E pode ser ele aplicado no direito de família?

Instigada por esta pergunta, feita ansiosamente pelo aluno, procurei esclarecer a resposta que acabou se tornando o texto abaixo:

Nos países da common law, os precedentes são reconhecidos como fonte de direito, a exemplo da Inglaterra e dos Estados Unidos. Não obstante vários cientistas2 do Direito pátrio3 terem escrito sobre precedentes e sua utilização, até o presente momento persiste o temor com relação a sua utilização no Direito de Família, o que se torna preocupante para os destinatários de soluções envolvendo esse tipo de direito.

O precedente é conhecido, sem muitas minúcias, como a decisão proferida anteriormente e que será aplicada, por amoldar-se ao caso concreto, idêntico e posterior, e por vezes diferenciado do texto legal, o que pode trazer ínsita uma incompletude peculiar e inconveniente, frente à falta de antevisão de decisões futuras4.

A formação histórica e a aplicação dos precedentes pela doutrina inglesa não são as mesmas da doutrina americana e, muito menos, para os brasileiros.

Em um brevíssimo relato da história dos precedentes em nosso país, vale lembrar que a versão aprovada pela Câmara dos Deputados, com redação final de 26/3/2014, do Código de Processo Civil, trazia em seu texto 16 menções sobre precedentes, com capítulo próprio (na Parte Especial, Livro I, Título I, Capítulo XV) e algumas referências esparsas ao longo do Código, nos títulos que vão desde a necessidade de utilizar as rules of precedent quando não seguir o precedente invocado pela parte sob pena de falta de fundamentação da sentença (art. 499, parágrafo primeiro, inciso IV), até o reconhecimento de repercussão geral quando o recurso impugnar decisão contrária à precedente do Supremo (art. 1.048).

Todavia, a situação foi muito modificada com a aprovação da lei 13.105, de 16 de março de 2015. O Código de Processo Civil em vigor trata en passant do instituto dos precedentes, ou seja, não lhe dá muito valor e reconhece sua utilidade em apenas cinco artigos.

Ainda estamos jejunos com relação aos precedentes, apesar do avanço ocorrido no Projeto do Código de Processo Civil, com 16 menções sobre precedentes. Houve um retrocesso na aprovação do Código de Processo Civil em que podemos observar que os precedentes foram timidamente mencionados e sem a importância outrora dada no Código Projetado.

Surge uma grande preocupação ao se observar que a utilização do termo precedente na lei processual não é com o mesmo significado do instituto importado da commom law, a exemplo do artigo 926, parágrafo 2º5, que determina aos tribunais apoiarem nas circunstâncias fáticas dos precedentes para editar os enunciados das súmulas, ou seja, enunciados de súmulas serão arrimados no hechos contidos nos precedentes. Com certeza, esta dubiedade de significados trará interpretações contraditórias e confusas para a aplicação do novel instituto no direito processual pátrio, seja com vistas à segurança, previsibilidade e igualdade nas decisões de processos semelhantes, tríade que confere existência aos precedentes.

Não se nasce precedente, torna-se precedente. E isto acontece com a subsunção de hechos contidos em uma decisão anteriormente proferida, enquadrando-a para aplicá-la ao caso concreto que a sucedeu. Todavia, para a formação do precedente exige-se verificação e adequação mais acuradas dos fatos ao caso posterior que se pretende resolver.

Rosas considera o precedente uma "solução" com carga de persuasão para decisões futuras, que norteará o julgador, informando e até mesmo "simplificando" seu trabalho, não constituindo uma obrigatoriedade sua aplicação6.

Formação

O precedente não se iguala à jurisprudência, e esta pode ser até formada por um precedente. E utilizando o próprio regramento processual vigente, os tribunais, ao editarem os enunciados das súmulas, devem "ater-se às circunstâncias fáticas" contidas nos "precedentes que motivaram sua criação"7, como já mencionado.

Devemos reconhecer que possui maior força persuasiva a jurisprudência de uma sessão plenária do Supremo ou da sessão da Corte Superior do que um precedente firmado nos Tribunais Estaduais, pela maneira como o sistema recursal se desenvolve e se retroalimenta, na legislação brasileira, que muitas vezes não acata nem mesmo o autoprecedente.

O precedente é uma decisão isolada; já a jurisprudência é identificada pela repetição de uma mesma posição no tribunal, na solução de casos semelhantes.

Diferencia-se da jurisprudência em razão de suas características particulares em sua formação, entre elas a jurisprudência composta de enunciados ou capítulos da decisão, não mencionando os fatos em sua construção. Já o precedente se divide em duas partes: ratio decidendi e obiter dictum, sendo que a segunda parte contém a narrativa fática do caso em análise, servindo apenas como persuasão, e deverá ao menos ter identidade essencial com o próximo caso. Essa narrativa fática facilita muito quando da aplicação dos precedentes nos casos que envolverem direito de família, frente à necessidade de identificação dos fatos, que muitas vezes contêm minúcias e peculiaridades de cada relação, quer seja filial, conjugal ou até mesmo negocial.

Em uma explicação elementar, a ratio decidendi somente é identificada na decisão posterior e traz a razão e os fundamentos jurídicos que escoram o resultado do julgamento. É "o dito para morrer" que, quando excluído, modifica o julgado, vinculando a decisão.

Quando se fala em jurisprudência, vislumbra-se sempre a quantidade de decisões ao menos majoritárias dos Tribunais. Já o precedente é único, que se encaixa ao caso subsequente, em razão dos fatos serem iguais, sem exigência de quantidade de decisões para que persuada sua utilização.

Oponho-me respeitosamente aos estudiosos do tema8, que tendem a atribuir à jurisprudência uma qualidade superior, haja vista ter sido aquele direito analisado por diversas vezes pelos Tribunais, caracterizando a reiteração de orientação no mesmo sentido (!), simplesmente porque esta análise pode também trazer disparidades entre os resultados e até mesmo contradições gritantes, a exemplo do que acontece em nossas Cortes Nacionais. As estatísticas demonstram o elevado número de decisões existentes nos Tribunais estrangeiros quando utilizam a jurisprudência em comparação aos países que aplicam os precedentes. É o ponto de convencimento para a defesa da utilização do precedente, trazendo, assim, mais segurança, previsibilidade e igualdade nas decisões de casos semelhantes.

Convém destacar a preocupação de renomados processualistas brasileiros9 na aplicação dos precedentes, considerando que se deve tomar cuidado com o direito material e substancial que se julga, pois não seriam todos os direitos aptos para essa solução. Direitos materiais que sofrem alterações sociais, éticas, científicas ou que possuem alta carga axiológica e temporal, frente à evolução social, onde tipicamente são utilizados os princípios e regras que lhe são próprios, não seriam apropriados aos precedentes, mas devem ser reconhecidos como hard case, particularidade esta que está ligada aos direitos de família.

Talvez melhor solução para o julgamento seria, visando à tão propalada evolução que muitas vezes a legislação não acompanha, a exigência de identidade essencial e não a absoluta10, sob pena de se tornar infrutífero o instituto do precedente a direitos que sofrem alterações por mudança de valores de uma época.

O texto legal é aberto, por isto acabam sendo reconhecidas várias normas. Hart nos fala que é convenientemente aberto porque não existe possibilidade de o legislador pensar e, por via de consequência, prever todos os fatos que virão a acontecer e que necessitam de regulamentação11. O Estado tipifica o objeto a ser protegido, valora-o e descreve as normas de conduta para aquele objeto; todavia, por vezes tais normas se moldam aos fatos com alguns ajustes permitidos pela própria legislação. Já no caso do precedente, seria uma "roupa feita sob medida" para aquele caso.

Nos países que se utilizam dos precedentes existem regras para sua aplicação. São as rules of precedent, não as reconhecendo como técnicas jurídicas, mas como regras de interpretação. Para nós, principiantes, essas regras seriam necessárias também, visando garantir os propósitos da lei.

Se considerarmos a teoria constitutiva da jurisdição12, em que o juiz constrói o direito para aceitar o precedente como fonte de direito, necessitamos de regras de interpretação e de aplicação dos precedentes para nossa segurança jurídica.

O overruling e o distinguishing são as regras mais propaladas nas doutrinas nacionais sobre precedentes. A primeira, com forte carga temporal, serve para o aplicador da lei excluir o precedente, uma vez que se encontra ultrapassado; já o distinguishing é adotado pelo julgador quando reconhece não haver identidade quanto aos fatos em comparação (art. 489, parágrafo primeiro, inciso VI do CPC).

Para que seja utilizada a figura do precedente, as decisões devem ser mais elaboradas pelos Tribunais, com narrativa fática preferencialmente mais detalhada. Infelizmente, o que vemos, tanto na Corte de Cassação como nos Tribunais de Apelação, são decisões muitas vezes contraditórias entre si, seja na dimensão vertical ou horizontal, mesmo quando ocorre a identidade essencial dos fatos. Com o propósito de desaparecerem essas contradições existentes, deverão ser utilizados os precedentes.

A cultura deverá ser mudada a fim de que se use a decisão anterior a fatos com identidade essencial, sem qualquer imposição legal, mas por consciência da necessidade de manter a segurança e unicidade jurídica, em casos iguais.

O Superior Tribunal de Justiça deverá ser reconhecido como Corte de Precedentes13 pelos julgadores inferiores, por respeito a uma característica fundamental dos precedentes: a força, ao menos persuasiva.

Ultrapassada a preocupação da nomenclatura que se adota para quando o tribunal "fixa um entendimento", quer seja jurisprudência, acórdão, súmula ou precedente, as leis processuais devem pautar-se pela segurança jurídica e igualdade das decisões em casos concretos que se assemelham, para que não se instale uma torre de babel em nosso sistema jurídico.

Precedentes e o Direito de Família

Diante dos resultados já proferidos na Corte de Apelação e também na de Cassação sobre os direitos pertinentes à família, vemos que existem, e não são poucas as divergências entre os próprios pares, a exemplo da decisão sobre dano moral por abandono14, sobre o termo inicial dos alimentos definitivos15, entre outros. Existe também o reconhecimento de repercussão geral sobre o direito filial, determinando a suspensão ou sobrestamento até a decisão final do Recurso Extraordinário16, "por entender que a matéria é relevante sob os pontos de vista econômico, jurídico e social".

Assim, a Corte de Cassação, exercendo sua função nomofilácica, acaba por criar novas decisões contrárias às já pacificadas, no Direito de Família, causando instabilidade e imprevisibilidade no sistema decisional. E essa insegurança jurídica reflete no ordenamento jurídico nacional, sem exceção. Portanto, deve-se desenvolver um estudo crítico, prestigiando as decisões da Corte de Apelação, levando em conta a jurisprudência também da Corte Superior e da Suprema Corte, não esquecendo que essas decisões acontecem em campos onde a valoração do fato tem raízes temporais e históricas. Por isto, a modificação é comumente mais esperada, para que se possa apresentar aos jurisdicionados uma pacífica e segura solução aos casos de família.

Quanto à aplicação dos precedentes nesse ambiente decisional, sejam rigidamente respeitadas as técnicas de formação dos mesmos, sob pena das decisões construírem um caos no direito, não só material.

Dando destaque a algumas decisões da Corte Superior, para estudos onde se preocupa com a força persuasiva ou quiçá vinculante delas, deve-se procurar identificar seu conteúdo, a exemplo da ratio decidendi e do obter dictum, para que não seja desrespeitado o princípio da igualdade entre casos idênticos. Ou talvez ser aplicado o distinguishing ou overruling, para se encontrar a melhor decisão do caso concreto.

Possam este estudo e investigação preliminar despertar a necessidade de um aprofundamento no conteúdo das decisões proferidas em direito de família, principalmente na narrativa dos fatos, com vistas à previsibilidade e estabilidade, vez que as questões ali envolvidas não são só direito patrimonial das relações familiares, mas também direito extrapatrimonial, como as relações socioafetivas.

Finalmente, com nosso sistema processual abrigando a importância dos precedentes, mesmo que acanhadamente, com certeza haverá unicidade e segurança jurídica, ceifando as interpretações potencialmente infinitas dos direitos relativos à família, que muitas vezes fogem ao sistema jurídico, onde se reconhece o Juiz também como criador do Direito.

__________

1 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

2 Na definição de Carnelutti, "não se pode confundir o cientista com o intérprete das leis; este último é um obreiro, ou seja, um prático, não um teórico do direito; decerto, também ao primeiro interessa a interpretação, mas o seu mister não é interpretar e sim ensinar como se interpreta, o que também se pode fazer interpretando, por meio da imitação, mas se deve fazer principalmente descobrindo e mostrando as leis da interpretação". CARNELUTTI, Francesco. Metodologia do Direito, São Paulo: Pillares, 2012, p. 31.

3 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim e outros. Direito Jurisprudencial, São Paulo: RT, 2012; MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas. São Paulo: RT, 2013; MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios, São Paulo: RT, 2010, A Ética dos Precedentes, São Paulo: RT, 2014, O STJ enquanto corte de precedentes, São Paulo: RT, 2013; STRECK, Lênio Luís, O que é isto - o precedente judicial e as súmulas vinculantes? , Rio Grande do Sul: Livraria do Advogado, 2015; ZANETI JUNIOR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes, Bahia: JusPodivm, 2015; ATAIDE JUNIOR, Jaldemiro Rodrigues De. Precedentes Vinculante e irretroatividade do Direito no Sistema Processual Brasileiro, Curitiba: Jurua, 2012.

4 HART, H. L. A., The Concept of Law, 1961, p. 125.

5 ART. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Parágrafo 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

6 ROSAS, Roberto. Segurança jurídica. Efetividade. Jurisprudência. Revista de Informação Legislativa, ano 48, n. 190 abr./jun. 2011, p. 218.

7 ART. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

8 TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Editoriale Scientifica. 2007.

9 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT. 2.012, p. 39; MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT. 2010.

10 WAMBIER, Teresa A. A., obra já citada.

11 HART, Hebert Lionel Adolphus. O conceito de direito, São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 161.

12 Tendo como fonte os processualistas Teresa Wambier e Taruffo.

13 MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes, São Paulo: RT, 2013.

14 BRASIL, STJ, EREsp 1159242/SP, 2.ª Seção, rel. Ministro João Otávio de Noronha, j. 23/05/2014.

15 BRASIL, STJ, Ag. Reg. no REsp 1.412.781-SP, 4º T., Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, p. 25/04/2014.

16 BRASIL, STF, Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 692.186/PB, rel. Ministro Luiz Fux, j. 29/11/2012.