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Inimigo externo costuma ser útil, mas estimular permanentemente a divisão doméstica cobra um preço quando a ameaça real vem de fora

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Atualizado às 07:42

Jair Bolsonaro foi pego no contrapé por Emmanuel Macron. O francês deu o troco à desfeita sofrida aqui pelo chanceler dele, quando o presidente brasileiro preferiu ir ao barbeiro e cancelou a agenda com o ministro. No debate global em torno dos incêndios na Amazônia, o ocupante do Eliseu vem oferecendo um show de timing e iniciativa. Curvas de aprendizagem em posições altas de poder costumam ser doloridas, deve estar pensando o inquilino do Alvorada.

O problema de Macron é a falta de meios para impor-se a Bolsonaro no terreno, se não tiver o apoio político e operacional de Donald Trump. Como no judô, o francês conseguiu boa pegada no quimono adversário, mas faltam-lhe músculos para executar o ippon. E chegamos à situação curiosa quando a Doutrina Monroe talvez venha a servir para seu anunciado propósito original: avisar aos europeus que fiquem longe das Américas.

As coisas estão mesmo algo desarrumadas nesse assunto, a ponto de uma bandeira histórica da esquerda, "A Amazônia é nossa", passear agora pelas mãos da direita, enquanto o outro lado parece acreditar que as potências ditas ocidentais querem salvar o planeta. E o general Eduardo Villas Bôas, referencia política maior do Exército, lembrou positivamente a memória do comunista Ho Chi Minh para dizer o que pensa a respeito dos ímpetos coloniais franceses.

É sempre bom ter cautela nessas situações, pois os laços de solidariedade entre os países do chamado mundo livre costumam prevalecer quando se trata de impor a ordem neocolonial. Que o diga Leopoldo Galtieri, miseravelmente abandonado por Ronald Reagan na Guerra das Malvinas. Ficar mais inteligente com o infortúnio alheio, no caso um infortúnio argentino, também é sinal de sabedoria. E dói muito menos para quem precisa aprender.

Algumas lições já estão disponíveis do episódio. Uma é a exigência de profissionalismo nas relações com outros países. Outra, e muito mais importante: nas Américas e no dito Ocidente há uma contradição potencial constante entre buscar a soberania nacional e alinhar-se ao ocidentalismo radical, hoje na moda. A contradição não é insolúvel, mas precisa ser administrada com cuidado porque a chance de desandar é permanente.

Para complicar, o mundo anda em guerra, por enquanto comercial e de informação, mas não só. A Europa ambiciona estender sua área de influência contra a Rússia o mais a leste possível, os Estados Unidos estimulam o separatismo entre os chineses e fazem de tudo pera evitar que o Império do Meio assuma a liderança da economia mundial, inevitável se os herdeiros de Mao continuarem se beneficiando das khruschevistas coexistência e competição pacíficas.

Haja desarrumação.

Bolsonaro precisa então, simultaneamente, 1) continuar amigo de Trump confiando que este vai protegê-lo do apetite europeu/francês, 2) não se afastar tanto assim da China e da Rússia pois não se sabe o dia de amanhã, 3) explorar a contradição entre a França, que resiste a precisar importar comida brasileira, e a Alemanha, que quer exportar máquinas para o Brasil e 4) administrar a opinião pública interna intoxicada pela narrativa da globalização de face humana.

Talvez a tarefa de aprender a pilotar o avião em pleno voo e em meio a fortes turbulências acabe convencendo o presidente de duas coisas. A primeira: ideologia demais atrapalha. A segunda, e um princípio fundamental da política: nunca seja tão amigo de alguém, ao ponto de não poder romper com ele, nem tão inimigo que você não possa um dia se aliar. Principalmente quando você não é a força dominante no tabuleiro político, ou militar.

Sempre é tempo de aprender e melhorar. Uma dica: a biografia de Getúlio Vargas do Lira Neto. Especialmente o trecho sobre a Segunda Guerra. Outra dica: os livros do Elio Gaspari sobre a ditadura, especialmente o pedaço sobre as relações de Ernesto Geisel com os americanos. Uma terceira dica: um inimigo externo sempre é útil nas crises, mas estimular permanentemente a divisão doméstica cobra um preço quando a ameaça real vem de fora.