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14 mil páginas são insuficientes para garantir a transmissão da herança digital

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Atualizado às 09:17

O conglomerado digital de Mark Zuckerberg não tem tido vida fácil na Alemanha.

Não bastasse o Bundesgerichtshof ter prolatado ano passado a paradigmática decisão sobre herança digital, ordenando o Facebook a liberar aos pais o acesso à pagina da adolescente falecida no metrô de Berlim, há pouco o conglomerado enfrentou dificuldades com o cumprimento da decisão.

Relembrando a lide: os pais de uma adolescente, falecida em circunstâncias misteriosas no metrô em Berlim, tentaram acessar o perfil da menina no Facebook para encontrar pistas que levassem ao esclarecimento de sua morte.

Embora possuíssem todos os dados de acesso, o Facebook bloqueou a conta, vedando o acesso da família, tão logo soube da morte da garota por um contato anônimo.

Os pais processaram a plataforma digital e ganharam em ultima instância quando o BGH, esclarecendo a questão, reconheceu como regra a transmissibilidade aos herdeiros da chamada herança digital, exceto se o falecido, em vida, dispôs em sentido contrário, em testamento ou qualquer meio inequívoco.

O julgado virou o leading case do tema na Europa e teve repercussões imediatas, afastando a tese minoritária de que apenas o "conteúdo patrimonial" da conta seria transmissível com a morte, enquanto o "conteúdo existencial" não.

O julgado já foi comentado nessa coluna (clique aqui) e teve grande repercussão.

Há alguns meses atrás, a novela teve mais um capítulo.

Os pais da menina pleitearam uma multa de 10 mil euros por descumprimento da sentença que ordenava a liberação do perfil da garota, porque o Facebook não colocou de forma adequada o conteúdo digital à disposição dos pais, herdeiros da falecida.

Segundo o advogado da família, Christian Pfaff, o Facebook não estava cumprindo a determinação judicial de conceder acesso pleno e irrestrito à conta da usuária, pois os pais ainda não conseguiam acessar a conta.

Eles receberam, ao invés disso, um USB-Stick com um documento em PDF com 14 mil páginas de fotos, mensagens, conversas e postagens feitas pela garota em vida.

Para o Facebook, a decisão fora cumprida, pois todas as informações da conta da adolescente foram repassadas à família.

Segundo a plataforma, seria tecnicamente impossível liberar a conta em "modo passivo", permitindo o acesso da pessoa ao conteúdo, mas impedindo a comunicação e no "modo ativo" o próprio perfil já se encarregava de enviar automaticamente mensagens e lembranças aos contatos.

Ao que parece, depois das astreintes o acesso ao perfil foi liberado para os pais da garota de Berlim. Mas o caso permanece exceção.

O Facebook até mudou, em 2019, as regras aplicáveis em caso de falecimento do usuário, mas ainda é necessária a indicação de contato herdeiro para acessar a conta, cláusula declarada abusiva e nula pelo Bundesgerichtshof.

Isso, porque, sem indicação do contato herdeiro em vida, todo o conteúdo - saliente-se patrimonial e existencial - fica completamente em poder do Facebook e não dos herdeiros.

Ninguém - exceto o próprio Facebook - tem acesso às mensagens privadas do de cujus.

Segundo informações do Facebook na Europa, se não houver a indicação do contato herdeiro, os pais de menores falecidos podem solicitar diretamente sua inclusão como contato herdeiro a fim de decidir o destino da conta, inclusive apagá-la do mundo digital.

Ou seja, aparentemente a conta das pessoas maiores de idade permanecerão, em princípio, bloqueada aos herdeiros, se um deles não for indicado em vida como contato herdeiro.

No site do Facebook no Brasil, contudo, essas informações não estão disponíveis.

No site consta apenas a genérica indicação de que o "contato herdeiro é a pessoa que você escolhe para cuidar de sua conta se ela for transformada em memorial. Se você adicionar um contato herdeiro à sua conta, essa pessoa poderá cuidar da sua conta quando ela for transformada em memorial".

Detalhe: apenas maiores de 18 anos podem selecionar um contato herdeiro. Não há informações sobre o que acontecerá com a conta dos menores de 18 anos. Diz ainda que o contato herdeiro poderá:

  • Escrever uma publicação fixada no seu perfil (por exemplo, para compartilhar uma mensagem final em seu nome ou fornecer informações sobre o funeral).
  • Ver publicações, mesmo que você tenha configurado sua privacidade como "Somente Eu".
  • Decidir quem pode ver e publicar homenagens, se a conta transformada em memorial tiver uma área para isso.
  • Excluir publicações de homenagens.
  • Alterar quem pode ver as publicações em que você está marcado.
  • Remover suas marcações publicadas por outra pessoa.
  • Responder a novas solicitações de amizade (por exemplo, amigos de longa data ou membros da família que ainda não estavam no Facebook).
  • Atualizar a foto do perfil e a foto da capa.
  • Solicitar a remoção da conta.
  • Caso tenha ativado a análise da linha do tempo, o contato herdeiro poderá desativar a exigência de análise de publicações e de marcações antes que elas apareçam na seção de homenagens.
  • Baixar uma cópia do que você compartilhou no Facebook.

O Facebook faz a ressalva de que "outros recursos poderão ser adicionados para os contatos herdeiros no futuro".

Mas, de forma taxativa, a plataforma digital avisa que o contato herdeiro não poderá: (i) entrar em sua conta; (ii) ler suas mensagens e (iii) remover amigos ou fazer novas solicitações de amizade.

Ou seja, talvez seja necessário um pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça ou a aprovação dos projetos de lei em trâmite no Congresso, garantindo a acessibilidade dos herdeiros ao conteúdo digital do falecido, para que o Facebook respeite a regra da transmissão universal entre nós.