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A combalida administração municipal no Brasil

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Atualizado às 08:30

Daniel Barile da Silveira

O município é o centro da vida cívica das pessoas. Nele é que se desenvolvem as relações econômicas, estabelecem-se vínculos jurídicos mais concretos, discute-se a política, exerce-se a cidadania, bem como se entabulam os relacionamentos amicais e amorosos mais verdadeiros. O município é o repositório em que as pessoas vivem e determinam seus destinos, construindo seus projetos de vida, em meio a uma comunidade de pessoas que igualmente compartilham da mesma experiência inafastável do cotidiano.

Ocorre que, não obstante a dimensão quase que centrípeta do universo social concentrada na figura do município, tímida, ainda, a Constituição Federal de 1988 dedicou espaço a ele. Especificamente, em termos de regulação constitucional mais detalhada, foram 3 mais importantes artigos destinados à organização político-administrativa municipal (arts. 29 a 31, CF), além de mais um outro destinado exclusivamente aos tributos municipais (art. 156, CF). Na leitura do texto constitucional, aqui e acolá, aparecem ainda alguns dispositivos mais esparsos versando sobre a atuação municipal, mais notadamente sobre a segurança pública (art. 144, §8º, CF), símbolos municipais (art. 13, §2º, CF) ou mesmo a obrigação de atender prioritariamente o ensino fundamental e a educação infantil (art. 211, §2º, CF). Todavia, nas mais de 250 menções sobre o município no texto da Constituição, a maioria desta disciplina legal está atrelada a regras igualmente aplicáveis à União, aos Estados e ao Distrito Federal, carecendo de uma atenção específica a este núcleo local.

Em parte, tal arranjo institucional decorre de nosso federalismo desconcertado, cujos poderes são muito mais claramente identificados, concentrados e disciplinados na esfera federal, complementados, ainda, pelas atividades destinadas à esfera estadual (e distrital). Essa assimetria seletiva certamente lança impacto direto na disciplina jurídica e na atribuição de responsabilidades constitucionais à administração municipal, que acaba assumindo atribuições que não as suas, mas que, em virtude da proximidade do cidadão, não pode escusar-se ao atendimento do munícipe. Uma rápida passagem nas procuradorias municipais indicará o excesso de litigância de assuntos não especificamente municipais, mas que indicam o município como o responsável passivo, mormente nos campos da saúde, assistência social e educação.

Apesar da pouca vigilância externa, nas últimas três décadas, a gestão municipal tem se tornado centro de atenção na formulação e execução das políticas públicas nacionais, de maneira a redefinir o papel das administrações municipais, especialmente no que concerne ao nível de atendimento setorizado das demandas sociais, um processo também acompanhado de gastos expressivos pelos governos locais. Este mecanismo está intimamente associado a uma proposta mais ampla de reforma do Estado e de redemocratização da região, centrado na ideia da descentralização da gestão pública e de uso racional dos recursos públicos, com controle e responsabilização de sua origem e destino. Trata-se de um verdadeiro processo lento e contínuo de municipalização das demandas públicas, as quais, por muitas vezes, substituem a atividade do gestor estadual e federal, em nome do atendimento mais rápido e eficiente do munícipe.

O fato é que o modelo constitucional federalista atual estabelece uma descentralização administrativa sem fornecer meios próprios para isso. Para que a desconcentração seja efetiva, será necessário que se assegurem aos governos municipais recursos suficientes para o desenvolvimento de serviços sob sua responsabilidade. Por mais que haja um mais eficiente mecanismo de repartição de receitas com um progressivo aumento do Fundo de Participação dos Municípios - FPM (estimulado pela antiga Emenda Constitucional 23/83, pré-Constituição de 88), bem como com o incremento da capilarização dos recursos por meio de estabelecimento de convênios federais com os municípios, tais estratégias ainda carecem de ser efetivas às administrações municipais. Isto porque este modelo está sujeito a revisões periódicas tanto pelo Governo Federal quanto pela política assumida quando mudança de governo, comprometendo a segurança e a estabilidade da manutenção dos projetos implantados. Resta, portanto, a necessidade do estabelecimento de fontes adicionais próprias de arrecadação, cuja atual dependência das políticas federais não somente compromete a eficiência dos programas, como permite a dependência econômica dos municípios à União, incompatível com a descentralização teoricamente proposta na reforma estatal.

Como consequência desta agenda adotada, com a maior assunção de responsabilidades verticalizadas a nível local, exige-se da administração um maior aparelhamento técnico, com reclames explícitos pela sua profissionalização. Seu resultado é o incremento do nível de controle popular e de fiscalização pelos órgãos controladores sobre a administração municipal. Como resistência à fluidez desse processo inevitável, nem sempre o nível técnico da exigência dos órgãos controladores é correspondido pela burocracia ainda desprofissionalizada de muitos municípios brasileiros. Pensando as prefeituras em nosso extenso território, na sua maior parte ainda timidamente aparelhadas, promove-se um sem-número de responsabilizações de agentes públicos, comprometendo não só o regular uso dos recursos às finalidades entabuladas, diante das contenções e paralisações de subvencionamento, mas também se instaura uma atmosfera de dificuldades gerenciais dos gestores públicos perante a satisfação de todas as exigências dos órgãos de fiscalização, postas como uma necessidade irrevogável dos novos tempos. E o enredo dessa história é um só: há exigência sem capacitação, comprometendo a fidelidade dos compromissos estatais perante os serviços públicos prestados.

De uma certa maneira, esta conjuntura é o que o jurista Carlos Ari Sunfdeld já prenunciava pelo surgimento de um verdadeiro "Direito Administrativo do Medo", como um novo modelo surgido e que ainda se impõe1. Obviamente que a corrupção existe e precisa ser combatida. Sem embargo, de uma maneira indireta, o afastamento de "bons nomes" na política municipal (também estadual e federal), bem como a constante abdicação do gestor público na inovação de práticas na gestão municipal decorrem desta premissa, carregada de insegurança jurídica e excessiva fiscalização sem a contrapartida capacitatória. Como nos lembra Fernando Vernalha Guimarães, "é uma crise da ineficiência pelo controle", ou seja, "o administrador público vem, aos poucos, desistindo de decidir. Ele não quer correr mais riscos"2.

O fato é que as administrações municipais precisam receber olhares mais atentos tanto da academia e da sociedade civil, para pensar novos modelos de organização, quanto do Parlamento Federal, responsável por implantá-los. O desafio maior desta conjuntura é conciliar o uso racional dos recursos públicos com as infindáveis necessidades locais existentes. Em contrapartida, conforme estudos recentes, cerca de 70% dos municípios brasileiros dependem hoje em mais de 80% de verbas oriundas de fontes externas à arrecadação3. Mais da metade destas prefeituras, em torno de 60%, dependem como maior fonte de arrecadação o Fundo de Participação dos Municípios. (FPM). Na mesma medida, mesmo assim, em média, as prefeituras aumentaram em 53% o número de funcionários, mesmo a população tendo crescido 12%4.

De fato, faz-se necessário repensar não somente o modelo federativo de repartição de competências e de distribuição de recursos, especialmente na maneira a estimular os municípios a conquistarem uma gestão que seja mais autônoma das "mesadas federais", bem como que sejam capacitadas para que o gasto racional dos recursos seja otimizado. Nestes termos, ainda gastamos mal e não sabemos gerar riqueza em termos de receitas públicas no próprio município.

Por certo, a combalida administração municipal ainda precisa se reinventar, de maneira a desempenhar grandemente o papel confiado pelo legislador de 88 a esse núcleo de existência das pessoas. Este é um exercício contínuo de aprendizado que precisa se tornar como prioridade nacional, a fim de que o atendimento local possa corresponder às expectativas de eficiência validamente exigidos pelo nosso texto constitucional.

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1 In: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros,2014. OU ainda, do mesmo autor: clique aqui. Acesso em 24.09.2018.

2 In: O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. Direito do Estado. Ano 2016, num. 71. Também localizado em:
clique aqui. Acessado em 24.09.2018.

3 In:
70% dos municípios dependem em mais de 80% de verbas externas.

4
Idem.