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Bastidores da Constituição enterram a ideia de "vontade do Constituinte"

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Atualizado às 08:15

Luiz Maklouf Carvalho, jornalista premiado, colocou à disposição da sociedade um tesouro sobre a "vontade do Constituinte", método de interpretação da Constituição invocado com frequência. A obra "1988: segredos da Constituinte: Os vintes meses que agitaram e mudaram o Brasil", da Record, mostra que a "vontade do Constituinte" pode ser imprestável à interpretação constitucional.

Vamos ao livro. O Congresso Constituinte - 1987/1988 - teve início com os seus 559 integrantes no primeiro dia de fevereiro de 1987 - um domingo - em sessão solene presidida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira Alves, indicado à Corte pelo general Ernesto Geisel. A sessão solene deixou de fazer menção a Tancredo Neves, o fiador de todo o processo de redemocratização, alguém que deu não apenas a vida ao Brasil, mas a morte. Aécio Neves, o neto, deputado constituinte, acusou o golpe e dia seguinte o Congresso fez um minuto de silêncio pela falha.

Não foi uma Constituinte exclusiva, mas um Congresso Constituinte, em que a Câmara e o Senado continuaram funcionando. Dos 559, eram 487 deputados e 72 senadores. Desses, 23 haviam sido eleitos antes, em 1982, e tiveram sua legitimidade questionada para votar na Constituinte. Votaram mesmo assim. Apenas 26 eram mulheres. Havia 243 bacharéis em Direito.

A Constituição seria feita, na primeira etapa, por oito comissões temáticas, cada qual com três subcomissões, nas quais os 559 constituintes se dividiriam, por indicação dos líderes partidários. Na segunda etapa, as propostas decididas nas 24 comissões seguiriam para a Comissão de Sistematização composta por 93 parlamentares. Havia a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Também a Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. Na formação das 24 comissões [e subcomissões], nenhuma mulher foi indicada presidente.

As mulheres, contudo, lutaram pelos seus direitos. O primeiro foi o direito a um banheiro. Não havia toilette feminino na Constituinte. Maria de Lourdes Abadia, deputada, recorda: "Sabe o que eles falavam pra gente? Vocês não querem ser iguais aos homens? Aprendam a mijar de pé!". Ulysses Guimarães entregou a chave do banheiro do seu gabinete temporariamente. Depois, resolveu a questão.

Havia alguma brutalidade. O então diretor-Geral da Câmara dos Deputados, Adelmar Sabino, que o diga. "Uma vez foi um barbudão, da CUT, fortão, que começou a gritar palavrão. Eu pedi pra se acalmar, mas não adiantou. Aí eu mandei os seguranças darem um pau nele. Pegaram o sujeito de porrada amarraram pelas pernas e jogaram lá fora. Veio uma mulher tomar satisfação. Dá um pau nessa mulher também!". Um pouco do backstage da festa democrática brasileira.

O presidente da República, José Sarney, havia criado a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais encarregada de elaborar um anteprojeto da Constituição. Com cinquenta integrantes, ela foi presidida por Afonso Arinos de Mello Franco, já com 84 anos. Ulysses Guimarães, contudo, resolveu partir do zero e desprezou o anteprojeto, nada obstante o texto tenha influenciado os trabalhos em algum medida.

O presidente recorda o conselho que recebeu do general Geisel quando anunciou que discutiria a redução do seu mandato de seis para cinco anos - contra os quatro anos que havia prometido na eleição. "Ô Sarney, eu quero lhe dar um conselho: não discuta o tempo do seu mandato. Entregue ao Supremo Tribunal Federal, que ele decide com a Constituinte", aconselhou Geisel. Já era, antes da Constituição, a judicialização da política recomendada por um General.

Para Sarney, "a Constituição passou a ser uma caixa de pressão, transformou-se numa bacia das almas". Antônio Britto, outro Constituinte, faz coro: "O momento no Brasil era de conferir poderes divinos à Constituição. O lema da sociedade com a Constituição era 'o que a gente escrever, acontecerá'". José Fogaça, integrante, diz que "o carro da constituinte só tinha farol traseiro", opinião desfrutada por Antônio Britto: "poucos de nós fizeram a Constituição olhando para o futuro". Outra reflexão vem de Jorge Bornhausen: "Colocamos a CLT dentro da Constituição, consideramos o Estado todo-poderoso, capaz de resolver a saúde e a educação de todos os brasileiros. Houve certo utopismo". São testemunhos dos constituintes.

Miguel Reale Júnior, que assessorou a presidência do Congresso, imortalizou a frase "a Constituinte foi uma grande passarela por onde desfilou a sociedade, da tanga à toga". Mas mesmo essa ampla participação popular foi questionada. Com a conclusão do texto, Ulysses Guimarães disse: "Sarney, olhe, passaram 12 milhões de pessoas aqui durante a Constituinte. Isso mostra a participação". No que o presidente comentou: "(...) a única que sobreviveu até nós, até hoje, é a Constituição americana, que foi feita por 32 pessoas". O presidente Sarney chegou a se referir à Constituição como "aquela coisa lamentável". É a vontade do Constituinte na versão bruta.

A elaboração da Constituição gerou coléricos debates desde o seu preâmbulo. Segundo Sandra Cavalcanti, deputada constituinte, "a única coisa que eles não queriam, de jeito nenhum, era citar a proteção de Deus. Foi outra guerra".

Mas e quanto aos termos constitucionais de múltiplos significados? Por quê tantos? A verdade é que, quando não era possível um consenso acerca de um dispositivo, acontecia o "buraco negro". Qual a saída? Bernardo Cabral, o relator, responde: "Colocar 'Na forma da lei'. Não tinha outro caminho". Está explicado.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, entrevistado na obra, recordou que Felipe González [primeiro ministro da Espanha entre 1982 e 1996] lhe disse que toda boa Constituição tem que ser ambígua, como a Bíblia. "Porque tem que dar margem a interpretações diversas". Maklouf ironiza: "Nisso a nossa é campeã absoluta, não?". No que FHC confirma: "É campeã".

Antônio Britto encorpa o raciocínio. "Como é que se resolve um impasse? Usando palavras neutras ou estéreis, e depois, no futuro, se identificará o que elas são. Essa é uma bela saída para resolver problemas de texto. Se eu disser que a finalidade de uma coisa é promover o equilíbrio e o desenvolvimento, você não sabe de que coisa eu estou falando e concorda com a minha frase". Claríssimo.

Outra vem de Ibsen Pinheiro. "Alguns dos piores textos da Constituinte foram unânimes, porque com frequência a gente optava pela inocuidade", afirma.

Nenhum dos constituintes ouvidos por Maklouf foi tão didático nesse particular como Nelson Jobim: "Isso aí tem cem votos, ninguém vai votar desse jeito que está.... Então eles pediam que eu introduzisse ambuiguidades. Eu ia tornando o texto mais ambíguo até conseguir o voto da maioria. Era um negócio genial". Jobim segue: "O jogo era esse. Tu tinha que trabalhar com ambiguidades. Quando não se conseguia o acordo, e não tinha solução num texto ambíguo, eu usava a técnica de jogar pra a lei complementar ou lei ordinária". Novamente, a vontade do Constituinte.

E quanto aos lobbies? "É evidente que o lobby dos servidores públicos criou um regime único, difícil de administrar. Constitucionalizaram privilégios", afirma Luiz Carlos Bresser-Pereira. Uma cena constrangedora é lembrada por Fernando Henrique Cardoso: "Uma vez, na Comissão de Sistematização, eu mandei uns juízes se retirarem de uma sala. Era uma vergonha. Os setores organizados da sociedade, que tinham um nível mais elevado, entravam em tudo. O lobby era muito grande na Constituinte". Para Oscar Corrêa Júnior, deputado Federal (PFL/MG) e filho do ministro do STF, Oscar Corrêa, "o lobby do Supremo era forte".

Não apenas o do STF, mas de todo o Judiciário. Carlos Ary Sundfeld anota: "Os juízes Federais, por exemplo, adorariam se tornar desembargadores federais - e não existia esse cargo. Opa, seria muito bom de houvesse essa reforma na Justiça Federal, criando uma segunda instância, os tribunais regionais federais e o Superior Tribunal de Justiça. A existência do STJ, como terceira instância, lhes dava oportunidade de ascensão profissional. É uma mudança que está muito em linha com as oportunidades da carreira. E foi feita. Mas outras mudanças que colocassem em risco o modelo, como a do Conselho Nacional de Justiça, não foram feitas".

Outra testemunha foi Miguel Reale Júnior. "Era só lobby. O dos magistrados, por exemplo, foi um dos maiores. O do Ministério Público, o da Polícia Militar, da Policia Civil, do Banco do Brasil, da Petrobras... Quem conseguiu obter benefícios ou privilégios, fundamentalmente, foram as categorias organizadas. Foi o corporativismo, especialmente, o corporativismo estatal", afirma.

O debate atual acerca do nosso modelo presidencialista pode ser iluminado pelo relator da Constituinte, Bernardo Cabral: "Eu trabalhei pelo Parlamentarismo na Comissão de Sistematização, nós aprovamos. Quando derrubaram, e ficou o presidencialismo por uma emenda do [senador] Humberto Lucena, eu disse a ele que precisava tirar o artigo da medida provisória, mas afeito ao parlamentarismo. (...) Eu chamei a atenção, para tirarem, porque iam dar ao presidente da República mais poder do que qualquer ditador da nossa revolução".

Bernardo Cabral, do Amazonas, marcou posição quanto à imunidade tributária da Zona Franca de Manaus. Segundo Maílson da Nóbrega: "Ele só discordou com um ponto: tirar o prazo do benefício fiscal da Zona Franca de Manaus, que ele tinha posto como de quinze anos".

E quanto ao direito à educação (capítulo III da Constituição)? Qual teria sido a vontade do Constituinte. Oscar Corrêa Júnior nos ajuda a saber: "Pode ter certeza que muita coisa relacionada ao capítulo da própria educação saiu da casa do Di Gênio". Refere-se a João Carlos Di Gênio, dono do grupo Objetivo. Ficaram famosas as festas que ele oferecia, em sua casa no Lago Sul, em Brasília. Nelson Jobim recorda: "O Di Gênio fazia jantares e convidava um grande número de deputados. Tinha uma tenda de circo na frente da casa. De repente abria uma porta e começava a sair mulher de dentro. Umas gurias bonitas pra burro (...)". Imagine só um caso complexo relativo ao direito constitucional à educação sendo decidido à luz da vontade do Constituinte.

Discorrendo sobre dois parlamentares que o visitaram para levar proposta de incluir na Constituição uma anistia da dívida bancária dos agricultores, Maílson da Nóbrega confidencia: "A ideia era uma disposição constitucional que dissesse 'os agricultores não precisam pagar suas dívidas'. Eu falei: 'Isso é inadmissível, vai ser um custo enorme para o país, com impactos terríveis para a própria agricultura. Quem é que vai emprestar sabendo que o Congresso pode cancelar as dívidas?'". Maílson achou que eles estavam blefando. "Era tão absurdo que não era possível que fosse aprovado. Mas foi". A sorte é que o deputado Roberto Freire, do PCB, apresentou uma emenda que restringia o benefício aos pequenos produtores [art. 47, II].

Maílson da Nóbrega lembra que "a Constituição chegou ao ponto de determinar onde moraria o juiz" [art. 93, VII]. Recorda que "o capítulo dos direitos trabalhistas, por exemplo, tem dispositivos que antes constavam de portaria ministerial".

A vontade do Constituinte também pode ser encontrada nas palavras do deputado José Fogaça, quanto ao número de parlamentares do Congresso: "O Siqueira Campos fez greve de fome para que a Constituinte votasse a criação do estado do Tocantins. Aquilo desencandeou um processo terrível para o país. Todos os territórios se transformaram em estados, com super-representações. Como Goiás perdeu o Tocantins, os deputados de Goiás reivindicaram uma mudança no critério de contagem. O mínimo anterior eram quatro deputados por estado. Passou-se a ter oito. A proporção era completamente injusta em relação a São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Oito deputados mínimos, em São Paulo, na Bahia, no Rio Grande do Sul, é uma coisa. Mas em Roraima é muito". Para Fogaça, "foi uma das coisas mais erradas da Constituição - e resultou nesse parlamento desnessariamente superlativo de 513 deputados" [art. 45, § 1º]. Tudo por uma greve de fome.

Agora, que tal sabermos mais sobre o dispositivo que previa a limitação da taxa de juros reais a 12% ao ano [§ 3º do art. 192, revogado pela EC 40/2003]? Quem explica é o hoje senador José Serra: "Eu era secretário do Montoro, e tinha capitaneado um aumento do ICM de um ponto percentual, e consegui que o Delfim [Neto, então ministro da Fazenda] mandasse o pedido para o Senado, e aumentou. E aí, no jantar, o Gasparian criticou isso. Falou que era um absurdo, porque o aumento de imposto ia diminuir a arrecadação. Eu disse 'Ah, Fernando, essa é a conversa de sempre. Nunca se vai reajustar um imposto, porque no limite sempre tem esse argumento'. Ele ficou magoado comigo e tal. Mas o fato é que ele se elegeu deputado, na Constituinte - já estava assim comigo - e veio com essa proposta, dos 12%".

Francisco Dornelles também deixou a sua versão: "Houve uma votação sobre a reforma agrária - e o Ronaldo César Coelho, banqueiro, votou a favor, com a esquerda. A bancada ruralista resolveu dar o troco no Ronaldo - e votou nos 12% do Gasparian". Eis a vontade do Constituinte mais uma vez revelada.

E o que o Constituinte acha do sistema tributário? "Do ponto de vista fiscal e tributário é um negócio inacreditável. A gente desenhou todas as despesas e não desenhou simultaneamente as receitas. Então as despesas e as receitas não casaram, não são conciliáveis", diz Antônio Britto.

José Fogaça também divide impressões sobre a Constituição: "Nenhuma Constituição do mundo trata do sistema financeiro no seu texto" [capítulo IV da CF].

Para quem quer saber sobre a imunidade tributária do papel [art. 150, VI, 'd'], vale ler o diálogo entre Luiz Maklouf Carvalho e o José Lourenço, deputado constituinte.

Maklouf: A Veja fez uma boa cobertura da Constituinte. E o senhor foi dos poucos constituintes entrevistados nas Páginas Amarelas.

José Lourenço: Fui um dos primeiros. Eles queriam isenção de impostos na importação do papel.

Na obra, Francisco Dornelles diz como foi a aprovação do dispositivo da livre iniciativa [parágrafo único do art. 170]. "O Lula me ajudou a aprovar uma emenda que até hoje está na Constituição, 'A iniciativa privada pode exercer toda e qualquer atividade, a menos que proibida por lei', alguma coisa assim. Botei em votação, na parte da tarde. Faltavam dois votos para ganhar. Entra no plenário o Valmir Campelo, que me deu um voto. Entra o Lula: 'Ô Lula, me dá um voto'. Ele disse: 'Se a emenda é sua, deve ser contra a pátria ou contra o povo'. Eu falei: 'Não, essa é a favor da pátria e do povo'. Ele respondeu: 'Vou dar, mas estou certo que é contra'. E deu o voto".

Nelson Jobim, por sua vez, com a sua franqueza matemática, confidencia os bastidores do dispositivo relativo ao repouso remunerado aos domingos [art. 7o, XIV]: "O texto da esquerda queria 'repouso semanal remunerado obrigatoriamente aos domingos'. A direita queria 'repouso semanal remunerado, na forma de convenção ou contrato coletivo de trabalho'. E deu-se o impasse. (...) Então fiz uma redação, aprovada pela direita e pela esquerda que está na Constituição: '[repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos'. (...) Não era obrigatório, era preferencial. Todo mundo aprovou [risos de satisfação]".

Houve de tudo. Joaquim Falcão lembra de Milton Santos, oftalmologista e cientista mineiro, que propôs um artigo dizendo que "o corpo do morto pertencia ao Estado". Ele precisava ter um banco de transplante de córneas. "Prometemos doar as nossas córneas. O senhor tem razão, falta córnea, está aqui a minha, mas não bote na Constituição [risos]", recorda o professor Joaquim Falcão.

Fernando Ernesto Corrêa, assessor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), também deu depoimento a Luiz Maklouf Carvalho. Ele recordou que havia um grupo que defendia a proibição de qualquer tipo de publicidade de cigarro, bebidas alcoólicas e agrotóxicos. "O que nós conseguimos? [lendo o parágrafo 4o do inciso II do art. 220]: 'a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeito a restrições legais'. Essa palavra, restrições, fui eu que coloquei. Por que restrição e uma coisa, proibição é outra. (...) eles queriam 'acabar com o monopólio da Globo'. Então nós colocamos [lendo o parágrafo 5o. do inciso II do art. 220]: 'os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio'".

E não acaba aí. "Queriam colocar que 30% da programação tinha que ser local, regional. Nós colocamos aqui [lendo o art. 221]: 'A produção e a programação das emissoras de radio e televisão atenderão aos seguintes princípios'. Depois teria que haver uma lei [inciso III do art. 221], regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentual estabelecidos em lei, que até hoje, quase trinta anos depois, não saiu. Foram essas jogadas que a gente fez", afirma o representante da ABERT.

Parece não ter fim. Fernando Ernesto Corrêa tem apetite para falar: "E o artigo [222] de que a radiodifusão tem que ser privativa de brasileiros? Tinha a questão do Adolfo Bloch [dono da Rede Manchete], que não é brasileiro. Então, aí, em vez de botar [lendo o 222] 'a propriedade dos veículos de radiodifusão tem que pertencer a brasileiros natos', nós botamos 'brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos', para salvar o Bloch". Mais uma lição sobre a vontade do Constituinte.

Atualmente, com o fim do chamado imposto sindical obrigatório, vale saber o que pensava Jair Meneguelli, presidente da CUT. "A CUT defendia a unidade sindical e o fim do imposto sindical. Teria acabado ou pelo menos diminuído esse absurdo de sessenta pedidos de novos sindicatos a cada mês". Olha só!

Theodoro Mendes, Constituinte, diz que a proposta do art. 37 dizia: 'A primeira investidura em cargo público dependerá de concurso de provas e títulos'. "Ou seja: o cara entrava como ascensorista, por concurso, e depois ia pulando de galho em galho. Eu fiz uma emenda retirando a palavra primeira", afirma.

Recentemente, a fala do general da ativa, Antônio Hamilton Martins, em defesa da possibilidade de intervenção das forças armadas [art. 144 da Constituição], gerou reações imediatas. O presidente Sarney revela a vontade do Constituinte nesse particular: "Quando eles tentaram fazer uma redação em que as forças armadas não podiam intervir na ordem interna, houve uma reação muito grande da área militar".

Heráclito Fortes, mais um Constituinte, diz que, na Constituição [art. 5o do ADCT], havia "um penduricalho que garante, na sucessão dos prefeitos em exercício, a disputa de parentes em primeiro grau. Nós tivemos um caso concreto: em Campina Grande, na Paraíba, o [deputado constituinte] Cássio Cunha Lima sucedeu Ronaldo [Cunha Lima], que era seu pai".

Quanto ao Ministério Público [capítulo IV, seção I, da CF], Ibsen Pinheiro revela: "Eu me arrependo de não ter posto as correspondentes responsabilidade. As prerrogativas são importantes, mas a irresponsabilidade é muito grave. O promotor pode fazer uma ação civil pública, ao gosto dele, para mandar alguém fazer tratamento nos Estados Unidos, por exemplo, ou trocar uma ponte de um lugar para o outro - e não responder por isso com o seu bolso quando a lide é temerária. Faltou essa responsabilização, entre outras". Já Francisco Dornelles, confidenciou: "Oscarzinho [Dias Corrêa Júnior] que enxertou o Ministério Público de Contas".

Michel Temer, o quarto Constituinte a presidir o país (os outros foram Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula), diz que havia um artigo: São poderes do Estado o Legislativo, o Executivo e o Judiciário [art. 2o]. "Eu propus que se colocasse de outra maneira: 'São poderes do Estado - independente e harmônicos entre si - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário'. Foi aprovado", gaba-se o presidente.

Se hoje todos falamos sobre formas de persuasão racional e sobre a força do argumento, a Constituinte lidava com esses conceitos ao seu modo. Na Comissão de Agricultura, a esquerda lutava pela reforma agrária. Contrário, José Lourenço tentou persuadir os colegas: "Eu encostei no sujeito e disse: 'Se der mais um passo eu lhe fodo, seu filho da puta. Meto bala, para aí, não vai assinar porra nenhuma'". O reforço argumentativo veio com um revólver 38 mm na cintura.

A equiparação de direitos entre portugueses e brasileiros [art. 12, § 1º] também contou com debates. José Lourenço, que era português, ouviu do colega Paulo Ramos, do Rio de Janeiro: "Vossa Excelência, como filho de Portugal, não deveria estar sentado nessa bancada que deveria ser exclusiva para filhos do Brasil". Lourenço reagiu: "Quero dizer a Vossa Excelência que eu prefiro ser filho de Portugal do que ser como Vossa Excelência, que é filho da puta". Um debate parlamentar com método socrático à brasileira.

Quanto à licença-paternidade (art. 7o, XIX), proposta por Alceni Guerra, inicialmente a maioria votaria contra. Ulysses Guimarães pilheriou: "A alegria do pai se faz nove meses antes". Alceni, magoado, foi à tribuna e reagiu. "Todo mundo que ira votar contra votou a favor", recorda o presidente Temer.

Também aconteceram surpresas. Roberto Jefferson propôs o fim das polícias militares. "Estão extintas as policias militares. Seus efetivos serão integrados à polícia civil", constava. Quanto ao FGTS [art. 7o, III], recorda: "Quem sugeriu a multa de 40% do Fundo de Garantia fui eu. Escrevi aquela emenda em cima da perna".

Na questão do aborto, Sandra Cavalcanti, deputada Constituinte, recorda que "a guerra foi em torno de acrescentar ou não, depois de direito à vida, a expressão desde a concepção, defendida pelos grupos mais contrários ao aborto. O Bernardo Cabral e eu chegamos à conclusão de que nem se devia tocar nesse assunto". A colega Maria de Lourdes Abadia afirma que "na discussão do aborto, a imprensa só ouvia as mulheres, como se fizessem os filhos sozinhas". E continua: "Fechamos questão na campanha contra o aborto, que não deixamos botar na Constituinte. Uma vez eu fui num debate, no programa do Ferreira Netto. Na chegada, as feministas jogaram tomate na gente". O que diria uma interpretação originalista acerca da constitucionalidade da criminalização do aborto atualmente?

Para fechar, um personagem influente, o General Leôndidas, expressa seus sentimentos quanto a nossa Constituição: "Ela não presta, em termos, porque nós também não prestamos, em termos". Um homem direto em suas conclusões.

A obra "1988: segredos da Constituinte - Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil", de Luiz Maklouf Carvalho, é uma matéria-prima necessária a todos nós. O livro desnuda os corpos que conduziram a elaboração da Constituição Federal de 1988 e abre cortinas que estavam fechadas ao público, impedindo-o de conhecer melhor o grande teatro da nossa atual democracia constitucional.

As revelações em nada obscurecem as conquistas da Constituição, mas deixam o seguinte questionamento: Devemos mesmo tentar interpretar a Constituição a partir de uma tal vontade do Constituinte? Como guiar uma discussão, por exemplo, sobre direito à educação à luz da vontade do Constituinte quando se afirma que dispositivos foram escritos sob uma tenda de circo numa mansão do Lago Sul por parlamentares entretidos com corpos femininos pagos por um empresário? Qual a vontade deles ali?

Por isso, a ideia de uma interpretação originalista da Constituição brasileira, no limite, pode ser uma quimera. O fato de a obra de Maklouf aguçar a curiosidade dos estudiosos em relação a esse tradicional método de interpretação já mostra o valor do livro e, também, a perspicácia intelectual do autor. Vale cada página.