Entre a Civilização e a Barbárie  

Adauto Suannes*

“Humanidade: tal é a primeira figura sob a qual o homem moderno, no próprio instante em que despertava para a idéia de progresso, teve que procurar conciliar, com as perspectivas de sua inevitável morte individual, as esperanças de porvir ilimitado de que já não podia prescindir”.

Humanidade: entidade a princípio vaga, mais experimentada do que raciocinada, em que um obscuro sentido de crescimento permanente se aliava a uma necessidade de fraternidade universal.

Humanidade: objeto de uma fé muitas vezes ingênua, mas cuja magia, mais forte do que todas as vicissitudes e todas as críticas, continua a atuar com a mesma força de sedução tanto sobre a alma das massas atuais como sobre os cérebros da intelligenzia.

Quer se participe de seu culto, quer se ridicularize esse mesmo culto, quem pode, ainda hoje, escapar à obsessão, ou mesmo à ascendência da idéia de Humanidade?”.1

“Existe algo de mágico nos filmes. A pessoa que você vê está ao mesmo tempo em algum outro lugar. Esse é um atributo de Deus"2

Quando os irmãos Lumière, aperfeiçoando o antigo teatrinho de sombras, chegaram, em 1895, à invenção do cinematógrafo, estavam realizando uma revolução igual ou superior à que adviera da invenção de Gutenberg, mais de quatro séculos antes. De fato, enquanto o livro exige que o leitor conheça as convenções que regem o significado dos signos impressos, no cinema basta ao espectador abrir os olhos e ver. Ali estará a ilusão que os fotogramas, jogados na tela à razão de 24 deles por segundo, proporcionarão: o movimento. E, com ele, ali estará também a oportunidade de transmitir, tal como na escrita, algo mais do que uma história explícita: a mensagem subliminar, tão sutil, até sob a forma de merchandising, que os espectadores menos atentos assimilam sem o perceber.  

Recordo, a propósito, que há muitos anos foi por aqui exibido o filme “O Destino do Poseidon” (The Poseidon Adventure). O filme é considerado pelos críticos apenas como o primeiro filme do gênero disaster movie, que teve no Titanic, com todos os efeitos especiais cabíveis, o seu auge. Eu, de mim, como sempre buscava nos filmes algo mais do que a primeira impressão ou o mero divertimento, via nele uma narrativa bíblica, menos pelo fato de o nome do navio corresponder ao nome grego do deus do mar. Revendo-o hoje, penso que não estava errado em minha leitura de entrelinhas: logo no início do filme, dois padres discutem até onde a vontade humana deve submeter-se cegamente à vontade de Deus. O mais velho é do tipo “orar e confiar”, ao passo que o mais novo se classificaria de ativista, aquele que vai à rua fazer a história. Ao longo do filme isso me pareceu bastante claro e o final, com um discurso semelhante ao clássico “Pai, por que me abandonaste?”, me tiraria qualquer dúvida, se eu as tivesse.

Com outros filmes sempre ocorreu o mesmo: enquanto a maioria dos meus amigos limitava-se a uma leitura linear deles, eu buscava quase sempre uma possível segunda leitura, uma mensagem subliminar que o realizador estava tentando passar ao espectador. O silêncio da maioria dos críticos a respeito dessa leitura subterrânea de obras cinematográficas (ao contrário do que ocorre com as obras literárias) jamais me abalou. Houvesse abalado e eu estaria resgatado quando Joseph Campbell, o notável estudioso da Mitologia de nosso tempo, assistindo à trilogia “Guerra nas Estrelas” (Stars War), de George Lucas, viu ali algo mais do que um filme de aventuras, indo além do que disseram os críticos cinematográficos. “Guerra nas Estrelas possui uma perspectiva mitológica válida. O filme encara o Estado como uma máquina e pergunta: A máquina vai esmagar a humanidade ou vai colocar-se a seu serviço?"3.

Quantos espectadores, no mundo todo, teriam visto tal filme com esses olhos? “Quando a máscara de Darth Vader é retirada, você vê um rosto informe, de alguém que não se desenvolveu como indivíduo humano”, comenta o mitólogo na interessante e longa entrevista concedida ao jornalista Bill Moyers, levada ao ar pela TV em 1988 e da qual o livro é um resumo. Aliás, o nome do vilão, um anjo decaído, tal como Lúcifer, é uma corruptela de Dark Father, um pai sinistro que, qual um Saturno moderno, procura devorar os próprios filhos. Talvez a melhor imagem que se poderia conceber para representar o autoritarismo institucional. “Quando tira a máscara de seu pai, Luke Skywalker cancela o papel de máquina que o pai tinha desempenhado. O pai era o uniforme. Isso é poder, o papel do Estado"4.

Não será, portanto, fruto do acaso que ao longo deste trabalho se faça constante alusão a filmes, cuja importância cultural hoje é indiscutível.

Para confirmar isso, reproduzamos situação cinematográfica que, em um livro recente5, o autor apresenta, para reflexão de seus leitores: um homem primitivo, ao fim do dia, sentado sobre os calcanhares, volta seu olhar para o sol, que se põe por trás do morro, que lhe parece o limite do mundo. Tal qual no filme célebre de Stanley Kubrick, esse homem primitivo seminu atira ao ar um fêmur que, ao cair, nos mostra um homem contemporâneo, que, de terno e gravata, olha o mesmo sol, agora se pondo atrás de uma cadeia de prédios. O fêmur em sua mão, como símbolo fálico do poder masculino, poderia agora ser uma espada, um báculo ou uma batuta. Tão símbolos da masculinidade como aquele, mesmo porque o número de generalas, bispas e maestrinas que conhecemos pode ser indicado com os dedos de uma só mão.

Que mudou no espaço temporal entre essas duas cenas? Para Kubrick, o homem primitivo agora é um astronauta (ou cosmonauta, como preferem outros) e o comando de sua nave é um computador, de inteligência quase humana, o HAL (substitua, nessas iniciais, cada letra, considerando a ordem alfabética natural, pela letra seguinte e terá uma interessante surpresa, que não é, seguramente, fruto do acaso), que, por sinal, enlouquece, vítima da megalomania a que foi levado pelos humanos.

Certamente o Sol parece ser o mesmo e mesma parece continuar sendo a Terra. Como, porém, nos dizia o filósofo grego que ninguém passa duas vezes pelo mesmo rio (parafraseando-o: ninguém consegue ver duas vezes o mesmo sol), o tempo há de ter mudado tanto a estrutura do Sol (que, sem resistirmos ao trocadilho, bem pode ser definido como uma estrela decadente) como a da Terra (certamente naqueles tempos primitivos não havia a poluição ambiental que existe hoje, a extensão das matas era muito maior, o volume de água disponível não chegava a preocupar e o buraco na camada de ozônio não constituía o grave problema que é hoje, para citar algumas das diferenças).


O que interessa, porém, a esta reflexão é o homem, o ser humano: qual a diferença específica entre aquele primitivo e este civilizado? Poderíamos arriscar uma resposta dizendo que o homem de hoje sabe mais do que sabia seu antepassado. O conhecimento é a principal diferença entre as sucessivas gerações humanas. Nos últimos cem anos o ser humano aprendeu mais sobre tudo o que o cerca e sobre si mesmo do que durante todos os séculos anteriores juntos. Como decorrência, a tecnologia acumulada no século que se vem de encerrar não conhece paralelo em toda a história da Humanidade.

De fato, o homem primitivo imaginava que o fim do mundo estava ali, depois do morro, ao passo que o homem de hoje sabe que depois do morro virão mais morros. Em lugar do precipício onde se despejavam os mares, as rotas navegáveis e as grandes descobertas marítimas. O manto protetor azulado, pontilhado de estrelas, é, na verdade, apenas o vazio infinito, desafiando a ousadia dos navegantes destes novos tempos.

Demais disso, o homem moderno, sabendo que a luz caminha à velocidade de 300.000 k/s, e sabendo que a distância média entre o Sol e a Terra é de cerca de 150 milhões de quilômetros, pode facilmente concluir que a imagem do Sol leva cerca de 8 (oito) minutos para chegar ao nosso planeta. Logo, aquilo que vemos por-se por trás dos prédios enfileirados, substitutos dos morros dantanho, na realidade já se pusera há quase 10 minutos. O saber como sendo a eterna tentativa de fazer do quadrado um círculo (o círculo, a rigor, nada mais é do que um polígono de n lados, número tão incalculável que cada lado corresponde a um ponto).

O exemplo ilustra a diferença que existe entre barbárie e civilização: enquanto a barbárie se contenta com aparências, a civilização procura a verdade, a realidade última dos fatos. E o exemplo serve para mostrar também que a diferença entre barbárie e civilização não se pode estabelecer sob o ponto de vista histórico, mas sob o ponto de vista sociológico e cultural, mais do que antropológico ou psicológico. Ciência e tecnologia versus preconceitos e superstições. A crueza da verdade versus o manto diáfano da fantasia.

Ilustra também a diferença que pode haver entre ciência e tecnologia. Enquanto a primeira busca incessantemente a verdade, a segunda, sua dileta filha, cria, não poucas vezes, a mera ilusão, isto é, a não-verdade, ou, no limite, a mentira. Um saber que pode ser empregado, deliberadamente, para nos afastar da verdade.

Sabe-se que o termo barbarus era utilizado por gregos e romanos para identificar aqueles povos que não compartilhavam de suas verdades. Os estrangeiros, com seus hábitos inqualificáveis. Eram os ostrogodos, os visigodos, os saxões, os anglos, os hunos e tantos outros que, ironicamente, viriam a protagonizar invasões de conquista, graças às quais a cultura greco-romana, amalgamada com a cultura dos “bárbaros”, alastrou-se por todo o Ocidente. Da invasão da Bretanha por anglos e saxões resultou, nada obstante a barbárie (ao ver dos povos soi disant civilizados, é claro) em que viviam os invasores, a cultura anglo-saxônica, cuja importância histórica ninguém poderá negar. Dali ela seguiu para os Estados Unidos da América no Norte, com sua tradição pelo respeito à dignidade humana, trazida do Velho Continente pelos primeiros colonizadores6. Até onde esse compromisso com os valores humanos resistiu, qual rochedo, às investidas dos interesses superiores do capitalismo atual é algo sobre que vale a pena refletir, mesmo porque um respeitado ministro de Estado inglês, Neville Chamberlain, teria sintetizado o pragmatismo da política internacional em frase célebre, cuja extrapolação, até mesmo para o campo interno dos países, fica por conta dos governantes: “a Inglaterra não tem amigos nem inimigos; tem interesses”.

Considerando que o processo civilizatório implica, antes e acima de tudo, numa revisão dos valores pelos quais os grupos humanos traçam sua conduta, buscando-se a evolução do homem de um “ser menos” para um “ser mais"7, quais os valores que temos nas sociedades ditas civilizadas hoje em dia? Saímos, realmente, da barbárie?

A própria idéia de que o homem civilizado é aquele que sabe mais do que o homem bárbaro é discutível, pois, se é fato que a ciência tem desvendado a essência de tantos fenômenos e a natureza dos seres vivos, o fato é que quando falamos em “homem moderno” e em “homem primitivo” estamos simplificando o raciocínio, trabalhando com meras categorias. Não é verdade que o homem contemporâneo, concretamente considerado (este homem específico, vivendo neste determinado local) saiba efetivamente que a distância entre o Sol e a Terra é de pouco menos de 150.000.000 quilômetros, como dito acima. Na realidade, o homem moderno, ao contrário do homem primitivo, tem apenas a mera possibilidade de saber que a distância ente o Sol e a Terra é essa. Mas quantos, concretamente considerados, efetivamente têm conhecimento disso? A quantos a sociedade permite efetivamente esse e outros saberes? Ao contrário, o direito de conhecer a realidade cósmica e os segredos da Natureza (arcana naturæ), tanto quanto os segredos de Deus (arcana Dei) ou mesmo os mistérios da política (arcana imperii) sempre esteve reservado a uns poucos8.

Em outras palavras: muito embora o avanço da ciência permita a todos os seres humanos civilizarem-se, quantos efetivamente estão em condições de fazê-lo? O conhecimento propiciado pela ciência está ao alcance de toda e qualquer pessoa. Mas quantas, efetivamente, logram alcançá-la?

Por exemplo: a precariedade do vocabulário das pessoas primitivas tornava quase impraticável a solução de seus conflitos pelo diálogo. A alguns grunhidos iniciais seguia-se o desforço físico, vencendo o mais forte. O sorriso ilógico com que recebemos alguém que desconhecemos (ilógico porque não temos motivo algum para alegrar-nos com sua chegada, pois não sabemos o que ele representa e a chegada de um estranho a um grupo de animais é sempre motivo de apreensão, dado o natural risco de quebra da harmonia ali imperante) é um resíduo do mostrar de dentes, recurso agressivo de que nossos antepassados se utilizavam para marcar seu território e que ainda pode ser presenciado no relacionamento dos símios e felinos. A advertência de antes tornou-se regra de convivência hoje. A cultura como produtora de máscaras sociais.

Chegada a Humanidade à Idade Média, muito embora o ser humano já houvesse desenvolvido sua linguagem verbal e a capacidade de argumentar para convencer, a ministração da justiça, notadamente em face da criminalidade, pagava o preço ao fato da pretensa divindade do soberano, resquício de tempos imemoriais: a ordália, também chamado “juízo de Deus”, aliás, de origem anglo-saxônica, comum em muitos países da Europa (na França era chamada ordalie, na Espanha ordalia, na Alemanha ordal e na Inglaterra ordeal)9, era basicamente a submissão do acusado aos desígnios de Deus. Pela lógica dos julgadores medievais, “ela funcionava como agente destruidor se o imputado fosse culpado, enquanto exaltava sua inocência e força se ele pudesse sustentar a prova sem dano"10. A idéia de um xamã a representar a divindade e expressar a vontade dela pode ser aceita como expressão da cultura bárbara. Mas, terá isso cabimento nas chamadas sociedades civilizadas?

É difícil imaginar que, em nome de princípios superiores, como o da justiça ou da busca da verdade, se desrespeitasse o ser humano, notadamente quando isso era feito em nome da religião. Mas isso era assim e sempre queremos crer que tal tempo de barbárie foi superado pela ciência. Uma das características dos tempos modernos seria o respeito à dignidade humana, decorrência de longa reflexão a partir justamente das atrocidades da guerra. “Aos poucos emerge a idéia de que o indivíduo é não apenas objeto, mas também sujeito de direito internacional. A partir desta perspectiva, começa a se consolidar a capacidade processual internacional dos indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos não mais se limitam à exclusiva jurisdição doméstica, mas constituem matéria de legítimo interesse internacional"11.

Mas, hoje em dia, será isso realmente assim? Aí está o noticiário dando conta de que, em nome de princípios religiosos, pessoas se dispõem a matar vítimas inocentes, seja pelo seqüestro de aviões, transformados em bombas, seja pelo envio de bactérias a número elevado de pessoas. “Terrorismo”, brada a imprensa.

Aquele pensador norte-americano, de origem judaica, define terrorismo como o “uso calculado ou ameaça de emprego de meios danosos contra populações civis em nome de convicções políticas, religiosas ou ideológicas, em sua essência, sendo isso feito por meio de intimidação, coerção ou instilação do medo"12. Sob tal prisma, aqueles atentados não escapariam do rótulo. Mas, apenas aqueles? O próprio Chomsky afirma que ao longo do século XX muitas das ações do seu país, como acima visto, se enquadrariam também em tal rubrica. “Os EUA estão oficialmente comprometidos com o que é chamado de ‘ações de guerra de baixa intensidade’. Essa é a doutrina oficial. Se alguém lesse as definições padrão de ‘conflito de baixa intensidade’ e as comparasse com as de ‘terrorismo’, em qualquer manual do exército ou no U.S. Code13, repararia que são praticamente iguais."14 E, para mostrar que não está só, cita o cientista político Michael Stohl: “Precisamos reconhecer que, pelo que se tem convencionado – e devo enfatizar que se trata apenas de uma convenção – a utilização de um grande poder e a ameaça de se usar a força são normalmente descritas como diplomacia coercitiva, e não como uma forma de terrorismo”, embora usualmente envolva “a ameaça e freqüentemente o uso de violência para o que seria descrito como propósito terrorista, caso não fossem grandes potências a se utilizarem de tal tática”, de acordo com o sentido literal do termo.15

Com toda razão, a Enciclopédia Larousse, depois de salientar que a palavra civilização se emprega para indicar os modos diversos de desenvolvimento intelectual, moral e tecnológico das sociedades, ressalva: “costumes grosseiros podem subsistir nas civilizações mais desenvolvidas”. Diz, porém, que “jamais un peuple n´est revenu à la sauvagerie”. Será?

Vejamos algumas situações que nos trazem sérias dúvidas a respeito.

Quando Adolf Hitler buscou alargar o território sujeito à sua autoridade imperial, contou com o apoio do governo da Itália e o do Japão, como é largamente sabido. Por motivos ainda não claramente explicados, este último praticamente convidou os Estados Unidos, até então alheio ao que ocorria na Europa, a ingressar na refrega, bombardeando Pearl Harbor. Era o dia 7 de dezembro de 1941. Dos 100 navios ancorados naquele porto, 29 foram destruídos. Só o afundamento do navio Arizona produziu mais de 1.000 mortos, que chegaram perto de 2.400 no total. Dos 380 aviões ali estacionados, apenas pouco mais de 40 ficaram ilesos, sendo completamente destruídos mais de 180 deles. Enquanto isso, os atacantes não perderam mais do que 100 homens na investida, menos de 30 dos 350 aviões empregados na ofensiva e apenas 5 minisubmarinos. Era o de que o Presidente Franklin Delano Roosevelt precisava para convencer o povo norte-americano (até então, as pesquisas de opinião pública indicavam que mais de 90% do povo não concordava com a adesão dos EUA à guerra européia, o que sugere que Roosevelt teria deixado desprotegida sua pérola do Pacífico como uma isca, sem imaginar, certamente, os enormes estragos em que isso implicaria) para mobilizar seus homens. Com tão magno reforço, a vitória dos “aliados” era só questão de tempo. Mas o bombardeio de Pearl Harbor não havia sido esquecido, donde as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, com claros propósitos vingativos, pois tais cidades nada representavam na economia da guerra. A justificativa para tal massacre é que ele se destinava a dissuadir o inimigo, mostrando-lhe os efeitos daquelas bombas devastadoras. Isso não resiste à mais mínima análise: em primeiro lugar, o Japão desempenhava papel secundário nos planos de Hitler, donde ser mais razoável (se se pode falar em razoabilidade no caso) que se bombardeasse alguma cidade alemã; em segundo, se era para mostrar os estragos que faria a bomba atômica, bastava despejar apenas uma só. Irracionalidade em ambos os lados da trincheira, já se vê.

Envergonhados de sua evidente barbárie, os povos civilizados do mundo resolveram criar uma Liga das Nações, que estabeleceria fórum de debates para os assuntos de interesse universal. Tal proposta, como sabido, não vingou. Daí surgir a Organização das Nações Unidas, cuja importância não necessita de ser aqui destacada. Um Tribunal Universal para julgamento de crimes contra a Humanidade seria o passo seguinte.

O rompimento entre os “aliados” Estados Unidos e União Soviética, tão bem simbolizado pela divisão da cidade de Berlim, onde até hoje os orientais e os ocidentais se estranham, como se não fossem todos alemães (na realidade, Berlim ocidental era um mero enclave no território alemão que, na partilha final, tocara aos soviéticos), porém, gerou a chamada “Guerra Fria”, uma queda de braço para estabelecimento de novos aliados, não tanto por motivos políticos mas por motivos comerciais. Ambos, como superpotências, tinham assegurado a si o direito de veto às deliberações da maioria dos componentes da ONU, direito que passaram a exercitar com enorme freqüência. Em nome da necessária igualdade entre os países, um grupo de desiguais ditando as regras, como é de praxe em qualquer ditadura.

O conflito interno e a divisão do Vietnã serviram de mote para que as duas grandes potências mundiais atuassem por trás dos panos, manipulando os governos locais. O aprofundamento da crise acabou agravando o envolvimento dos Estados Unidos, que, para tentar mostrar sua força, lançou mão dos mais brutais métodos para subjugar o inimigo, sem êxito. O emprego de napalm, uma gelatina incandescente que não distinguia entre coisas e seres humanos, ilustra bem essa sandice. Crianças nuas correndo em chamas pela rua é uma das mais terríveis fotografias produzidas no século passado. Francis Ford Coppola sintetizou admiravelmente o que era aquilo em filme que, sintomaticamente, está retornando, devidamente restaurado: Apocalypse Now. O temido fim do mundo não seria pior do que aquilo.

Aquela guerra terminou sem vitoriosos, mas ainda uma vez mostrou quão discutível é a separação entre civilização e barbárie.

Aliás, ao término do século XX, as opiniões de inteligências respeitáveis não acenavam para essa separação. “Não posso deixar de pensar que este foi o século mais violento da história humana”, declarou William Golding, prêmio Nobel de Literatura. “Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que ele despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais”, confessou um dos maiores músicos do século, Yehudi Menuhin. “Lembro-o apenas como o século mais terrível da história”, concluiu Isaiah Berlin, filósofo inglês, todos citados por Eric Hobsbawn16.

Para o professor de história da Universidade de Londres e da New School for Social Research, de Nova Iorque, o “breve século XX” teve três momentos bastante distintos: a Era da Catástrofe, que se inicia com a Primeira Grande Guerra e finda com o término formal da Segunda; a Era de Ouro, compreendendo o quarto de século seguinte, quando se supunha que o bicho homem havia atingido sua maturidade; e a Era do Desmoronamento, quando o sonho de uma sociedade mais justa e menos violenta ruiu estrondosamente, surgindo “uma nova era de decomposição, incerteza e crise"17, que compreende as três últimas décadas daquele século, iniciada basicamente em face da disposição dos países produtores de petróleo de reajustar seus preços, que, de menos de US$ 3.00 o barril em 1970, já valia US$ 41.00 em fins de 1980.

Foi ele um século marcado pelas contradições mais gritantes, decorrentes, não poucas vezes, de um pragmatismo que não conheceu limites. Como anota o historiador sempre citado, nada obstante o comunismo tivesse surgido do inconformismo diante dos excessos do capitalismo primitivo, a vitória dos “aliados” contra as forças do “eixo” (Alemanha, Itália e Japão formaram o que se denominou axis tripartite) somente foi possível em face de haverem soviéticos e norte-americanos lutado lado a lado. Surgido o temível fascismo, “a democracia só se salvou porque, para enfrentá-lo, houve uma aliança temporária e bizarra entre capitalismo liberal e comunismo”, como observa o mesmo historiador18.

Essa era de guerras globais levou à revisão de tudo o que se conhecia a respeito das relações internacionais, envolvendo o campo político, econômico e até mesmo o campo da moral. Até então, havia nas guerras um código de honra, mesmo porque eram elas confrontos entre profissionais, a caracterizar, para muitos, uma autêntica arte. Um jogo de xadrez, onde a estratégia caracterizava os grandes marechais. Agora, com a introdução da aviação, uma de cujas primeiras vítimas foi nosso Alberto Santos Dumont, desgostoso de ver aonde a beligerância havia levado seu genial invento, não mais existe a separação entre militares e civis. Ao bombardeio sistemático de Londres pela Luftwaffe contrapõe-se a destruição de cidades japonesas pelas apocalípticas bombas norte-americanas. A ética utilitarista substituiu as velhas regras de cortesia, levando a regulamentação de tais atividades a enfatizar que “talvez se ache melhor, em vista das alegações de barbaridade dos ataques aéreos, manter as aparências com a formulação de regras mais brandas e também se limitando nominalmente o bombardeio a alvos de caráter estritamente militar, para evitar enfatizar a verdade de que a guerra aérea tornou tais restrições obsoletas e impossíveis"19. A primeira vítima da guerra não é a verdade, como se propala, mas a ética.

A par com isso, a tecnologia trouxe, ainda na Primeira Guerra, uma novidade, cuja incipiência não produziu os resultados esperados: a guerra química, que, embora banida pela Convenção de Genebra, de 1925, voltaria a ter largo emprego no futuro. “O acentuado declínio dos valores da civilização após a Segunda Guerra Mundial acabou trazendo o gás venenoso de volta. Durante a Guerra Irã-Iraque, na década de 1980. O Iraque, então apoiado entusiasticamente pelos Estados ocidentais, usou-o à vontade contra soldados e civis."20 Recordemos, em parênteses, que até o presente momento não houve identificação dos responsáveis pela recente disseminação das bactérias de antraz, reconhecidamente desenvolvidas em laboratórios norte-americanos, o que se seguiu aos atentados de 11 de setembro de 2001, possivelmente realizados por terroristas estrangeiros. A História como repetição dos mesmos fatos, decorrência da conveniente amnésia dos homens.

Como quer que fosse, os números relativos a perdas humanas (a maioria, jovens no esplendor da idade) na Primeira Guerra seriam de fazer pensar: 1,8 milhão de alemães, 1,6 milhão de franceses, 800 mil britânicos. Mesmo os Estados Unidos, que perderiam mais de 300 mil homens na Segunda Guerra, teve ali baixa considerável: mais de 115 mil soldados mortos.

Hobsbawn vê nas feridas da Primeira Guerra a gênese não só da Segunda como de tudo o que o short century XX nos trouxe. “A guerra civil iugoslava, a agitação secessionista na Eslováquia, a secessão dos Estados bálticos da antiga URSS, os conflitos entre húngaros e romenos pela Transilvânia, o separatismo da Moldova e, na realidade, o nacionalismo tanscaucasiano são alguns dos problemas explosivos que não existiam ou não teriam como existir antes de 1914”, diz ele. “O remapeamento do Oriente Médio se deu ao longo de linhas imperialistas – divisão entre Grã-Bretanha e França – com exceção da Palestina, onde o governo britânico, ansioso por apoio internacional judeu durante a guerra, tinha, de maneira incauta e ambígua, prometido estabelecer um lar nacional para os judeus. Essa seria outra relíquia problemática e não esquecida da Primeira Guerra Mundial”.21 O permanente e sangrento confronto entre terroristas palestinos e terroristas israelenses, com mortos civis de lado a lado, ocupa as páginas dos jornais diariamente em nossos dias.

Erich Fromm, já na década de 70, intuíra haver nítida relação entre o culto da tecnologia e tendências necrófilas. “A fusão da técnica com a destrutividade não se mostrava ainda visível por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Havia pouca destruição por parte dos aviões, e o tanque era apenas uma evolução das armas tradicionais. A Segunda Guerra Mundial trouxe uma mudança decisiva: a utilização do avião para a mortandade em massa. Os homens que jogavam as bombas mal tinham consciência de que estavam liquidando ou matando pelo fogo milhares de seres humanos, em poucos minutos. As tripulações aéreas eram uma equipe: um homem pilotava o avião, outro incumbia-se de sua navegação, outro jogava as bombas. Não estavam preocupados com o ato de matar e mal tomavam consciência de um inimigo. Estavam preocupados era com o manuseio de seu próprio avião, uma complicada máquina (construída) segundo as linhas mestras referidas em planos meticulosamente organizados. O fato de que, como resultado de seus atos, muitos milhares e, algumas vezes, mais de cem mil pessoas seriam mortas, queimadas e mutiladas era, sem dúvida, do conhecimento deles cerebralmente, mas dificilmente compreendido sob o ponto de vista afetivo. Era um fato, por mais paradoxal que isso possa soar, que não lhes competia. Foi provavelmente por isso que eles – ou, pelo menos, a maior parte deles – não se sentiram culpados por atos que pertencem à lista dos mais horripilantes que um ser humano pode realizar”.22

Se a palavra do professor de Heildelberg não valia nada, dada sua reconhecida formação marxista (menos sob a ótica política e mais pelo humanismo que caracterizou as preocupações do outro pensador alemão), a julgar pelo incremento da indústria bélica norte-americana na última metade do século passado, que dizer dos comentários irrespondíveis de Noam Chomsky a respeito de atos terroristas (assim ele os classifica) praticados pelo governo norte-americano, como, por exemplo, o bombardeio das instalações farmacêuticas de Al-Shifa, no Sudão, levada a efeito em agosto de 1998? “As instalações de Al-Shifa eram as únicas a produzir drogas contra a tuberculose, para mais de 100.000 pacientes, a preço de cerca de uma libra inglesa por mês. Qualquer remédio importado (mais caro) não é acessível aos sudaneses – ou aos maridos, esposas e filhos dos doentes, que serão infectados a partir de então. Al-Shifa também fabricava drogas de uso veterinário para esse vasto país, que vive na sua maior parte da produção pastoril. A especialidade de Al-Shifa eram as drogas para matar parasitas, que passam do gado para quem cuida dele, e que são uma das principais causas, no Sudão, da mortalidade infantil”, relata, citando reportagem de James Astill, publicada no Guardian de 2 de outubro de 2001.23

Tudo isso, porém, são dados estatísticos. Dados reais são os nomes dos fuzileiros navais norte-americanos mortos no Vietnã e imortalizados no panteão a céu aberto erguido por seus compatriotas. Identificássemos todas as vítimas do terrorismo norte-americano na Ásia, na América e na África, tal como registra Chomsky, e teríamos, certamente, de utilizar a muralha da China para imortalizar seus nomes.

Façamos, a esta altura, alguns closes com nossa câmera investigativa: Bouvanah Maneevong é plantador de arroz no Laos. Cuidadosamente ele procura, com as mãos, no local alagado, pela presença de algum artefato explosivo. Quando os encontra, leva-os cuidadosamente para um buraco aberto além, e aciona um gerador para explodir as bombas em segurança. Mas sabe que sempre haverá o risco de elas explodirem durante o transporte. Até 1993 ele e seu sócio haviam encontrado 45 desses artefatos.

Em agosto de 1993, Nag Saiko e sua filha Posua, de 13 anos, trabalhavam lado a lado no jardim de sua casa, na província de Xieng Khouang, no Laos. Posua tocou com seu instrumento de trabalho em um artefato de metal, que explodiu, matando-a. Estilhaços feriram a mãe no rosto e na perna.

Chantaly era uma moça de 18 anos, que sonhava casar-se e ter filhos. Em julho de 1993 uma explosão de um de tais artefatos causou-lhe graves queimaduras, além de cegá-la. Quando chega alguma visita, ela se esconde, envergonhada de seu aspecto. Em 1976 ela já havia perdido um irmão, quando uma dessas bombas explodiu. Ele tinha 11 anos de idade.

Em novembro de 1993, os dois filhos de Tu Va Chao, Kou Ya, de 4 anos, e Sai Ya, de 6, levavam um búfalo para o pasto. Sai Ya encontrou uma bola metálica e a apanhou, supondo fosse um brinquedo. Em seguida atirou-a na direção de seu irmão. A bomba explodiu, matando Kou imediatamente. Sai Ya morreu dois dias depois. Um ciclista que passava pelo local ficou ferido com a explosão.

Que há de comum em todos esses casos (e em muitos outros que poderiam ser lembrados), exemplos típicos de terrorismo, consoante a definição de Chomsky? De 1964 a 1973, o Laos fora submetido a um dos maiores bombardeios de que se tem notícia, pois os Estados Unidos pretendiam destruir a infra-estrutura montada naquele país, vizinho do Vietnã, pelos comunistas, bem como apoiar as campanhas militares favoráveis ao governo norte-americano, que era preciso estimular. Daí a decisão do bombardeio massivo de um país que, oficialmente, não estava participando da guerra.

Estima-se que foram realizados mais de 580.000 vôos ao longo desses nove anos, que despejaram cerca de 6.000.000 (seis milhões) de bombas convencionais além de 100.000.000 (cem milhões) de “bomblets”, que eram uma espécie de granada redonda, pouco maior do que uma bola de baseball, transportada em uma bomba especial que, ao se aproximar do solo, explodia apenas para o efeito de espalhar essas granadas aleatoriamente por toda a área. Assim, essas “bomblets” transformaram-se em minas, em armadilhas mortíferas, à espera de serem detonadas quando alguém, desavisado, as tocasse. Só na província de Xieng Khouang foram despejadas mais de 300.000 toneladas de bombas, o que corresponde a duas toneladas por habitante!

Ocorreu que, por força das chuvas torrenciais que costumam cair sobre aquela região, as monções, essas bombas foram levadas para outros lugares ou cobertas pela lama, ficando imperceptíveis. Somente quando tocadas por algum objeto mais duro (um instrumento agrícola, por exemplo) elas acusam sua existência, explodindo.

Mais de 11.000 pessoas foram mortas ou feridas nos vinte anos seguintes ao término da guerra do Vietnã, em razão da explosão dessas “bomblets”.

Esses dados constam de relatórios da Mennonite Central Committee24, organização não-governamental, sediada nos Estados Unidos e ligada à North American Mennonite and Brethren in Christ, e que desenvolveu, juntamente com outras entidades (como a inglesa Mines Advisory Group), trabalhos de assistência naquele país. Evidentemente, não há como saber quantas bombas restam para serem detonadas nem como recolhê-las todas, pois, com o passar do tempo, a própria vegetação ou os efeitos da erosão escondem ainda mais tais armadilhas, tornando-as mais perigosas.

Temos, portanto, que um propósito inicial voltado para uma causa que se dizia justa, por mais criticável que fosse, vem acarretando danos perfeitamente previsíveis e cuja ocorrência se dará sabe-se lá por quanto tempo ainda, pois é impossível calcular quantas bombas ainda não foram localizadas. Vive-se ali, literalmente, em um campo minado, sem que ali haja guerra. E sem que o país tivesse estado sob uma guerra oficial. Ironicamente, muitas das vítimas (mais de 50% são crianças e jovens com menos de 15 anos) nem haviam ainda nascido quando a guerra terminou, ao menos oficialmente.

Será diferente a situação deixada no devastado Afeganistão, onde à modernidade cinematográfica dos universal soldiers norte-americanos, dotados de toda parafernália tecnológica para destruir com risco de vida praticamente zero, se contrapunham fanáticos guerreiros que mais pareciam homens desertados das hostes de um Lawrence da Arábia redivivo, mulheres enclausuradas (aos olhos ocidentais) em suas burkas, e crianças de olhos esbugalhados de horror e fome? Ou onde foram jogados armamentos reconhecidamente obsoletos (para os padrões de qualidade norte-americanos) e que deveriam, cedo ou tarde, deixar os depósitos onde dormiam para dar lugar a armamentos mais sofisticados, pois a indústria bélica, como produtora de shows pirotécnicos, must go on?

A história de atrocidades e justiçamentos, tão constante na tradição norte-americana (recorde-se o que foi isso, no campo interno, nos episódios que marcaram a chamada conquista do oeste, com a espoliação dos índios, relegados à condição de inimigos da civilização e confinados a parcelas mínimas dos territórios antes por eles ocupados desde sempre), se repetiu, como visto, recentemente no Afeganistão, com a própria vítima buscando capturar, julgar e executar os presumidos autores de atos terroristas ocorridos em território norte-americano, sem o menor respeito pela Organização das Nações Unidas, por mais simbólica que seja tantas vezes sua atuação mas cuja criação teve como escopo exatamente proporcionar a existência de um foro internacional para discussão e resolução de questões que, dado o evidente interesse dos envolvidos, não podem levar a pretensa vítima a arrogar-se o papel de juiz, como ali foi feito.

Não é isso a postura particular deste ou daquele governante, mas um estado de espírito que se sucede ao longo da História daquele país. Fosse presidente um homem reconhecidamente culto como Theodore Roosevelt, ou alguém notoriamente despreparado para a seriedade do cargo, como o atual presidente, o slogan poderia ser o mesmo: “a smile in the face and a big stick in the hand”. Para quem não se intimidar com o sorriso “amistoso”, lá está o porrete pronto a persuadi-lo.

A própria palavra terrorismo é ali empregada de acordo com as conveniências de momento, sempre levando em conta a conduta alheia. “Devemos nos lembrar que a administração Reagan chegou ao poder, vinte anos atrás, proclamando que o terrorismo internacional (patrocinado em todo o mundo pela União Soviética) era a grande ameaça a ser enfrentada pelos EUA, que seriam o principal alvo do terrorismo, assim como seus amigos e aliados. Deveríamos, portanto, dedicar-nos a esse objetivo principal: erradicar esse câncer, essa praga, que estaria destruindo a civilização. Os adeptos de Reagan responderam a essa conclamação organizando campanhas de terrorismo internacional, extraordinárias tanto em sua proporção quanto na destruição que ocasionaram, levando a Corte Mundial a condenar os EUA. Além disso, prestaram apoio a inúmeras outras iniciativas terroristas, por exemplo, na África do Sul, onde, com a conivência do Ocidente, um milhão e meio de pessoas foram mortas e ocorreram prejuízos da ordem de 60 bilhões de dólares, isso apenas durante a Era Reagan. A histeria em relação ao terrorismo internacional teve seu ápice em meados dos anos 80, enquanto os EUA e seus aliados estavam à frente da disseminação do câncer que alardeavam pretender extirpar"25.

Costuma-se invocar a mediocridade de Adolf Hitler como artista plástico (notadamente quando comparado a outro estadista, o talentoso pintor Winston Churchill), para, talvez, explicar sua necrofilia e as conseqüências dela para a humanidade. Seria descabido lembrar que Ronald Reagan também era um artista frustrado, pois, antes de dedicar-se à atividade política e chegar à Presidência da República, foi ator de cinema, dos mais medíocres?

A propaganda do american way of life, realizada principalmente pelo cinema, tem-nos feito recordar o inaceitável da filosofia nazista que pregava a superioridade da raça ariana e o seu natural direito ao desfrute dos bens produzidos pela sociedade perfeita a que o III Reich a conduziria. Até mesmo os negros, outrora submetidos ao princípio do “iguais, porém separados”, hoje conquistaram um lugar ao sol, em nome de uma nem sempre real integração social, no país do norte. Desnecessário enfatizar aqui que isso se deve mais ao aumento do poder aquisitivo dos negros (e, portanto, à conveniência de serem integrados no mercado consumidor) do que propriamente a um real princípio do tipo “iguais e também juntos”. É a máquina de consumo a fazer novas vítimas.

Lewis Mumford mostrou a relação entre a destrutividade humana e as megamáquinas de potência centralizada, como ocorre hoje com os meios de comunicação e como já existiam, em escala infinitamente inferior, na Mesopotâmia e no Egito, pesasse a barbárie daqueles povos e a pretensa civilidade do nosso tempo. “Conceitualmente, os instrumentos de mecanização (existentes) há cinco mil anos já estavam desligados das outras funções humanas e (seus) objetivos, ao contrário do aumento constante do poder, da previsibilidade e, acima de tudo, do controle. Com essa ideologia protocientífica havia uma arregimentação correspondente (de pessoas) e uma degradação das atividades humanas outrora autônomas: a cultura de massa e o controle de massa faziam sua primeira irrupção."26

Transponha-se isso para os tempos da cibernética e se verá a que resultados isso certamente levará a civilização atual. “Os produtos finais da megamáquina no Egito eram túmulos colossais, habitados por corpos mumificados; enquanto que, mais tarde, na Assíria, como repetidamente em todos os outros impérios em expansão, o principal testemunho de sua eficiência técnica era um deserto de aldeias e cidades destruídas, assim como de solos envenenados: o protótipo das atrocidades civilizadas de nosso dias"27.

O povo norte-americano pode ser considerado um povo espetaculoso, na medida em que sua grande vocação dirige-se invariavelmente para o exibicionismo pessoal. Suas paradas militares ou escolares não se distinguem daquelas que encerram o dia na Disneyworld e que produzem lágrimas comovidas em tantas pessoas que se acotovelam nas calçadas das ruas por onde passa o desfile. Andy Warhol sintetizou, melhor do que ninguém, essa filosofia de vida, ao afirmar o direito a cinco minutos de glória que cada um de nós buscaria ter na vida. Ele mesmo era um reles ilustrador que a mídia e a inegável capacidade de autopromoção dele transformaram em um respeitável artista plástico, graças a seus truques com reproduções de objetos do cotidiano, fossem latas de conservas ou fotografias de pessoas famosas, vendidos a preços astronômicos. E os espetáculos teatrais e cinematográficos em que os norte-americanos conseguem transformar os fatos mais banais do cotidiano também nos mostram isso. Nem que seja necessário atropelar a História (o endeusamento de Evita Perón e de outros tantos heróis que jamais o foram estão aí para testemunhar isso), a máxima the show must go on preside o cotidiano dos norte-americanos e, por influência de sua avassaladora mídia, boa parte do globo terrestre.

Ilude-se, no entanto, quem imaginar que tudo isso seja apenas síndrome de um infantilismo que dominaria grande parcela daquele povo. Ou do espírito paroquial que rege muitas de suas comunidades, cujos membros têm sua atenção voltada para os problemas que chegam até a próxima esquina apenas. Muito pelo contrário, há por trás de muitas dessas manifestações culturais, fruto de evidente manipulação, claros propósitos de envolvimento de corações e mentes em prol de ideologias que nada têm a ver com a promoção do ser humano. O veículo mais utilizado para canalizar isso (paralelamente aos comics, ou histórias em quadrinhos, como comprova o prestígio de Superman, nascido precisamente na época da grande crise econômica que antecedeu a II Guerra Mundial, qual encarnação de algum deus resgatador) é, sem sombra de dúvidas, tal como o era no III Reich e seu Ministério da Propaganda, o cinema, e, atualmente, sua irmã caçula, a televisão, nos quais, graças aos recursos tecnológicos, a fantasia vem a confundir-se com a realidade, sem que saibamos onde termina o real e tem início o chamado mundo virtual. A guerra, como se fosse um mero videogame, produzindo vítimas meramente virtuais.

E tudo isso seria apenas isso, não tivesse o cinema o poder mágico de reescrever a História, como denunciou recentemente um historiador norte-americano, censurando a leviandade com que foram tratadas em filmes as vidas de Kennedy e Nixon, para citarmos figuras mais recentes. Voltássemos ao passado e muito haveria que escrever sobre os vilões impostos pelo cinema aos menos avisados (Silvester Stallone massacrando um loiro russo em uma de suas inúmeras encarnações de Rocky tem muito a ver com a queda do muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética, da mesma forma como seu Rambo era, aos olhos dos membros da geralmente acrítica audience, para os nefandos comunistas o mesmo que era John Wayne, ao ver dos mesmos espectadores, para os carniceiros sioux e apaches, ou para os japoneses, nos filmes em que o eterno cow boy trocava o chapéu de aba larga pela boina verde: o resgatador da lei e da ordem).

A identificação política desse ator com a ideologia de muitos dos heróis por ele encarnados no cinema é fato sobejamente sabido. Como sabido é o empenho do governo norte-americano, logo após a II Guerra Mundial, no sentido de impedir que o cinema fosse utilizado como difusor de idéias “politicamente incorretas”, para usarmos uma expressão de hoje, instituindo uma “delação patriótica”, de discutível moralidade.

De fato, em 1947 o Senado norte-americano constituiu uma comissão fiscalizadora das obras cinematográficas e televisivas, a House on Unamerican Activities, que por mais de 20 anos infernizou a vida de muitas pessoas ligadas ao cinema e à televisão. Um desses perseguidos, o roteirista Carl Foreman, teria utilizado um testa de ferro (em 1976, Woody Allen fez um de seus poucos filmes dramáticos, focalizando precisamente esse tema, The Front, ou, no Brasil, “Testa de Ferro por Acaso”, no qual, como homenagem, trabalharam diversos blacklisted), para realizar High Noon (no Brasil, “Matar ou Morrer”), em 1951, uma parábola na qual aparece a solidão daqueles que, como o personagem vivido por Gary Cooper, se dispuseram a enfrentar o vilão McCarthy e seus apaniguados. Amigos e parentes simplesmente desaparecem em uma hora dessas, deixando o herói na situação de ter de duelar sozinho com os inimigos de todos. O fato de o filme passar-se em tempo real (o relógio é uma constante na tela, cronometrando explicitamente as ações) seria a indicação de que tudo ali é real. Em compensação, quando o grande diretor Elias Kazan foi homenageado pela Academia de Cinema de Hollywood, muitos dos presentes ficaram de costas para o palco, para recordar os tempos em que ele se curvara diante das exigências da comissão investigadora do Senado, delatando colegas de profissão. Logo ele que fizera “Sindicato de Ladrões” (On the Waterfront), uma denúncia da corrupção imperante nos sindicatos norte-americanos, aquilo que no Brasil foi conhecido como “peleguismo” (os diretores do sindicato estão mais interessados em fazer acordos, em seu interesse pessoal, com os patrões do que lutar pelos interesses dos trabalhadores que representam).

A vida real confunde-se com a vida de ficção, em uma integração que o próprio cinema tem denunciado em vários filmes, como em The Truman Show, ou, entre nós, “O Show da Vida”: alguém (um homem autêntico, ou true man), sem o saber, é exposto pela televisão em seu dia-a-dia a todos os que se proponham a ligar o aparelho. O nefando big brother, do livro clássico de George Orwell, paradigma do totalitarismo governamental, torna-se, sintomaticamente, o nome de um programa de entretenimento, cujo propósito é a exaltação do voaierismo mais grosseiro. Uma “Casa de Artistas” que se penetra pelo buraco da fechadura. Que poderá vir, no futuro, mais obsceno do que isso?

Um desses fazedores de mágicas é Steven Spielberg, cuja “Lista de Schindler” conterá, seguramente, alguns de seus antepassados, vítimas da ignominiosa atuação do nazismo e sua disposição de aprimorar a raça humana. À ingenuidade de seu feíssimo E.T. (e seu desesperado bordão phone home, repetido à exaustão quando toma conhecimento da maldade dos terráqueos), à simpática criminosidade de seus Gremlins (figurinhas naturalmente boas, que, talvez por força dos efeitos do meio ambiente, se tornam capazes dos atos mais atrozes) e à pacífica visita de seres extraterrestres e sua mensagem de paz (“Contatos Imediatos do 3º Grau”) seguiu-se, porém, um curioso MIB (Men in Black), que, embora não dirigido por ele, foi por ele produzido, o que vem a dar na mesma.

Resumamos a aparente comédia: considerando que a Terra (isto é, os Estados Unidos) estão sendo invadidos por extraterrestres (isto é não-nascidos naquele país, estrangeiros e, portanto, bárbaros), cria-se um grupo de elite (os tais “Homens de Preto”, ou MIB), com poderes superiores (se isso for possível) aos dos membros da CIA e do FBI. Compete-lhes fiscalizar esses seres que, assumindo a forma humana, tanto podem ser benéficos à Humanidade (leia-se, Estados Unidos da América do Norte), trabalhando, por exemplo, na própria sede dos MIB (o número de pesquisadores estrangeiros arregimentados por brain hunters e regiamente remunerados que trabalham naquele país é simplesmente incontável) como prejudiciais a ela, traficando armas e/ou drogas proibidas (a Máfia e as quadrilhas de traficantes de drogas mostrados no cinema e na televisão não são compostas de norte-americanos típicos, pois não?). Com pouco tempo de filme descobre-se que esses extraterrestres são, na verdade, enormes baratas (ou, em castelhano, cucarachas, que é como são chamados, depreciativamente, nos EUA os americanos nascidos em terras situadas abaixo do rio Grande), que somente podem ser destruídos se um dos black men se infiltrar (literalmente, ser devorado pela barata) entre eles. E esses guardiões da sociedade contam com um elemento relevante para que sua atuação não seja exposta ao público: apagam da memória das pessoas todas as suas atividades, que se caracterizam essencialmente pela arbitrariedade. Lição certamente aprendida de Hitler, Mao e Stalin e o sistemático cancelamento do registro de nascimento dos inimigos do regime.

E basta recordar o início do filme para verificar que não se trata de uma visão deturpada de uma obra cinematográfica sem pretensões. Nele, um grupo de mexicanos é detido pela polícia exatamente quando tentava ingressar (no meio deles havia, sem que soubessem, um extraterrestre) no território norte-americano.

Compare-se essa história fictícia com a realidade. O mesmo espírito que tem levado os Estados Unidos a não assinar tratados internacionais ou, quando os assinam, não os cumprir, já se manifestava no declarado propósito de contribuir para a criação de um Liga das Nações, logo após o encerramento da Primeira Grande Guerra e a assinatura do Tratado de Versalhes. Inúteis foram os esforços do presidente Wilson, que não conseguiu demover os senadores norte-americanos, representantes, como sempre o foram, das oligarquias locais, a ratificar o tratado que criava a Liga. “Assim, ao passo que a Sociedade das Nações preconizava o desarmamento, assiste-se ao rearmamento intensivo; e enquanto (a SDN) condenava a anexação violenta de territórios, esta era praticada na Europa e na África. Incapaz de se opor eficazmente à anexação da Etiópia pela Itália, a SDN viu seu papel muito diminuído nos anos que imediatamente antecederam a II Guerra Mundial, para deixar praticamente de existir com o deflagrar desta”.28

Hoje, além de boicotar a atuação da ONU, transformada em mero agente placitador de suas decisões, com negar-lhe verbas fundamentais para sua manutenção, recusam-se os Estados Unidos a reconhecer a jurisdição de um Tribunal Internacional, ao qual seriam, mais adequadamente, submetidas questões como as que envolvem belicosamente tantas nações nos dias de hoje, definíveis como atos de terrorismo, uma das quais precisamente a grande potência do norte.

Eis um dos inúmeros exemplos citados por Chomsky, quando alude aos Estados Unidos como “reincidentes no terrorismo internacional"29: “Nos anos 80, a Nicarágua foi vítima de um violento ataque conduzido pelos EUA. Dezenas de milhares de pessoas morreram. O país sofreu uma substancial devastação e jamais pôde se recuperar. O ataque terrorista internacional foi acompanhado por uma arrasadora guerra econômica, que um pequeno país, isolado do mundo por uma vingativa e cruel superpotência, dificilmente poderia enfrentar, como revelaram em detalhes os principais historiadores que estudam a Nicarágua, como Thomas Walker, por exemplo. Os efeitos sobre o país foram muito mais severos do que a tragédia ocorrida recentemente em Nova York. E eles não retaliaram bombardeando Washington. Eles recorreram à Corte Mundial, que deliberou em seu favor, ordenando aos EUA que voltassem atrás e pagassem uma reparação substancial. Os EUA desdenharam da Corte e de sua sentença, respondendo com nova onda de intensificação dos ataques à Nicarágua. O país, então, recorreu ao Conselho de Segurança, que, em conseqüência, passou a discutir uma resolução determinando aos Estados Unidos  que observassem as leis internacionais. Os EUA, e tão-somente eles, vetaram a resolução"30. Um julgamento no qual o acusado tem decisivo poder de veto seria algo para rir, não fosse para se apavorar.

Nada mais adequado a esta altura do que as palavras de Flávia Piovesan: “No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou (?) assim a ruptura do paradigma dos direitos humanos, através da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Diante desta ruptura, emerge a necessidade da reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral"31.

Estes são tempos de justificadas preocupações, pois a interdependência dos países em termos comerciais é um fato que traz como conseqüência uma influência inimaginável de um conflito localizado sobre países alheios ao que ali se passa. De outra parte, a limitada capacidade de produção de petróleo no mundo e sua coincidente localização, quase exclusivamente, em solo de países não identificados com a cultura ocidental, pode sugerir que o emprego de força nessa região tenha o propósito de mera advertência, à custa de boa parte da população civil. Por fim, a aprovação, em prazo curtíssimo, de lei que considera todo estrangeiro (barbarus) suspeito, pelo só fato de sê-lo, sujeito a prisão sem qualquer elemento mínimo de prova, como acaba de ser feito nos Estados Unidos, rompendo-se tradição que remonta à própria fundação das colônias inglesas em terras do Novo Mundo, nos leva a reiterar a indagação: onde a civilização e onde a barbárie?

Compare-se tudo isso com a lição de Alberto Silva Franco, ao falar dos efeitos da globalização na criminalidade (ou vice-versa): “os crimes transnacionais abrangem um amplo espectro de comportamentos lesivos que incluem, além dos crimes econômicos e financeiros, que cresceram de forma preocupante, os crimes ligados à tecnologia informática, os crimes contra o ambiente, os crimes de tráfico internacional de substâncias entorpecentes, de armas, de pornografia, de prostituição de menores, o conúbio entre o mundo político e o mundo dos negócios, o terrorismo, o contrabando e comércio de pessoas ou de partes do corpo, as contrafações, a espionagem industrial, a evasão fiscal etc. Tais formas de criminalidade não decorrem freqüentemente da ação visível de uma pessoa ou de um grupo bem caracterizado de pessoas, o que dificulta sobremaneira a apreensão e captação das atividades postas em prática. Tornam-se perceptíveis, no entanto, em qualquer delas dados comuns representados por uma sofisticada estrutura organizacional, por uma finalidade geral de obtenção de lucros ilimitados, por uma grande dificuldade na determinação territorial e por uma capacidade de criar uma zona cinzenta entre o lícito e o ilícito"32.

Quando vem à tona um dos esperáveis efeitos terríveis desse conúbio entre política e interesses comerciais, como no recente escândalo envolvendo a Enron, empresa responsável pelo custeio de campanha de senadores, deputados e do próprio Presidente da República dos Estados Unidos33, além de jornalistas que, regiamente remunerados por ela, jamais se empenhariam em investigá-la com a profundidade que empregariam em se tratando de empresa outra, e cuja falência afetou a vida de número incalculável de famílias que ali haviam depositado seu dinheiro e suas esperanças, invoca-se justamente o caráter transnacional da empresa para justificar o interesse do governo norte-americano no êxito de suas atividades além-fronteira.

Será mera coincidência que o ataque às torres gêmeas de Nova York, tanto quando aquele a Pearl Harbor nos anos 40, venha a significar incremento para a economia norte-americana, notadamente no que diz com a aparentemente desnecessária indústria bélica, a julgar pelos termos do orçamento enviado recentemente pelo presidente norte-americano ao Congresso solicitando verbas astronômicas para tal finalidade, a causar estupor a tantos quantos vêm com real preocupação os rumos da política externa daquele país, que parece orientada por outro personagem de Stanley Kubrick, o sinistro Dr. Strangelove? Não poucas vezes a vida imita a arte, mesmo quando esta se aproxime de um pesadelo surrealista.

Dir-se-á que os efeitos do imperialismo inglês na Ásia, ou do francês na África ou do espanhol naquilo que se tornou a América latina, não foi diferente. A civilização nada mais seria do que a barbárie sob nova roupagem. Ocorre, porém, que naqueles tempos o homem não havia chegado ao poder de destruição que apresenta hoje, o que certamente inspirou as nações que se pretendem civilizadas a abrir mão de parte de sua soberania para que essa força não esteja nas mãos de uma potência hegemônica. À alegada ilegalidade do Tribunal de Nuremberg, por exemplo, como tribunal de exceção, por isso que instituído pelos “aliados” após o término da II Guerra (violando, portanto, a regra segundo a qual a competência deve ser estabelecida ante facta judicanda), argumentou-se que, muito embora não houvesse ainda de fato tratados regulando sua atuação específica, cuidava-se de crimes reputados tais pela consciência de todos os povos, donde entender-se que o Tribunal aplicou “o costume internacional para a condenação criminal de indivíduos envolvidos na prática de crime contra a paz, crime de guerra e crime contra a humanidade, previstos pelo Acordo de Londres, de 1945"34.

Era de esperar, pois, que o fortalecimento da Organização das Nações Unidas e de um Tribunal Internacional fossem do interesse de todos os povos civilizados, como meio e modo de impedir aquela hegemonia, ainda que isso implicasse numa redefinição “do âmbito e do alcance do tradicional conceito de soberania estatal"35. Ou isso, ou a hecatombe, especialmente quando decisões de extrema gravidade, que podem comprometer a sorte do planeta, estejam nas mãos de pessoas guiadas por interesses não muito claros.


De fato, Steve Hatfield descreve, em livro recente, A Fortunate Son: George W. Bush and the Making of an American President, segundo noticia Frei Betto, o grau de envolvimento entre as famílias Bush e Bin Laden, ambas, como sabido, enriquecidas à custa do petróleo.

Segundo ali se lê, George H. Bush, em meados dos anos 60, se tornou amigo de um empreiteiro árabe que viajava com freqüência para o Texas, introduzindo-se aos poucos na sociedade local: Muhammad Bin Laden. Em 1970, fundou sua própria empresa petrolífera, a Bush Energy. Graças aos contatos internacionais que o pai mantinha desde os tempos que fora diretor da CIA, George H. buscou os investimentos de Khaled Bin Mafouz e Salem Bin Laden, este o mais velho dos 52 filhos gerados por Muhammad. Mafouz era banqueiro da família real saudita e se casara com uma das irmãs de Salem. Esses vínculos familiares permitiram que Mafouz se tornasse o presidente da Blessed Relief, a ONG árabe na qual trabalhava um dos irmãos de Salem, Osama Bin Laden.


Curiosamente, anota o mesmo autor, tanto o pai de Osama Bin Laden, em 1968, como seu irmão Salem, vinte anos depois, faleceram em desastres de avião, aquele ao sobrevoar os poços de petróleo de Bush36. 

Jamais se saberá em que circunstâncias pai e filho faleceram nem qual é efetivamente o grau de envolvimento dos interesses privados nas ações públicas tomadas recentemente pelo governo norte-americano, empenhado, a todo custo, em vincular o outrora aliado Osama aos atentados contra as torres gêmeas de Nova York, mesmo não havendo mais do que meros e remotos indícios a respeito dessa atribuída autoria intelectual. O mínimo que alguém indaga quando procura identificar o autor de um crime é: “a quem aproveitaria?” Obtido o suspeito, surge nova pergunta: “que motivos o teriam levado a fazer iso?” Bastaria isso para demonstrar a necessidade de conferir-se a uma entidade internacional, se possível descomprometida com o tema, a competência para apreciar essas evidences e concluir se estão elas beyond a reasonable doubt, tal como se exige para a responsabilização criminal de alguém, máxime diante de algo tão nefando como aquele atentado terrorista.

Uma derradeira referência ao cinema: em Wag the Dog (no Brasil, “As Aparências Enganam”), Robert De Niro é um “assessor especial” da Casa Branca, chamado a solucionar uma questão delicadíssima. É que o presidente dos EUA envolveu-se com uma funcionária e a oposição ameaça explorar tal escândalo, o que comprometerá a reeleição dele. Algo deve ser feito para evitar esse desastre político. É contratado, então, pelo “assessor especial” um renomado produtor de Hollywood, interpretado por Dustin Hoffman, que realiza um “documentário”, no qual demonstra a iminência de uma guerra tramada no Oriente e envolvendo aquele país. Graças à firme atuação do presidente no episódio, o perigo que ameaçava os norte-americanos é afastado e a reeleição dele praticamente garantida. O problema é que o produtor de cinema, entusiasmado com a qualidade de sua obra, dispõe-se a proclamar a farsa, sendo inúteis os argumentos usados para dissuadi-lo. Antes de realizar seu propósito, ele morre em circunstancias misteriosas e é enterrado com toda a honra de que sua condição de cidadão exemplar, com enorme folha de serviços prestados à pátria, o faz merecedor. Dizer que ridendo castigat mores é muito pouco. Há que perguntar o que leva um realizador a esse tipo de divagação.

Seria leviandade extrema suspeitar que os interesses de pessoas, grupos econômicos ou mesmo de uma nação levasse a situações como aquela denunciada no filme. Uma coisa, porém, é historicamente indesmentível: os EUA lucraram amplamente com as duas guerras mundiais. “Em ambas os EUA se beneficiaram do fato de estarem distantes da luta e serem o principal arsenal de seus aliados, e da capacidade de sua economia de organizar a expansão da produção de um modo mais eficiente que qualquer outro. É provável que o efeito econômico mais duradouro das duas guerras tenha sido dar à economia dos EUA uma preponderância global sobre todo o breve século XX”37

O proveito advindo aos EUA com transformar o Afeganistão em uma ponte semelhante ao que foi, no passado, o canal do Panamá, colocando-o agora em privilegiado posto de fiscalização sobre os principais produtores mundiais de petróleo, seiva insubstituível de sua economia, permite todas as ilações. Enquanto, pois, não houver um foro internacional com competência e liberdade para apurar eventuais denúncias em tal sentido, a síndrome da conspiração continuará a ser uma presença constante na cultura norte-americana, com seus reflexos em todo o mundo, como ocorreu tantas vezes no século passado. Veja-se, por todas, a que envolveu a morte de John F. Kennedy, ocorrida, por sinal, no Estado do Texas, sede do petróleo norte-americano.

Nada sugere, no entanto, que isso se tornará diferente em curto prazo. Na civilização deste novo século, ao que tudo indica, continuará a prevalecer nas relações internacionais, tal como ocorria nas tribos mais primitivas, o direito da força e não a força do Direito. “O mundo do terceiro milênio quase certamente continuará a ser de política violenta e mudanças políticas violentas. A única coisa incerta nelas é aonde irão levar"38. Não será, pois, de estranhar se, daqui a cem anos, ao fim de mais uma centúria, devamos repetir as palavras desesperançosas de Hobsbawn, quando se referiu ao seu breve século XX: “o velho século não acabou bem”.39

A menos que triunfe a invejável esperança de Silva Franco: “É bem possível que ainda custe muito tempo para que, em nível externo, surja um Direito Penal internacional com poderio suficiente para impor-se sobre os Estados-nações e as empresas transnacionais. Para alguns, trata-se de mais uma utopia. Mas, o que é a utopia senão algo que tem a visibilidade à distância?"40


1Pierre Teilhard de Chardin, “O Fenômeno Humano”, Editora Cultrix, 1995, pág. 278
2Joseph Campbell, “O Poder do Mito”, Editora Palas Athena, 1990, pág. 16
3cf. Campbell, ob. cit., pág. 19
4Campbell, ob. e loc. cits.
5Cf. Adauto Suannes, “Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal”, Editora Revista dos Tribunais,  1999,
6Muito anterior ao Bill of Rights norte-americano, que é de 1791, é o Bill of Rights inglês, datado de 1689, oficialmente denominado “Act Declaring the Rights and Liberties of the Subject and Settling the Sucession of the Crown”, para darmos um único exemplo.

7“Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a reflexão, como a própria palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor: não mais apenas conhecer, mas conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que se sabe” (Teilhard de Chardin, ob. cit., pág. 186). Justamente por isso, “pelo fato de sermos pessoais até certo ponto, não se prova que essa personalidade esteja consumada; ela deve prosseguir duplamente no esforço que fazemos para nos ultrapassarmos a nós mesmos e para nos reunirmos aos outros seres com os quais devemos constituir um grau superior de personalidade” (cf. Teilhard de Chardin, “Essai d’intégration de l’homme dans la nature”, 1930, citado por ele mesmo in “O Fenômeno Humano”, pág. 191, nota 32)
8Carlo Ginzburg, “O Alto e o Baixo – O Tema do Conhecimento Proibido nos Séculos XVI e XVII”, in “Mitos, Emblemas, Sinais”, Editora Companhia das Letras, 1999, pág. 98
9cf. Amilcare Carletti, “Brocardos Jurídicos”, Ed. Universitária de Direito, vol. III, terceira parte, pág. 373
10id., ib.  
11cf. Flávia Piovesan, “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, Editora Max Limonad, 2a. ed., pág. 138
12Noam Chomsky, “11 de Setembro”, Editora Bertrand Brasil, 2002, pág. 104
13textualmente, “ato de terrorismo quer dizer qualquer atividade que: a) envolva um ato violento ou uma séria ameaça à vida humana que seja considerado delito pelos Estados Unidos ou qualquer outro Estado, ou que seja delito assim reconhecido, se praticado dentro do território jurisdicional americano ou de qualquer outro Estado;  e b) aparente (i) ser uma intimidação ou coerção à população civil; (ii) influencie a política governamental por meio de intimidação ou coerção; ou (iii) ameace a conduta de um governo por um assassinato ou seqüestro” (apud Chomsky, ob. cit., pág. 17, nota de rodapé)
14Noam Chomsky , ob. cit., pág. 65
15cf. Noam Chomsky, ob. cit., pág. 18
16cf. “Era dos Extremos – O breve século XX”, Editora Companhia Das Letras, 1995, pág. 11

17Hobsbawn, ob. cit., pág. 15  
18ob. cit., pág. 17  
19Extraído por Charles Townshend das Regras para um Bombardeio Aéreo, editado pela RAF, e citado por Eric Hobsbawn, ob. cit., pág. 29

20Hobsbawn, ob. cit., pág 36
21ob. cit., pág. 39  
22“Anatomia da Destrutividade Humana”, Zahar Editores, 1979, pág.461
23ob. cit., pág. 55  
24cf., na Internet,  http://www.mcc.org/cluster
25Chomsky, ob. cit., pág. 78
26citado por Erich Fromm,  ob. cit., pág. 456
27Mumford, ob. e loc. cits.
28André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, “Manual de Direito Internacional Público”, Editora Almedina, 3ª ed., pág. 465
29ob. cit., pág. 49  
30ob. cit., pág. 27  
31ob. cit., pág. 140
32Alberto Silva Franco, “Globalização e Criminalidade dos Poderosos”, in Revista Brasileira de Ciência Criminais, publicação oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Editora Revista dos Tribunais, pág. 102 e seguintes
33Segundo a revista Veja, edição de 06/02/2002, dos 248 congressistas dos comitês que investigam o escândalo, 212 receberam dinheiro da Enron ou da Arthur Andersen (auditora que encobriu informações a respeito da real situação da empresa auditada). O Presidente Bush, por sua vez, recebeu, entre 1993 e 2001, cerca de US$ 623.000 como financiamento de campanha.
34Flávia Piovesan, ob. cit., pág. 144  
35Flávia Piovesan, ob. cit., pág. 132  
36cf. Frei Betto, “Laços de Família”, in Jornal “O Estado de São Paulo”, edição de 31.10.01
37Hobsbawn, ob. cit., pág. 55  
38Eric Hobsbawn, ob. cit., pág. 446  
39ob. cit., pág. 26  
40Alberto Silva Franco, ob. cit., pág. 136

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*Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Criminal, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.

 

 

 

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