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Direito, bioética e pandemia da covid-19

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Atualizado às 10:42

Hoje começo mais um desafio: a coordenação da coluna "Direito e Bioética", aqui no Migalhas. Para mim, trata-se de uma oportunidade única de juntar os dois mundos em que eu transito, já há muito tempo.

Sou advogada, formada em Direito pela PUCMinas, e na minha graduação tive a honra de ser monitora e orientanda de pesquisa e monografia da professora Maria de Fátima Freire de Sá. Fiz meu mestrado em Direito Privado também na PUCMinas, orientada pelo professor Walsir Edson Rodrigues e minhas pesquisas sempre foram voltadas para a área da saúde, especialmente sobre fim de vida. Como advogada, iniciei minha carreira no Direito das Famílias e das Sucessões, no escritório da minha principal inspiração profissional: a professora Ana Carolina Brochado Teixeira. Mas pouco depois de concluir o meu mestrado, comecei a me interessar pelo Direito Médico e pela Bioética, e os artigos e livros que eu escrevia: eram muito teóricos, completamente distantes da realidade dos profissionais de saúde no Brasil.

Afastei-me, momentaneamente, da advocacia. Por sugestão do oncologista mineiro Munir Murad, e 2012, fui parar no doutorado da Faculdade de Medicina da UFMG, dentro do programa de Infectologia e Medicina Tropical, na linha de Bioética, sob orientação do professor Dirceu Bartolomeu Greco e co-orientação do professor Unaí Tupinambás. No doutorado, percebi o quanto o Direito e a Bioética se conectavam. Tive certeza de que eu queria advogar para profissionais e instituições de saúde e percebi que eu queria continuar pesquisando, mas queria fazer pesquisas que realmente pudessem impactar a prática destes profissionais e instituições. Assim, iniciei minha advocacia na área de Direito Médico e Bioética e continuei aprofundando meus estudos, escrevendo, publicando e palestrando.

Em março de 2020, a pandemia me fez perceber que era preciso fazer mais: comecei a usar minhas redes sociais para publicar reflexões sobre Boética e notei o quanto era necessário aproximar a Bioética do Direito, demonstrando que a interdisciplinariedade entre essas duas áreas é muito maior do que o que, comumente, é tratado no biodireito.

O Direito do futuro será, sem dúvidas, mais transdisciplinar e coletivo do que tem sido. As soft skills serão o principal diferencial do jurista, que precisará compreender que o Direito não resolve todas as mazelas da sociedade e que, possivelmente, não há solução integral para elas, mas há caminhos a serem traçados e a Bioética pode - e deve - ser vista como a ponte que nos aproxima.

É nesse contexto que surge essa coluna. Aqui, quinzenalmente, às segundas, você encontrará juristas e bioeticistas que, com suas reflexões, tentarão jogar luz às nossas sombras e demonstrar a interdependência entre o Direito e a Bioética. Como bioeticista, fui discriminada por ser formada em Direito. Como jurista, já fui discriminada por ancorar minhas pesquisas na Bioética. Essa coluna é um grito pela inclusão, a demonstração de que Direito e Bioética não são excludentes, muito antes pelo contrário, se inter-relacionam e se complementam. Começo essa coluna com um texto meu, mas vocês encontrarão por aqui poucos textos escritos por mim, ou apenas por mim, pois a minha ideia é realmente, dar voz àqueles que também tem um olhar bioético para o Direito. Sejam todos bem-vindos!

***

Nas origens da bioética estão as pesquisas com seres humanos realizadas durante a Segunda Guerra Mundial, a descoberta do DNA, do transplante de órgãos, das máquinas que substituem funções orgânicas, o famigerado caso Tuskegee e a discussão sobre alocação de uma máquina de hemodiálise para centenas de pacientes em um hospital em Seatlle.

Desde a segunda metade do século XX, a "ponte para o futuro" de Potter, tem se firmado como um espaço de discussão diante dos desafios que a biotecnologia tem imposto à humanidade. A primeira edição da Enciclopédia de Bioética, em 1978, conceituava a Bioética como "O estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada à luz de valores morais e princípios". E, apesar de em 2020 já colecionarmos dezenas de conceitos, a Bioética não perdeu sua essência.

Portanto, ouso dizer que desde seu surgimento a Bioética nunca foi tão essencial para a Humanidade. Os dilemas enfrentados com a pandemia são completamente permeados por questões bioéticas e, ainda que a nós - bioeticistas, não caiba o papel de protagonistas no enfrentamento do vírus Sars-CoV-2 e da doença Covid-19, cabe a nós o importante papel de ajudar a Humanidade a encontrar caminhos éticos diante de tantas possibilidades atrativas de buscarmos os caminhos mais curtos, mais fáceis e menos equânimes.

Entendo ser importante, aqui, apresentar um panorama das questões bioéticas que emergiram com a pandemia, em dez pontos, sem qualquer pretensão de ser exaustiva na apresentação e no debate de cada um deles, o que pretendo é apenas jogar luz nessas questões, possibilitando que cada leitor faça suas reflexões:

(i) a mudança forçada da relação entre médico e paciente, que agora precisam utilizar de dispositivos tecnológicos para realizarem consultas e prescrições. O toque deu lugar à tela, mas o cuidado e a confiança continuam precisando ser o centro dessa relação.

(ii) historicamente, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) sempre foi ligado à Bioética e sempre esteve na vanguarda das discussões das questões éticas e bioéticas, mas a postura política do CFM diante da pandemia fez com que esse importante órgão perdesse o papel de protagonismo e que as sociedades médicas se unissem.

(iii) a contemporaneidade nunca precisou tanto das pesquisas clínicas. Precisamos de fármacos e de vacinas que nos protejam do Sars-CoV-2 e que nos curem da Covid-19, mas precisamos também entender que a Ciência tem seu próprio tempo e que nos apressarmos com essas descobertas, abrindo mão dos parâmetros seguros das pesquisas pode significar um dano maior.

(iv) a pandemia nos forçou a encarar nossa finitude. Se, outrora, a morte era algo que pertencia ao outro, agora ela à espreita de cada um de nós e precisamos de um vírus, invisível aos nossos olhos, para nos lembrarmos de nossa pequenez frente ao Universo, o que nos força a redefinir o conceito de vida boa e, também, de morte digna.

(v) o impacto mundial da Covid-19 nos dá uma falsa sensação de que se trata de uma doença democrática. A verdade é que, apesar de todos os povos serem afetados pela Covid-19, as populações vulneráveis se tornam hipervulneráveis na pandemia. Povos indígenas, crianças, população de rua, mulheres, negros, população LGBTQI+, moradores de comunidades carentes, imigrantes, refugiados, pessoas com deficiência e idosos têm sido severamente afetados pela pandemia e, cada um desses grupos demanda medidas diferentes para proteção de seus interesses, ainda mais complexa as ações de enfrentamento.

(vi) as discussões sobre políticas de rastreio para que evitemos novas ondas de contágio já começaram nos EUA e na Europa e, certamente, chegarão aqui em breve. Será preciso que nos debrucemos sobre o tema a fim de traçar limites éticos e jurídicos, especialmente diante da Lei Geral de Proteção de Dados.

(vii) a escassez de recursos de saúde foi escancarada no Brasil e a necessidade de criar parâmetros objetivos para alocação deles tem evidenciado a discriminação e o etarismo de nossa sociedade.

(viii) a necessidade de isolamento social criou uma falsa dicotonomia entre salvar vidas x salvar a economia, o que divide o país e nos distancia em um momento em que deveríamos nos unir.

(ix) o subfinanciamento do SUS e a distribuição desigual entre as regiões do país dos recursos do SUS aumentaram as mortes e escancaram a necessidade de remodelagem do sistema.

(x) a proposta de regulação pelo SUS de todos os leitos de terapia intensiva, privados e públicos, evidenciou a necessidade de repensarmos o sistema público e o sistema privado de saúde no Brasil.