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Hora de convocar os "sábios da aldeia"

terça-feira, 10 de março de 2015

Atualizado às 07:02

"Infeliz, porém, é a cidade que, não tendo tido um legislador sábio,
é obrigada a restabelecer a ordem no seu seio. Dentre elas, a mais infeliz é a que está mais afastada da ordem; isto é, aquela cujas instituições se apartam do bom caminho que pode levá-las ao seu objetivo perfeito e verdadeiro - porque é quase impossível que, nessa situação, ocorra algum acontecimento feliz que lhe restabeleça a boa ordem. Contudo, as cidades cuja constituição é imperfeita, mas também tem príncipes bons, suscetíveis de aprimoramento, podem, de acordo com os acontecimentos, chegar à perfeição".

(Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio (1513-1517) - Discorsi - Maquiavel)

Não se analisa e ou se consolida a percepção sobre certo fato histórico em pouco tempo. Ao contrário: "a confortável cadeira do futuro mais distante" é essencial para que serenamente se possa avaliar os fatos históricos e deles se extraia a melhor percepção. Todavia, fatos políticos têm de ser avaliados e analisados em seu centro-motor, naquele determinado momento da história.

Não sei se estou certo, mas a atual crise política está dentre as maiores da brevíssima história republicana brasileira. Dela percebe-se uma evolução a cada dia mais incerta e com revestimentos crescentemente inesperados, sem que se saiba aonde iremos.

A divulgação da "lista do Janot" revela, em um só ato, as entranhas do Poder Político brasileiro, mesmo que lá não estejam todos os "fatos". Podemos até acreditar que os personagens que constam nos hodiernos alfarrábios da PGR não mereçam a sina de culpados, mas se não forem estes parece certo que outros exerceriam o papel de corruptos ou corruptores com enorme afinco.

A coisa toda não está somente ruim, não é difícil perceber. Estamos na hora em que estamos a preencher os espaços políticos com irracionalidade impressionante. Precisamos de, pelo menos, uma dúzia dos Príncipes referenciados na epígrafe de Maquiavel, que inaugura esse artigo, para que possamos voltar ao leito da racionalidade política na direção da perfeição.

As páginas dos jornais deste fim de semana foram particularmente ilustradores dos caminhos que estamos a tomar. Vejamos alguns exemplos extraídos da Folha de S.Paulo nas edições deste fim de semana (7 e 8/3/15).

Carlos Heitor Cony, cuja "escrita acadêmica" não julgo exatamente literária desde os tempos da Revista Manchete, começa o seu editorial citando um nazista, no caso Hermann Göring, o segundo de Hitler, passa pelo holocausto judaico, para desembargar seus poucos parágrafos na análise da presidente da República. Sinceramente...

Paulo Salim Maluf, procurado e com fotografia nas páginas principais do sítio da Interpol, a polícia internacional, sentenciou: "Não estou na lista. Em 48 anos de vida pública, sempre fui correto. Estou com Janot: se alguém deve, tem de pagar". Como diria Sílvio Luiz, "pelo amor dos meus filhinhos..."

Marta Suplicy, prócer do petismo e autora da frase vanguardista-freudiana sobre a situação dos aeroportos brasileiros da era Lula, o internacionalmente famoso "relaxa e goza" e, até há pouquinho, ministra da atual presidente, deu lições de moral política ao governo ao qual serviu e disfarçou por meio de botox léxico-gramatical as suas próprias origens, ações e reputação política. Fôssemos da subespécie dos mamíferos perissodáctilos equus africanus asinus, o popular burro, acreditaríamos nas intenções generosas de Marta, candidata à prefeitura paulistana.

Não paramos por aqui: imortal José Sarney - ele mesmo, o maior maribondo de fogo da Nova República - saiu na defesa de sua filhinha Roseana. Ela merece, pois que não sobreviveria sequer por um dia na penitenciária de Pedrinhas de São Luís, instalação que faz jus à medieval masmorra.

No noticiário, Renan Calheiros, presidente do Congresso Nacional, tentou embolar o meio de campo, esqueceu de suas origens coloridas, seus pagamentos obscuros à amante por meio de empreiteira e os voos "oficiais" com aviões da FAB para recuperar as suas madeixas perdidas ao longo do tempo em visitas a seu médico capilar.

Eduardo Cunha, aquele que voou o Brasil inteiro com aviões da JBS para fazer campanha para a presidência da Câmara dos Deputados, ameaça com retaliações políticas ao governo central. Atinge o governo cravando retaliações que também atingem a testa do povo, do qual a sua Casa, preside.

Tudo isto me pareceu maluco, mas não tinha acabado: veio o cair da noite do domingo e a presidente da República foi à TV para fazer um discurso absolutamente desfocado, defensivo e sem inteligência emocional ou política. A classe média mandou ver na panela e fez um som e uma imagem transmitidos pela GloboNews. A presidente pronunciou um discurso pífio para ouvidos moucos.

Visto o cenário, é quase certo que "não existe pecado abaixo do Equador". Toda a América Latina, México abaixo, está num momento em que explodem denúncias de corrupção. Por aqui não há novidade. Os fatos, ora conhecidos, já eram, de fato, "conhecidos", não é mesmo?

Parece-me que estamos mesmo dispostos a chegar às portas do inferno de Dante antes de acordarmos e combatermos os verdadeiros problemas nacionais. Isso, que esteja claro, não quer dizer que devamos esquecer o que estamos a assistir. Ao contrário: que os culpados pelos desmandos, crimes e falta de ética pública sejam punidos e os recursos roubados restituídos ao Estado, às estatais, ao povo. Alguma redenção cabe à res publica. Todavia, o que mais temo é o jogo não-cooperativo que destrói as possibilidades e potencialidades do país. A República parece perdida.

A economia brasileira carece de correções importantes e profundas na sua condução. Os erros do passado foram obra de analfabetismo primário em matéria econômica. A teoria e a prática econômicas foram ofendidas sem sofisticação, com larga grosseria intelectual e de execução. Apesar de tudo não há uma situação calamitosa muito embora possa chegar lá! A situação é delicada: não precisamos engendrar uma recessão para "sanear" a má condução fiscal e monetária do passado recente. O déficit externo pode ser corrigido pela desvalorização cambial em curso e, estruturalmente e mais relevante, por uma política de industrialização que a médio prazo recoloque o país na estrada da competitividade. O pacote tributário proposto pelo governo é condição necessária, mas requererá reformas mais profundas com vistas ao desenvolvimento, esta condição suficiente para o progresso social.

O cenário atual deveria ser uma espécie de alavanca para a formação de consenso mínimo das forças políticas, econômicas e sociais para que saiamos mais fortes desta crise de governabilidade. A tarefa é possível e somente será mais provável se o que antigamente era chamado de "homens de bem" saírem de sua timidez e começarem a dar propulsão ao debate verdadeiro sobre políticas que engendrem transformações políticas, sociais e econômicas. Precisamos sair da armadilha atual do "narciso ao contrário que cospe na própria imagem" para a formação de uma plataforma mínima de reformas. Diante do dissenso absoluto, um consenso republicano mínimo.

É certo que nos falta liderança e coragem para tal missão. Todavia, cabe perguntar: não há dentre as instituições civis brasileiras nenhuma possibilidade de se formar a força-motriz capaz de nos tirar do caminho do vale-tudo atual? Onde está a universidade brasileira? Onde estão as organizações da sociedade civil, a CNBB, a OAB, a ABI, a FIESP, os sindicatos? E os bons políticos, não existem? Não é possível a pauta republicana? A presidente da República não vai tomar nenhuma iniciativa corajosa e profunda para reformar o país? Vamos continuar assistindo a tudo de forma passiva? Temos de ir ao pior para pensarmos no melhor?

Neste contexto, as passeatas do dia 13 e dia 15 próximos parecem esconder as verdadeiras necessidades do momento. De um lado, os governistas PT/CUT/MST et caterva querem criar um cenário ideologicamente marcante para se confrontar ao sentimento que se generaliza, o descrédito no governo e nas instituições. De outro lado, as forças silenciosas, juntamente com a pálida oposição política formal, vão as ruas a gritar pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, eleita há pouco mais de cinco meses, para criar o fato político que tende a esconder os nossos verdadeiros problemas e dilemas.

Nada disso se constitui em cenário promissor.

Fosse o Brasil uma tribo indígena, parece-me que seria a hora de chamar os "sábios da aldeia" que pudessem olhar para os problemas com os olhos voltados para o futuro e com a experiência do passado. O Brasil merece mais que esta calamidade sem fim que muitos creem ser útil aos inconfessáveis interesses privados, cujo proselitismo enganoso prega como se público fosse.