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sexta-feira, 20 de abril de 2007

Atualizado em 19 de abril de 2007 09:39

 

"A ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega"

(Albert Einstein)

Para algumas pessoas, só a mais crassa ingenuidade atribui a eventuais poderes sobrenaturais a responsabilidade por aquilo que nada mais é do que a reunião de circunstâncias favoráveis reunidas pela coincidência. Milagre é coisa de criança e de velho decrépito. "Trabalhe duro e deixe Deus em paz", eis o conselho deles.

Sem adentrar tal discussão, lembro apenas que o respeitável Carl Gustav Jung passou a vida toda recolhendo dados para uma análise científica do fenômeno religioso e não chegou a conclusão alguma, nem afirmativa, nem negativa. "Como uma traça, que se alimenta de lã tirada de um carneiro australiano, poderá demonstrar às demais traças como é a Austrália ?" exemplificava ele. Mas não deixou de reconhecer: "Religion is a defense against religious experience", como sublinha sua biógrafa Claire Dunne. Isso não impediu que, em suas Memórias, ele deixasse dito: "A existência de Deus não depende de nossas demonstrações".

Sua grande divergência em relação a Freud assentava-se precisamente aí, pois não conseguia aceitar o materialismo do antigo mestre. Suas críticas a seu genitor, que foi pastor luterano a vida toda, baseava-se principalmente no fato de seu pai ser uma pessoa extremamente amargurada, dominado por uma religiosidade que era apenas um conjunto de ritos e proibições, algo mui diverso do que a fé genuína costuma proporcionar ao crente. Seu pai era um homem sem alegria. "Parecia-me inconcebível que ele não tivesse a experiência de Deus", escreve ele em suas Memórias.

Há quem confunda religião com rituais supersticiosos. Veja o caso do Romário, para citar um só de nossos futebolistas. Quando ele perde um gol, faz o famoso "sinal da cruz", como entre nós se denomina aquilo que os pernósticos chamamos persignar-se. Qual o sentido daquilo ? Expressa que tipo de convicção ? Eis um prato cheio para os racionalistas. Ainda se fosse o Kaká, levantando os braços para o céu, tudo bem. Afinal de contas, ele é branco, classe média e o Deus dele agora é europeu. Ou como fez um inimaginável jogador da seleção russa persignando-se enquanto adentrava o gramado, como dizem os locutores. Não me peçam o nome dele, que não tenho memória nem para nome de remédio. Vejam o teipe do jogo em que a Rússia perdeu de 1 a 0 para a Espanha, na Copa da Europa 2004, e lá está o tal lance.

Isso para não falar dos que colocam o nome de Jesus na camisola, como lhe chamam os lusitanos à camisa do time. Ainda hei de ver um time de muçulmanos estendendo o tapete sobre o gramado e dobrando-se todos na direção de Meca, direito tão válido como qualquer outra forma de exibição de nossa convicção religiosa.

Eu, de mim, prefiro narrar fatos. Como eu escrevi certa vez, plagiando inconscientemente o Mário Quintana, "não acho importante dizer se acredito em Deus; importante é eu saber que Deus acredita em mim".

Quando terminei uma palestra em Congresso realizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em Recife, anos passados, palestra que cuidava do surrado tema dos direitos humanos fundamentais, liberté, egalité, fraternité e coisas que tais, duas senhoras, entusiasmadas, vieram discretamente anunciar que, pelo teor de minhas palavras, elas haviam descoberto que eu pertencia à mesma religião que elas professavam. Elas não disseram qual era a tal religião nem eu lhes perguntei. E trocamos um sorriso cúmplice. Independentemente de eventual rótulo, havia entre elas e eu alguma coisa que nos unia, algo que estava além das palavras. E isso me bastava. Bastaria a elas ?

Dia desses encontro um velho amigo (ele é uns dez anos mais velho do que eu), que tem algumas características peculiares. Em primeiro lugar, é um homem de fé assumidamente católica e de atuação engajada, como se costumava dizer outrora. Em segundo lugar, é de uma amabilidade extraordinária, expressando-se efusivamente onde quer que se encontre e onde quer que nos encontre. Certa ocasião, quando eu me distraía vendo um casal de dançarinos de tango exibindo-se na feira de San Telmo, em Buenos Aires, alguém se aproximou de mim e lascou um beijo estalado em uma de minhas bochechas. Era o Luizinho Beijoqueiro, sempre acompanhado de sua baixinha, como ele carinhosamente se refere à inseparável esposa. A terceira característica dele é seu pitoresco bigode, pontas voltadas para o céu, o que lhe traz ao rosto um eterno sorriso, com um ar de plena felicidade. E ele, de fato, transpira felicidade e nos contagia com seu entusiasmo e suas beijocas fraternais.

Pois embora não nos víssemos há tantos anos, ele começa o diálogo como se nos tivéssemos despedido na véspera. "E a fé, como está?", pergunta ele, sem dizer água vai. Confesso que não esperava uma pergunta dessas àquela altura. Já havíamos conversado algumas vezes sobre as famosas noches oscuras, tão bem cantadas pelo grande vate espanhol, que, a exemplo do poverello de Assis, também outro grande poeta, tinha lá suas diferenças com Deus. Para Juan de la Cruz, como para Francisco de Assis, o crístico "pai, por que me desamparaste?" jamais foi uma exclamação histórica, mas o reconhecimento de uma contingência do ser humano, um preço que pagamos por sermos como somos. Sabermos que ubi homo ibi peccatum nada tem a ver com a fé propriamente dita, mas com um estado de necessária humildade: se tudo que sei é que sei tão pouco sobre tudo, por que a soberba ? a arrogância ? a vaidade ? o orgulho ? a sensação de desamparo diante da loucura que nos cerca ?

Ou, como no célebre episódio envolvendo Tomás de Aquino, é sabermos que o mar é muito maior do que o buraco que a criança fazia na praia para ali guardar toda aquela água que ela ali pretendia pôr. Ou teria sido Agostinho? A sensação de desamparo não pertenceu a um único homem, por mais divino que o achemos, mas pertence a cada um de nós, que nele tivemos o nosso corajoso representante, o nosso procurador, a voz de nossa humana depressão.

Pois falava-me o Luiz Soares de Mello, com seus mais de 70 anos de conversão diária, que recentemente teve posta à prova sua fé. Estava fora de seu ambiente habitual e pretendia comungar na missa de que ele participava. Mas entendia que antes disso deveria confessar-se, como lhe ditava sua consciência e suas respeitáveis convicções. E lá foi ele para o local a isso destinado. Mal iniciara o relato ao confessor, ele descobre pelas frestas da treliça que o padre era alguém de quem os meios de comunicação haviam, recentemente, tecido considerações desairosas. Indaga o nome e o padre o confirma: era, de fato, aquela pessoa que os jornais vinham enxovalhando. Meu amigo, então, com toda lealdade e imbuído da mais legítima caridade fraterna, indica ao sacerdote os motivos pelos quais não poderia confessar-se, pois não sentia confiança no seu confessor. O tal padre ouve as explicações e, gentilmente, indaga se ele conhecia a fundo a vida privada de todos os demais padres com os quais havia-se confessado até então. E se ele sabia a diferença entre um homem e um anjo. E concluiu: "Os que temos fé sabemos que o que importa não é o tipo de garrafa que o contém, mas a qualidade do vinho que está dentro dela". A conversa prosseguiu por algum tempo, ao fim do qual lá estava o Luiz reconhecendo, homem generoso que de fato é, que se excedera ao olvidar o evangélico "não julgueis". E confessou-se com toda liberdade.

Pensando bem, um padre pecador talvez fosse, de fato, alguém mais indicado para ouvir as misérias que um ser humano atormentado tem para desabafar. De fato, que que um anjo entende de pecado, sô ?