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Os livros e os meus cem dias em Jerusalém

segunda-feira, 18 de março de 2019

Atualizado às 08:52

Tenho cultivado, desde a infância, uma relação de amor e gratidão com os livros. Mesmo assim, eu achava que a minha história com eles já tinha me dado o seu melhor.

Depois da experiência, entre os anos de 2014 e 2016, na África do Sul, onde fui assessor estrangeiro na Corte Constitucional, eu entendia que tinha tido o bastante. Como relatei aqui, parei naquele país graças às obras "A estranha alquimia entre a Vida e o Direito", de Albie Sachs, e "Justiça: uma versão pessoal", de Edwin Cameron, ambos juízes da Corte Constitucional sul-africana, hoje bons amigos.

A vida foi me mostrando, ao longo do tempo, que os livros nos escolhem, não o contrário. Mostrou também que eles têm o tempo deles. Podemos possuir obras em nossas estantes por anos a fio. Certo dia, sem qualquer razão, olhamos um livro e algo nele nos chama a atenção. Ali, é o livro que está no controle, não nós. Chegou a hora e ele nos convida. Sempre que um livro o convidar a vivê-lo por inteiro, não recuse, aceite.

Em Brasília, enquanto preparava as peças que ilustram casos perante o Supremo Tribunal Federal, a capa de um livro me chamava insistentemente. E eu resistia.

"Que plenário diferente!", eu pensava, segurando "The judge in a democracy", do ex-presidente da Suprema Corte de Israel, Aharon Barak, uma lenda viva que, além de ter liderado o Tribunal por mais de dez anos, construiu uma profícua vida acadêmica.

Devo confessar que não achava aquele plenário tão bonito quanto o da Corte Constitucional da África do Sul, tampouco como o do Supremo Tribunal Federal. Mas ele era diferente e isso mexia comigo, porque tudo o que é diferente aguça a minha curiosidade.

Na capa, eu via três assentos, um ao lado do outro, de frente para o público, tendo, por trás, a Menorá judaica. Não havia uma bandeira de Israel. Havia duas.

Entre a meia lua que servia de bancada para os três ministros, naquele pequeno plenário - são cinco turmas, ao todo -, havia a mesma ilha que há no plenário do Supremo Tribunal Federal para as taquígrafas. "Será que eles têm taquígrafas?".

Na outra metade da meia lua, um maior número de cadeiras se confrontava aos três assentos colocados em posição mais elevada. "São para os advogados. Na África do Sul, era assim", eu conversava comigo mesmo.

Olhar para a capa daquele livro me dispersava. Eu tinha prazos para cumprir, peças para encerrar, reuniões para participar, mas me via mergulhado numa fantasia profundamente simbólica. Era difícil me libertar. Aquela capa me tragava.

A verdade é que o livro estava me chamando. E eu recusava. Mesmo assim, eu sabia: quando os livros chamam, por mais que se rejeite, é questão de tempo. Eles sempre vencem ao final. A obra de Aharon Barak venceria também. Mais cedo ou mais tarde.

A partir daí, uma sucessão de felizes acasos assume o controle da minha vida. Essa sucessão teve início em janeiro de 2018, quando eu, minha mãe e minha esposa passamos uma semana em Israel. "Quero conhecer o prédio da Suprema Corte". Fizemos o tour oferecido pela Corte, conduzido pelo relações públicas do Tribunal.

Fiquei maravilhado com a construção. De tão impressionado, fiz um vídeo mostrando os detalhes da arquitetura do prédio e as mensagens ocultas escondidas em muitos pedaços da Suprema Corte. Também escrevi um texto sobre a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana no país. Ao tomar aquelas iniciativas, eu estava dando o primeiro passo. E, ao dar o primeiro passo, eu sabia que não pararia mais.

Aquela viagem, combinada com a visão fixa e quase diária da capa do livro, abriu um portal na minha relação com Israel e, mais precisamente, com Jerusalém. Essa relação, sabia eu, era como as correntezas de um rio, as labaredas de um fogo que sobe um morro, ou como o vento de uma ventania. Era algo muito difícil de frear.

Os felizes acasos se seguiram. Em abril, fui ao cinema assistir o filme 7 Dias em Entebbe, dirigido por José Padilha. O enredo é interessantíssimo.

Em julho de 1976, um voo da Air France de Tel-Aviv à Paris é sequestrado e forçado a pousar em Entebbe, Uganda. Os passageiros judeus são mantidos reféns para que seja negociada a liberação dos terroristas palestinos presos em Israel, na Alemanha e na Suécia. Sob pressão, o governo israelense decide organizar uma operação de resgate, atacar o aeroporto e soltar os reféns. A operação é um sucesso retumbante.

No filme, duas coisas penetraram a minha mente. Primeiramente, a música Echad Mi Yodea, que compõe a obra, cuja trilha sonora é de Rodrigo Amarante. Batida forte, ritmo impactante, refrão que fica na cabeça. Depois, a criatividade do resgate.

O filme deixou em mim a primeira lição de honra, coragem e, principalmente, de trabalho em equipe a partir da liderança de Shimon Peres, então Ministro da Defesa de Israel. Como ele foi capaz de, para salvar a sua gente, se valer de um plano tão original? De onde vinha aquela criatividade? Como ter a altivez de, quando se trabalha em equipe, saber que se fez o melhor naquelas circunstâncias? "O que quer que aconteça, fizemos a coisa certa", disse Peres para seus soldados, antes deles partirem numa missão mirabolante de altíssimo risco para cada um deles. Shimon deu-lhes certezas, não hesitações.

O fato é que Shimon Peres era especial. Figura central em sua vida foi seu avô, o Rabino Zvi Meltzer. No Yom Kipur, o importantíssimo Dia do Perdão judaico, Shimon se deliciava ouvindo o avô cantar.

Zvi Meltzer morreu em Visheva, Polônia. Os Nazistas marcharam pela floresta e entraram na pacata vila. O Rabino foi colocado dentro da modesta sinagoga de madeira, junto com quase toda a congregação. Os Nazistas fecharam as portas e atearam fogo. Enquanto as labaredas engoliam o local, seu avô cantava, repetindo a mesma oração que encantava o pequeno Shimon durante o Yom Kipur. Honra e resistência.

Quanto à música Echad Mi Yodea, o engraçado é que, estudando hebraico com o professor Matan Gicovate, descobri que se trata de uma canção para crianças aprenderem a contar ou a terem sua memória desafiada. Ela costuma ilustrar as celebrações da Páscoa judaica. Para mim, contudo, não soava infantil. Soava forte.

O ano de 2018 seguiu seu curso. Mais adiante, estive brevemente com o ministro Luís Roberto Barroso, no Supremo Tribunal Federal. Conversamos rapidamente sobre textos acadêmicos que abordam questões relativas à interpretação teleológica.

"Há um texto seminal de Aharon Barak, que foi presidente da Suprema Corte de Israel", recomendou-me. Perguntei: "Vossa Excelência o conhece?". "Sim. Deu-me aula em Yale". Naquele instante, pensei: "Os astros estão se alinhando". Estavam, de fato.

Depois, no Congresso Mundial de Direito Constitucional, em Seul, Coréia do Sul, estávamos todos os painelistas confraternizando com o professor Dieter Grimm, que compôs a Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, quando se junta a nós uma das palestrantes, a professora Daphne Erez-Barak, juíza da Suprema Corte de Israel.

"Eu visitei a Suprema Corte em janeiro. Fiquei fascinado pelo prédio", disse-lhe, no que ela responde: "Temos alguns assessores estrangeiros. Dê-me o seu cartão". Eu entreguei o cartão do escritório, conversamos um pouco mais e seguimos para um tour na zona desmilitarizada que separa as duas Coreias. "Mande um e-mail com o seu currículo para o e-mail da Corte. Há um programa".

Eu mandei um e-mail para o mesmo relações públicas com quem eu havia conversado em janeiro, quando agendei o tour na Suprema Corte. Fiquei sabendo de um application formal, detalhado, que abria a chance de atuar como assessor estrangeiro.

Pouco mais de um mês depois, num domingo muito cedo, vejo o título do e-mail pela tela do meu telefone. "Congratulations!", estava escrito. Eu não acreditei.

O meu currículo havia passado de mão em mão e o vice-presidente da Suprema Corte, o juiz Hanan Melcer, me escolheu para ser o seu assessor a partir do início de 2019.

Em regra, eu deveria passar seis meses em Jerusalém, onde fica a sede do Tribunal, mas seria tempo demais para ficar longe das minhas atividades no Brasil. Combinamos, então, que eu partiria em dezembro e voltaria após o carnaval, dia 10 de março, um domingo. Contei os dias: cem dias. Era essa a missão. Cem dias em Jerusalém.

Antes de partir, fui na Embaixada de Israel, em Brasília, tendo sido recebido, além do embaixador, Yossi Shelley, pelo primeiro-secretário, David Atar. "Chamo-me Saul". Mostrei para David uma foto da minha esposa. "Rebeca". Depois, o meu sobrinho, Samuel. David não se aguentou: "Saul, Rebeca e Samuel, na mesma família? Não é possível! Você é judeu. Apenas não sabe ainda". Gargalhamos.

Dia 1º de dezembro, eu embarquei para Israel, sozinho.

Na Suprema Corte, eu e meus colegas fazíamos pesquisas sobre os temas mais variados. Judeus ortodoxos podem passar a estudar no sistema comum de ensino, mantendo a segregação por sexo? Propaganda eleitoral de mulheres poderia ser retirada de bairros ortodoxos? Candidatos podem tirar fotos com soldados das forças armadas? Que outro nome pode ser dado para a Constituição? Como funciona, juridicamente, a inseminação artificial? Artistas podem se recusar a cantar em certos locais quando são financiados pelo governo que os convida a cantar? Um diretor de uma autarquia ou empresa pública, com mandato, pode ter o seu mandato encurtado por uma lei? Operações militares podem ser judicializadas? Há limites para a liberdade de expressão? Como funciona a recuperação judicial no Brasil e na África do Sul?

O constitucionalismo israelense é rico e erudito. Há uma infinidade de temas, os mais desafiadores, que deveriam ser pesquisados à luz dos meus conhecimentos e experiência no Brasil e na África do Sul. A partir dos resultados das pesquisas, tínhamos reuniões com o juiz e os demais colegas, além da preparação de memorandos quase diários. Para quem estava disposto a trabalhar - e eu estava -, não faltava o que fazer.

Eu trabalhava até a quinta-feira, às 15 horas, quando tínhamos, na Suprema Corte, o "Kabbalat Shabbat". Era um happy hour sem bebida alcoólica. Eu aproveitava para praticar, com os colegas de Israel, o meu hebraico, já que todas as atividades profissionais eram em inglês. Shalom. Todá. Todá rabá. Besseder. Bevakashá. Sababa. En beya. Altidag. Narron. Betar. Má. Atá. At. Iesh lerrá. Iesh lá. Adain lo. In. Eu manuseava o meu estoque de hebraico com o cuidado de quem precisa se virar bem com pouco. Funcionava.

Em Jerusalém, meu nome - "Shaul" - estava nas ruas, nas pontes, nas praças, na literatura e na filosofia. Eu havia me tornado um rei, o primeiro rei dos judeus.

Certo dia, na cafeteria do Cinema City, shopping que fica ao lado do Tribunal, ligado pela Ponte da Suprema Corte, o atendente perguntou meu nome. "Em português, Saul. Em inglês, Sal. Aqui, chamam-me Shaul". Ele me alertou: "Shaul foi rei. Aceite o nome em hebraico. Você está em Jerusalém". Virei Shaul, o brasileiro do Piauí, não-judeu, que falava algum hebraico, era casado com a Rebeca, tio do Samuel e morava em Jerusalém, trabalhando na Suprema Corte ("Beit Mishpat Elyon").

Um dos pontos culminantes da missão foi ir, atendendo a um convite formal do vice-presidente da Suprema Corte, que também preside o Comitê Geral das Eleições, para uma audiência na sede do Parlamento israelense, o Knesset.

Lá estavam representantes de todos os partidos políticos do país, com seus argumentos inflamados e contundentes. Também os representantes da procuradoria-geral. Advogados famosos, os mais aclamados, se alternavam na defesa de seus clientes, candidatos nas eleições de 2019. Um grande caso seria apreciado e eu estava ali não como um turista curioso, mas como uma pequena fração do maquinário responsável por assegurar a democracia naquele inacreditavelmente próspero pedaço de deserto no Oriente Médio. Uma extraordinária oportunidade de contribuir.

[O vice-presidente da Suprema Corte, Hanan Melcer, e Saul Tourinho Leal,
no Comitê Geral das Eleições, em Israel].

Lembro de um aprendizado que tive a partir de uma situação inusitada. Ao entrar diariamente na Suprema Corte, o mesmo segurança insistia em perguntar quem eu era, com quem eu trabalhava e para onde eu queria ir, mesmo depois de quatro semanas ali, todos os dias. Certa vez, ao pedir a ajuda de um colega, para me socorrer na situação, aprendi a lição. "Shaul, você tem que ter Chutzpah. Encare ele!".

Eu não sabia o que era Chutzpah. A palavra é derivada do iídiche e a tradução remete para a audácia, o atrevimento, coragem e atitude diante das injustiças ou desafios da vida. Não raramente, uma pessoa com Chutzpah será questionadora, exigirá explicações ou justificativas. "Eu vou encarar ele!". De fato, encarei. E deu certo.

Mas os cem dias em Jerusalém não foram apenas "cem dias em Jerusalém". Foram também "cem dias em Israel". Todas as quintas-feiras, logo que eu via o cume da pirâmide que compõe a arquitetura da Suprema Corte e notabiliza o desenho daquele prédio monumental, tocando o sol, era sinal de que a noite estava chegando e que, sendo quinta-feira (equivalente à nossa sexta-feira), era hora de encerrar o trabalho e partir. Viajei o país inteiro, a pé, de carro, de ônibus, de trem e de avião.

[Da janela do seu desk, na Suprema Corte, via o cume da pirâmide tocar o sol.
Era o sinal de que o pôr do sol chegava]

Nessas viagens de final de semana, os livros me apresentaram David Ben-Gurion, Shimon Peres, Golda Meir, Ytzak Rabin, Ariel Sharon, Benjamin Netanyahu e muitos outros líderes do país. Foi uma imersão verdadeira, profunda e de grande fôlego.

Talvez a viagem mais marcante foi para Tiberíades, no Mar da Galileia. Lá, num sábado, avistei um quiosque no qual era possível alugar um barco. Contudo, eu não poderia alugá-lo sozinho. Pelo menos uma outra pessoa tinha de estar comigo e eu não tinha ninguém.

Uma família que estava ao lado percebeu a situação e viu que havia algo a fazer. Eles, em número de seis, teriam de alugar dois barcos para acomodar todos. Diante da minha situação, sugeriram que dois jovens fossem comigo. Eles ficariam dispensados de alugar um segundo barco e eu poderia fazer o meu passeio.

Pela idade dos jovens garotos, o piloto do barco terminou sendo eu, logo eu, que sequer carro dirijo, porque não tenho um. Mas lá fomos nós.

Uma vista estonteante nos conduzia ao ápice da paz. As águas do Mar da Galileia parecem um fino e estático espelho d'água. Dá a impressão de que podemos caminhar sobre elas, até alcançar o infinito. Há um silêncio arrebatador quebrado somente pelos cantos das gaivotas que cortam o céu azul daquele lugar único. Do outro lado do mar, montanhas se agigantam até tocarem, com seus dedos verdes, os pés do céu. É indescritível.

Pouco antes de encerrarmos o passeio de barco, um dos jovens disse que cantaria algo com o irmão. E começaram: "Echad Mi Yodea? Echad?". A música que ficou na minha mente, meses antes, com o filme 7 Dias em Entebbe, estava sendo cantada no Mar da Galileia, para mim, no passeio mais improvável que eu poderia ter tido. Inacreditável.

Em Israel, de repente, tudo parecia ter a cara do Brasil. Nas lojas de souvenirs, botons com as bandeiras de Israel e Brasil juntas eram vendidos como água no deserto. Na CyberTech 2019, maior conferência da indústria cibernética do planeta, estive com o astronauta Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. "Bibi", como é chamado o primeiro-ministro de Israel, foi exibido em toda a mídia do país, por dias, em sua viagem pelo Brasil, de óculos escuros, batendo bola na praia do Rio de Janeiro e provando a nossa caipirinha. Em Tel Aviv, na cafeteria Origem Fresh Coffee, na rua Dizengoff, o casal de baianos Marcelo e Georgia Szporer me ofereciam um delicioso pão de queijo com a matéria prima produzida num Kibutz. Em Acre, no Norte, bandeiras do Brasil eram penduradas e até pintadas nos muros das casas.

Nesse período, voltando de ônibus do Mar Morto, um grupo de soldados do Israel Defence Forces - IDF conversava entre si, quando eu passei. "Brasileiro?". "Sim", respondi. "Nossos companheiros estão embarcando para Brumadinho".

Eu, brasileiro, tinha ido para Israel. E o Brasil foi junto comigo.

Uma derradeira experiência se deu numa visita que fiz à casa de David Ben-Gurion, o primeiro primeiro-ministro de Israel, um founding father.

Ben-Gurion foi um homem da guerra. Ele sentiu o perfume fétido da morte. Descobriu, impelido pelas circunstâncias, o que é matar pessoas. Sob suas ordens, um navio foi interceptado em Tel Aviv e concidadãos que tentavam se rebelar contra ele montando uma força paramilitar, foram mortos (Altalena Affair).

Durante as guerras que enfrentou, a partir de 1948, Ben-Gurion habituou-se a ouvir o detonar dos canhões, o roncar dos tanques e o grito das sirenes. Seu olfato, além da morte, sentia o odor das ruínas de tudo o que era explodido pelos inimigos. Sob suas ordens, soldados foram buscar armas e munições em qualquer lugar. Ben-Gurion passou a ter intimidade com as consequências do terror. Viveu o que é a violência.

Eu estive em sua casa, no deserto do Negev, sul de Israel. Diante da guia, perguntei: "Onde ele guardava as armas?". Após segundos de hesitação, ela responde: "Por favor, me acompanhe, elas ficam no maior cômodo da casa. Foi a partir delas que ele liderou o nascimento de Israel". Eu a acompanhava pensando: "Claro!".

A guia abre uma porta. "Entre". Quando eu cruzo a entrada, vejo o que ela chamou de "armas". Era a mais linda biblioteca dentro de uma casa que já vi em toda a minha vida. Livros religiosos, de medicina, química, física, ciência política, filosofia, direito..., tudo. Percorri a biblioteca observando, com fascínio, cada livro nas muitas estantes.

[O local onde David Ben-Gurion guardava as suas "armas"]

"Posso ir ao quarto onde ele dormia?". Eu queria saber se o grande primeiro-ministro de Israel tinha algum herói em sua intimidade, um ídolo, um personagem no qual ele se inspirava. Inconscientemente, eu me perguntava se em seu quarto haveria uma foto ou um livro de alguma espécie de torturador do Estado ou um assassino revolucionário. Seria desse tipo de gente que aquele homem da guerra se alimentava?

Fomos até lá. Era um quarto modesto, com uma cama de solteiro ao canto, uma estante e um criado-mudo com livros. Não havia, contudo, o quadro de nenhum assassino revolucionário, nem de torturadores do Estado. Eu vi, pendurado na parede, um quadro com uma foto de Mahatma Gandhi. Aquele homem da guerra tinha, no local onde descansava, a foto de um pacifista.

Aquela foto me disse muito. Mostrou que a guerra, a violência e as armas são um mal. Que ninguém nasce para isso. Ben-Gurion se cercou de livros, não de fuzis. Mortes e ataques são contingências. Temos que aprender a nos defender, mas, em verdade, todos devemos almejar a paz e procurar realizar as nossas ambições pelas vias pacíficas. É o que a Constituição brasileira chama de "resolução pacífica das controvérsias". A foto de Gandhi não fala apenas sobre Ben-Gurion. Fala sobre Israel. Fala sobre o planeta.

Ver aquele quadro trouxe à minha mente o primeiro dia do curso de formação para assessores estrangeiros na Corte Constitucional da África do Sul, anos atrás.

Conduzidos por assessores com mais tempo de Tribunal, todos nós percorríamos o complexo da Old Fort Prison, onde fica, também, a Corte Constitucional. Algumas partes do complexo foram conservadas como eram durante o apartheid. Parecem dilapidadas, decadentes, em mau estado. Ignorante, perguntei: "Vocês não se sentem mal por trabalharem numa Corte cuja sede é num lugar de passado tão cruel?".

A condutora do grupo, experimentada, não se surpreendeu. "Temos um misto de vergonha e orgulho. Dois jovens advogados, como você, entraram aqui como prisioneiros. Saíram como guerreiros da liberdade".

Um dos advogados era Nelson Mandela. Mas e o outro? "Mahatma Gandhi", responde ela. A luta de Gandhi havia começado na Old Fort Prison, quando ele era um jovem e bem-sucedido advogado visitando a África do Sul para realizar uma audiência.

Tudo se ligava. Da África do Sul a Israel, Gandhi e a sua busca pacífica pela paz estavam presentes. "A minha vida é a minha mensagem", escreveu ele, no registro que deixou na casa onde morou, em Joanesburgo. A guerra, como eu disse, era uma tragédia às vezes disparada pela necessidade de se defender de inimigos cruéis. Mas o ser humano não nasceu para ela. Nasceu para a paz.

A minha experiência com a liderança de David Ben-Gurion não acabou aí. Quem já visitou Tel Aviv sabe sobre o que estou falando. Fui muitas vezes para lá, tentando escapar do frio, da chuva e da solidão de Jerusalém.

Ao contrário de ver uma foto de Ben-Gurion de farda, ou diante de armas e munições, Tel Aviv prestou uma homenagem ao seu grande herói convertendo numa estátua engraçada a imagem deixada pelo próprio Ben-Gurion, numa fotografia que percorreu o mundo. A foto mostra o primeiro primeiro-ministro de Israel, de sunga, diante do seu instrutor, de cabeça para baixo, com a cabeça na areia da praia, projetando as suas pernas para cima. David Ben-Gurion, já com certa idade, fazia ioga e se deixou fotografar assim. Em sua homenagem, ergueram uma estátua, em forma de caricatura, na praia.

A missão em Jerusalém havia deixado de ser jurídica, apenas. Ela passou a ser cultural, pessoal, passional e imortal. Também se expandiu. Já não se limitava a Jerusalém, mas a todo o país, de norte a sul, leste a oeste.

Mas no dia 10 de março, cem dias após a partida, eu via a areia da ampulheta despencar no fundo do vidro. Não restava mais nada. A missão havia chegado ao fim.

Na Suprema Corte, após me despedir dos meus colegas, saí do gabinete do vice-presidente. Caminhando no corredor de acesso aos gabinetes, eu me deliciava, pela última vez, com a beleza daquele prédio. "Eu nem acredito nisso. Não acredito".

Antes de abrir a porta que cede espaço para a linda biblioteca de três andares da Corte, vi, no corredor dos ex-presidentes, a foto de Aharon Barak. Ele estava de terno escuro, com as pernas cruzadas, uma mão segurando a cabeça e a outra sobre o braço da cadeira, com seus cabelos brancos penteados para o lado, olhos postados por trás de óculos que acusavam uma vista dedicada à leitura, com o olhar fixo para a lente da câmera, naquela pintura a óleo. Sua postura não era ereta sobre a cadeira, mas de um homem relaxado. Era como se olhasse para mim, nos meus olhos. Eu carregava o seu livro "Judge in a democracy", um exemplar da Corte que eu devolveria para a biblioteca.

Naquele corredor, eu parei, depois de olhar para um lado e para o outro e não ver ninguém por ali. "Eu não o conheci, mas conheci o seu livro. E ele me trouxe até aqui. Obrigado!", eu disse para aquele retrato, com o cuidado de não ser visto por alguém e terminar sendo taxado de maluco. Passei pela biblioteca, deixei o livro e parti.

[Retrato de Aharon Barak, no hall dos ex-presidentes da Suprema Corte]

O que vivi em Israel não foi apenas Chutzpah, essa audácia para a vida. Foi mais. Experimentei a fascinação de, num único dia, no mesmo lugar, em Jerusalém, ouvir o cântico islâmico de megafones na Dome of the Rock, a oração enfática dos judeus no Muro das Lamentações e a badalada dos sinos nos templos cristãos. Em Acre, ao norte, um trabalhador árabe me contou, no café da manhã, que a casa onde mora é da sua família há 800 anos. No sul, jantei no deserto com beduínos que dividiram sua refeição e me mostraram que, em ambientes hostis, resistir é a única possibilidade. Em Eilat, ao ver um grande monte do outro lado da praia, escutei o garçom me dizer: "É o Egito, logo ali". Em Tel Aviv, jovens converteram as cicatrizes e os conhecimentos adquiridos no tempo do exército em tecnologia e inovação que amenizarão o sofrimento do semelhante. Flutuando no Mar Morto, senti vida em abundância. Um deserto sem cor virou um tapete verdejante inalcançável à vista, ali, na minha frente, não por milagre, mas pelo tirocínio humano. Testemunhei trilhos percorrerem a borda do desenho do mar, engolidos por túneis que se ajoelham para as colinas da Terra Sagrada. Uma terra de leite e mel.

Tudo isso só foi possível graças a um alinhamento de astros. Em cada um desses cem dias, eu vivi a verdade e percorri o caminho, inovando, dividindo e insistindo, porque toda missão deve contemplar essa trindade: imaginação, solidariedade e ousadia.

Enquanto eu deixava a Suprema Corte, refletia sobre como mais uma vez fui presenteado pelos livros e pela magia que uma relação íntima entre leitor e obra é capaz de propiciar. Quando um livro lhe chamar, não resista, vá. Eles me deram o meu trabalho como advogado, a base da minha atuação como professor, me fizeram companhia percorrendo o Brasil em palestras e conferências e, incansáveis, me levaram para países especiais que têm uma história para contar. Devo tudo a eles.

Os livros são capazes de nos levar para os lugares mais improváveis da nossa curta jornada nesse plano. Fora da zona de conforto, a magia acontece. Se ela aconteceu comigo, vai acontecer com você. Apenas abra um exemplar. Então, comece a ler. E não pare mais. Simplesmente, não pare mais. Esse é o segredo. E foi a partir dele que eu vivi os meus cem dias em Jerusalém. E que viverei muitos outros dias também. Ainda bem.

[Após cem dias em Jerusalém, chega ao fim a missão na Suprema Corte de Israel]