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Virtude e Terror

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Atualizado às 07:52

 

"Sem o terror, a virtude é impotente; sem a virtude, o terror é funesto."

Maximilien Robespierre

Tenho tido ultimamente algumas experiências que me parecem necessário deixar registradas, quando mais não seja para que os mais novos possam comparar opiniões e tirar as conclusões que eventual debate sobre elas possa justificar. Se é que alguém está disposto a debater ideias hoje em dia. Como teria dito o Bernard Shaw a alguém que o procurara para trocarem ideias: "seria preciso que você tivesse pelo menos uma". Levo o boi até a beira do córrego. Isso de ele beber a água ou não é lá com ele, como se diz em Ribeirão Preto.

Os alunos que tive ao longo da vida, por exemplo, insistiam em terminar as petições dizendo "nestes termos, pedem deferimento", ao que eu retrucava: "que acontecerá se você omitir essa inutilidade?" Meu pai sempre advogou assim, era a sábia resposta. Pensar dói.

Começo com uma notícia lida no Migalhas: "Nem um pouco contente em saber que o delegado de polícia A. R. tinha obtido HC no STF, o MP tratou de em oito dias formular novas denúncias contra ele, pedindo novamente sua prisão, o que foi decretado pela justiça Federal de Campinas." Não hei de morrer sem ver um promotor ser processado pela prática do crime de abuso de autoridade. É só seus superiores quererem cumprir a lei.

Certo dia, eu aguardava minha vez e ouvi um julgamento realizado no TJ/SP, seção criminal. Era uma revisão, que foi indeferida por maioria de votos, estando ausente um dos membros do tal grupo de câmaras. O tema era uma questão jurídica, isso de caber ou não caber evolução no regime prisional em crime como aquele. O presidente da sessão, adepto da tese mais liberal, não pôde deixar de exclamar para quem quisesse ouvir: "se o juiz fulano de tal estivesse aqui presente, haveria empate na votação, e, regimentalmente, isso beneficiaria o peticionário. Com a ausência daquele juiz, venceu a tese que sempre vem sendo aqui derrotada. A justiça dos homens é mesmo uma loteria!" Sábias palavras, doutor Vico Mañas.

Trago isso como resposta aos que defendem a existência de um sem número de recursos, para que se chegue à almejada Justiça. Tudo o que aquele peticionário pode fazer é lamentar sua falta de sorte.

Segundo caso: impetra-se um pedido de Habeas Corpus porque a decisão que decretara a prisão preventiva de dúzias (acredite: dúzias!) de indiciados não especificava a atuação de cada qual, como é de rigor. Distribuído tal pedido, o relator nega a tutela jurídica pedida liminarmente porque, "segundo o relatório do delegado de polícia", havia isto e mais aquilo em relação àquele paciente especifico. Em outras palavras, minha querida Ada Grinover, o relator do HC aditou a decisão que ele deveria reconhecer ser nula! Quer o número do processo? É só me pedir que eu digo.

Terceiro caso: representante do Ministério Público baixa uma portaria, instaurando um "inquérito civil", no qual ele apuraria irregularidades cometidas por advogados e juízes. Sim, doutor Cândido Dinamarco: "possível envolvimento de Juízes de Direito, Procuradores do Estado, Advogados, Peritos e Funcionários da Justiça" é o que nos diz a tal portaria. Claro que aí não estão incluídos os Promotores de Justiça porque estes, como sabemos todos, deixa pra lá. Pague-me um chope e eu lhe mostro cópia da tal portaria, para incluir no seu próximo livro.

Isso tudo me remete a 1964, ano em que iniciei minha judicatura, começando aí a época que se celebrizou pelo combate ao terrorismo e à corrupção. Ou, no dizer do Robespierre, chegar-se à virtude, não mais como uma escolha pessoal, mas como algo imposto coletivamente pelo terror e a sombra da oportuna invenção do doutor Joseph Ignace Guillotin.

O Brasil, segundo a UDN e a ala conservadora da Igreja Católica, estava tentando levantar-se do berço esplêndido, saindo dele, porém, pelo lado errado da cama. Era preciso mandá-lo de volta para onde sempre estivera. Tudo havia começado com a eleição de Jânio Quadros, uma espécie de Luiz Inácio sem o jogo de cintura do ex-torneiro mecânico do ABC (responda depressa: em que empresa e em qual período o ex-presidente da República trabalhou como torneiro mecânico?) e que teve o cuidado de cercar-se de gente diferente daquelas que haviam levado Getúlio Vargas a sair da vida e sair também da história. Pois foi justamente o fato de um estancieiro gaúcho, cria do Getúlio (alguns boquirrotos chegaram a sugerir algo mais do que amizade entre o ex-membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul e a mãe de seu futuro Ministro do Trabalho, mas tudo não passou de fofoca, segundo os bens informados), homem sem qualquer vocação política, haver assumido a Presidência da República que motivou um basta. Dizia-se então que tudo teria sido tramado por nossos eternos tutores lá de cima, tanto que, nas paredes da Faculdade do Largo de São Francisco, podia-se ler uma pichação: "Chega de intermediários. Lincoln Gordon para Presidente!" Lincoln Gordon era o embaixador dos Estados Unidos da América do Norte nos Estados Unidos do Brasil, como então se dizia. Que, aliás, a esquerda chamava de Brasil dos Estados Unidos.

Entre os moralizadores da nação brasileira estava o governador Adhemar de Barros, cuja vida política se fizera à luz de um slogan que os marqueteiros da época (ainda não se falava oficialmente nisso), por iniciativa do chefe, ou com a tolerância dele, haviam espalhado pelo Brasil todo: "rouba, mas faz!" Você me dirá que nos últimos tempos esse slogan foi repetido à exaustão, mas esses novos líderes devem um bom dinheiro de direito autoral àquele anônimo marqueteiro. Que, aliás, criou uma marchinha de carnaval, cantada pelo Nelson Gonçalves, que dizia simplesmente o seguinte:

"Quem não conhece,
quem não ouviu falar
na famosa caixinha do Adhemar?
Que deu livros, deu remédios, deu estradas.
Caixinha abençoada!"

Encurtemos a história: instauraram-se Inquéritos Policiais Militares, os famigerados IPMs, que tiveram como assessores membros do Ministério Público e que se notabilizaram pela arbitrariedade, mesmo porque, como diria George W. Bush, se não estivesse na ocasião ocupado em tomar conta de uma escolinha perto do ranch de seu papai, estava em jogo a moralidade da nação, o que eles chamavam de "segurança nacional". Não sei quantos juízes foram ceifados por esses brutamontes. Conheci três deles.

O primeiro era um gozador, que se dizia comunista e havia publicado um livro que causou furor: "A Justiça a Serviço do Crime", relançado recentemente por seus herdeiros. Em sua folha de antecedentes constava ser ele articulista regular do jamais esquerdista jornal O Estado de S. Paulo, onde publicava crônicas com o perigoso codinome de Mathias Arrudão.

Outro que conheci era um juiz budista, que, segundo se dizia, havia mandado retirar da sala do júri a figura de um homem semi-nu, pregado a uma cruz, pois o tal não estava trajado adequadamente para o ambiente solene do fórum. Na verdade, o Jorge havia cometido alguns pecados graves, como julgar procedentes reclamações trabalhistas contra fazendeiros, entendendo que o salário-mínimo deveria ser pago a cada membro da família e não um só salário-mínimo para a família toda, como até ali vinha ocorrendo. Passarinho que come pedra deve saber qual a elasticidade do seu esfíncter anal, madame. Quer que eu seja mais claro?

O terceiro juiz cassado era um homem que se havia antecipado a seu tempo, falando dos direitos da concubina e defendendo a necessidade de os juízes serem acompanhados em sua evolução profissional, devendo o Tribunal afastar aqueles que se mostrassem inadaptados ao mister para o qual haviam sido nomeados. Isso de "compreender" os desmandos de juízes apenas porque eram filho deste, sobrinho daquele ou genro daquele outro tinha de acabar. E dizia isso com a autoridade moral de ser pai do Bita, um juiz simplesmente exemplar, que, muito antes dos 70 anos, pulou fora do barco e honrou a advocacia, como honrara a magistratura. Como aquilo não era motivo oficial suficiente para a cassação do velho Moura Bittencourt, os homens da "redentora", como lhe chamava a esquerda, aproveitaram-se de que o Edgard havia estado em Cuba. Logo Cuba? Que que esse homem foi fazer em Cuba? Aí tem coisa! Ainda se ele fosse dado ao salutar hábito de freqüentar algum lupanar nacional, ou algum cassino em Las Vegas, como se dizia que alguns de seus colegas costumavam fazer, vá lá. Mas, Cuba?

Era presidente do Tribunal de Justiça na época um homem bom, um caipira jogador de truco. Pois vendo que muitos juízes estavam concedendo habeas corpus para livrar pessoas detidas arbitrariamente das garras dos truculentos homens dos IPMs, como alguns deveriam fazer hoje com os abusos de certos promotores de Justiça, ele baixou uma portaria, recomendando que os juízes atentassem para o fato de estarmos vivendo um regime jurídico de exceção. Essa rara coragem do Euclides Custódio da Silveira custou-lhe a incompreensão de muitos, até mesmo de alguns daqueles que, diante dessa advertência, conseguiram manter-se no cargo.

Ocorrem-me, à vista disso tudo, alguns momentos históricos que jamais deveriam sair da memória de todos nós. Um deles foi a Santa Inquisição. Santa porque foi uma oportunidade única de os pecadores termos nossos pecados queimados. Como ouvi de certo sacerdote quando eu judicava em Araraquara, ao morrermos, a alma de nós pecadores, saindo de nosso corpo, não sobe para os céus, como se dá com os santos, mas desce para o inferno, que, como demonstra a ciência, fica no centro de nosso Planeta, local habitado apenas por uma substância incandescente, o magma, que, ardendo a uma temperatura entre 650 e 1.200 graus Celsius, é mais do que suficiente para queimar nossas almas pecadoras e, assim, nos transformar em santos. Quando perguntei ao tal padre como é que o fogo, que é material, pode queimar a alma, que se diz ser imaterial, ele me disse que estava com pressa e ficava para outra vez, pois tinha de ir à Casa da Criança, onde costumava lanhar uns capetinhas mal-comportados, o que acabou por lhe custar processo criminal algum tempo depois.

Para não alongarmos esta conversa, recomendo-lhe a leitura do livro "Manual da Inquisição", escrito pelo abade espanhol Nicolau Eymeric, com apresentação do nosso Leonardo Boff. Acho que o Robespierre leu.