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PEC 199: a antecipação do trânsito em julgado

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Atualizado às 09:55

O jurista uruguaio Eduardo Couture, em sua sabedoria imortal, deixou um alerta não apenas para os juristas, mas para todos aqueles que enxergam no tempo um inimigo a ser combatido. "O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração".

O tempo existe e não adianta ser indiferente a isso. Em muitas sociedades esse elemento está associado à sabedoria, à experiência e à segurança, especialmente à segurança jurídica. Nas nações mais avançadas na realização de direitos, o valor de suas políticas é medido a partir das respostas a perguntas simples, mas poderosas, como essa: como a sua comunidade cuida dos idosos? Os idosos são, entre nós, a demonstração mais cabal da força do tempo, assim como o são as tradições, os costumes e a própria história.

Na sede da Corte Constitucional da Coreia do Sul - uma nação que confere dignidade ao tempo - há, no topo do edifício, um agradável terraço de onde é possível ver Seul inteira. Lá se enxerga também o "Baeksong" (Pinheiro Lacebark), uma árvore de mais de 600 anos reconhecida como o Monumento Natural nº 8 da Coréia. O tronco branco é associado aos cabelos brancos adquiridos com a maturidade.

A primeira premissa desse texto é essa: o tempo existe e é perigoso negligenciá-lo. Ele não precisa ser demasiadamente longo, nem absurdamente curto, precisa apenas ser o tempo justo, como reclama o próprio conceito de justiça em seu sentido material quando associada à prestação jurisdicional eficiente e à razoável duração do processo, previstos respectivamente no parágrafo único do art. 126 e no inciso LXXVIII do art. 5º, ambos da Constituição Federal.

Se o raciocínio acima é crível, então vale a pena investir um instante de energia intelectual para analisar a Proposta de Emenda à Constituição n. 199/2019, de autoria do deputado federal Alex Manente, em tramitação na Câmara dos Deputados.

Eis um breve trecho da sua justificativa: "(...) a transformação dos recursos extraordinário (art. 102, caput, III) e especial (art. 105, caput, III) em ações revisionais, possibilitando que as decisões proferidas pelas cortes de segunda instância transitem em julgado já com o esgotamento dos recursos ordinários".

Se o que há hoje são recursos entregues ao jurisdicionados para que tentem se socorrer, pela vez derradeira, do STF e do STJ, e a PEC os substituem por uma ação revisional, então não se trata de uma "transformação", mas, sim, de uma "extinção". A Proposta acaba com os recursos extraordinário e especial. Em português claro, é isso o que faz.

A PEC 199/2019 aponta os seus propósitos. São os seguintes: "a) reconfigurar o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça enquanto cortes destinadas à, respectivamente, proteção e afirmação da Constituição da República, e à uniformização da interpretação do direito nacional; b) estabelecendo as cortes superiores enquanto cortes de vértice, impinge-se a busca pela racionalização do Direito brasileiro, reduzindo a contradição em pronunciamentos judiciais, e reduzindo o déficit de fundamentação que por vezes afeta pronunciamentos judiciais; c) com o fim dos recursos extraordinário e especial, vinculando o trânsito em julgado das decisões ao julgamento prolatado pelas cortes ordinárias, retoma-se a responsabilização institucional, e a valorização das instâncias ordinárias da Justiça - responsáveis pela análise probatória; d) ainda, como consequência do trânsito em julgado após o julgamento em segunda instância, permite-se a efetiva execução das sentenças judiciais, satisfazendo mais rapidamente os interesses jurídicos tutelados nas demandas; e) a execução imediata da sentença, por sua vez, qualifica-se como desestímulo à interposição automática de recursos protelatórios, traduzindo-se enquanto remédio especialmente necessário nas ações penais, como forma de efetivação da tutela penal; f) por fim, ressalta-se que a medida proposta não se qualifica enquanto afastamento do direito de petição, e de submeter-se à jurisdição da das cortes superiores, sendo, contudo, meio proporcional e eficaz à racionalização do sistema jurídico recursal".

O item "c" é franco e a franqueza tem o seu valor. Ele diz: "o fim dos recursos extraordinário e especial". Ponto. É a partir daqui que passo à segunda premissa do artigo em forma de questionamento: é possível simplesmente acabar com esses recursos?

A PEC altera o sistema processual-constitucional brasileiro de natureza extraordinária para acabar com os recursos especiais e extraordinários e criar uma ação revisional de natureza especial denominada "ação revisional", em que o autor só poderá dela se valer após o trânsito em julgado do pronunciamento judicial.

Para responder o questionamento anteriormente feito, é preciso compreender qual a teleologia constitucional quanto à relação que os cidadãos devem ter com a sua aspiração por direitos perante um Judiciário que, como se vê no Capítulo III da Constituição, contempla o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça (art. 92, I e II).

O preâmbulo da Constituição Federal visa a instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício da justiça como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Um dos objetivos da República é o de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Como disciplina o art. 1º, a República constitui-se em "Estado Democrático de Direito", que traz, como um dos seus Poderes - Legislativo e Executivo - o Poder Judiciário (art. 2º).

Segundo o inciso XXXIV do art. 5º, "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal."

O inciso XXXV do mesmo art. 5º, por sua vez, dispõe: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Esse mesmo art. 5º apresenta o habeas corpus (LXVIII), o mandado de segurança (LXIX), o mandado de segurança coletivo (LXX); o mandado de injunção (LXXI), o habeas data (LXXII) e a ação popular (LXXIII), dispondo que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (LXXIV). Assevera ainda que o "Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença" (LXXV), sem descuidar do fato de que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (LXXVIII).

A Seção IV do Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça) apresenta a Defensoria Pública como "instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado" (art. 134).

Por fim, o inciso XXIX do art. 7º insere como um dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, a ação quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.

Da leitura harmônica de todos esses comandos acima referidos parece clara a conclusão de que a Constituição brasileira de 1988 pretendeu abrir inteiramente os caminhos do acesso à justiça para as pessoas, não o contrário.

E não é só isso. A Constituição também condiciona à sentença judicial a incursão em um plexo de garantias, reservando, inclusive, para as decisões judiciais transitadas em julgado, a possibilidade de desconstituição de determinados direitos.

A perda da nacionalidade do brasileiro que tiver cancelada sua naturalização em virtude de atividade nociva ao interesse nacional reclama sentença judicial (art. 12, §4º, I). Também o cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, de serviço público de radiodifusão sonora e de sons e imagens também reclama igual medida (art. 223, §4º).

Como se vê, a Constituição de 1988 teve a intenção de fortalecer uma cultura de proteção a direitos, num ambiente no qual ninguém jamais tema elevar sua voz contra injustiças valendo-se do Poder Judiciário para tal mister, o que inclui a possibilidade de alcançar o STF e o STJ em suas vindicações pela proteção de direitos violados.

Tanto que, segundo o inciso XIII do art. 93, na redação da Emenda Constitucional n. 45/2004, lei complementar, de iniciativa do STF, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados, dentre vários princípios, que o número de juízes na unidade jurisdicional seja proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população. A atividade jurisdicional, inclusive, há de ser ininterrupta (inciso XII do art. 93).

O §3º do art. 107, por sua vez, dispõe que os Tribunais Regionais Federais poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo.

Há uma base normativa muito densa abrindo os caminhos do Poder Judiciário para que a comunidade dele faça uso, não de forma abusiva ou em violação às regras e princípios que estruturam o Sistema de Justiça, mas com o desembaraço de quem enxerga no Judiciário um ambiente ao qual as pessoas não devem temer tampouco se sentirem intimidadas ou sem esperança de que suas vindicações serão ouvidas e respondidas.

Não custa recordar que a defesa judicial, além de ampla, há de ser munida dos meios e recursos a ela inerentes: "LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º).

Por tudo isso é que alterar o marco constitucional do trânsito em julgado é uma medida grave. Como o ministro Cezar Peluso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, registrou na audiência pública da qual participou na Câmara dos Deputados exatamente para discutir essa PEC, é algo, pelo menos, "radical". Não toca apenas o inciso LVII do art. 5º, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Impacta múltiplos comandos vitalizadores de direitos fundamentais, de preceitos fundamentais, de garantias institucionais, de princípios constitucionais sensíveis e de cláusulas pétreas.

A Constituição é cuidadosa com os marcos temporais a partir dos quais direitos são cristalizados. Tanto assim o é que o inciso XXXVI do art. 5º determina que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

A PEC, contudo, reconstrói a dimensão da coisa julgada que se consolidou em nosso histórico processual, enfraquecendo-a. Isso, enquanto a Constituição enxergou no trânsito em julgado o marco a ser observado nas hipóteses de desconstituição de bens da vida constitucionalmente assegurados em conexão com os elementos que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito.

Veja-se o caso das associações. Elas só poderão ser compulsoriamente dissolvidas por decisão judicial "com trânsito em julgado" (inciso XIX do art. 5º).

E não é só. O servidor público estável perderá o cargo somente em virtude de sentença judicial "transitada em julgado" (art. 41, § 1º, I). Essa garantia institucional não se volta ao servidor em si, mas ao aperfeiçoamento das instituições estatais.

A vitaliciedade, uma das garantias da magistratura e do Ministério Público, só pode ser perdida através de sentença judicial "transitada em julgado" (art. 95, I; art. 128, § 5º, I). A vitaliciedade é realizadora tanto da independência do Poder Judiciário como da autonomia do Ministério Público.

E quanto à perda ou suspensão de direitos políticos? O art. 15 da Constituição condicionou-a ao cancelamento da naturalização por sentença "transitada em julgado" e à condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.

Outro elemento fundamental é a independência do Poder Legislativo e a legitimidade popular de seus integrantes granjeada pelo mandato pelo povo outorgado. Consta no texto constitucional que perderá o mandato o Deputado ou Senador que sofrer condenação criminal em "sentença transitada em julgado" (art. 55, VI).

Ou seja, a partir da própria Constituição parece evidente a gravidade de qualquer medida que intente remodelar o instituto do trânsito em julgado de modo a reduzir a sua eficácia, encurtando o tempo necessário a alcançá-lo subtraindo dar a parte, como regra e a partir de agora, a oportunidade de chegar ao STF ou ao STJ1.

Por isso é importante questionar se a PEC n. 199/2019 não tende a abolir direitos fundamentais ao antecipar a presença do instituto do trânsito em julgado. Nem se diga que pode o Poder Legislativo estabelecer, da forma que bem entender, o que é trânsito em julgado sem se basear em qualquer parâmetro, em alguma organicidade do próprio sistema constitucional e em absoluto desafio à compreensão histórica da hermenêutica constitucional construída e legada às nossas gerações.

Na Constituição, o conceito é associado, em várias oportunidades, a uma realidade só configurada historicamente com a decisão judicial contra a qual não cabe mais recurso pelo fato de já ter percorrido os degraus jurisdicionais que ela mesma, a Constituição, oferece, o que não pode deixar de incluir, mesmo que haja filtros - e eles devem existir -, o STF e o STJ, que são integrantes do Poder Judiciário à luz dos inciso I e II do art. 92.

Adiantar-se ao trânsito em julgado para que os recursos extraordinário e especial deixem de existir não se trata de criar um filtro, mas de extinguir a única via de acesso recursal do cidadão a esses tribunais. Quais as regras de calibração? Quais as salvaguardas? Quais os equivalentes funcionais colocados no lugar daquilo que deixará de existir? Quais os canais regedores das excepcionalidades que advirão de uma medida tão drástica? E quanto aos vários direitos fundamentais elencados nesse texto cuja desconstituição reclama o trânsito em julgado da decisão judicial?

A PEC 199, pelo menos até aqui, destrói e não coloca nada no lugar. Na prática, pôs-se fim aos recursos extraordinário e especial. Optou-se por esse caminho enquanto é sabido que medidas de realização da celeridade processual passam pelo uso, por exemplo, da inovação tecnológica como forma de desafogar o Poder Judiciário. Elas podem reclamar reformas constitucionais ou infraconstitucionais. A Emenda Constitucional n. 45/2004 deu provas disso. Essas alterações se deram sem qualquer impedimento.

O nosso modelo de prestação jurisdicional é, a partir da própria Constituição, reparador e transformador, entregue a um povo que em sua história multissecular foi mais intensamente convidado a uma vida com escassez de justiça do que com abundância dela.

Todos devem encontrar na vindicação por direitos, na aspiração por justiça, e na esperança de acesso, mesmo limitado, racionalizado e funcional, a todas as instâncias do Poder Judiciário, a razão de ser do Estado Democrático de Direito.

Trata-se de uma cidadania judicial inerente a democracias jovens que precisam de aportes persistentes da lei e da ordem para constituírem uma cultura de respeito a direitos, cultura essa que qualifica uma sociedade como politicamente civilizada e juridicamente elevada.

Por tudo isso é que, pelo menos a partir do seu texto original, é possível constatar que a PEC n. 199/2019 enfraquece direitos e garantias individuais, fazendo disparar o §4º do art. 60, que diz: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais".

Compreender o instituto do trânsito em julgado como inclusivo, em regra, do STF e do STJ, é uma forma de dizermos que, na vida e no direito, o tempo tem o seu próprio papel. Por isso é perigoso nós nos colocarmos na função de alquimistas dele, tentando encurtá-lo radical e artificialmente para driblarmos os seus efeitos.

Não nos esqueçamos de Couture: "O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração". Um tempo que, como disse, não precisa ser demasiadamente longo nem absurdamente curto. Apenas o tempo justo. E um tempo que, pela Constituição, inclui a possibilidade de enxergar o STF e o STJ como amparo último possível para quem pede a reparação de uma injustiça violadora da Constituição ou das leis do país.

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1 A própria Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942), por exemplo, dispõe, § 3º do seu art. 6º, que "chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso".