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Desigualdades e tributação: por que precisamos fortalecer as bases diretas de incidência?

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Atualizado em 25 de janeiro de 2018 16:13

Abhner Youssif Mota Arabi1

O agravado quadro brasileiro de desigualdade socioeconômica não é novidade. Sabe-se, desde há muito, que há em nosso país um cenário de elevada concentração de renda, fortalecido por um sistema tributário construído sobre bases de incidência indiretas e que, ao se revelar de forma regressiva, acaba por privilegiar iniquidades e gerar ineficiências. Apesar de a Constituição de 1988 representar um importante marco para os esforços político-normativos direcionados à redução de desigualdades, à redistribuição de renda e à construção de um sistema tributário sobre as estruturas progressivas da capacidade contributiva, ainda prevalecem os mesmos problemas já há muito diagnosticados. E as políticas tributárias nacionais possuem participação direta nesse cenário.

É que a construção de uma matriz tributária2 baseada em escolhas que conduzem a uma mais incidente tributação sobre o consumo traz consigo as mazelas da regressividade, em que aqueles que menos recebem são os que mais pagam tributos, em oposição à solidariedade social, à capacidade contributiva, à isonomia fiscal e aos valores constitucionais acima destacados. O antigo diagnóstico aqui narrado parte, até mesmo, de dados produzidos pelos próprios órgãos governamentais, como o Relatório de Observação nº2 dos Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional, produzido em 2011 pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social3, no qual já se apontava, dentre cinco problemas principais da tributação no Brasil, a existência de um sistema tributário regressivo e com má distribuição da carga tributária4.

Em tal relatório, mostrava-se que, já em 2004, dados revelavam uma diminuição do ônus tributário sobre a renda total das famílias conforme cresce essa última variável. A propósito, ali se constatava que quem ganhava até 2 salários mínimos mensais comprometia 48,8% de sua renda no pagamento de tributos, enquanto que o peso da carga tributária para as famílias com renda superior a 30 salários mínimos mensais correspondia a 26,3%. Os números que representam tamanha discrepância são ainda mais drásticos quando se considera apenas os tributos indiretos (como são os tributos sobre o consumo): para o primeiro grupo, a carga tributária corresponde a 45,8%, enquanto que para o segundo 16,4%. De modo diverso, a situação se apresenta em melhores panos quando se considera apenas a tributação direta (como é a tributação sobre a renda e o patrimônio): 3,1% para o primeiro grupo e 9,9% para o segundo. Entretanto, como a maior parte de nosso bolo tributário tem como base de incidência o consumo (os tributos indiretos), o saldo geral se revela iníquo e ineficiente. Tais constatações, é importante frisar, colocam-se em contramão à prática de diversos países na experiência internacional, sobretudo aqueles membros da OCDE, nos quais é mais significativa a parcela relativa à tributação direta.

Mas o tema sobre o qual aqui se discorre não surge apenas da análise desse já antigo estudo - ao qual aqui se faz menção apenas como elemento que exemplifica que o problema não é de diagnóstico ou constatação de nossas deficiências tributárias. É que ao longo desse ano dois outros importantes estudos publicados revelam, também, diagnósticos semelhantes, ratificando esse cenário de iniquidades e ineficiências na matriz tributária brasileira e reclamando a necessidade de mudanças.

O primeiro deles foi publicado em 25 de setembro de 2017 pela Oxfam Brasil, intitulado de "A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras"5. Apesar de se apontar a desigualdade social e a concentração de renda como um problema mundial, o relatório evidencia que tal fenômeno se apresenta com especial gravidade no contexto brasileiro6.

No que se refere à renda, indica-se que 25% de toda a renda nacional está concentrada junto ao 1% mais rico da população e que os 5% mais ricos recebem juntos o mesmo que os outros 95%; não apenas por aqueles receberem muito, mas também por estes representarem uma grande massa que aufere pouca renda - tendo grande parte desse pouco comprometida já com o pagamento de tributos. Nesse sentido, constata-se que 9 dos 10% mais ricos da população brasileira são compostos por declarantes de renda individual correspondente à faixa de 3 a 20 salários mínimos mensais (R$ 2.364,00 e R$ 15.760,00), concentrando metade do total de rendimentos declarados dentro desse recorte. A outra metade pertence ao 1% que ocupa o ápice do topo da pirâmide econômica, com renda média aproximada de R$ 190.000,00 mensais, dos quais grande parte não é tributada. Entre as classes sociais, as desigualdades são ainda mais acintosas quando consideradas parcelas populacionais de maior discriminação histórica, como as mulheres e os negros7.

As desigualdades se traduzem em números também no que se refere ao patrimônio; aqui, de maneira ainda mais discrepante. Os dados trazidos pelo relatório apontam que os seis brasileiros mais ricos concentram a mesma riqueza que outros 100 milhões de pessoas. Os 10% mais ricos possuem consigo 74% de toda a riqueza nacional, estando 48% concentrada com o primeiro percentual mais rico, enquanto uma pequena margem de cerca de 3% da riqueza está junto a 50% da população brasileira. Sem que se condene o êxito empresarial e as iniciativas empreendedoras bem sucedidas, há que se destacar que grande parte dessas riquezas acumuladas é transmitida entre as gerações por herança, cuja maior parte é também não tributada.

Diagnósticos semelhantes decorrem também do segundo estudo que aqui se menciona: "Pesquisa Desigualdade Mundial 2018", realizado por um grupo conduzido por Thomas Piketty, que disponibilizou em 14 de dezembro um grande banco de dados comparativo sobre a evolução da desigualdade de renda no mundo8. Na plataforma, os dados brasileiros são registrados a partir de 2001 e a sua sucessão revela um agravamento do cenário de concentração de renda. Segundo os dados ali constantes, em 2001, a parcela de 1% mais rica da população detinha consigo 25% de toda a riqueza obtida no país, número que avançou para quase 28% nos números agora publicados (referentes a 2015).

O que esses todos esses números e percentuais que se embaralham sugerem é que as escolhas tributárias favorecidas pelo desenho brasileiro, ao dar primazia a bases indiretas de tributação, privilegiam desigualdades pelo incentivo à regressividade. Nesse sentido, é importante destacar que a matriz tributária e as suas características perversas revelam verdadeiras seleções empreendidas em determinados momentos pelos agentes políticos de uma sociedade.

Apesar de se apontar, muitas vezes, que o principal problema tributário brasileiro é sua elevada carga tributária, a verdade é que sua média aproximada de 33%9 do PIB não destoa daquela praticada pelos países membros da OCDE, estando abaixo de muitos desses países. O cerne do problema está, portanto, não em seus números globais, mas na sua iníqua distribuição sobre as bases de incidência e entre os contribuintes, privilegiando a regressividade e a manutenção - senão o agravamento - das apontadas desigualdades social. Ao invés, se se pautasse mais fielmente pelo princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, da CRFB/88) ao se reestruturar sobre bases diretas de incidência (especialmente renda e patrimônio), poder-se-ia ter um importante instrumento jurídico-político de redução de desigualdades e de promoção da autonomia e da dignidade individuais.

É que também as determinações jurídicas de uma sociedade possuem fortes influências sobre as transformações sociais e econômicas que se passam nessa comunidade, devendo o Direito ser concebido também como um instrumento de política social e econômica. Dentro dessas definições jurídicas que refletem consequências socioeconômicas, situam-se as teorias e políticas de tributação adotadas por uma nação e as consequências dessas escolhas na formação de sua matriz tributária.

Cumpre destacar que a defesa de uma melhor redistribuição da carga tributária não se guia por preocupações apenas patrimoniais ou financeiras daqueles menos favorecidos, mas por aspectos que se relacionam diretamente à concretização de seus direitos fundamentais, na busca de uma maior igualdade material. Além de a dignidade humana depender concretamente da titularidade de um patrimônio mínimo que lhe permita ter condições reais de alimentação, moradia, saúde, educação, lazer, dentre outros10; a realização dos direitos fundamentais na esfera concreta da vida possui custos11, que se revelam necessários não apenas no âmbito estatal, como também na esfera particular e autônoma de cada cidadão. É dizer: a diminuição de desigualdades possibilita incrementar o acesso, inclusive por meio da tributação, a direitos básicos pelos menos favorecidos12.

Essas preocupações se revelam especialmente relevantes em um cenário de crise fiscal, pelo qual passa o Brasil já há alguns anos. Com efeito, tal ambiente contribui para um cenário político em que ganham forças as reformas, muitas delas pautadas por pressões político-financeiras que acabam por ensejar a relativização de direitos fundamentais. Não que haja direitos absolutos que não possam, em situações excepcionais e de emergência, ter seu regime jurídico modificado, desde que respeitado o núcleo essencial de cada um, definido a partir da noção de limite dos limites (Schranken-Schranken)13. Entretanto, a incidir sobre setores sociais mais vulneráveis - sobretudo quando existentes outros espaços para ajustes fiscais ou incremento de receita tributária -, os quadros de desigualdades sociais podem se agravar. Não basta garantir a igualdade de oportunidades e nos pontos de partida - o que ainda não temos -, mas também reduzir as desigualdades nos resultados.

Cumpre destacar que as raras propostas que surgem no plano político relativas a um fortalecimento de bases tributárias diretas - quase sempre consideradas não como mecanismos corretivos de justiça social, mas como instrumento para o incremento arrecadatório em tempos de crise - costumam ser sumariamente bloqueadas por pressões de setores de elite socioeconômica brasileira. Comumente, vale-se de um falacioso argumento de que "a sociedade não suporta mais pagar impostos" para manter e fazer persistir um cenário de desigualdades e injustiças, tal qual o aqui brevemente exposto14. Diz-se falacioso porque uma reforma que privilegiasse uma maior justiça social na tributação não demandaria o aumento da carga tributária, mas tão somente a sua melhor redistribuição, a ser disposta de modo progressivo - e não regressivo.

Nesse contexto pós-impeachment de reformas, retomaram-se os debates e as propostas de reforma tributária. A mais destacada delas - por ter o apoio inicial do governo - foi apresentada ao Congresso pelo Deputado Federal Luiz Carlos Hauly15, em cujas alterações sugeridas não são propostas quaisquer modificações relevantes que pudessem tentar corrigir as mazelas aqui apontadas. Não obstante, apesar de inicialmente apontado para um sentido que mais parece manter do que reformar, o ambiente que permite a discussão de mudanças floresce a possibilidade de que melhorias sejam indicadas e enseja o dever acadêmico de contribuir ao debate e propor alternativas. Sob outra perspectiva, 2018 é ano de eleições nacionais, outra razão pela qual o espaço deliberativo sobre novas propostas ganha maiores força e destaque.

Nesse sentido, para que aqui não se fique apenas com as críticas ou as constatações dos problemas, entende-se que o cenário de desigualdades e de regressividade da tributação poderia começar a ser corrigido por medidas como a redistribuição da carga tributária para fortalecer as bases diretas de incidência; a criação de novas e mais bem escalonadas faixas de tributação para o imposto de renda, com alíquotas maiores nos patamares mais elevados; restabelecer a tributação sobre lucros e dividendos; criar novas técnicas de combates à elisão e à evasão fiscais.

Precisamos falar sobre desigualdade. Mais que isso, precisamos discutir como as políticas de tributação podem - e devem - constituir mecanismos ensejadores de redução de diferenças socioeconômicas e de promoção de objetivos constitucionais expressos, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a diminuição da pobreza e das desigualdades sociais e regionais; em busca de uma maior dignidade material garantida às vidas humanas. E o fortalecimento das bases diretas de incidência tributária representa um caminho possível para tanto.

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1 - Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal desde 2014. Autor dos livros: "Terceirização: uma leitura constitucional e administrativa" (Editora Fórum, 2018); "Mandado de Segurança e Mandado de Injunção" (Editora Juspodivm, 2018); "A Tensão Institucional entre Judiciário e Legislativo: controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal" (Editora Prismas, 2015); coordenador da obra "Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional" (Editora Juruá, 2016) e autor de diversos capítulos de livro e artigos jurídicos. Professor. Palestrante.

2 - GASSEN, Valcir (organizador). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre Estado, Constituição e Tributação. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016.

3 - A íntegra do relatório pode ser consultada em https://www.todospelaeducacao.org.br//arquivos/biblioteca/indicadores_de_iniquidade_do_sistema_tributario_nacional__web.pdf.

4 - Os outros quatro problemas ali apontados eram: o baixo retorno social em relação à carga tributária; uma estrutura tributária desincentivadora das atividades produtivas e da geração de emprego; a inadequação do pacto federativo em relação às competências tributárias; e a ausência de cidadania tributária.

5 - O relatório está disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf.

6 - Em seu teor, aponta-se que "há pouca dúvida sobre o que não deu certo: nosso sistema tributário regressivo onera demasiadamente os mais pobres e a classe média por meio de uma alta carga de impostos indiretos e pela perda de progressividade no imposto sobre a renda dos mais ricos" (p. 7).

7 - Sobre o ponto, o relatório afirma: "Se há diferenças grandes entre homens e mulheres, o enfoque em raça mostra que a situação da população negra é ainda mais grave. Com base nos mesmos dados, entre as pessoas que recebem até 1,5 salário mínimo, estão 67% dos negros brasileiros, em contraste com menos de 45% dos brancos. Cerca de 80% das pessoas negras ganham até dois salários mínimos. Tal como acontece com as mulheres, os negros são menos numerosos em todas as faixas de renda superiores a 1,5 salário mínimo, e para cada negro com rendimentos acima de 10 salários mínimos, há quatro brancos" (p. 27). Ainda, destaca-se a recente Síntese de Indicadores Sociais - SIS, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE em 15/12/2017, na qual se indica que os filhos de pais integrantes das classes sociais mais altas possuem muito mais chances de oportunidade e de ascensão social; variando também o índice percentual de mobilidade social ascendente conforme a raça, sendo ele cerca de 50% menor entre os considerados pretos ou pardos. Seu inteiro teor está disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101459.pdf.

8 - A base de dados está disponível em https://wid.world/world.

9 - O último levantamento da Receita Federal, publicado em 27/12/2017, aponta para o exercício de 2016 uma carga tributária bruta de 32,38% do Produto Interno Brito (PIB), superior aos 32,11% de 2015. Apesar de a arrecadação tributária nos três níveis de governo ter decaído em números reais (não obstante tenha sido maior em números absolutos), indica-se no relatório que o principal fator de incremento desse percentual decorre do decréscimo em valores reais de 3,5% do PIB de um ano para o outro. O estudo completo está disponível em: https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2016.pdf, acesso em 29/12/2017.

10 - Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

11 - Cf. SUNSTEIN, Cass; HOLMES, Stephen. The Cost of Rights: why liberties depends on taxes. New York/London: W. W. Norton & Company, 1999.

12 - A propósito, o mencionado relatório produzido pela Oxfam Brasil faz coro ao que aqui se afirma, ao assentar que "dentro do Brasil, quanto menor a desigualdade de renda, maior a garantia a serviços essenciais como oferta de água ou de médicos, menores as taxas de mortalidade infantil e maior a expectativa de vida ao nascer. Combater desigualdades é também o caminho para vivermos em uma sociedade menos violenta, já que a exclusão social está diretamente relacionada ao aumento da violência, seja na cidade ou no campo. Por fim, a boa saúde de uma democracia depende de sociedades igualitárias: quanto maior a desigualdade e a interferência indevida de elites na definição de políticas, menor é a crença das pessoas na capacidade da democracia melhorar suas condições de vida, e menor é a crença na democracia em si" (p. 17).

13 - Especificamente sobre a relativização de direitos trabalhistas e a definição de suas possibilidades e limites no âmbito da terceirização, conferir: ARABI, Abhner Youssif; ARAUJO, Valter Shuenquener de. Terceirização: uma leitura constitucional e administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018, pp. 68-7268-72.
14 - Veja-se, a propósito, o que noticiado no sítio eletrônico do jornal O Globo em 8 de agosto de 2017:
https://oglobo.globo.com/economia/fiesp-firjan-criticam-possibilidade-de-aumento-de-imposto-de-renda-21682399.

15 - As linhas gerais da proposta podem ser consultadas em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/reforma-tributaria/documentos/outros-documentos/resumo-hauly.