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Considerações acerca do pacto antenupcial II

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Atualizado em 23 de fevereiro de 2015 16:41

Os limites à autonomia privada nos pactos antenupciais.

Antes de mais nada, é bom relembrar que o princípio da autonomia privada é aquele que garante a liberdade da manifestação de vontade nas diversas relações jurídicas. Neste princípio, já está embutido o dirigismo, ou seja, uma isonomia substancial material que garante um reequilíbrio nas relações jurídicas. O princípio da autonomia privada se distingue da autonomia da vontade na medida quem que este expressava uma liberdade absoluta, em que a parte praticava relações jurídicas sem amarras.

A figura do pacto antenupcial pode ser considerada uma expressão da autonomia privada no âmbito familiar, pois tem por intuito justamente possibilitar aos nubentes a escolha da norma mais apropriada às suas expectativas matrimoniais. Mas até onde vai essa liberdade de escolha? Os nubentes podem escolher qualquer regime que lhes aprouver? E mais, essas disposições restringem-se ao regime de bens? É possível a inclusão de cláusulas relativas às relações pessoais entre os conjugues? E, mesmo se admitirmos essa possibilidade, quais seriam seus limites?

A doutrina alemã reconhece como fundamental a incidência do princípio da autonomia privada nos contratos de família, bem como a essencialidade de que as tratativas entre os nubentes priorizem a autodeterminação negocial, relegando a uma liberdade, que, todavia, não justifica a distribuição de encargos unilateralmente. Portanto, não incorre em liberdade ilimitada1. Assim, apesar de vigorar o princípio da autonomia privada na escolha do regime de bens, essa autonomia não é absoluta, pois, tal como qualquer liberdade individual, pode encontrar limitações no interesse coletivo2.

A possibilidade de inclusão de cláusulas não patrimoniais.

Para Maria Helena Diniz, o objeto do pacto nupcial restringe-se às relações econômicas conjugais, sendo nulas quaisquer cláusulas que contrariem a lei, os bons costumes e a ordem pública, ou que prejudiquem os direitos conjugais, paternos ou maternos3. Nesse sentido, dispõe a autora acerca da inadmissibilidade de cláusulas que:

(a) dispensem os consortes dos deveres de fidelidade, coabitação e mútua assistência; (b) privem a mãe do poder familiar ou de assumir a direção da família, ficando submissa ao marido; (c) alterem a ordem de vocação hereditária; (d) ajustem a comunhão de bens, quando o casamento só podia realizar-se pelo regime obrigatório da separação; (e) estabeleçam que o marido, mesmo que o regime matrimonial de bens não seja o de separação, pode vender imóveis sem outorga uxória4.

Quanto a essa assertiva, cabem algumas considerações. Primeiro, deve de fato o pacto restringir-se a cláusulas meramente econômicas, contrariando o princípio da dignidade humana? Segundo, partindo do pressuposto de que o pacto não pode contrariar a lei, quais dispositivos legais seriam aptos a impor-lhe limitações? Quais seriam esses "direitos conjugais, paternos ou maternos" capazes de afastar uma cláusula que os contrarie?

É certo que a autonomia privada dos pactos antenupciais é balizada pelas regras do próprio Código Civil, como fica claro no art. 1.655. Essa limitação, inclusive, pode ser atribuída à própria parte geral do Código, que estabelece como requisito de validade dos negócios jurídicos em geral a licitude do objeto, como se extrai do artigo 1045.

No que tange às regras de direito de família, o pacto pode encontrar limites nas normas que preveem os deveres conjugais:

Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:

I - fidelidade recíproca;

II - vida em comum, no domicílio conjugal;

III - mútua assistência;

IV - sustento, guarda e educação dos filhos;

V - respeito e consideração mútuos.

Não obstante, nada há no regime legal atinente aos pactos nupciais que obste a estipulação de cláusulas não econômicas. Numa acepção mais moderna do instituto, o pacto não tem por objetivo exclusivamente a estipulação do regime de bens, mas, de forma mais genérica, a própria definição dos traços fundamentais de convívio dos futuros cônjuges.

Nesse sentido, segundo Pontes de Miranda, o negócio jurídico antenupcial pode servir para fixar as balizas para a convivência pessoal dos membros da família em formação, dizendo respeito tanto ao relacionamento entre cônjuges quanto à relação entre ascendentes e descendentes e determinando até critérios para aquisição, administração e partilha do acervo patrimonial da família. O objetivo é sempre a clareza dos propósitos da estrutura familiar futura, em vista da comunhão dos sujeitos que buscam compartilhar uma mesma experiência de vida, dirimindo eventuais conflitos durante o casamento e em sua dissolução6.

Destarte, o pacto não estaria restrito a cláusulas de cunho patrimonial, podendo abarcar também disposições relativas a matérias não patrimoniais, concernentes à relação entre os cônjuges e inclusive destes com a eventual prole, como por exemplo deveres domésticos e questões relativas à educação dos filhos.

Débora Gozzo admite a estipulação de cláusulas sem cunho econômico no pacto, ao defender a possibilidade de inclusão de reconhecimento de filho ilegítimo, e até mesmo de disposições relativas à religião dos filhos. Neste ponto, a autora sustenta que não há nada em tal cláusula que ofenderia os requisitos próprios a qualquer objeto de negócio jurídico, e portanto não seria a priori ilícita7. De fato, a cláusula não é contrária à lei, pois não há disposição legal que a vede, nem aos bons costumes, entendidos como "as normas sociais impostas por um determinado povo". Esse entendimento pode ser estendido a outras cláusulas relativas às relações pessoais entre os cônjuges e seus filhos.

Observe-se, entretanto, que uma cláusula como essa seria ilícita sob a égide do Código anterior, sobretudo no período que antecedeu as mudanças legislativas decorrentes do progressivo reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, como por exemplo o Estatuto da Mulher Casada. Até então, dispunha o código que o marido era o chefe da sociedade conjugal (art. 233) e detentor exclusivo do pátrio poder (art. 380), competindo-lhe a direção da criação e educação dos filhos (art. 384, I), e sendo assim a ele cabia naturalmente "o poder de estabelecer os ditames de qual religião os seus filhos seriam educados".

As mudanças sofridas nessa temática desde então foram drásticas, e atualmente o poder familiar é titularizado por ambos os cônjuges. Nesse cenário, faz sentido a estipulação de cláusula relativa à matéria, na medida em que há um compartilhamento no que toca ao poder familiar entre cônjuges.

"Sendo um direito comum, atribuído cumulativamente a ambos os cônjuges, nada impede que os futuros nubentes acordem previamente sobre a educação religiosa que deverá ser ministrada a futura prole"8.

Com o código de 1916, portanto, apenas subsistiram os deveres conjugais recíprocos, isto é, aqueles titularizados por ambos os cônjuges, sem discriminação de gênero. Essa mudança, naturalmente, reverberou no regime dos pactos nupciais, pois muitas cláusulas que ofenderiam disposições do antigo código tornaram-se lícitas sob a égide do novo, e vice versa.

Não obstante, deve-se observar que não há consenso na doutrina quanto aos próprios deveres do art. 1.566. Para Silmara Chinelato, por exemplo, seria cabível a estipulação no pacto quanto à moradia dos cônjuges em casas diferentes, em contradição ao inciso II do referido artigo, que dispõe como obrigação conjugal a moradia comum no domicílio conjugal9. A pensar dessa maneira, o que impediria uma cláusula que pudesse mitigar o dever de fidelidade, ou pelo menos atenuar eventual ação indenizatória?

Em suma, as questões aqui levantadas estão longe de consenso, já que o Direito de Família pós-moderno está passando por uma forte reformulação e apenas uma verdade tem sido, por ora, iquestionável: a prevalência da dignidade da pessoa humana sobre outros valores e princípios.

No próximo Registralhas, trataremos da terceira parte desse empolgante assunto. Fiquem conosco e até lá!

Bibliografia.

Chinelato, Silmara Juny, Comentários ao Código Civil - Do Direito de Família, v. XVIII, São Paulo, Saraiva, 2004.

Diniz, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V, 29a ed., São Paulo, Saraiva, 2012.

Gozzo, Débora, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988.

Maluf, Carlos Alberto D., Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013.

Pontes de Miranda, Francisco C., Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012.

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*O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.

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1F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 313.

2D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 2.

3M. H. Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V, 29a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 173. Nesse sentido, v.d. C. A. D. Maluf, Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 243.

4M. H. Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V, 29a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 173.

5Segundo o art. 1.655, "É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei". Ademais, o art. 104, ao elencar os requisitos de validade dos negócios jurídicos, estabelece "objeto lícito, possível, determinado ou determinável;"

6C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 314.

7D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, pp. 88-90.

8Oliveira e Castro, Regimes matrimoniaes, p. 203, apud. D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 120.

9S. J. Chinelato, Comentários ao Código Civil - Do Direito de Família, v. 18, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 319.