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O caso argentino contra The Pirate Bay - parte 2

terça-feira, 22 de julho de 2014

Atualizado às 08:31

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio

O bloqueio do acesso ao Pirate Bay (TPB) a partir do território argentino foi abordado na publicação passada sob o ponto de vista da efetividade. Questionávamos se medidas como esta são realmente capazes de servir o propósito de diminuir a quantidade de infrações de direitos autorais na internet, dada a perene disponibilidade de mecanismos para contorná-las tecnicamente.

Diante desse questionamento, propusemos uma visão que, em lugar de buscar a solução perfeita, a bala de prata que - sabemos - não existe para um problema tão complexo como a pirataria, aceita a evetual imperfeição e busca compensá-la com outras medidas conjuntas, de natureza distinta, voltadas não só a dificultar a distribuição de conteúdos sem autorização, mas também a dificultar a sua produção e a diminuir a demanda do consumidor por conteúdo ilegal, fornecendo-lhe boas alternativas que remunerem os criadores.

A coluna de hoje tem enfoque na decisão judicial1 e explora igualmente alguns conceitos introdutórios relacionados à tecnologia de compartilhamento facilitada pelo TPB, essenciais para compreensão do julgado.

Napster, P2P, BitTorrent e Pirate Bay

A tecnologia de compartilhamento de dados denominada P2P (peer-to-peer) se tornou bastante conhecida no meio jurídico com as decisões oriundas de processos da indústria fonográfica contra o Napster, nos Estados Unidos, no final da década de 19902. Trata-se de uma espécie de arquitetura de aplicação de rede que permite o compartilhamento de dados entre terminais, dispensando, em algum grau, a participação de estruturas de rede hierarquicamente superiores, como os servidores3.

Quando acessamos um website como o portal do Migalhas através de nossos navegadores, a arquitetura de aplicação de rede em funcionamento por detrás do que vemos é denominada cliente-servidor: em algum lugar há um sistema contratado pelo periódico que abriga todo o conteúdo que lemos (servidor), sendo que em relação a esse sistema centralizado nossos navegadores são considerados clientes que solicitam ao servidor a exibição das informações. Sobre essa arquitetura fundou-se o que hoje conhecemos como World-Wide Web, a parte da Internet que funciona com base no protocolo HTTP4.

Já a arquitetura tornada famosa pelo Napster à época, embora levasse à cabo justamente a transferência de dados entre terminais conectados à internet, fazia-o de uma maneira diferente: os bits e bytes se transferiam diretamente entre os usuários do serviço, e não a partir dos servidores do Napster, muito embora este último operasse um serviço chamado de diretório centralizado, que informava aos terminais conectados à rede em quais pares (peers) o objeto buscado poderia ser encontrado. Assim, o usuário que desejasse baixar uma gravação da música Refazenda, de Gilberto Gil, buscava pelo termo no serviço Napster, que lhe promovia uma conexão com outro usuário que tivesse esse objeto em seus arquivos.

Vê-se, portanto, que embora a transferência se operasse diretamente entre usuários, era impossível obter um determinado conteúdo sem que o Napster indicasse qual caminho o computador de um usuário deveria seguir, e comprovação desse fato eventualmente levaria às decisões judiciais que forçaram o serviço a interromper suas atividades e a se moldar a um modelo de negócios legalmente aceitável.

No mesmo ano em que o Napster era condenado pela Court of Appeals for the 9th Circuit5, Bram Cohen, fundador da BitTorrent Inc., desenvolveu e disponibilizou o protocolo denominado Bittorrent, que viria a se tornar responsável por mais de 40% do volume de dados compartilhados diariamente na internet6, justamente o protocolo de compartilhamento de dados utilizado pelos usuários do Pirate Bay.

Naquele momento da história, outros protocolos P2P que prescindiam do modelo de diretório centralizado já haviam surgido, como o Gnutella e o KaZaA7, eliminando a fraqueza estratégica que o Napster apresentava, mas o BitTorrent, apesar de ainda depender na época de um serviço centralizado denominado tracker8, oferecia uma característica que o tornaria imbatível do ponto de vista de eficiência: os arquivos compartilhados são divididos em uma infinidade de partes, permitindo ao solicitante do conteúdo receber essas diversas partes, em qualquer ordem, a partir de qualquer um dos usuários conectados ao swarm9 que as possua.

O Pirate Bay segue sendo o maior repositório de arquivos .torrent e magnet links que conhecemos, sendo que a enorme maioria desses referenciais10 serve o propósito de promover o download, a partir de dispositivos de outros usuários da rede, de conteúdo protegido por direitos autorais, de modo que o acesso ao catálogo do Pirate Bay ou de outro repositório do mesmo tipo é uma etapa indispensável à finalidade de operar o download de um conteúdo qualquer a partir dessa tecnologia.

O julgado argentino

Diversas empresas titulares de direitos autorais e as duas mais importantes associações argentinas representando compositores, editores e gravadoras - CAPIF e SADAIC - ajuizaram contra The Pirate Bay, na Cidade autônoma de Buenos Aires, ação pleiteando a concessão de uma medida autosatisfactiva11 inaudita altera parte com a finalidade de ver bloqueados, nos provedores de conexão12 do país, nomes de domínio e endereços IP (bloqueio de DNS e de IP) que permitem acessar o sítio a partir de território argentino.

Alegaram, essencialmente, (i) que o website é um facilitador da violação de direitos autorais, uma vez que disponibilida para download um enorme catálogo de arquivos do tipo torrent13 que contêm a informação necessária para que usuários do mundo todo compartilhem obras sem autorização dos titulares de direito que sobre ela recaem; (ii) que ao menos 25% de todo o conteúdo que se pode acessar por meio dos dados disponibilizados no Pirate Bay são itens fonográficos, sendo que mais de 75% ainda se encontra em fase de distribuição comercial; (iii) e que, considerando-se que os dados acostados aos autos demonstram que, em outubro de 2010, 42 milhões de usuários do mundo todo visitaram o website, sua receita publicitária anual chega a um mínimo estimado de US$ 37 milhões de dólares, demonstrando que o sítio lucra e se enriquece ilegalmente às custas de direitos de terceiros.

Em qualquer conjunto de casos de violação de direitos de propriedade intelectual na internet, será bastante comum encontrar-se o argumento da intermediação neutra14. O próprio caso Napster nos revela um embrião desse argumento, repisado posteriormente em um sem número de ocasiões em que um intermediário da internet se vê processado por titulares de direito em razão de a sua atividade proporcionar violações.

Haverá casos nos quais, efetivamente, o intermediário não exerce nenhum tipo de ingerência prévia sobre o conteúdo disponibilizado por meio de seu serviço na internet, situação que, compatibilizada com o atendimento a eventuais requerimentos de retirada do ar partidos de titulares de direitos, tende a ser considerada pelo judiciário como tolerável, como temos visto em recentes casos levados ao STJ15.

O caso do Pirate Bay, entretanto, é bastante diferente dessas situações: não só seus administradores controlam integralmente o conteúdo, como eventuais notificações partidas de titulares de direitos autorais, quando não ignoradas solenemente, são respondidas nem tão solenemente assim16.

Além disso, é claríssimo auferimento de receitas advindas da publicidade em seu website sem que nenhum centavo seja revertido em favor dos criadores das obras que são compartilhadas ilicitamente com a inegável intermediação do serviço.

Analisando esses aspectos, a decisão de procedência dos pedidos traz alguns elementos bastante interessantes do ponto de vista jurídico, explorando todo um espectro de possibilidades que levam à conclusão mandamental. O raciocínio do julgador explorou a atividade de facilitação desempenhada pelo Pirate Bay tanto sob o aspecto do enriquecimento sem causa quanto do abuso de direito.

Na primeira análise, expõe o julgador:

".porque no es razonable participar en los beneficios trasladando las pérdidas. Esta antigua regla jurídica que nace en el derecho romano, es consistente en términos de racionalidad económica, porque este tipo de externalidades negativas deben ser soportadas por quien las genera y no por el resto de la sociedad"

O motor de receitas do Pirate Bay é, principalmente, a venda de seus espaços a anúncios publicitários, que por sua vez são lucrativos em razão do enorme fluxo de visitantes às páginas do serviço. Mas esse enorme fluxo de visitantes só existe por um único motivo, que é o fato de lá ser possível encontrar-se um enorme catálogo de links e arquivos que permitem o download de conteúdo protegido por direitos autorais. Em outras palavras, ganha-se dinheiro exclusivamente porque, acessando-se o serviço, tem-se acesso a links e arquivos que possibilitam o download não-autorizado de itens de titularidade alheia. Tudo isso sem que o titular do sítio arque com as "externalidades negativas", os custos com remuneração dos titulares que adviria naturalmente da implementação de uma operação desse gênero.

Trata-se, entendemos, de hipótese passível de enquadramento na legislação pátria sob a cláusula geral do artigo 884 do CC17.

O julgado também explora a tese de constituir-se a atividade do Pirate Bay em abuso de direito:

"También se ha expresado que la prohibición de abusar de los derechos no sólo amerita el haber incurrido en alguna de las tipologías calificadas como 'abusivas', sino también que de ellas se derive, o pueda derivarse, un perjuicio. Este último requisito es, de hecho, la razón de ser del instituto y, no en vano, este tiene su origen en los daños que se daban a raíz de ciertos usos cuestionables de prerrogativas legales (Prieto Molinero, Abuso del Derecho, op. cit., pág. 316).

Así, The Pirate Bay no luce una intermediación inocua al proveer una plataforma y disponer una red de interconexión para la concreción del ilícito civil del que se trata acá."

Muito embora o julgador tenha expressamente acatado a rasa ilegalidade em si da atividade de facilitação desempenhada pelo Pirate Bay, o que o isentaria de necessariamente explorar a tese de abusividade, entendeu por bem analisar a intermediação promovida pelo serviço exclusivamente do ponto de vista de seus efeitos.

As teses de abuso de direito, como se sabe, ganharam força na esteira da interpretação funcional do direito, e buscam localizar no campo do ilícito instâncias de exercício de direitos subjetivos cujos efeitos se voltam contra o propósito mesmo de sua existência.

Nessa linha, entendeu o julgador que ainda que se considerasse - como corretamente se considera - o provimento de uma plataforma de compartilhamento de arquivos como atividade lícita, e, portanto, permitida, o caso específico do Pirate Bay representa uma materialização abusiva desse direito, uma vez que seus resultados são prejudiciais a toda uma cadeia de criadores e titulares de direitos, hipótese abrangida pelo regramento de abuso de direito do código civil argentino18. Essa interpretação dos fatos é possível também à luz de nosso código civil19.

__________

2A&M Records Inc. v. Napster Inc.

3É difícil chegar-se a uma terminologia integralmente precisa e ao mesmo tempo minimamente informativa. Teoricamente, o processo que inicia a comunicação é usualmente considerado como processo cliente, enquanto o processo que só inicia a comunicação depois de ser contactado é considerado como processo servidor. Essa definição faz sentido em um contexto de arquitetura cliente-servidor, mas em um contexto de arquitetura P2P, em que, apesar de não haver um nó centralizado, um "cliente" inicia a comunicação com um outro "cliente" (que, pode-se dizer, executa o "lado" servidor da comunicação), dizer que este último cliente pode ser considerado um "servidor" prejudica a explicação do conceito. Além disso, é inegável que a idéia de "servidor" carrega uma conotação de sistema centralizado, hierarquicamente superior aos clientes, de modo que preferimos a clareza ao preciosismo técnico no presente artigo.

4A Internet e a WWW não são a mesma coisa: aquela, difícil de definir em uma frase, abriga esta, mas abriga também uma infinidade de outros serviços e protocolos que estão fora da World-Wide Web.

5Ver nota de rodapé número 2.

6Informações obtidas em About BitTorrent.

7O protocolo Gnutella é considerado puramente P2P. O KaZaA também é um protocolo que independe de estruturas centralizadas mas, diferentemente do Gnutella, opera a criação de super-nós, elegendo pares com mais capacidade de processamento e banda como líderes de determinados conjuntos virtuais de compartilhamento, sendo que esses líderes passam a operar um diretório de informações a respeito de seus subordinados conectados. A diferença para o Napster é que o super-nó ou o líder não é mais que um usuário comum da rede que desaparece no momento em que se desconecta.

8O tracker, grosso modo, faz as vezes de um diretório centralizado, embora de maneira substancialmente diferente. O arquivo .torrent contém instruções que permitem ao usuário obter do tracker informações sobre IPs de usuários conectados que possuam os objetos buscados para compartilhamento. O Pirate Bay, além de um catálogo de arquivos .torrent, era também um tracker.

9Termo que significa "enxame". É um determinado grupo de usuários conectados que compartilham arquivos.

10Adotamos o termo "referenciais" para mencionarmos tanto os arquivos .torrent quanto os magnet links, uma vez que o conteúdo propriamente dito vem diretamente dos usuários da rede, e são nela encontrados por meio de instruções executadas no computador do usuário a partir de dados contidos ou nos arquivos .torrent ou no sistema de um outro usuário encontrado na rede a partir de um magnet link. Os dois termos referem-se a estágios diferentes da tecnologia BitTorrent, sendo este último o estado atual da técnica. Antes de seu desenvolvimento, a tecnologia dependia do download de arquivos do tipo .torrent, que continha instruções para que o cliente do usuário calculasse um hash (espécie de impressão digital do arquivo buscado) e buscasse no tracker informações sobre quais usuários conectados poderiam disponibilizar o objeto buscado. As duas tecnologias coexistem atualmente, mas a maior descentralização permitida pelos magnet links indica uma tendência à sua adoção mais ampla.

11A decisão traz um detalhamento bastante risco acerca dessa figura doutrinária e jurisprudencial do direito argentino denominada medida autosatisfactiva. Apesar da tentadora simplificação terminológica, buscamos não identifica-las com as cautelares satisfativas, também construídas jurisprudencialmente no direito brasileiro (e não sem muita polêmica), em razão de não se dirigir a autosatisfactiva à garantia da efetividade de um provimento futuro, da mesma maneira que fugimos da equiparação à antecipação de tutela, uma vez que a decisão na autosatisfactiva não é antecipação de uma tutela futura, mas sim a própria tutela, conferida em definitivo, malgrado a cognição sumária. ".es un proceso en sí mismo con una decisión que no abastece o anticipa una decisión jurisdiccional ulterior, sino que se concreta en ésta, pudiendo ser revisada en un proceso de conocimiento posterior más amplio incoado por el accionado, o mediante la interposición del recurso de apelación." (ver nota número 1)

12Terminologia harmonizada com o Marco Civil da Internet, artigo 5º., lei 12.965/14.

13O julgado menciona os magnet links, mas não os vê como suficientemente desligados da atividade do Pirate Bay para alterar sua avaliação acerca da ilicitude.

14

15Para referência, vero nosso artigo acerca deste tema.

16Este artigo contém a resposta padrão que o Pirate Bay envia a seus notificantes.

17Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

18Art. 1.071. El ejercicio regular de un derecho propio o el cumplimiento de una obligación legal no puede constituir como ilícito ningún acto. La ley no ampara el ejercicio abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe los fines que aquélla tuvo en mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos por la buena fe, la moral y las buenas costumbres

19Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes