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O capitalismo está emburrecendo?

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Atualizado às 08:20

Nos anos oitenta do século passado, eu fui advogado de um grande banco internacional, administrado com o que havia de melhor em técnicas de relações de consumo. Aprendi muito em termos de qualidade no atendimento aos clientes. Por exemplo, uma das técnicas de cobrança levava em consideração o histórico dos clientes. "Uma coisa", diziam os executivos do setor, "é um novo cliente que logo no primeiro empréstimo deixa de pagar alguma prestação; outra, bem diferente, é um cliente antigo que sempre pagou em dia e que, de repente, atrasa".

E, nos tempos atuais tenho observado uma queda na qualidade do atendimento aos consumidores na questão das cobranças, bem antipáticas. Veja esse exemplo: um médico, um advogado, um odontólogo etc. tem um contador que lhe envia boleto mensal para pagamento dos serviços prestados. Não importa quanto tempo essa relação dure, pode ser o primeiro mês ou o décimo ano, a empresa de contabilidade manda o boleto com um aviso: "se o pagamento não for feito na data do vencimento, a cobrança irá ao Cartório de Protestos". Mandando, de fato, ou não, será que não percebem que é algo tolo? É assim que se deve tratar os clientes, especialmente os fieis?

Certa feita, meu amigo Outrem Ego, bastante nervoso, disse-me o seguinte:

"Sou cliente de uma operadora de tevê a cabo há mais de dez anos. Nunca atrasei uma só prestação. Nenhum mês. Há dias e semanas em que nem assisto nada.

Muitas vezes, o sinal foi cortado sem motivo e jamais me deram um desconto. Pois bem, sabe-se lá por que a conta desse mês de agosto ficou enroscada em outras - tenho muitas contas pra pagar. Vencia dia 10 e eu só vi alguns dias depois. Paguei atrasado.

Mas, não é que no mesmo dia recebi uma cobrança grosseira, dizendo que se eu não regularizasse meu débito o sinal seria cortado. Empresários grossos e mal educados. Será que não viram que foi um engano? Será que não distinguem bons clientes de maus clientes? Esses milhares de reais que eu entreguei para eles esses anos todos não valem nada?

Diante do desrespeito, eu até pensei em trocar de operadora, mas deve ser tudo igual. Nós consumidores não temos saída.

É assim que eu me sinto: ultrajado. Alguns administradores desse capitalismo moderno são estúpidos!"

Infelizmente, sou obrigado a concordar com ele. O desprezo ao consumidor grassa na sociedade capitalista atual.

Meu caro leitor, pense comigo: digamos que você fosse cliente de um restaurante por muitos anos e frequentasse o local regularmente por esse período, talvez uma vez por mês. Quando lá chega todos te cumprimentam. Afinal, é bom cliente, é fiel, paga a conta com as gorjetas inclusas e, naturalmente, comparece por que a comida é boa e o atendimento também. Será que, depois de dez anos, se você tivesse esquecido a carteira, o dono do restaurante te faria lavar os pratos?

Saber diferenciar clientes bons e maus pagadores é não só elegante, como inteligente e técnico mesmo: se um cliente nunca deu problema, a probabilidade de que ela venha a dar é menor que daquele que começou na contramão. Ademais, o cliente antigo já rendeu muitos benefícios ao fornecedor e, por isso, merece uma maior consideração.

Sei que nas grandes operações de massa e em que há pouca competição ou monopólios e oligopólios o atendimento pode ser ruim, se todos tratarem do mesmo modo seus clientes, que são prisioneiros do sistema. Isto é, se o consumidor for mal  atendido num restaurante, não precisa mais voltar lá porque há outros para ir. Mas, como bem disse meu amigo, trocar de operadora de tevê a cabo, se desse para mudar, não alteraria o panorama do desrespeito porque o modelo de tratamento ao consumidor é parecido ou idêntico.

Parece mesmo que os tempos mudaram para pior; há um emburrecimento generalizado: o bom pagador está em pé de igualdade com o que não é; e não se trata de uma questão jurídica, mas apenas de uma estratégia mal engendrada.

Naturalmente, como nessas grandes operações são centenas, milhares de clientes, a cobrança segue um padrão automático. Porém, mesmo nesse automatismo, daria para criar modelos de cobrança para consumidores diferenciados: bastava programar o computador. Será que um dia melhora? Tomara.