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Os direitos fundamentais, sua efetividade e necessidade de declaração

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Atualizado às 08:36

Daniel Barile da Silveira

Direitos fundamentais são o conjunto de direitos mais importantes em uma comunidade de pessoas, reconhecidos por uma ordem constitucional. Diante da inestimável importância relacionada à concretização da dignidade da pessoa humana, tais direitos assumem, na doutrina jurídica, um patamar cimeiro de prioridades para a consolidação das reivindicações sociais e para uma construção evolutiva do Direito como um todo, formando a base e os elementos conjunturais que revelam um projeto de futuro sobre o qual se assenta uma sociedade civil organizada.

Assim, ao se falar de direitos fundamentais em uma ordem jurídica democrática está a se tratar tanto de normas jurídicas que geram uma alta carga de obediência, entendidos como regras que impõe deveres precipuamente importantes, mas também que, por esta razão, inclusive, estatuem valores jurídicos inafastáveis para a solidez e o desenvolvimento de uma dada sociedade.

De um lado, então, os direitos fundamentais partem de uma escolha objetiva de uma sociedade livre, plural e diversamente constituída. Apesar de algumas dessas normas valoreticamente respeitarem alguns princípios universais (como o respeito à vida, à liberdade, a crença etc.), o modo como devem ser estabelecidas as regras e os limites a estes direitos parte de uma deliberação coletiva de indivíduos, que positivam estas escolhas na Constituição através de um consenso legislativo unificante. Conforme estabelece o autor alemão Jürgen Habermas, "a criação de direitos fundamentais se assenta na escolha dos indivíduos, iguais e livres, que decidem legitimamente regular a vida coletiva pelo direito positivo"1. Por certo, apesar de tal processo de positivação de direitos nas Constituições possa estar sujeito a falhas (como toda lei humana está sujeita a erros), o próprio mecanismo de amadurecimento das escolhas democráticas conduz a que as normas possam ser revistas, reinterpretadas e ressignificadas, atualizando-as no tempo e condicionando-as a mais bem e certeira conformação às necessidades sociais emergentes.

De qualquer forma, é importante pensarmos nos direitos fundamentais como salvaguardas das escolhas mais importantes de nossa sociedade, especialmente como instrumentos de proteção contra abusos estatais e da violência originada pelos poderes econômico, político, social, ou mesmo derivada da ignorância destemida de certos incautos. Tanto é que, para os alemães, este conjunto protetivo de defesa contra o poderio estatal é denominado de "direitos de resistência" (Abwehrrecht), impondo-se como um verdadeiro mecanismo de escudo tutelador contra as vontades privadas, resistente ao arbítrio de certos indivíduos e instituições.

Direitos fundamentais são verdadeiros critérios de legitimação do Estado Moderno, como diria L. Ferrajoli, "para além da função limitativa do poder"2, eis que fornecem uma base resistência e de respeitabilidade às escolhas dos indivíduos como sendo o centro da Política e do Direito atuais. Para Ronald Dworkin, estes direitos seriam verdadeiros "trunfos" contra o poder do Estado, já que serviriam como "cartas na manga", como "coringas", que poderiam ser eficazmente apresentados à autoridade toda vez que o manifesto sentimento de autoritarismo rodeasse seu comportamento3. Direitos fundamentais servem simbolicamente como um lembrete, sem dúvida, de que nem sempre a força e o poder tripudiam, mas que a palavra escrita da Constituição tem mais força de que qualquer ser vivo animado.

Nesta mesma percepção, o autor brasileiro Oscar Vilhena Vieira demonstra a importância dos direitos fundamentais pelo seu aspecto pragmático: para o estudioso, estes direitos servem como verdadeiras "reservas de justiça" no sistema jurídico4. Isto porque lançam sobre uma comunidade de atores sociais valores socialmente importantes (como respeito mútuo, diversidade de escolhas pessoais, proteção das minorias etc.), exigindo de todos a tolerância desejada. Além disso, são espaços constitucionais de proteção a quem dos direitos precisa, configurando um notório repositório defensivo contra a opressão e de afirmação da justiça concreta que deve balizar as relações sociais cotidianas.

Por certo, se os direitos fundamentais são relevantes e são expressão constitutiva de um povo, como se quis até então demonstrar, é importante perceber que eles também demandam um constante acréscimo, no sentido de se buscar regularmente a positivação de novos direitos, igualmente fundamentais. Neste sentido, a Constituição é o relicário civil da construção e da redefinição dos novos direitos fundamentais. Embora nasçam no seio da sociedade sob a veste de uma reivindicação pública, o curso regular que se espera dos novos direitos é que eles sejam alçados à norma constitucional, simbolicamente lá expressos e, a partir de então, passando ser indistintamente exigíveis. Ainda que não sejam positivados (escritos, esclarece-se), é o trâmite normal da vida democrática de que possam ser revelados a partir de uma interpretação construtiva a partir do texto constitucional, reconhecendo-se direitos socialmente exigíveis. Exemplificativamente, assim aconteceu com os direitos para a união homoafetiva, os direitos atinentes às cotas raciais ou mesmo o reconhecimento dos direitos contra o discurso de ódio, dentre muitos outros.

Neste aspecto, se o caminho trilhado para a positivação de novos direitos fundamentais é a via do Legislativo, que tem a missão de ser o filtro das expressões mais fragmentadas e significativas da sociedade, canalizando suas reclamações em forma de projetos legislativos, nem sempre isso acontece. Como é comum de democracias tradicionais ou de um sistema político que ainda não representa essa capilarização das diversidades setoriais da sociedade, como no caso brasileiro, temas polêmicos, mas que expressam a positivação necessária de direitos fundamentais, acabam sendo abandonados porque se mostram antipáticos à maioria constituída. Assim, qualquer causa que não seja a da maioria, acaba enfrentando o risco de ser vencida no debate público, perdendo massa evolutiva em face de discursos convergentes representativos de grupos sociais majoritários. A visão do outro desaparece em face do atendimento dos interesses macroidentitários da população, isto é, com o qual a maioria da população se identifica. Nem sempre se dá voz, assim, aos interesses, igualmente legítimos e constitucionais, das minorias estabelecidas.

É neste momento que se devem posicionar os juízes, especialmente os da Corte Constitucional de um país, como bastiões do respeito à Constituição. Quando necessário, em certa medida devem se posicionar contrários à vontade popular majoritária, por vezes decidindo a favor da Constituição e contra o povo. Não que a maioria da população não mereça atenção, longe disso; mas a história social dos povos demonstra que a maioria pode ser perversa aos desígnios humanos de evolução valorativa e de empoderamento da dignidade como vetor de construção social. As atrocidades nazistas foram as primeiras a trazer a lume esta preocupação, mas sempre as sombras de tal pesadelo ressonam nos ouvidos das democracias, desde as mais jovens até as mais experienciadas. Veja-se: se a pena de morte fosse uma decisão a ser submetida à vontade do povo, como a maioria decidiria? E se a tortura de criminosos fosse explicitamente possível ser decidida em plebiscito? E se a decisão sobre as preferências de idosos, grávidas, deficientes ou mesmo cotas raciais fosse algo relegado para a maioria decidir incontestemente? É claro que os cenários aqui poderiam ser diversos dos atuais, especialmente porque é esperado que a maioria decida pela maioria. Ocorre que nesta decisão soberana pode estar implantado o gérmen da iniquidade, ou mesmo a raiz da intolerância e do desconcerto de uma sociedade que vive sob a égide dos direitos fundamentais e que deve, sobremaneira, garanti-los.

É neste contexto que os juízes (constitucionais, sobretudo) são os verdadeiros "guardiões de promessas" da democracia, como salienta francês Antoine Garapon5. Garantir o respeito aos direitos fundamentais, certamente, é das tarefas mais dignas do comportamento judicial atual, e, diante da experiência histórica do constitucionalismo liberal ou da social democracia, o legado dos déficits do Legislativo e do Executivo, respectivamente, imprimem ao comportamento judicial esta tarefa "hercúlea" (Dworkin). Este certamente é um processo que está em curso e que merece nossa total atenção. Porque se a desconfiança popular existe publicamente sobre o Parlamento e também sobre o Chefe do Executivo, por vezes se mostrando inefetivos ao julgamento popular, o que será de nossa sociedade se os juízes também não resguardarem nossos bens constitucionais mais íntimos?

Diz-se muito por aí que temos muitos direitos. De uma certa maneira, isto é verdade. Temos mais direitos que qualquer cidadão da alta elite do século XIX. E o progresso da humanidade, tecnológico sobretudo, levará à construção de mais e mais direitos, como aqui se vaticina. Ao que tudo indica, essa é uma curva exponencial e, ao que se espera, que seja irreversível. Mas a questão que mais preocupa a todos não é necessariamente de criar mais direitos em si, por mais importante que sejam, mas de fazer garantir os direitos fundamentais que já conquistamos. A efetividade e a garantia dos direitos fundamentais ainda é uma página que estamos a construir com muito debate e esforços institucionais. Que a luta continue, que seja breve e que o valor intrínseco dos direitos fundamentais remanesça vitorioso, especialmente em momentos como estes, em que as incertezas sobre o futuro podem nos jogar para um abismo de retrocessos, dos quais nenhuma sociedade está imune.

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1 In: Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Universitária, 1996.

2 Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo, RT, 2004.

3 Rights as Trumps. In: Is there a right to Pornography?. Oxford Journal of Legal Studies. London, 1981.
 
4 A Constituição e sua Reserva de Justiça. São Paulo: Malheiros, 2015.

5 O guardador de promessas. São Paulo: Instituto Piaget, 2014.