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A sociedade do espetáculo

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Atualizado em 21 de agosto de 2013 14:42

Algumas semanas atrás, ouvi numa rádio da capital de São Paulo uma matéria que se apresentou do seguinte modo. Tratava-se de uma reportagem que anunciava um evento que estava para se iniciar num teatro. O que desde logo chamou minha atenção foi que a repórter entrou no ar demonstrando uma ansiedade enorme. Ela falava com grande euforia realçando com muita expectativa o que estava prestes a ocorrer. Narrou que havia centenas de jornalistas no local do evento. Ela disse mais ou menos o seguinte:

"Olha, estou aqui no teatro... Aguardando o início do credenciamento dos jornalistas. Já estão aqui mais de quinhentos. São aguardados cerca de mil de todo o mundo. Há um clima de expectativa muito grande. Eu tentei descobrir alguma coisa sobre o lançamento, mas não consegui. Ninguém conseguiu. É segredo de Estado. Está guardado a sete chaves. Daqui a pouco, vamos adentrar no teatro e vamos nos posicionar. Todos querem pegar um bom lugar..."

Bem. Eu também fiquei ligado e bateu-me até um certo anseio. Seria o anúncio da descoberta da cura do câncer? Ou a apresentação por cientistas brasileiros da vacina que eliminaria o vírus HIV? Ou, quem sabe, por esses acertos do destino, o governo brasileiro teria conseguido que a paz pudesse ser enfim selada entre palestinos e israelenses que habitam a faixa de Gaza? Fiquei aguardando, pois o que viria era algo muito importante.

Passados alguns intervalos comerciais, a repórter voltou e anunciou do que se tratava: o lançamento do novo iPhone da Apple!

À parte a excelente jogada de marketing, o que se vê é uma das características do jornalismo contemporâneo, a do espetáculo. Aliás, essa é também uma característica da sociedade de consumidores em que vivemos, na qual a velocidade e a superficialidade são marcas importantes e na qual a diversão a qualquer preço impregna quase tudo.

No último livro de Mario Vargas Llosa, "A civilização do espetáculo"1, o tema é explorado em várias vertentes. De fato, esse fenômeno observável não começou agora. Como mostra o escritor peruano, já em 1967, Guy Debord lançava em Paris um livro no qual apontava a existência de uma "sociedade do espetáculo"2. Nele o autor classifica de "espetáculo" aquilo que Karl Marx chamou de "alienação", especialmente aquela do fetichismo dos produtos, mediante o qual as pessoas dão mais importância aos bens materiais que aos seres humanos em todas suas dimensões. As pessoas passam, então, a ser valorizadas pelos bens que possuem e não por seus atos de benevolência ou sua inteligência. Esse fetichismo da mercadoria no estágio do capitalismo avançado atinge tanta importância que substitui na vida dos consumidores outros interesses legítimos de ordem cultural, intelectual ou política, tornando-se o centro de suas preocupações.

Esse modo de viver torna-se uma obsessão. O consumo constante de produtos e de serviços, muitas vezes supérfluos e inúteis impostos pelo marketing, pelas modas, pela publicidade massiva, vai assim esvaziando a vida interior das pessoas em relação às outras preocupações sociais ou simplesmente humanas.

Como mostra Vargas Llosa a respeito do livro de Debord, uma de suas afirmações feitas naquela época ("O consumidor real torna-se um consumidor de ilusões") é mais que confirmada nos anos posteriores3. A consequência disso é a futilização que domina a sociedade de consumidores. A multiplicação das ofertas de produtos e serviços gera uma falsa sensação de liberdade de escolha, pois as trocas existentes entre dinheiro (do consumidor) e produtos e serviços (dos fornecedores) é feita segundo a imposição do modelo de produção capitalista e segundo os interesses dos produtores e do sistema econômico subjacente, que se encarrega de oferecer crédito para aqueles que, por ventura, não tenham dinheiro para adquirir os bens. Não se trata, pois, de liberdade de escolha, mas de necessidade de aquisição, num processo de representação de uma vida encenada para o consumo e pelo consumo.

Vejamos um exemplo bastante significativo desse modelo: a dos produtos culturais que passam a ser enxergados como de consumo, numa substituição que gera um tipo de ilusão muito interessante no que diz respeito ao comportamento dos consumidores e que é muito bem explorada pela indústria de turismo. Os anúncios publicitários do tipo "Conheça a Europa em 15 dias" confirma o diagnóstico. A enorme quantidade de pessoas que visitam os museus da Europa todos os dias também comprova esse comportamento. É, na verdade, mais um modismo (solidificado e tornado permanente) e um modo de aquisição pelos consumidores. O que é adquirido é uma ilusão de que se está recebendo alguma vivência ou alguma cultura. Certamente, não é possível obter a experiência de "conhecer" a Europa com toda sua riqueza distribuída em dezenas de cidades, com suas populações de vidas diversificadas com suas histórias e tradições em apenas alguns dias, como também não se pode compreender nem conhecer a riqueza das obras do Louvre num único dia de visita. Como diz o escritor peruano Nobel de Literatura, "... essas visitas de multidões a grandes museus e monumentos históricos clássicos não representam um interesse genuíno pela 'alta cultura', mas mero esnobismo, visto que a visita a tais lugares faz parte das obrigações do perfeito turista pós-moderno4". Ao que eu acrescento o seguinte.

Não se trata somente de esnobismo de alguns consumidores, mas também de um processo de alienação no qual o consumidor se vê obrigado a entrar para poder pertencer a um grupo, o daqueles que "conhecem" a Europa, suas cidades, seus museus. Trata-se de um produto de consumo muito bem vendido, dentro da ideia de identificação que homogeneíza os consumidores, que passam a ser enxergados como tal. Há os que possuem carrões, os que moram em mansões, os que conhecem a Europa, que foram ao Louvre e os que possuem o iphone último tipo. É pelo processo de identificação com aquilo que os demais possuem que os consumidores acabam por adquirir os produtos e serviços que os outros adquirem para com isso pertencerem a algum segmento. Para com isso poderem ser reconhecidos de algum modo. É o fenômeno da identificação, uma outra característica da sociedade de massas.

É isso. São pistas para, pelo menos, tentarmos entender como é que uma jornalista apresenta na rádio o lançamento de um produto tecnológico banal com mais ansiedade e temor do que o assassinato de uma família inteira!

__________

1Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

2O titulo de seu livro é: "La societé du Spetacle", citado por Mario Vargas Llosa na obra referida, os. 20 e 21.

3Idem, ibidem, p. 22.

4Obra citada, p. 25.