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A geopolítica do vírus

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Atualizado às 09:22

Há chance concreta de que a política americana
ganhe mais força na direção do binômio: populismo-nacionalismo

A covid-19 é extremamente virulenta em relação à humanidade e os efeitos da pandemia que se propagaram no mundo são impressionantes do ponto de vista sócio-econômico. Não sabemos ainda os meios pelos quais os impactos sanitários serão saneados e, quiçá, os riscos sejam extintos. Os cálculos iniciais dos economistas no que diz respeito à atividade econômica já indicam que o PIB dos países da OCDE deve cair na ordem de 1,0%-1,5% neste ano. Ademais, os efeitos colaterais sobre a demanda, o crédito mercantil e os ativos financeiros, ainda carecem de avançada e acurada avaliação da parte dos policy makers. Vale relembrar que essa inesperada, mas pressentida crise, afeta os fatores de produção de forma grave, os quais estão preservados em larga medida. O "capital de giro", de indivíduos a empresas, é a variável mais preocupante e que tem de ser "preenchida" pelos recursos dos erários e pela injeção direta de moeda no sistema financeiro. Observado analiticamente à distância, esse vírus parece vencível em prazo razoável. De perto, o vírus oferece uma perspectiva assustadora.

A covid-19, além das variantes sanitárias e econômicas, produzirá outras importantes alterações mais duradouras nos próximos anos, quiçá na década. Refiro-me à geopolítica e às relações internacionais. A crise demonstrou a interdependência dos países, bem como, a vulnerabilidade, sobretudo do Ocidente em relação à uma variável nada relacionada com a economia e às potencialidades militares: o populismo-nacionalismo.

O contexto atual das relações internacionais está marcado pelo combate ao globalismo, especialmente por parte dos EUA, na figura de seu presidente, anunciado em seu discurso inaugural: America First. Concretamente, essa nova ideologia se traduziu no ataque frontal aos acordos internacionais de comércio, à Organização Mundial do Comércio (OMC), bem com, pela adoção do protecionismo ao mercado doméstico como meio de estímulo à produção interna e à disponibilidade maior de empregos. Especificamente, a política estadunidense resultou em aberta "guerra comercial" com a China, além de medidas legais na Jurisdição local e internacional, contra o que seria a "concorrência desleal" chinesa. Afora isso, os norte-americanos, apontaram para as políticas cambiais dos países, incluso o Brasil, como parte dessa "deslealdade" comercial contra os interesses nacionais da América. Vale notar que o presidente Donald Trump, enquanto candidato em 2016, não foi levado à sério em suas promessas de natureza populistas-nacionalistas, um engano custoso do ponto de vista estratégico.

Também é interessante sublinhar que esse novo cenário se constituiu em afronta inesperada às instituições criadas pós-II guerra mundial que garantiam a presença hegemônica dos EUA na cena internacional, mas por meio de instituições e diplomas, digamos, "estabilizadores" desse poder. Não à toa, os aliados permanentes e históricos da maior potência do mundo ficaram de fora do teatro de operações dos EUA.

Agora o que há é o confronto direto de interesses do capitalismo americanos, com revestimentos populistas no que diz respeito à classe trabalhadora, relação ao "capitalismo estatal" da China que deixou de ser "aliada formal" para ser ameaça de longo prazo à estabilidade política e econômica norte-americana. Morriam assim os clássicos pressupostos liberais da política externa dos EUA, cuja atuação usualmente foi realizada por meio de "pactos coercitivos" e não pela persuasão estratégica e militar.

A China também se vê diante de um novo cenário. Da liberalização econômica, gradual e segura, de Deng Xiao Ping nos anos 1980, inclusive por meio do pedido de adesão ao GATT (atual OMC) em 1986, até a integração plena às cadeias de produção mundiais nos anos 2000, o gigante asiático vivencia o momento em que enfrentará os EUA em novo ringue: a tecnologia. O paradoxo desse quadro é que o desenvolvimento tecnológico chinês se fez com investimentos estrangeiros (e inversão posterior chinesa), majoritariamente norte-americanos, de US$ 200 bilhões por ano na década passada. Além disso, o acesso relativamente aberto aos principais mercados mundiais permite que a agregação de valor (via tecnologia) seja feita com elevado volume das transações (exportações) o que dilui os elevados custos de inovação e desenvolvimento de novas tecnologias. Toda essa nova conjuntura atenta contra os interesses dos EUA. Com efeito: a "guerra comercial" é a "comissão de frente" na estratégia de combate à possível superação dos EUA como força-motriz da criação de tecnologias, algo estratégico para o exercício de seu poder coercitivo e persuasivo.

Na síntese acima feita vale citar dois dados adicionais muito representativos: a pesquisa científica na China representa hoje 2,2% do PIB (nos EUA, 2,7%). Era 0,5% em meados dos 1990s (o Brasil em 2014 investia 1,3%); a China (por meio de suas estatais) detém o capital majoritário de quase 50 portos em 40 países, um ganho logístico evidente, cujos benefícios serão ainda mais acentuados no longo prazo.

Voltemos à covid-19.

O presidente Donald Trump chamou a covid-19 de "vírus chinês" nos primeiros dias após ter ficado claro que a crise sanitária originária da China tinha se tornado uma pandemia. Essa forma e ênfase do presidente norte-americano não foi ocasional e muito menos desprovida de significado político. Claramente, o presidente americano estava enquadrando e esquadriando o fato novo na perspectiva de suas políticas contrárias aquilo que alguns ideólogos denominam de globalismo.

Diante da recessão e do cenário eleitoral de novembro próximo, quando Trump disputará a reeleição, não há razão e nem evidência de que a política estadunidense sofrerá alteração para o sentido anterior, a globalização. Ao contrário, há chance concreta de que a política americana ganhe mais força na direção do populismo-nacionalismo representado por Trump. O coronavírus é um argumento que se tornou chave na propagação ideológica daquilo que propõe e implementa a atual administração americana.

São três as razões que destaco, dentre muitas, para que possamos acreditar no aprofundamento da atual política dos EUA: (i) o coronavírus evidenciou diferenças "civilizatórias" com a China, destacadamente, as questões sanitárias e a transparência das informações e liberdade de expressão; (ii) a política de isolamento sanitário reforçou as variáveis internas dos países em detrimento à política de colaboração internacional e (iii) o fato de as principais economias ocidentais saírem mais enfraquecidas que a China dessa crise.

Mesmo a derrota de Trump na arena eleitoral, mantida a maioria republicana, não retirará o viés da política externa que ele fincou junto à sociedade norte-americana. Sobretudo a classe média, percebe que a América está em rota de decadência frente ao gigantismo chinês. Por diferentes razões, a sociedade de lá, age (i) como nos anos 1960 em relação à corrida espacial (quando a URSS estava à frente dos EUA no início da década), (ii) como nos 1970 em relação à corrida armamentista (a URSS expandiu a sua zona de influência nas bordas de suas fronteiras) e nos anos 1980 quando Reagan enfrentou o socialismo como uma luta de valores. Agora a China desperta a visão, muito mais concreta, de que os EUA se tornarão mais dependentes da evolução tecnologia chinesa e que os investimentos americanos na China gestaram um problema geopolítico incontornável.

Por fim, vale ressaltar que as empresas americanas já estão revisando suas estratégias de suprimento e manufatura, reduzindo a dependência da China e aumentando o papel da Índia, países menores do sudeste asiático (como o Vietnã) e, em menor medida, o México. Ou seja, as propostas nacionalistas de Trump podem não revigorar a taxa de investimento dentro dos EUA (o que seria "patriótico"), mas aumentaram os desembolsos de capital para fora da China.

A reação estratégica chinesa virá. Até agora, Xi Jiping optou por trabalhar taticamente: ceder peremptoriamente para colocar os burocratas de volta à mesa de negociação, estabelecer acordos provisórios e propagar no âmbito microeconômico as consequências da política de Trump para pressionar o governo americano via o establishment econômico do país.

Para países periféricos como o Brasil, a política externa e comercial terá de se adaptar ao novo cenário com uma diplomacia mais capaz de atender ao momento. São muitas as consequências estratégicas. Aqui, para finalizar, cito apenas uma: trafegar entre blocos econômicos e relações multilaterais exigirá muito mais inteligência diplomática e organização política interna. Para tanto, traços ideológicos muito nítidos não são bons ingredientes para esse novo momento da política internacional.