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TRF4, pós-verdade e opinião: o problema de estrangeiros falando de nós

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Atualizado em 31 de janeiro de 2018 12:53

Rizzatto Nunes e Rodrigo Ferrari-Nunes

A questão não envolve exatamente o mercado de consumo, porém no primeiro artigo que publico neste ano, não poderia deixar de lado o tema do momento: o do julgamento pelo TRF4 do caso do ex-presidente Lula. E, por aquilo que se pode ver dos noticiários e das redes sociais, praticamente tudo já foi dito a respeito do assunto. Por isso, aproveito o episódio para focar num ponto um pouco diferente: o da posição dos estrangeiros em relação a nós brasileiros. Para tanto, o antropólogo Rodrigo e eu usaremos como base um texto publicado por um articulista do New York Times1, que tem o intuito de denegrir a imagem do Brasil.

Podemos começar com uma pergunta de meu amigo Outrem Ego: "Pessoas falam de nós pelo mundo afora, mas será que eles nos entendem?".

Para responder, lembramos Edward Said, que em sua obra clássica "Orientalismo"2, ensina que é sempre muito difícil julgar e conhecer um povo que não seja o nosso. Aliás, até o nosso próprio impõe dificuldades quando se busca compreendê-lo.

Como mostra Said, muitas vezes esse povo estrangeiro, esse outro, é uma construção. Construção essa, feita por planejamentos estratégicos mal intencionados, com objetivos específicos não declarados, aplicadas aos meios de comunicação por supostos estudiosos, agentes governamentais, jornalistas especializados etc.. E mais: ainda que com boas intenções, a construção do "outro" faz-se muitas vezes a partir do conhecimento de si, das experiências pessoais e localizadas muito distante da vida e vivência do analisado. Essa construção, como dito, é feita pelos meios de comunicação em geral, o que envolve também as universidades e seus acadêmicos, a literatura, o cinema, etc..

Gera-se o preconceito, mas se vai muito além: cria-se uma imagem fixa que, muitas vezes, falseia completamente a realidade.

Muito bem. Estamos no Brasil e como brasileiros que somos, temos todo direito de emitir nossas opiniões - garantidas constitucionalmente. E, em tempos de redes sociais, são feitos diariamente centenas e até milhares de pronunciamentos sobre diversos temas.

Como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Certo. Mas, isso não quer dizer que analistas, cientistas, articulistas especializados etc., possam falar "qualquer" coisa a respeito dos fatos e das pessoas. Quer sejam brasileiros ou estrangeiros.

Como acima anunciado, sobre o episódio do julgamento do ex-presidente Lula, deixaremos de lado as falas dos brasileiros que expressam sua opinião. Estão apenas no uso do exercício de sua liberdade de expressão.

Ora, a liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos. E essa garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que, para os gregos na antiguidade, era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação.

Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos (ou oferecer produtos e serviços no mercado), há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade e o respeito às garantias e aos direitos estabelecidos.

Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim.

Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos.

Posto isto, vejamos agora, o que disse o articulista do jornal New York Times (NYT). Logo no início do artigo ele diz, textualmente: "O Brasil, o último país ocidental a abolir a escravatura, é uma democracia bem recente, tendo emergido da ditadura há umas três décadas"3.

Como?

A escravatura no Brasil foi abolida no ano de 1888, antes da instauração da República. Nos Estados Unidos da América ela aconteceu alguns anos antes, em 1863. Mas a perseguição aos negros por lá prosseguiu de forma violenta e cruel por quase todo o século XX. O jornalista do NYT não sabe disso? Não sabe ele do brutal racismo existente em seu próprio país, na sua sala de estar?

Será que ele nem ouviu falar do "Experimento da Sífilis" em Tuskegee, bancado pelo governo americano de 1932 à 1972? Um experimento racista que transformou em cobaias humanas 600 homens negros durante 40 anos4! Em 1997, o presidente Bill Clinton pediu formalmente desculpa aos sobreviventes de Tuskegee, numa cerimônia na Casa Branca. E se o articulista tivesse lido - quem diria? - o jornal NYT de 25/7/1972 saberia da experiência5.

Ou, falando de algo muito mais conhecido de todos: a Ku Klux Klan (KKK), organização norte americana racista, que surgiu no século XIX e que existe até hoje. Será que ninguém no NYT conhece a KKK?

Nós nem deveríamos tratar desse assunto, mas como foi o articulista do prestigioso NYT que trouxe o tema, fazemos a citação e colocamos a pergunta: "Qual é a relação entre abolição da escravatura do século XIX com o julgamento de um processo pelo TRF4 em 24-1-2018?"

Ele, como correspondente estrangeiro, devia guardar para si o sentimento que tem em relação ao Brasil. Teria que tratar de fatos. E sem distorções nem manipulações (ainda que absurdas como as que apresentou no início do artigo).

De fato, será que quem escreve no NYT não precisa conhecer um mínimo de lógica?

Adiantaria ler o restante do artigo, após um início como esse, ilógico, sem fundamento, e, como se diz, "sem pé nem cabeça"? Não! É pura perda de tempo. Mas, claro, foi citado por aqui. Aliás, muito do que se escreve e publica lá fora, chega até nós mais por causa de nosso complexo de vira-lata do que pelo conteúdo da informação.

Lendo o artigo, ficamos com uma dúvida a respeito do NYT: "Será que o que se publica por lá é assim tão fraco?". Desse jeito, acabaremos até dando 'razão' ao presidente Donald Trump quando critica a imprensa local.

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* Rodrigo Ferrari Nunes é doutor em Antropologia pela Universidade de Aberdeen na Escócia, onde é pesquisador Honorário, é mestre em Antropologia pela Universidade de British Columbia, e sócio fundador do Segredo da Música com Sandro Haick.

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1 NY Times.

2 Publicado entre nós pela Companhia de Bolso (Editora Schwarcz Ltda) São Paulo: 2007.

3 Endereço acima. Nossa tradução livre.

4 Estudo da Sífilis não Tratada de Tuskegee

5 Observador.