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Outros tempos, outra lei

Tudo começou com a aproximação de um mulato. Ele vinha montado numa besta e trazia nas mãos um papel, um bilhete, coisa que Franz Kraus não soube entender do que se tratava, pois não conhecia o idioma daquele lugar. Não demorou muito e o mulato explicou: "pois fique sabendo que isto é um mandado da justiça. É um mandado do senhor Juiz Municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus".

Da Redação

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Atualizado em 20 de outubro de 2009 15:01


Outros tempos, outra lei

Tudo começou com a aproximação de um mulato. Ele vinha montado numa besta e trazia nas mãos um papel, um bilhete, coisa que Franz Kraus não soube entender do que se tratava, pois não conhecia o idioma daquele lugar. Não demorou muito e o mulato explicou : "pois fique sabendo que isto é um mandado da justiça. É um mandado do senhor Juiz Municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus".

Manoel, o meirinho mulato, é um dos personagens de Graça Aranha em "Canaã". Diz-se que o livro, cujo enredo se desenvolve em torno da vida de dois imigrantes alemães, é resultado das experiências do autor, que foi juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro e também no município de Porto do Cachoeiro, no Espírito Santo. Assim, o livro publicado em 1902 configura-se uma verdadeira denúncia dos desmandos envolvendo os representantes da Justiça na época.

Para começar, o oficial à cavalo disse : "a audiência é amanhã, aqui, ao meio-dia... A Justiça pernoita em sua casa. Prepare do que comer...e do melhor". Ao despedir-se, ameaçou : "prepare tudo para se arrolar. Não esconda nada, senão cadeia".

No dia seguinte, ao meio dia, estavam na casa de Kraus três juízes, o escrivão e o oficial do juízo.

"Três juízes ?" Talvez pergunte o migalheiro. Sim, três juízes. Um deles, o juiz municipal. Os outros dois nada tinham a ver com o caso, estavam ali apenas pelo passeio !

A casa estava tomada "em nome da lei" e "todos passeavam pela sala com estrépito, batendo com o chicote nos móveis, ou praguejando, ou rindo das pobres estampas nas paredes, ou farejando para dentro, de onde vinha um capitoso cheiro de comida". Assim que terminaram, o promotor gritou : "moça bonita que saia! Não haverá nenhuma por aqui?" E a lubricidade dos olhares excitados e cobiçosos pairou sobre Maria, a empregada.

Os homens da Lei pediram ao dono da casa a "parati", bebida típica da colônia e o almoço, que comeram com apetite. Beberam cerveja em quantidade e depois se puseram a fumar descansados. "Quando um grande torpor ia dominando a companhia, entendeu o Escrivão espertá-la, dizendo ao Juiz Municipal: 'o senhor doutor, V. Sª não manda abrir a audiência?'".

Enfadonhamente o juiz pôs-se a realizar a tarefa. Duas horas levou o Escrivão a trabalhar no inventário e assim que terminou "deixou apenas em claro as assinaturas do juiz e dos avaliadores que ele dava como presentes, e que eram seus homens-de-palha, numa costumada fraude que lhe rendia mais custas".

O relato de Graça Aranha é sortido de passagens que faria qualquer pessoa, sendo ou não do Direito, indignar-se. Mas o que hoje soa como absurdo pode já ter sido a mais pura história real. Outros tempos, outra Lei.

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Canaã

Obra de maior destaque do autor Graça Aranha, Canaã conta a história de Milkau e Lentz, dois jovens imigrantes alemães que se estabelecem numa colônia no Espírito Santo. Apesar da amizade que se firma entre os dois, o ponto de vista que têm em relação à nova terra difere bastante entre um do outro. Enquanto Mikau possui um discurso de integração, Lentz tem um pensamento de dominação. Também ganha destaque na trama a personagem de Maria, filha de imigrantes pobres que se vê grávida e rejeitada pela família do amante, bem como por todos na comunidade. Mikau, que a havia conhecido anteriormente em uma festa, se compadece de sua sorte e a acolhe, levando-a para morar na fazendo de conhecidos. Num certo dia, com a gravidez já adiantada, Maria sente as primeiras dores do parto enquanto trabalha no cafezal. O filho que dela nasce é imediatamente devorado por porcos e a jovem é acusada e presa por infanticídio. Apesar disso, Mikau acredita na inocência de Maria e esquematiza uma fuga, salvando-a da cadeia. O desfecho do livro está na procura por um lugar melhor para se viver. Temas relativos à imigração no Brasil, à corrupção das autoridades e às incoerências do homem no trato com outros homens estão presentes em Canaã.

Graça Aranha

José Pereira da Graça Aranha nasceu em 21 de junho de 1868, na capital do Estado do Maranhão, filho de Temistocles da Silva Maciel Aranha e de Maria da Glória da Graça. Formou-se em Direito pela Faculdade do Recife, foi juiz em Porto do Cachoeiro, no Espírito Santo, e também no Rio de Janeiro. Foi o fundador da Cadeira 38 da Academia Brasileira de Letras. Participante da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, proferiu a conferência "A emoção estética na arte moderna". Nas palavras do romancista Afrânio Peixoto, Graça Aranha foi "magistrado, diplomata, romancista, ensaísta, escritor brilhante, às vezes confuso, que escrevia pouco, com muito ruído". Faleceu no Rio de Janeiro, em 26 de janeiro de 1931. Entre suas obras estão: "Canaã" (1902), "A Estética da Vida" (1921), "Espírito Moderno" (1925), "A Viagem Maravilhosa" (1930) e "O Meu Próprio Romance" (1931).

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