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A desunião europeia teve uma saída. E agora?

terça-feira, 28 de junho de 2016

Atualizado às 09:33

A escolha referendada pelo povo do Reino Unido em relação à saída da União Europeia (UE), denominada de Brexit, não é apenas fato historicamente marcado, mas é espécie de "sinal dos tempos". Isso porque as consequências do feito popular ilustra a crise mais profunda e consequências mais incertas, além daquilo que se comenta no tal do mercado e na mídia. Assim sendo, não cabe aqui tentar tecer os comentários comum aos "adivinhos", mas apenas registrar aspectos conjunturais e, sobretudo, estruturais que nos parecem relevantes.

Vale dizer que não nos parece que, até mesmo, a condução cuidadosa do divórcio britânico (seja em termos de prazos, seja em termos de forma) possa minorar substancialmente o advento de um período mais turbulento na Europa e nos países centrais da economia mundial com efeitos diferenciados dentre os mais pobres como é o caso de nosso país.

Vejamos alguns dos efeitos e aspectos estruturais que, a nosso ver, merecem reflexão e acompanhamento por parte dos agentes e analistas da cena presente:

1) A formação da UE per se é arriscada, pois se trata de criação que intrinsicamente altera a visão clássica da administração da política internacional, baseada nos Estados-Nação. Logo, há um conflito subjacente entre formas políticas suportadas por estruturas internas e externas aos países-membros da União Europeia frente ao resto do mundo. Com efeito, aos interesses paroquiais e específicos de cada país e do próprio Reino Unido, em particular, se junta a dificuldade, digamos, "natural", de se criar a nova espécie de "Estado Supranacional". Aqui cabe especular se e quando a UE será capaz de acelerar as reformas necessárias ao aprofundamento (ou não) dessa criação;

2) Em relação ao item anterior, penso que haverá algum aprofundamento da "criação" da UE, mas não em larga envergadura nos próximos cinco anos. Mudanças, tais como, em relação às políticas de imigração, tratamento do assunto dos refugiados (financiamento e adesão à recepção destes em cada país), relação entre os países endividados (Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda) e os países ricos, etc. podem avançar mais celeremente (um a dois anos). A manutenção da coesão básica da UE requererá concessões de todos os lados e esse é o amálgama de curto prazo;

3) No que tange ao aprofundamento de temas mais estruturais não me parece que haverá avanço célere. Aqui cabe destacar a união fiscal (emissão de dívida supranacional) e a adoção de parâmetros rígidos no que tange ao orçamento consolidado dos países são temas muito penosos, pois representarão não apenas o compartilhamento de recursos fiscais, mas o compartilhamento da própria riqueza no dizer sábio de Thomas Piketty. Países como Alemanha, Suécia, Dinamarca e França teriam de aceitar abdicar de níveis de endividamento mais baixos para tomarem recursos com mais riscos (country risk) junto ao mercado financeiro. Difícil que isso ocorra no curto prazo sem fato político equivalente (o que a Brexit não é);

4) Vale ressaltar que a união orçamentária e financeira requereria nível mais democrático das instituições europeias. Afinal de contas, os parlamentos existem, dentre as razões mais precípuas a justificá-los, para estabelecer o orçamento (onde e quando gastar e arrecadar). Ora, isso mexe intimamente com o sentimento do cidadão sobre quem elege, como elege e para que elege o seu representante em Bruxelas, capital da Europa Unida, para deliberar sobre o orçamento. Em tempos em que Virginia Raggi é eleita prefeita de Roma por parte de novo partido liderado por um humorista, a Espanha não consegue formar um governo ideologicamente uno, os extremos políticos se engrandecem na França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Áustria, Polônia, dentre outras constatações factuais, é difícil acreditar que se possa edificar um sistema político suficiente e forte para unificar a política fiscal em bases democráticas. Ao contrário: é a crise profunda da democracia representativa que está a assentar a perspectiva de que os riscos presentes possam ser ainda mais estimulados na UE;

5) Embora a UE veja a saída britânica do bloco como ameaça à sua unidade, vale dizer que dentro do bloco europeu os países se entreolham com desconfiança relativamente às posições que tem de tomar em termos de política interna e externa. Nesse cenário não será difícil para o próprio Reino Unido (15% do PIB da UE) engrandecer as contradições intestinas da UE, bem como a Rússia (interessada em expandir a sua influência sobre os países eslavos e os antigos membros da URSS), a China (que tem uma política multilateral na Europa e não com a UE), os EUA (que negociam um largo acordo comercial com a UE) e, até mesmo, países ricos como o Canadá e Japão que tem interesses comerciais e financeiros diferenciados entre os países-membros da UE;

6) O crescimento dos partidos extremistas na Europa é impressionante e, apesar dos alertas generalizados, esse processo de radicalização segue em franca evolução. Conceitualmente, é de mesma natureza do que se viu no primeiro quarto do século XX, da Marcha de Roma de Mussolini aos putsch de Hitler. Obviamente, a intensidade é menor e os aparatos democráticos são mais sólidos. Todavia, não é um processo que possa ser desprezado;

7) O processo de radicalização política ocorre por força de substancial aumento da desigualdade dentro dos países-membros da UE, incluso aí, o Reino Unido. É essa diferenciação acentuada entre classes sociais com renda cada vez mais desigual num contexto de vasta imigração do Leste Europeu e dos países mulçumanos do Oriente Próximo, que motiva a radicalização da "política formal", acima comentada, bem como a "informalização da política" via redes sociais e manifestações cada vez mais fragmentadas de segmentos sociais. Além de abrir espaços para personagens da estirpe de Donald Trump e os populistas que infestam a política dita moderna;

8) Especificamente para o Reino Unido, os riscos não serão nada desprezíveis. A própria união do bloco britânico está sob judice, com a Escócia à frente demonstrando que a escolha foi mais inglesa e galesa que escocesa, bem como, os imigrantes preocupados com o desenrolar da história. Ademais, é bom lembrar que cerca de 80% do PIB do Reino Unido é da área de serviços. Nesse contexto, a retirada de benefícios tipicamente europeus aos bancos ingleses e escoceses e a possibilidade de criação de barreiras por parte da UE aumentarão a volatilidade dos mercados, em geral, e da libra esterlina, em particular. Além disso, a mudança para pior do parâmetro de risco do Reino Unido aumentará o custo de captação do Erário inglês e pode encurtar prazos para o financiamento do país no campo externo;

9) Finalmente, o efeito para o Brasil. Aqui cabe que tenhamos a serenidade em reconhecer que os efeitos da desunião da Europa são tão incertos por lá que pouco se pode dizer por aqui. O certo é que a fragilidade interna do Brasil, a falta de consenso das elites em relação ao futuro do país, a fraqueza institucional do Estado na execução de políticas públicas, inclusa a externa e a falta de estratégica econômica tornam o Brasil mera cauda oscilante de tudo que pode acontecer depois desse fato, cuja consequência vão além do curto prazo.

A saída do Reino Unido é desses "detalhes acidentados" da história que podem mudar substancialmente o curso da economia, da política interna dos países e o concerto internacional das nações. O tempo dirá o que se seguirá e o que se escreve é parte da especulação necessária e flutuante sobre o futuro.

Certo mesmo é que as liberdades econômica, social e, sobretudo, política, estão cada vez mais cercadas por extremos minoritários que pouco a pouco estão a seduzir as multidões. A desigualdade social tem sido o motor desses radicalismos e o Estado não tem sido bom instrumento para alterar o curso dessa tendência. A saída do Reino Unido deixa uma "minoria" de 48,5% dos que votaram inquietos com o que os 51,5% restantes fizeram. O mundo olha para tudo isso e ainda não sabe ao certo o que pensar sobre esta maioria tão ínfima e essa minora tão enorme.