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Coisas banais

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Atualizado às 09:04

Hoje pretendo falar de coisa séria. Os que me têm generosamente abonado os escritos, dando-me palmas e mais palmas a modo de estímulo, certamente para que eu não passe vergonha junto a meus familiares muitos e amigos pouquíssimos, que me cobram diuturnamente novos escritos, como se eu coisa outra de mais valia não tivesse para ocupar-me o parco tempo de que disponho para exercitar a arte da escrita, hão de concordar, refiro-me àquelas pessoas referidas logo no início da frase e que lá no alto ficaram ao abandono por força das necessárias explicações que me pareciam adequadas, as quais, em verdade, se seguiriam, como de fato se seguiram, volto a falar dos que me têm generosamente aplaudido, para complementar agora que haverão eles, que sois vós, de reconhecer que muito do temário por mim abordado em tais escritos diz com coisas menores, assuntos sem maior relevância, picuinhas, nonadas, no dizer do Guimarães, como, cito apenas um deles, por sinal dúplice, a vida e a morte.

Com efeito, com a sinceridade que nossa amizade, se assim posso dizer-vos, nos permite, diga lá seu parecer a respeito da relevância que pode ter um tema desse jaez. Acaso falar da morte prolonga a vida? Falar da vida acaso assusta a morte? Sei-lhe a resposta, que outra não pode ser, a menos que eu esteja a ser lido por um asno de tamancas, coisa que em nada contribuiria para melhoria da imagem que tenho de mim próprio, que outra não pode ser, repito, do que um rotundo não. Um desses nões, se é que alguém me permitiria pluralizar um solidíssimo advérbio, máxime, não menos do que máxime, sendo ele de negação, um desses nões que põem termo à mais até então entusiasmante conversa. Um desses nões a que se segue um silêncio rotundo e opaco, desses de calar a mais tagarela das maritacas.

É o caso do meu dileto amigo Caio, um santista de oito costados, menos por sua preferência clubística e mais por haver ele nascido naquela urbe praieira, o que, ele que não leve a mal a revelação, se deu quando o senhor João Ramos do Nascimento naturalmente ainda engatinhava nas ruas esburacadas de Três Corações, incapaz, certamente, de dar um chute numa bola de futebol, até porque ainda não atendia pelo pseudônimo de Dondinho, menos ainda estava em condições de sonhar que um dia teria um filho que, de tanto falar "Vai, Bilé; vai, Bilé", acabaria sendo apelidado de Pelé e, segundo dizem alguns, aí incluído o Edison Arantes, teria sido o maior craque de futebol de todos os tempos, os argentinos que me desculpem a sinceridade, entende? E que tem, falo do Caio, uma particularidade: é possuidor da mais sonora gargalhada que alguém já ouviu nesta vida, não sei se também na outra, pois, para evitar mal-entendidos, ele é proibido de ir a velórios. Vamos que algum parente do morto se deixe influenciar pela irresistível gargalhada do homem e adeus falsa seriedade. Nem o Paulo Autran conseguiria, se vivo fosse, interpretar o papel de pessoa compungida que a maioria dos parentes interpreta nos velórios, geralmente a usar óculos de lentes escuras, para que se não lhes vejamos os safados olhos. Daí a afastarem a mesa com o respectivo caixão e saírem com uma "vocês conhecem a última do Zé Simão?" seria um pulo.

Pois o Caio está nessa idade em que espirro é sintoma de tuberculose. Eu mesmo, mais novo do que ele muitos e muitos dias, depois de pisar num cocô de cachorro, coisa que mais tem aqui nas ruas de Moema, passei a arrastar o pé esquerdo, para livrar-me daqueles resíduos mérdicos, despertei a atenção de minha mulher: "Você está bem? Dói alguma coisa? Quer que eu chame um táxi? A prestação do terreno no cemitério deste mês foi paga?" Imagine o Caio, tão assim mais velho! Alguém me disse que ele havia sido internado. Se dizem isso de uma moça, filha ou neta de um amigo nosso, damos um prazeroso sorriso, como que dizendo "e aquela moça por acaso precisa de lipoaspiração?" Se, no entretanto, o internado tiver sido o pai ou, pior ainda, o avô dela, nós pomos aquele terno escuro para tomar sol e ficamos aguardando a indicação do endereço aonde deveremos ir com aquela roupa agourenta. E se se passa uma semana sem termos notícia dele, distraidamente consultamos o jornal para sabermos onde vai ser celebrada a missa de sétimo dia.

Eis aonde eu queria chegar: "o Caio foi internado" disse-me alguém, talvez o Alberto, que com ele gazeteou na mesmíssima praieira cidade, já lá vão séculos, fingindo-se ambos estudantes de Direito. Passa-se a tal semana, o mês, o semestre e não se fala mais nisso. Tenho outros amigos cuja idade também inspira cuidados nos herdeiros e nunca mais se falou no homem, para tristeza minha, saudoso de sua cascateante gargalhada.

Pois passa-se o tempo, como reconhecia o Fiori Giglioti, hoje irradiando futebol em campos celestes, e eis que estou eu no desempenho de minhas atribuições maritais, empurrando carrinho com a mão esquerda e segurando lista de compras com a direita, ou vice-versa, que isso não vem ao caso, quando em sentido contrário vem outro carrinho, sendo empurrado por alguém parecidíssimo com o Caio. À medida que o carrinho se aproxima, o seu condutor vai deixando de ser parecido com o Caio, até que se materializa o próprio Caio à minha frente. "Mas eu soube que você" diz um. "Mas eu também soube que você" retruca o outro, ambos rindo, sendo que a minha gargalhada era um simples vagido de recém-nascido diante daquela cascata sonora do Caio, que petrificou as poucas senhoras que por ali também circulavam, vai ver são viúvas. Abraço demorado, um "que bom te ver" de cá, um "também estou morando em Moema" de lá, seguido de um "precisamos nos encontrar", troca de cartão e, certamente, um silêncio sepulcral, passe a aziaga palavra, nos próximos dias, semanas e meses. É uma pena pois logo agora estou experimentando um novo remédio que importei da Alemanha e eu queria perguntar a ele se conhece.

Mas, como eu dizia no início, isso é tema que não interessa a ninguém. Nem ao Caio. Importante mesmo é o assunto que escolhi para hoje, já que eu queria falar, como deixei registrado acima, não sei se estarão lembrados, de coisa mais séria, como as modernas embalagens de leite, por exemplo.

Houve tempo em que leite de vaca estava no redondo ubre da vaca ou na roliça garrafa de vidro que um ser misterioso deixava junto à porta de nossas casas ainda madrugadinha. Tertium non datur. Veio a tecnologia e inventou-se a melancia cúbica. "É pra caber mais no caminhão" justificaram os seus inventores, que aproveitaram a matriz e criaram o leite em caixa de papelão.

Inicialmente a caixa vinha com duas orelinhas abaixadas, qual um coelho tímido, com indicação de que se elevasse uma delas e se lhe cortasse a ponta, para permitir a ordenha. O resultado era aquele ploc, ploc do leite a saltar coelhamente para além do copo, para gáudio das donas de casa. Conhecessem os inventores de tal embalagem, minimamente que fosse, a física e teriam indicado que se podassem ambas as duas, não menos do que ambas as duas orelhas do coelho em corpo de tijolo, o que permitiria que, à medida que o leite buscasse saída pelo lado de lá o ar entrasse pelo lado de cá, compensando-se assim uma coisa com outra, a impedir o desagradável ploc, ploc e tudo aquilo que nossa esposa diz depois disso.

Querer, porém, que engenheiro saiba física parece demasia e, em lugar de solução tão simples, o que fizeram eles foi inventar tampinhas do mais diverso formato. Hoje uma que se rosqueia e desrosqueia; amanhã uma que se levanta e se abaixa; depois de amanhã uma que se puxa para fora da caixa. Se tantas são as soluções, claro está que nenhuma se mostra solução definitiva, mesmo porque a tampa que deveria desrosquear não obedece ao comando de tuas famintas e trêmulas mãos, a gerar impropérios matinais e outras inconveniências que acabam por tirar tua vontade de ter acesso ao conteúdo da lacradíssima caixa; a tampa que deveria subir e descer está de tal forma colada ao corpo da caixa que só usando a ponta da faca para tentar desgrudar aquilo. Se era para eu ter de usar a faca, para que o laticínio haveria de encarecer o preço do produto pagando royalty por aquele arremedo de solução?

Melhor voltar ao supermercado. Menos para comprar leite em picassianas caixas do que para ver se encontro o Caio.