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German Report

Decisões do STJ e STF alemão.

Karina Nunes Fritz
A coluna German Report recebe o contributo de Yuri Schramm, jovem advogado do escritório Machado Meyer, em São Paulo, especialista em propriedade intelectual. Schramm é mestre em Direito Civil e doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Durante o doutoramento, o autor passou várias temporadas na Alemanha estudando, em perspectiva comparada, o direito de propriedade intelectual alemão, denominado Recht des geistigen Eigentums. Ele concluiu um Master of Law and Business na Bucerius Law School em Hamburg (Alemanha), onde também fez o curso Licensing Transactions in Intellectual Property, em parceria com a UC College of the Law San Francisco (Califórnia, EUA), tendo estadia no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht como pesquisador visitante, onde levantou rica bibliografia alemã para a tese atualmente realizada sob orientação do renomado Prof. Eduardo Tomasevicius Filho. Nesse texto, o autor analisa importante julgado no qual a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - afirmou que o fim do contrato de licença principal não põe fim automaticamente ao contrato de sublicenciamento. Confira! * * * Qual o impacto do fim de um contrato de licença de direitos autorais sobre uma sublicença deste derivada? Se for seguido o princípio constante do título deste texto, o fim do contrato de licença principal deveria ocasionar também o fim do contrato de sublicenciamento.  Todavia, a jurisprudência do Bundesgerichtshof (BGH) nos mostra que o problema não deve ser resolvido de maneira tão simplista. Em uma sequência de decisões iniciada em 2009, o BGH sopesou os interesses dos envolvidos na relação de licenciamento e sublicenciamento e, com fundamentação dogmática, privilegiou a proteção ao sublicenciado.  No presente artigo iremos analisar a primeira decisão paradigmática do BGH sobre o assunto - o caso Reifen Progressiv - e compará-lo com a respectiva situação no Brasil.  O caso Reifen Progressiv - I ZR 153/06 O autor da ação (o "Licenciante") desenvolveu um software chamado Reifen Progressiv destinado a comerciantes de pneus e, posteriormente, licenciou-o exclusivamente a uma sociedade (a "Licenciada") que, por sua vez, sublicenciou-o sem exclusividade à ré (a "Sublicenciada").  Posteriormente, a Licenciada tinha encerrado suas atividades em que utilizava o software e, em seguida, teve sua falência requerida, pelo que o Licenciante execeu o direito previsto no § 41 da Lei de Direitos Autorais Alemã (Urheberrechtsgesetz - UrhG), que consagra ao titular o direito de revogação da licença por ausência de uso pela Licenciada - uma espécie de caducidade, que não tem previsão similar em nossa Lei de Direitos Autorais. Como se tratava de uma licença exclusiva, o Licenciante tinha todo o interesse em requerer sua revogação, considerando que, dada a situação concreta da Licenciada, não havia indícios razoáveis de que ela pudesse contornar a situação que ocasionou a caducidade.  Com o fim da licença principal, o Licenciante esperava que a sublicença também se encerrase, pelo que ajuizou uma ação requerendo que a Sublicenciada parasse de utilizar o software, bem como arcasse com indenização baseada no § 97 da UrhG, isto é, o benefício econômico que a Sublicenciada obteve como resultado da violação ao direito do Licente ao usar o software sem a respectiva a licença ou, não sendo possível ou difícil sua mensuração, o valor razoável que a Sublicenciada teria que ter pago ao Licenciante para obter a licença do software, ou arcasse com a restituição do enriquecimento sem causa (§ 812 I, primeira frase, segunda hipótese, do BGB). Não obteve sucesso na primeira instância, nem na segunda, pelo que recorreu ao BGH.  A decisão do BGH O BGH confirmou o entendimento do Tribunal a quo (Berufungsgericht), esclarecendo que não houve violação pela Sublicenciada dos direitos de autor do Licenciante, pois uma sublicença não exclusiva não se extingue automaticamente com o fim da licença principal exclusiva, pelas razões detalhadas abaixo e, ademais, seus interesses já estariam satisfeitos pelo fato de a revogação da licença principal ter lhe possibilitado voltar a explorar patrimonialmente o software.  Um parêntese é necessário - na Alemanha e na prática anglo-saxã é comum diferenciar a exclusividade de uma licença em dois níveis: sole ou exclusive. Na primeira hipótese, o licenciante ou titular do direito de propriedade intelectual não fica proibido de explorar patrimonialmente o direito licenciado, como ocorre na segunda hipótese, sendo esta a situação do caso em comento, pelo menos até o momento da revogação da licença por caducidade.  O BGH reconheceu que a sobrevivência ou não de uma sublicença (Enkelrecht) no caso de expiração da licença principal (Tochterrecht) era tema controverso. A Corte acentuou que a favor do fim do Enkelrecht existem robustos argumentos.  Em primeiro lugar, como o direito de autor e a proteção ao autor são regidos pela ideia de vinculação à finalidade (Zweckbindungsgedanke), o autor não transfere mais direitos do que o necessário para cumprir a finalidade do contrato referente à transação, conforme disposto no § 35 V da UrhG. Logo, com o fim do contrato, os direitos dele derivados, que foram objeto de transferência, são revertidos para o autor.  Em segundo lugar, a continuidade dos direitos de uso derivados enfraquecem o direito do autor em relação aos licenciados expressamente autorizados, pois aquele não poderia mais conceder uma licença exclusiva a qualquer terceiro já que o sublicenciado continuaria com o direito de uso, nem teria o direito de negociar diretamente os termos de uma licença com o sublicenciado.  Tendo em vista que ninguém pode transferir mais direitos do que tem, nem pode haver aquisição de boa-fé no campo dos direitos autorais, o fim do principal (Tochterrecht) ocasionaria automaticamente o fim do acessório (Enkelrecht).  Por fim, o sublicenciado não seria necessária e injustificadamente prejudicado pelo fim do seu Enkelrecht, pois (a) não seria obrigado a pagar o preço de uma sublicença que não existe mais; (b) poderia pedir indenização ao sublicenciante ou (c) ser protegido por disposições contratuais sobre o tema (por exemplo, se o contrato entre licenciante e licenciado prever expressamente que o fim do Tochterrecht não causa o fim do Enkelrecht).  Apesar desses argumentos, a Corte afirmou que várias razões falam à favor da sobrevivência do Enkelrecht, ou seja, do direito à sublicença do sublicenciado, mesmo diante da expiração do direito à licença principal.  Segundo o BGH, a proteção dos interesses do sublicenciado deveria prevalecer no caso concreto, pois aquele não pode perder seu direito de uso por circunstâncias que não lhe são imputáveis, nem sofrer prejuízos consideráveis decorrentes, por exemplo, de ficar impedido de recuperar as despesas em que incorreu para adquirir e preparar a exploração econômica do direito autoral.  Para a Corte, a vinculação à finalidade (Zweckbindung) serve apenas para explicar uma reversão ao autor do direito de uso que é objeto do contrato entre o autor e o licenciado, justamente pela relação contratual ter chegado ao fim. Mas a sublicença é baseada em um contrato diferente, celebrado entre o licenciado e o sublicenciado. Assim, com base na mesma ideia de vinculação à finalidade, o segundo contrato tem uma finalidade diferente daquela do primeiro contrato celebrado entre o autor e o licenciado, pelo que o fim de tal contrato não pode acarretar, automaticamente, o fim do contrato celebrado entre o licenciado e o sublicenciado, pois isso não significa que sua finalidade foi atingida.  O Tribunal também ressaltou que o fato de ninguém poder transferir mais direitos do que tem e de não haver aquisição de boa-fé de direitos autorais, não gera a invalidade das disposições sobre o direito autoral antes do fim do Tochterrecht, pois o Enkelrecht é juridicamente autônomo e independente em relação àquele por incidência do princípio da separação entre negócios jurídicos obrigacionais e negócios jurídicos de disposição (Trennungsprinzip).    Tal princípio faz parte da espinha dorsal do direito privado alemão e reflete, com maior precisão, a summa divisio do direito privado patrimonial. Sem maiores pretensões de aprofundamento, dada a finalidade e o formato do presente texto, esse princípio separa os negócios jurídicos de direito das obrigações (com todas suas características, como relatividade entre as partes e atipicidade) dos negócios jurídicos de direito reais (também com todas suas características, como efeitos perante terceiros e numerus clausus).  Exemplo clássico é a compra e venda: no contrato de compra e venda (negócio jurídico obrigacional) previsto no 433 I e II do BGB, o vendedor se obriga a transferir a propriedade da coisa, enquanto o comprador se obriga a pagar o preço (isto é, a também transferir sua propriedade). Contudo, apenas o negócio jurídico obrigacional não é suficiente para a execução das transferências da propriedade, pelo que se faz necessário o negócio jurídico de disposição de transferência da propriedade previsto no § 929, S. 1 do BGB (Übereignung), por meio do qual as efetivas transferências da propriedade ocorrem. Ou seja, o princípio da separação entre negócios jurídicos obrigacionais e negócios jurídicos de disposição (Trennungsprinzip) incide quando do licenciamento de direitos autorais. Diante disso, o § 31 da UrhG ao tratar das licenças de uso, está tratando de negócios jurídicos de disposição (Verfügungsgeschäft) separados do negócio jurídico obrigacional, enquanto este negócio jurídico obrigacional subjacente é regido pelas disposições de direito das obrigações e dos contratos constantes do BGB.  Nesse sentido, na visão do Bundesgerichtshof, no § 33 da UrhG reside um dos principais fundamentos legais e dogmáticos para a sobrevivência do Enkelrecht, pois a norma prevê expressamente que as licenças de uso, exclusivas ou não, continuam a produzir efeitos mesmo se o licenciante perder seu direito.  Diante disso, nessa situação de sublicenciamento de direitos autorais, existem pelo menos 4 (quatro) negócios jurídicos diferentes: (i) o negócio jurídico obrigacional de licenciamento celebrado entre o autor e o licenciado, regido pelas regras de direitos e obrigações e contratos do BGB; (ii) o negócio jurídico de disposição de licenciamento celebrado entre o autor e o licenciado, regido pelas regras do § 31 e seguintes da UrhG; (iii) o negócio jurídico obrigacional de sublicenciamento celebrado entre o licenciado e o sublicenciado; e (iv) o negócio jurídico de disposição celebrado entre o licenciado e o sublicenciado.  Ao se separar cada um dos negócios no caso concreto, nota-se que a caducidade atinge diretamente o negócio jurídico de disposição de licenciamento (ii). Pela regra do § 33 da UrhG, os negócios jurídicos (iii) e (iv) não são prejudicados.  Além disso, a revogação por caducidade, disposta no § 41 da UrhG, tem por finalidade garantir que o autor não veja prejudicados seus direitos morais de fazer conhecida sua obra, nem seus direitos patrimoniais de explorá-la economicamente. Por isso requer-se, para o exercício da revogação por caducidade, que a licença de uso seja exclusiva (não cabe quando a licença é sole ou não exclusiva), pois quando a licença é exclusiva, o autor se vê prejudicado em relação aos seus referidos direitos morais e patrimoniais se o licenciado não utilizar o direito objeto da licença, já que este também não poderá ser exercido pelo autor (que se vê restrito na utilização de sua obra pelo direito de exclusividade que concedeu ao licenciado).  A Corte também acentuou que o § 41 V da UrhG se limita a dispor que, mediante a revogação por caducidade, a licença expira como um todo ou apenas deixa de ser exclusiva, a depender da opção do titular do direito (sem prejuízo de a opção pela consequência da caducidade ser determinada previamente pelas partes no contrato). Dessa forma, a norma nada diz acerca dos efeitos da revogação por caducidade sobre eventuais sublicenças, pelo que uma interpretação plausível deste dispositivo seria que, com a revogação por caducidade de uma licença exclusiva, as sublicenças não exclusivas desta derivadas continuariam eficazes.  Ou seja, pelo espírito da regra, que não faz distinção entre uma licença exclusiva concedida pelo autor ou por um licenciado exclusivo, se houver sublicença exclusiva, esta deverá ser alcançada pela revogação por caducidade. Mas se a sublicença for simples, o autor não terá seus direitos morais e patrimoniais prejudicados, pois não estará impedido de tornar sua obra conhecida, nem de explorá-la economicamente.  Ademais, pelo § 35 I, primeira frase, da UrhG, o autor precisa consentir para que o licenciado exclusivo possa conceder sublicenças. Tendo o autor concordado com o sublicenciamento quando da vigência do Tochterrecht, precisará aceitar que, havendo a reversão, seu direito estará onerado com licenças de uso não-exclusivas, disse o BGH.  Dessa forma, a Corte concluiu que a revogação por caducidade de uma licença de direito autoral exclusiva não ocasiona automaticamente o fim de uma sublicença de direito autoral não exclusiva daquela derivada.  Considerações finais A partir dessa decisão, tornou-se regra na prática contratual alemã prever expressamente no contrato referente ao licenciamento que o fim da licença principal acarretaria automaticamente o fim da sublicença. Isso vincula automaticamente os distintos negócios jurídicos, fazendo o sublicenciamento depender da licença.  Aqui no Brasil essa preocupação não é necessária, pois não há na nossa Lei de Direitos Autorais disposição similar àquela do § 33 da UrhG. Ou seja, apesar de no direito privado patrimonial brasileiro também haver o princípio da separação (basta pensar na necessidade de tradição ou registro para a transferência da coisa), aqui vigora o princípio da causalidade.  Sobre o tema, outro parêntese é necessário. O sistema de direito privado patrimonial do BGB é regido pelo princípio da abstração (Abstraktionsprinzip). Isso significa que eventuais vícios do negócio jurídico obrigacional, via de regra, não afetam o negócio jurídico de disposição. Atualmente existem regras e jurisprudência excepcionando a aplicação a ferro e fogo desse princípio, mas a consequência em uma compra e venda, por exemplo e a princípio, seria de que se o contrato for nulo, o negócio jurídico de disposição não seria, de maneira que a transferência da propriedade permaneceria, surgindo ao prejudicado uma pretensão por enriquecimento sem causa contra o novo proprietário.  Contudo, o sistema de direito autoral alemão é regido pelo princípio da causalidade (Kausalitätsprinzip), justamente com base na noção já mencionada acima de vinculação à finalidade, que o permeia. O princípio da causalidade ocasiona uma situação oposta ao princípio da abstração: apesar de serem negócios jurídicos separados, o negócio jurídico obrigacional subjacente pode impactar o negócio jurídico de disposição. Contudo, aqui também existem determinadas regras e jurisprudência que mitigam ou excetuam esse princípio, como é o caso do disposto no § 33 da UrhG.  Pelo sistema de direito patrimonial brasileiro ser regido pelo princípio da causalidade e não haver regra relativa a direito autoral que o mitigue ou excetue de maneira similar à regra do § 33 da UrhG, a consequência desse caso no Brasil (se previsto no contrato de licença uma rescisão por caducidade) seria o fim do direito de uso do software pelo sublicenciado que, por sua vez, poderia requerer indenização por perdas e danos ao licenciado que ocasionou a perda do seu direito de uso.
O ano começou agitado na Alemanha. Além da forte nevada que paralisou estradas e aeroportos, protestos em massa contra o partido de extrema-direita AfD (Alternativ für Deutschland) pararam o país em janeiro. Tudo começou quando o jornal investigativo Correctiv revelou no início do ano que políticos do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) participaram de uma reunião secreta em Berlim, em novembro do ano passado, com neonazistas para discutir, dentre outros temas, a deportação em massa de milhões de imigrantes e alemães naturalizados, por eles denominados "cidadãos não-assimilados"1. Dentre os presentes, o líder do movimento austríaco "Identitário", o extremista Martin Sellner2, e alguns políticos do partido da ex-chanceler Angela Merkel (CDU), que agora estão tendo dificuldades em se explicar3. Em pauta estava a chamada "remigração" (Remigration), eufemismo utilizado nos círculos de extrema direita para se referir ao plano de retorno forçado de migrantes a seu país de origem, independente deles terem ou não cidadania alemã e de terem ou não nascido e/ou vivido a vida inteira na Alemanha. Ou seja, mesmo alemães naturalizados estariam incluídos no grupo a ser deportado, que se estima girar em torno de mais de 20 milhões de pessoas. O caso chocou o país. E não era para menos, tendo em vista que temas como deportação e "remigração" reabrem uma ferida profunda na sociedade alemã. Durante o governo de Adolf Hitler, o Estado nazista promoveu a deportação e o assassinato em massa de mais de 6 milhões de judeus europeus, jogando nos ombros do povo alemão o pesado fardo de ter sido responsável pelo conflito mais mortal da história da humanidade: a 2ª Guerra Mundial. A Ministra do Interior, Nancy Faeser, lembrou que a reunião secreta do AfD com os neonazistas ocorreu em um hotel em Potsdam perto de onde o partido nazista, em 20 de janeiro de 1942, realizou a Conferência de Wannsee para planejar a chamada "solução final", que consistiu no assassinato de milhões de judeus em toda a Europa4. O chanceler Olaf Scholz, que participou de vários protestos ocorridos na Alemanha desde então, disse que qualquer plano para deportar estrangeiros representa um ataque à democracia alemã e "a todos nós"5. A palavra Remigration foi, inclusive, eleita como a não-palavra do ano de 2023. Desde 1991, um júri composto majoritariamente por linguistas escolhe a Unworte des Jahres, ou seja, a "despalavra do ano". Wort significa palavra. Antecedida pelo prefixo un, ela ganha o significado de antipalavra, não-palavra, despalavra. A população pode enviar sugestões até 31 de dezembro e o júri se reúne em janeiro para escolher a antipalavra do ano anterior na cidade de Marburg6. A despalavra do ano designa uma expressão muito difundida, mas infeliz em sua construção ou significado, a exemplo de "remigração", "fatos alternativos", "ditadura do coronavírus" ou "terroristas climáticos"7. A Unwort tem por objetivo chamar atenção para a utilização no debate público de linguagem inadequada, dissimulada ou difamatória. Especialistas explicam que remigração é um conceito sociológico que exprime o retorno de pessoas ao país de onde emigraram, abarcando tanto o retorno voluntário quanto o involuntário. Trata-se, em princípio, de um termo técnico neutro. Porém, os movimentos da direita radical se apropriaram do termo para evitar expressões neonazistas como "fora estrangeiros" e camuflar - e tornar mais aceitável pela população - a deportação de pessoas naturalizadas e/ou com antecedentes migratórios8. Fato é que, desde que o escândalo veio à tona, milhões de pessoas saíram às ruas em várias cidades para protestar contra o extremismo de direita e em defesa da democracia9. Berlim, Hamburg, Munique, Frankfurt, Hannover, Nürnberg, Kassel, Wuppertal, Karlsruhe, apenas para citar algumas cidades, foram palco de massivos protestos, que deixaram claro uma coisa: o fascismo não é uma alternativa para grande parcela da sociedade alemã10. O presidente Frank-Walter Steinmeier sintetizou, em poucas palavras, o significado das manifestações: "Eles [os manifestantes] defendem a nossa república e a nossa Lei Fundamental contra seus inimigos. Eles defendem a nossa humanidade...O futuro de nossa democracia não depende do barulho de seus opositores - mas da força daqueles que defendem a democracia"11. Os protestos têm um significado especial em razão das eleições estaduais de setembro deste ano. Com efeito, pela primeira vez na história recente do país, três políticos da extrema direita têm chances reais de assumir o governo nos estados de Brandenburg, Sachsen e Thüringen. Nesses locais, o partido AfD pode fazer a maior bancada no Parlamento estadual (Landtag)12 e, na Alemanha, é a maioria parlamentar quem escolhe o chanceler (Kanzler) no plano federal e o governador (Ministerpräsident) no plano estadual13. Um desses políticos é Björn Höcke, líder da bancada do AfD em Thüringen. Ex-professor do ensino médio, Höcke quase foi expulso do próprio partido em 2017 após ter taxado de "estúpida" a forma como a Alemanha relembra o holocausto e chamado de "monumento da vergonha" o memorial construído em Berlim em homenagem aos judeus assassinados pela ditadura nazista. Höcke tem um longo histórico de envolvimento com a ideologia neonazista: ele já participou de marchas neonazistas (todas devidamente documentadas em fotos e vídeos) e, aparentemente, escreveu textos de cunho nacional-socialista sob o pseudônimo de "Landilf Ladig"14.   Se for eleito - indiretamente pelo Parlamento estadual - governador de Thüringen, ele se tornará o primeiro político de extrema direita, com claro alinhamento neonazista, a governar um estado alemão no pós-guerra. Uma vergonha para o país e, acima de tudo, um desafio para a Lei Fundamental, que instituiu uma ordem constitucional livre e democrática na Alemanha desde 1949. Höcke já anunciou que, se eleito, irá restringir a política de imigração e cancelar todos os contratos com as emissoras estatais em Thüringen. Não surpreende: por ser alvo de reportagens críticas da imprensa, uma das principais pautas do AfD e de Höcke é abolir e/ou "reorganizar" as emissoras públicas na Alemanha. E os ataques à "imprensa tradicional" devem se intensificar a partir de agora, vez que foi graças ao trabalho investigativo da imprensa que a reunião secreta sobre a remigração veio à tona. Inspirada em Donald Trump, a patota do AfD recorre à chamada "mídia alternativa" das redes sociais para disseminar suas ideias. Fake news e discursos de ódio grassam nesses canais. Dessa forma, todos sabem, de antemão, que Höcke adotará uma política restritiva aos direitos humanos e à imprensa livre, um dos pilares fundamentais de qualquer democracia15. Por isso, ativistas contrários à extrema direita fizeram uma petição, direcionada às bancadas parlamentares, pedindo a perda dos direitos fundamentais de Höcke, dentre os quais a liberdade de expressão e reunião, o direito de votar e ser votado e de ocupar cargos públicos. Mais de 1,6 milhão de pessoas já assinaram a petição até agora16. Na verdade, não se trata de perda definitiva de todos os direitos fundamentais, o que afrontaria a dignidade humana, consagrada no art. 1º da Grundgesetz. Trata-se apenas de uma suspensão temporária de alguns direitos fundamentais do extremista, como liberdade de expressão e o direito de ser eleito e de ocupar cargos públicos. A suspensão de direitos fundamentais Como explicou o ministro do Tribunal Constitucional alemão, Josef Christ, em conferências realizadas no Brasil ano passado, a Alemanha aprendeu com a terrível experiência histórica do nazismo que, tão logo chegou ao poder, aboliu a jovem República de Weimar. Por essa razão, muitos atribuem a queda da república às deficiências da Constituição de Weimar, que não possuía instrumentos para proteger a república e a democracia17. Por isso, a Grundgesetz estabelece, nos arts. 18 e 21 II, uma série de mecanismos destinados a proteger os princípios fundamentais da ordem constitucional, dentre os quais a dignidade humana, os direitos humanos, o Estado democrático de direito, o federalismo, a separação dos poderes, a independência do Judiciário e o pluripartidarismo. Com isso, o constituinte deu um claro recado: a democracia liberal não está indefesa, à mercê de seus inimigos, pois a Lei Fundamental instituiu uma "democracia defensiva". Dentre os principais instrumentos da democracia defensiva previstos na Grundgesetz, destacam-se: a proibição de associações anticonstitucionais (art.  9° II), a privação temporária de direitos fundamentais (art. 18), proibição de partidos anticonstitucionais ou sua exclusão do financiamento partidário estatal (art. 21, II e III), a aposentadoria compulsória - ou transferência para outro cargo - de juízes que atentem contra a Constituição (art. 98), afora o dever de lealdade imposto aos funcionários públicos em geral (principalmente, magistrados e membros das forças armadas) e a existência de órgãos de proteção da Constituição. O caso de Björn Höcke se enquadra no art. 18 da Lei Fundamental. A norma estabelece que quem abusar da liberdade de expressão, principalmente da liberdade de imprensa (art. 5º I), da liberdade de cátedra (art. 5º III), da liberdade de reunião (art. 8º), da liberdade de associação (art. 9º), do sigilo das comunicações (art. 10), da propriedade (art. 14) ou do direito de asilo (art. 16ºa) para combater a ordem fundamental livre e democrática, pode perder esses direitos fundamentais. O dispositivo atribui ao Tribunal Constitucional a competência exclusiva para declarar a suspensão18. O Bundesverfassungsgericht (BVerfG), contudo, nunca decretou a suspensão temporária de direitos fundamentais, embora já tenha havido quatro pedidos nesse sentido. E isso tem suscitado dúvidas sobre se a Corte irá suspender alguns direitos fundamentais de Höcke e quais seriam os efeitos de uma decisão desse porte. A maior preocupação é que, ao invés de enfraquecer, a extrema direita saia fortalecida após uma decisão contrária ou favorável à suspensão dos direitos fundamentais do extremista. Michael Brenner, Professor de Direito Constitucional da Universidade de Jena, concedeu entrevista, no calor dos debates, afirmando que "o art. 18 da Grundgesetz é, sem dúvida, uma opção para nos defendermos dos inimigos da Constituição". Mas ele se mostrou cético quanto às reais chances de êxito do processo. "Se for apresentado um pedido deste tipo, é preciso ter claro, em primeiro lugar, que o processo será bastante demorado e, em segundo, que terão de ser apresentadas muitas provas para justificar a acusação de que essa pessoa está realmente agindo agressivamente contra a ordem fundamental livre e democrática. O Tribunal Constitucional sempre analisou esse aspeto de forma minuciosa em processos anteriores de proibição de partidos políticos. E irá examiná-lo também nesse processo de perda dos direitos fundamentais", disse ao canal de televisão Tagesschau19. Mas muitos acreditam que está mais do que na hora de agir. Afinal, como afirmou o jurista e jornalista Heibert Plantl, a reunião em Potsdam não foi um "encontro de bar" - da mesma forma que o 8 de janeiro não foi um "domingo no parque". "Se a relacionarmos com as atividades do Sr. Höcke, então, essa é uma marcha espiritual. Não há mais tempo para pensar se se deve fazer alguma coisa. Está na hora de desembrulhar os instrumentos da democracia defensiva", afirmou Plantl20. Danos irreparáveis à democracia alemã A grande preocupação em toda essa discussão é o risco que a chegada ao poder da extrema direita pode representar para a democracia alemã. Juristas, cientistas e analistas políticos têm afirmado que o governo de um partido populista autoritário poderá causar imensos danos à democracia e à ordem constitucional alemã. Andreas Voßkuhle, ex-presidente do Tribunal Constitucional alemão e atual presidente da Associação Contra o Esquecimento - Pela Democracia (Verein Gegen Vergessen - Für Demokratie), concedeu recentemente uma entrevista à revista Der Spiegel, na qual afirma estar muito preocupado com as eleições de setembro devido ao risco do AfD chegar ao poder naqueles estados. Isso mudaria totalmente a paisagem política na Alemanha, alertou. Segundo ele, todos aqueles que não querem o retorno de um estado totalitário devem se preocupar com as próximas eleições. E lutar pela democracia, pois ela não é uma realidade imutável, mas precisa, ao contrário, de pessoas dispostas a defende-la e de lutar por ela21. Ele lembrou o exemplo da democracia ática na Grécia antiga, que não conseguiu sobreviver por longo tempo. E alertou: "Pode ser que nossa democracia ocidental seja apenas uma breve fase na história da humanidade" e que, "depois disso, os dias negros do totalitarismo retornem". Quem não deseja isso, tem que se engajar para defender nossa democracia, mesmo quando decepcionado com a política e as instituições, disse22. O Professor da Albert-Ludwigs-Universität de Freiburg alertou ainda para generalizações equivocadas. Nem todos os eleitores do AfD são extremistas de direita e antissemitas. Não há "o eleitor" do AfD, sendo impossível separar os eleitores do AfD de um lado e do outro, os demais. A situação é muito mais complexa e intricada, disse Voßkuhle. Ele se disse chocado ainda com a nova onda de antissemitismo na Alemanha, que vem crescendo - em todo o mundo, diga-se - desde o atentado terrorista do Hamas a Israel, em outubro do ano passado. "Nunca imaginei tempos que cidadãs e cidadãos judeus tivessem medo de sair à rua ou de ir trabalhar. Esse desenrolar dos acontecimentos me deixa perplexo", afirmou Voßkuhle23. Ele se mostrou espantado com o "poder de contágio" desse antissemitismo, pois até pessoas que não tinham qualquer ressentimento em relação a judeus tornaram-se subitamente susceptíveis a esse discurso de ódio. Mas o recado de Voßkuhle foi claro: quem não quer o retorno do totalitarismo, deve lutar pela democracia. A tomar pelo número de manifestantes nos protestos, parece que os alemães acordaram para o enorme risco que partidos extremistas como o AfD representam para a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Se até então parecia impossível frear a ascensão populista e ultradireitista do AfD, apesar de suas estreitas conexões com o círculo neonazista, grande parte da sociedade alemã - dos mais diversos espectros políticos - se conscientizou de que não pode assistir inerte ao avanço da direita radical e que precisa lutar para defender o Estado democrático de direito. Em questões fundamentais como democracia e direitos fundamentais, é preciso mostrar onde estão os limites. E o AfD ultrapassou (rectius: nunca observou) essa linha. Não só a sociedade se mobilizou. O Tribunal Constitucional alemão também cumpriu recentemente seu papel de "guardião da Constituição" ao proibir o partido de extrema direita "A Pátria" (Die Heimat) de receber verbas do fundo partidário. BVerfG proíbe partido de receber fundo partidário Com efeito, em 23/01/2024, o Bundesverfassungsgericht (BVerfG) suspendeu, por um período de seis anos, o recebimento de verba do fundo partidário, bem como a isenção tributária do partido Die Heimat, novo nome adotado pela antiga sigla neonazista NPD (Nationaldemokratische Partei Deutschlands), ironicamente nominada Partido Nacional Democrático da Alemanha. A decisão é inédita e foi proferida nos autos do processo 2 BvB 1/19, no último dia 23 de janeiro do corrente ano. A lei partidária alemã - Parteiengesetz (PartG) - estabelece, em seu § 18, que todos os partidos políticos que atinjam um determinado percentual mínimo de votos nas eleições têm direito a receber verba estatal para ajudar no financiamento partidário. Mas o art. 21, inc. 3 da Lei Fundamental prevê a exclusão do fundo partidário de partidos antidemocráticos. A Carta Magna alemã chega mesmo a usar a expressão partidos "inimigos da Constituição": "verfassungsfeindliche" Parteien. Segundo a norma, deverão ser excluídos do fundo partidário aqueles partidos que tiverem por objetivo ou cujo comportamento de seus membros visem prejudicar ou eliminar a ordem constitucional livre e democrática ou pôr em risco a existência da República Federal da Alemanha. Com base nesse dispositivo, o Parlamento (Bundestag), a Câmara Alta do Parlamento (Bundesrat) e o Governo Federal (Bundesregierung) requereram que o partido fosse excluído do financiamento estatal. Em apertada síntese, os juízes do BVerfG afirmaram que partido Die Heimat desrespeita a ordem constitucional livre e democrática, e objetiva sua eliminação através de seu escopo partidário e do comportamento de seus membros e apoiadores. Ele tem como meta substituir a ordem constitucional existente por um Estado autoritário centrado em uma "comunidade popular" étnica, disse a Corte. Sua conceção política desrespeita a dignidade humana de todos aqueles que não pertencem a essa "comunidade popular" étnica, o que é incompatível com os princípios democráticos. Tudo isso se deixa comprovar principalmente através de sua estrutura organizativa, bem como por meio de suas atividades e ligações com redes nacionais e internacionais do radicalismo de direita, disse o BVerfG24. Já houve duas tentativas de banir o NPD devido às suas tendências antidemocráticas. A última ação foi movida em 2007, mas fracassou, em síntese, porque a Corte entendeu que o partido não tinha influência e força suficiente para atingir seus objetivos. No mesmo ano, como reação à decisão, o Parlamento acrescentou o inc. 3 ao art. 21 da Lei Fundamental para permitir a proibição de recebimento de verba estatal por partidos políticos que atuem de forma anticonstitucional. A vantagem do dispositivo é que, para a proibição, basta que o partido defenda metas que representem uma ameaça à democracia, sem a necessidade de prova (como o BVerfG exige para o banimento de partidos políticos) de que o partido tenha também potencial de colocar em prática esses objetivos. Embora a decisão do BVerfG seja de certa forma simbólica, porque a legenda já não recebia subsídio estatal por não ter obtido votos suficientes nas últimas eleições, o partido perdeu sua isenção tributária. E mesmo que venha a superar a porcentagem mínima exigida nos próximos seis anos, estará proibido de receber o fundo partidário. Mas mais do que isso, a decisão tem sido interpretada como um claro recado ao AfD de que o Tribunal Constitucional não hesitará em utilizar os instrumentos da democracia defensiva para defender a ordem constitucional vigente25. A democracia defensiva será, sem dúvida, o tema mais debatido no ano na Alemanha. Por (infeliz) coincidência, a primeira coluna do German Report do ano passado também abordou a problemática26. Isso mostra o quanto devemos estar atentos por aqui... __________ 1 Hunderttausende setzen "ein klares Signal". Tagesschau, 21/1/2024 e Plano de deportações reacende debate sobre proibição da AfD. Deutsche Welle Brasil, 14/1/2024. 2 Apontado como um dos mentores do plano de remigração, o ativista da extrema direita está na mira da Polícia Federal alemã e na iminência de ser proibido de entrar no país. Einreiseverbot gegen Sellner? Rechtsextremist übertritt deutsche Grenze - und trifft auf Polizei. Frankfurter Rundschau, 31/1/2024. 3 Um dos políticos do CDU flagrado na reunião secreta foi o ex-senador berlinense Peter Kurth, acusado de manter estreitas relações com membros da cena extremista, segundo a revista Der Spiegel. Sobre o escândalo envolvendo o ex-senador, confira-se: Ex-CDU-Senator Kurth spielt seit Jahren führende Rolle bei ultrarechter Berliner Buschenschaft Gothia. Der Spiegel, 19/1/2024. 4 Protesto contra extrema direita reúnem 250 mil na Alemanha. Deutsche Welle Brasil, 21/01/2024. 5 Protesto contra extrema direita reúnem 250 mil na Alemanha. Deutsche Welle Brasil, 21/01/2024. 6 "Remigration" ist Unwort des Jahres 2023. NDR, 15/1/2024. 7 Em 2022, a despalavra do ano foi "terroristas climáticos" (Klimaterroristen), usada no discurso político para desacreditar os ativistas e os protestos contra o aquecimento global; em 2020, a antipalavra foi "ditadura do coronavírus" (Corona-Diktatur), empregada para difamar as medidas restritivas impostas para conter o avanço da Covid-19 e, em 2017, como lembrou a ministra do Tribunal Constitucional alemão, Sibylle Kessal-Wulf, em eventos no Brasil, a não-palavra foi "fatos alternativos" (alternative Fakten), que indica a tentativa de substituir argumentos factuais por afirmações não comprováveis, confundindo e influenciado negativamente o debate público (clique aqui). A expressão fora usada por Kellyanne Conway, assessora de Donald Trump, à época presidente dos EUA, ao se referir a uma afirmação falsa do porta-voz da Casa Branca de que a posse presidencial teria tido recorde de público. Confira outras antipalavras em no site da Deutsche Welle Brasil.  8 "Remigração" é eleita a "despalavra" do ano na Alemanha. Deutsche Welle Brasil, 15/1/2024. 9 Políticos da extrema direita não perderam a chance de banalizar os protestos  e de alegar que as fotos das manifestações nas cidades foram geradas com inteligência artificial, mas a realidade dos fatos mostra, felizmente, que milhões de pessoas participaram das marchas pela democracia em mais de cem cidades alemãs nas últimas semanas. Confira: Faktencheck: Wie zählt man Menschen auf einer Demonstration? Deutsche Welle, 14/1/2024 e Hunderttausende auf der Strasse - wie nervös ist die AfD? Spiegel, 23/1/2024. 10 Hunderttausende setzen "ein klares Signal". Tagesschau, 21/4/2024. 11 "Sie verteidigen unsere Republik und unser Grundgesetz gegen seine Feinde. Sie verteidigen unsere Menschlichkeit... Die Zukunft unserer Demokatie hängt nicht von der Lautstärke ihrer Gegner ab - sindern von der Stärke derer, die Demokratie verteidigen". Hunderttausende setzen "ein klares Signal". Tagesschau, 21/4/2024. 12 Protest gegen die AfD: Suche nach Gegenstrategien. Deutsche Welle, 22/1/2024. 13 Art. 70 III da Constituição do Estado de Thüringen. 14 Alemanha poderá ter um "facista" no governo de um estado? Deutsche Welle Brasil, 17/1/2024. 15 O AfD de Thüringen já foi classificado com como partido seguramente extremista de direita pelo Órgão de Defesa da Constituição. Petition zur Aberkennung von Höckes Grundrechten: Wie funktioniert das? Tagesschau, 17/1/2024. 16 Höcke die Grundrechte entziehen? Mehr als 1,6 Millionen Menschen fordern das. Focus Online, 30/1/2024. 17 CHRIST, Josef. Democracia defensiva (prelo). Permita-se remeter à coluna German Report sobre o tema. 18 Tradução livre: Art. 18. Wer die Freiheit der Meinungsäußerung, insbesondere die Pressefreiheit (Artikel 5 Abs. 1), die Lehrfreiheit (Artikel 5 Abs. 3), die Versammlungsfreiheit (Artikel 8), die Vereinigungsfreiheit (Artikel 9), das Brief-, Post- und Fernmeldegeheimnis (Artikel 10), das Eigentum (Artikel 14) oder das Asylrecht (Artikel 16a) zum Kampfe gegen die freiheitliche demokratische Grundordnung mißbraucht, verwirkt diese Grundrechte. Die Verwirkung und ihr Ausmaß werden durch das Bundesverfassungsgericht ausgesprochen. 19 Tradução livre: "Wenn ein solcher Antrag gestellt werden sollte, muss man sich im Klaren sein, dass erstens das Verfahren recht lange dauern wird, und zweitens, dass dann sehr viele Erkenntnisse beigebracht werden müssen, die den Vorwurf rechtfertigen, dass diese Person tatsächlich aggressiv gegen die freiheitlich demokratische Grundordnung vorgeht. Das hat das Bundesverfassungsgericht in den bisherigen Parteiverbotsverfahren immer sehr sehr gründlich geprüft. Und das wird es auch prüfen in einem solchen Verwirkungsverfahren.". Online-Petition will Höcke nicht-wählbar machen - eine Milion Unterschriften. Tagesschau, 16/1/2024. 20 Tradução livre: "Wenn man das in Verbindung bringt mit den Aktivitäten von Herrn Höcke, dann ist das der geistige Marsch. Es ist nicht mehr Zeit herum zu überlegen, ob man etwas tut. Es ist Zeit, die Instrumente der wehrhaften Demokratie auszupacken." Online-Petition will Höcke nicht-wählbar machen - eine Milion Unterschriften. Tagesschau, 16/1/2024. 21 "Es kann sei, dass sich unsere Demokatie nur als Phase in der Geschichte erweist". Der Spiegel, 28/12/2023. 22 "Es kann durchaus sein, dass sich unsere westliche Demokratie nur als eine kurze Phase in der Geschichte der Menschheit erweist«, so Voßkuhle. Es sei möglich, dass »danach wieder die dunkle Zeit des Totalitarismus zurückkehrt...  Wer das nicht möchte, sollte sich für unsere Demokratie engagieren." Der Spiegel, 28/12/2023. 23 "Ich habe mir solche Zeiten, in denen jüdische Bürgerinnen und Bürger bei uns Angst haben, auf die Straße oder zur Arbeit zu gehen, nicht vorstellen können. Diese Entwicklung macht mich fassungslos". Der Spiegel, 28/12/2023. 24 BVerfG Pressemitteilung Nr. 9/2024 vom 13. Januar 2024. 25 Justiça alemã corta verbas estatais a partido neonazista. Deutsche Welle Brasil, 23/1/2024. 26 Clique aqui.
Voos em jatos particulares, passeios de iate, viagens de pesca foram mimos dados nos últimos anos por bilionários conservadores aos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, segundo matéria publicada no The Guardian e no periódico alemão Legal Tribune Online (LTO)1. Esses e outros escândalos comprometedores levaram a mais alta Corte dos Estados Unidos a adotar recentemente um código de ética. Um feito histórico, segundo um comunicado emitido pelo próprio Tribunal no dia 13 de novembro do corrente ano. Segundo o LTO, o documento descreve, dentre outras coisas, as situações nas quais os juízes devem se declarar impedidos e se retirar de um processo - por exemplo, devido a "preconceitos pessoais" ou "interesses financeiros"2. O código também proíbe os juízes e juízas de falar em eventos organizados por partidos políticos ou em campanhas eleitorais, além de restringir o recebimento - mesmo legal - de presentes. Incerto permanece, contudo, quem teria competência para fiscalizar a aplicação do código de ética e quais seriam as sanções aplicáveis em caso de descumprimento. A lacuna foi admitida pelos próprios magistrados, que pretendem "discutir e aprofundar a questão"3. Como noticiou o The Guardian, as chamadas organizações de vigilância não-partidárias criticaram o documento como uma "manobra de relações públicas para apaziguar o público americano, que exige mais de sua Corte Suprema"4. Segundo o jornal, ao elaborar o código de ética, a Corte respondeu às pressões crescentes decorrentes de uma série de escândalos éticos envolvendo alguns juízes com alinhamento de direita. Entretanto, embora o novo código tenha sido concebido para acalmar a crescente inquietação sobre os padrões éticos do Tribunal, especialistas em ética judicial salientam que não existe qualquer mecanismo de enforcement, o que deixa os juízes, de fato, policiarem-se a si próprios. O senador democrata Sheldon Whitehouse, forte defensor de um ethics code para a Suprema Corte, afirmou em vídeo publicado no X (Twitter) que o documento deixa sem resposta questões fundamentais sobre sua aplicação, concluindo que: "That job is not done", ou seja, o trabalho ainda não está feito. O Brennan Center for Justice, um instituto político sem fins lucrativos, disse que o código de ética era "o mínimo que a Corte poderia ter feito" e lamentou a falta de uma revisão independente. E concluiu: "A Corte ainda tem um longo caminho a percorrer antes de poder afirmar que respondeu de forma significativa às preocupações do público"5. Enquanto os juízes federais já estavam sujeitos a um código de conduta, inexistia até então um conjunto de regras correspondentes para o Tribunal mais poderoso dos Estados Unidos, lacuna que levou, na visão dos magistrados da Corte, ao "mal-entendido" de que eles não se sentiam limitados por quaisquer regras éticas. O código de conduta foi motivado, dentre outros escândalos, por relatórios acerca dos caros presentes dados pelo magnata do ramo imobiliário Harlan Crow ao justice Clarence Thomas. Crow é um dos principais doadores do Partido Republicano, ao qual Donald Trump é filiado. De acordo com um relatório da publicação investigativa ProPublica, ele ofereceu a Thomas uma viagem à Indonésia em seu jato particular, em 2019, incluindo uma estadia em seu luxuoso iate. Clarence Thomas, que adota normalmente postura conservadora na Supreme Court, justificou o fato por razões de segurança: ele fora desaconselhado a viajar em voos regulares devido à sua oposição ao direito ao aborto e a uma possível reação de esquerdistas violentos. Além de Clarence Thomas, outro juiz conservador de direita, Samuel Alito, foi igualmente alvo de críticas. A ProRepublica acusa o justice de ter feito uma pescaria de férias com Paul Singer, importante doador do Partido Republicano. O problema é que a Suprema Corte se pronunciou várias vezes sobre casos em que o fundo de investimento de Singer era parte interessada. Um relatório da Associated Press também acusa a juíza Sonia Sotomayor, nomeada por Barack Obama: seus assessores teriam tentado vender, "de forma ofensiva", seus livros a universidades e bibliotecas, sendo a magistrada remunerada com dinheiro dos contribuintes6. A Suprema Corte não disse, porém, se esse comportamento específico seria proibido pelo novo código de conduta. A existência de um debate público acerca dos padrões éticos dos magistrados da mais alta Corte de Justiça não é uma peculiaridade estadunidense. Na Alemanha, a discussão é antiga e o Tribunal Constitucional - Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - tem diretrizes destinadas a regular a conduta de seus magistrados durante o período no cargo e fora dele.  Panorama na Alemanha Com efeito, desde 2018 vigoram as regras contidas na chamada Diretrizes de Conduta para as Juízas e Juízes do Tribunal Constitucional: Verhaltensrichtlinien für Richterinnen und Richter des Bundesverfassungsgericht7. Especula-se que o BVerfG teve motivo semelhante ao da Supreme Court para elaborar seu código de ética: a percepção pública da instituição, ou seja, a confiança que os jurisdicionados depositam na Corte. Na época, cresciam as críticas ao Tribunal sobretudo devido ao comportamento de alguns magistrados após o mandato de doze anos. Segundo o Legal Tribune Online, suscitaram críticas na imprensa - e desconfiança na sociedade - a conduta de Hans-Jürgen Papier e Udo di Fabio, que, logo após deixarem o cargo, iniciaram notável carreira como pareceristas em questões jurídicas politicamente controversas8. Papier, ex-presidente da Corte, envolveu-se na discussão política acerca da eliminação progressiva da energia nuclear e na crise dos refugiados; di Fabio emitiu parecer sustentando as (em sua visão, boas) chances de êxito do Estado Livre da Baviera em eventual queixa constitucional proposta contra a política de fronteiras abertas da ex-Chanceler Angela Merkel. Embora essa tomada de posição não fosse proibida à época, nada é mais temido em Karlsruhe do que a politização do Tribunal. A história alemã dá boas razões para isso. E o exemplo norte-americano também: não é de hoje que os juízes constitucionais são vistos nos Estados Unidos como o braço estendido dos partidos políticos que os indicam para a Suprema Corte. Na Alemanha, ao contrário, o magistrado tem um dever de ingratidão (Undankbarkeitspflicht) para com aqueles que o indicaram ao cargo. A primeira regra do código de ética alemão estabelece que os juízes do Tribunal devem pautar sua conduta, dentro e fora do cargo, de forma a não prejudicar a reputação da Corte, a dignidade do cargo e a confiança em sua independência, imparcialidade, neutralidade e integridade. Seus membros devem exercer suas funções com independência e imparcialidade, sem preconceitos quanto a interesses ou relações pessoais, sociais ou políticas. Em sua conduta, devem zelar para que não surjam dúvidas quanto à sua neutralidade na condução do cargo em relação a grupos sociais, políticos, religiosos ou ideológicos. Isso, contudo, não exclui o pertencimento a tais grupos, nem impede, desde que com o devido comedimento, o engajamento ou a participação no discurso social (item 3). Os juízes devem manter discrição em relação à suas atividades na Corte, sem prejuízo do segredo das deliberações (item 4). Eles devem ter a máxima contenção, exigida pelo cargo, ao emitir qualquer crítica a outras opiniões ou posições jurídicas, seja do próprio Tribunal ou de outros tribunais nacionais, estrangeiros ou internacionais (item 6). Presentes e benefícios de qualquer tipo só são admitidos em contextos sociais e na medida que não sejam aptos a suscitar quaisquer dúvidas quanto à integridade pessoal e à independência do magistrado (item 7). Em sessão plenária em 2003, o BVerfG fixou o limite de 150 Euros para quaisquer presentes recebidos por seus membros, havendo, além disso, um limite para remunerações por palestras e publicações9. Com efeito, o item 8 do ethics code estabelece que o exercício de atividades extrajudiciais não pode interferir no exercício da atividade judicial. Isso se aplica, principalmente, a publicações acadêmicas, conferências, palestras e outras participações em eventos e viagens. Segundo o item 9, os magistrados só podem aceitar remuneração por palestras, participação em eventos e publicações se e na medida em que isso não comprometa a reputação do Tribunal nem suscite dúvidas quanto à sua independência, imparcialidade, neutralidade e integridade. A remuneração recebida deve ser devidamente divulgada no site da Corte, não sendo considerado problemático o fato de o organizador assumir despesas de translado, hospedagem e alimentação, desde que em razoável medida (entenda-se: grandeza). Além disso, antes de participar de qualquer evento, os juízes do Tribunal Constitucional devem se assegurar de que o tipo de evento é compatível com a dignidade do cargo e os princípios gerais do seu exercício, e com a reputação do BVerfG (item 10), que goza, a propósito, de alto prestígio e credibilidade junto à sociedade alemã. Pesquisa realizada em 2013 colocou a Corte em primeiro lugar dentre as instituições democráticas mais confiáveis do país, à frente, portanto, do Executivo e do Parlamento10. Nos termos do item 11, os magistrados da Corte não podem, evidentemente, emitir pareceres sobre questões constitucionais nem fazer previsões sobre o resultado de processos pendentes ou prestes a ser decididos. O item 12 estabelece que, no contato com meios de comunicação social, os juízes e juízas da Corte Constitucional devem assegurar que a natureza e o formato de suas declarações sejam compatíveis com suas funções, com a reputação do Tribunal e a dignidade do cargo. Como dito, o código de ética tem eficácia mesmo após o fim do mandato de magistrado constitucional. O item 13 é expresso no sentido de que os juízes do BVerfG devem manter contenção e discrição em suas declarações e comportamento em questões relacionadas ao Tribunal mesmo após o termo de seu mandato. Após o término do mandato, os magistrados não podem intervir em processos judiciais que estavam em andamento na Corte durante seu mandato ou que estejam diretamente relacionados a esses processos. Nesses casos, eles não podem emitir pareceres, atuar como advogados, assistentes ou atuar de qualquer forma perante o Tribunal (item 14). Além disso, durante o primeiro ano após o fim do mandato, eles estão proibidos de prestar qualquer tipo de consultoria nas áreas de competência de sua antiga câmara na Corte. Mesmo depois desse prazo, eles não podem atuar perante o Tribunal Constitucional como representante de qualquer das partes nas respectivas áreas, o que tem como objetivo evitar a impressão de uso inadequado de conhecimentos internos (item 15). Os juízes do Tribunal Constitucional dedicam-se regularmente, em sessão plenária, a questões relativas à conduta adequada ao cargo, ao bom funcionamento das Diretrizes de Conduta e a seu eventual desenvolvimento. Cada membro da Corte tem o direito de levantar questões acerca do cumprimento e da aplicação dessas normas (item 16). Da mesma forma que o ethics code da Suprema Corte norte-americana, as diretrizes do BVerfG também são desprovidas de sanções e inexequíveis, pois o Tribunal, enquanto órgão constitucional (Verfassungsorgan), não está submetido a controle oficial. Apesar disso, as regras são cumpridas pelos membros da Corte, o que garante ao BVerfG confiabilidade e respeitabilidade junto à sociedade alemã. A situação no Brasil No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) não possui um ethics code como o da Suprema Corte norte-americana e nem Diretrizes de Conduta como as do BVerfG. Em 2020, a Suprema Corte brasileira editou um Código de Ética direcionado a seus servidores11. Existem, no entanto, outras normas éticas aplicáveis aos ministros do STF e ao Judiciário como um todo, vez que nossa Constituição prevê diversas vedações a juízes, que alcançam os ministros do STF, como magistrados que são. A norma constitucional proíbe, por exemplo, que juízes exerçam, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo a de magistério; recebam, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo ou dediquem-se à atividade político-partidária. A Constituição proíbe ainda que os magistrados recebam, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei, e exerçam a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento (art. 95, parágrafo único).       Desde 1979, vigora a Lei Orgânica da Magistratura Nacional - LOMAN (Lei Complementar n. 35/79) com regras sobre a disciplina judiciária que, embora anteriores à Constituição Federal, continuam vigentes. O art. 35 desta Lei inaugura os deveres do magistrado, prevendo a obrigação de "cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício", e finaliza exigindo dos juízes "conduta irrepreensível na vida pública e particular". A LOMAN veda ao magistrado, ainda, manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, ainda que não seja seu, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças (art. 36, inciso III). Para sancionar o descumprimento dos deveres do magistrado, a LOMAN prevê as penas disciplinares de advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade e aposentadoria compulsória (art. 42 e parágrafo único). As penas de advertência e de censura não podem ser aplicadas a desembargadores e ministros, restando, em especial, as penas de disponibilidade (em que há afastamento temporário do cargo com possibilidade de retorno) e de aposentadoria compulsória (em que há afastamento definitivo). Pela redação legal, eventual responsabilização de ministro acaba por implicar que se afaste do cargo, o que tem gerado questionamentos acerca da proporcionalidade das penas nesses casos. Para juízes de primeiro e segundo graus, as penas disciplinares são aplicadas pelo tribunal ao qual está vinculado ou pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Como o STF não está sujeito à atuação correcional do CNJ, cogita-se que a própria Suprema Corte conduziria o procedimento administrativo ético-disciplinar. Em 2008, o CNJ aprovou o Código de Ética da Magistratura Nacional. Por ser um ato normativo, a ele não se sujeitam os magistrados integrantes do STF. De todo modo, o Código prevê, para todos os demais magistrados, que atuem com imparcialidade e evitem todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito (art. 8º). Além disso, exige que ajam de forma prudente e equitativa na sua relação com os meios de comunicação social. O objetivo fundamental dessas normas éticas, seja no Brasil, nos EUA ou na Alemanha, é, sem dúvida, manter a integridade de conduta do magistrado dentro e fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional, o que contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura. Boas Festas a todos! __________ 1 US supreme court announces ethics code amid pressure over gift scandals. The Guardian, 13/11/2023. Confira-se ainda: Nach Richter-Reisen mit republikanischen Grossspendern: Supreme Court gibt sich Verhaltenskodex. LTO, 14/11/2023. 2 Confira a mencionada matéria publicada no LTO, 14/11/2023. 3 Confira a matéria no LTO, 14/11/2023. 4 Confira a mencionada matéria no The Guardian, 13/11/2023. 5 "The court still has a long way to go before it can claim to have meaningfully responded to the public's concerns.". The Guardian, 13/11/2023. 6 Confira a matéria do The Guardian, 13/11/2023. 7 A mencionada Diretriz está disponibilizada no site da Corte. Acesso em 19/12/2023. 8 Vertrauen und Verantwortung. LTO, 23/2/2017. 9 Confira a matéria publicada em LTO, 25/11/2023. 10 Confira a matéria publicada em LTO, 23/2/2017. 11 Confira a Resolução 711, de 24/11/2020.
Um dos temas mais comentados durante a pandemia de Covi-19 foi a existência (ou não) do chamado dever de renegociar. Inegavelmente, naquela circunstância dramática, como em outras situações de crise no contrato, a melhor solução era o consenso, o ajuste - de comum acordo - do contrato à nova realidade que se impunha nua e crua, alterada pela maior crise de saúde pública do século. E ninguém melhor do que as partes para (re)compor, com autonomia, seus interesses. No exercício da autonomia privada, as partes podem, evidentemente, estipular deveres de renegociação diante de superveniências que perturbam a relação contratual, seja dificultando excessivamente o cumprimento da prestação, seja rompendo o equilíbrio originário entre as prestações ou frustrando o alcance do fim último (escopo) do negócio. Exemplos são as chamadas cláusulas de hardship, frequentes, sobretudo, em contratos complexos e vultuosos. Se não há discussão acerca da legitimidade dessas cláusulas, o mesmo não ocorre quando se trata de impor judicialmente um dever de renegociar ex bonna fides, em regra contra a vontade de um dos contratantes. E aqui surgem discussões e dúvidas inquietantes: Qual comando o dever de renegociar imporia concretamente às partes: apenas entabular negociações ou chegar a um acordo? Como pleitear judicialmente esse dever? E mais: Qual a utilidade prática - sobretudo sob a ótica da eficiência econômica - de um dever meramente procedimental, que obriga as partes a investir tempo e dinheiro em renegociar de boa-fé, se, afinal, sem o consenso, o contrato continua desequilibrado? Se as partes não chegam a um acordo, pode o juiz ainda alterar o pactuado?     A discussão em torno do dever de renegociar ex bonna fides envolve, primeiro, reconhecer a natureza jurídica desse dever e, em caso positivo, determinar seu conteúdo e os efeitos jurídicos decorrentes de sua violação. Essas são questões importantes a serem discutidas e decididas antes de se postular a existência de mais um dever lateral oriundo da boa-fé na fase de execução do contrato, nos termos do art. 422 CC. Por isso, a opinião majoritária - inclusive no direito alemão, berço da celeuma - rejeita a imposição ex bonna fides de um dever jurídico de renegociar1, salvo previsão expressa no contrato. Nada obstante, a mais alta Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - tem precedente reconhecendo a existência de um dever de cooperar (Mitwirkungspflicht) com a adaptação do contrato pleiteada pela parte prejudicada em decorrência de alterações supervenientes nas circunstâncias. Para entender o caso Para entender o caso, faz-se necessária breve retrospectiva histórica acerca do chamado dever de renegociar. As discussões acerca da existência de um dever jurídico ex bonna fides de renegociar surgiram no bojo da teoria da quebra da base do negócio jurídico. Com efeito, a teoria da quebra da base do negócio parte da ideia de que é extremamente desleal o credor exigir o cumprimento do contrato tal como pactuado - em linguagem vulgar: exigir o cumprimento "a ferro e fogo" do acordo - quando eventos (de efeitos) extraordinários e imprevisíveis alterarem profundamente a base do negócio (e do consenso), tornando seu cumprimento extremamente gravoso para o devedor ou frustrando o fim último do contrato. Nesse caso, o cumprimento inalterado do contrato torna-se irrazoável e surge para o contratante prejudicado uma pretensão à revisão do contrato. A teoria - aplicada por mais de um século com base na boa-fé objetiva (Treu und Glauben) do § 242 BGB2 - encontra previsão expressa no § 313 BGB desde a reforma do Código Civil alemão em 2002.    Os defensores do dever de renegociar argumentam que, se o dever de lealdade e consideração pelos interesses legítimos da parte prejudicada exige a adaptação do contrato às novas circunstâncias, esta teria um direito à adaptação ao qual corresponderia um dever da contraparte de renegociar os termos do negócio desequilibrado. No direito alemão é antiga a ideia de que a boa-fé imporia a ambos os contratantes o dever de cooperar para a readaptação do contrato às novas circunstâncias. Karl Larenz (1903-1993), por exemplo, propôs, em 1941, um projeto de revisão do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) no qual constava expressa previsão da possibilidade de revisão judicial dos contratos por quebra da base do negócio e do dever de renegociar. Dizia o projeto: "§ 19. Quebra da base do negócio. Se, em decorrência de alteração nas circunstâncias gerais que as partes, na celebração do contrato, esperavam que se mantivessem, for completamente destruído o equilíbrio, típico ou pressuposto segundo o sentido do contrato, entre prestação e contraprestação, cada parte é obrigada a cooperar para a adaptação do conteúdo contratual às novas circunstâncias. Se não houver acordo, qualquer das partes pode requerer a alteração judicial do contrato. Se for impossível uma adaptação às novas circunstâncias, qualquer das partes pode rescindir a relação contratual com efeitos imediatos."3 Quatro décadas depois, Norbert Horn (1936-2023), discípulo de Helmut Coing, apresentaria uma das mais sólidas defesas em prol do reconhecimento do dever de renegociar fundado na boa-fé em artigo paradigmático intitulado Neuverhandlungspflicht, publicado na renomada revista Archiv für die civilistische Praxis em 1981 e em pareceres e sugestões para a reforma do livro das obrigações do BGB4. Essas propostas, contudo, foram rejeitadas, inclusive durante a grande reforma de modernização do direito das obrigações do BGB em 2002. Com efeito, o legislador alemão positivou a teoria da base do negócio jurídico, em suas vertentes subjetiva e objetiva, no § 313 BGB, mas não fez qualquer referência a um suposto dever de renegociar, de forma que a figura não teve acolhida legal em seu próprio país de origem5. Nada obstante, o 5º Senado do Bundesgerichtshof admitiu a existência desse dever em precedente julgado em 30/9/2011, no âmbito do processo BGH V ZR 17/11. Os contornos fáticos do caso Em 4/11/2008, as partes celebraram em cartório um contrato de permuta de imóveis por meio do qual o réu obrigava-se a transferir uma área de 28.699m2 ao município, que, em contrapartida, se comprometia a transferir área de igual dimensão e a pavimentar com betume uma estrada localizada em um terreno daquele. No pacto, os contratantes excluíram qualquer responsabilidade por vícios na coisa e afastaram expressamente quaisquer garantias pela dimensão, qualidade e características dos imóveis, objeto do contrato. Medição posterior da área indicada na planta apontou, contudo, que o tamanho do terreno oferecido pelo réu era de apenas 18.632m2, fato que levou o município a pleitear extrajudicialmente a alteração do negócio. A contraparte, que àquela altura já constava como proprietária do imóvel no Grundbuch, o livro de registro de imóveis, simplesmente recusou a proposta de reajuste contratual sem fazer qualquer contraproposta, levando o município a rescindir o contrato em 2010. Na ação judicial, ele pediu a devolução do imóvel ou, subsidiariamente, o pagamento de 18.120,60 Euros, além dos custos extrajudiciais com honorários advocatícios. Em reconvenção, o réu pediu a condenação do município a realizar a pavimentação da estrada. O Tribunal de primeira instância da comarca de Paderborn julgou procedente a ação, determinando a devolução dos imóveis e improcedente a reconvenção, mas a sentença foi reformada, em 13/12/2010, pelo Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Hamm, atendendo ao pedido reconvencional do réu. A decisão do OLG Hamm Em apertada síntese, o município, autor da ação, pleiteava a invalidade do negócio por indeterminação do objeto contratual, hipótese prevista expressamente no direito brasileiro no art. 166 II CC. Subsidiariamente, requeria a extinção do contrato alegando vício na coisa ou quebra da base subjetiva do negócio. O Oberlandesgericht (OLG) Hamm entendeu que se tratava de contrato válido, com obrigação suficientemente determinada, tendo em vista que a área a ser permutada era perfeitamente identificável e mensurável através da planta do imóvel, anexo ao contrato. Segundo o Tribunal, não caberia recurso ao instituto da quebra da base do negócio (§ 313 BGB), pois sua aplicação é afastada pelas regras especiais do direito dos vícios redibitórios. No caso, porém, a Corte entendeu que o município não tinha qualquer pretensão redibitória, uma vez que as partes afastaram expressamente quaisquer garantias e responsabilidades pela dimensão dos respectivos terrenos. Dessa forma, o Tribunal a quo condenou o Poder Público a cumprir a obrigação de pavimentar a estrada de terra localizada no terreno do réu. A decisão do Bundesgerichtshof Por meio da interposição do recurso de Revision, o caso subiu ao BGH, que reformou a decisão, restaurando a sentença que determinou a extinção do contrato. Segundo a Corte de Karlsruhe, houve quebra da base subjetiva do negócio jurídico e violação do dever de colaborar com a revisão contratual, nos termos do § 313 II-III BGB. Diz a ementa: A pretensão da parte prejudicada por uma perturbação na base do negócio de readaptar o contrato obriga a contraparte a cooperar para o ajustamento. Diante da recusa em colaborar, a parte prejudicada pode requerer judicialmente o consentimento para o ajustamento considerado adequado ou pleitear diretamente a prestação resultante do ajuste. A violação do dever de colaborar com a adaptação do contrato pode dar origem a pretensões indenizatórias, nos termos do § 280 I do BGB. Ela só autoriza a parte prejudicada a rescindir o contrato sob os pressupostos do § 313 III do BGB.6 Inicialmente, o BGH rejeitou a alegação de invalidade do negócio, pleiteada pelo município com base na suposta indeterminação do objeto do contrato. Isso porque, em caso de venda de terreno não submetido a mensuração prévia, se houver divergência entre a metragem indicada na planta e a metragem aproximada indicada no contrato, prevalece a primeira. Nesses casos, entende-se que a vontade objetiva do contratante está direcionada à aquisição da área representada e delimitada na planta. Esse entendimento não destoa no direito brasileiro, que distingue a venda ad corpus, em que o imóvel é vendido como coisa certa e determinada, figurando as dimensões como meramente enunciativas, e a venda ad mensuram, i.e., por medida de extensão, em que a extensão da área é decisiva para a definição do preço de modo que, quando a dimensão real não corresponde à dimensão informada, o comprador tem o direito de exigir o complemento da área ou, não sendo possível, pleitear abatimento proporcional do preço ou a resolução do contrato, nos termos do art. 500 CC. O BGH, porém, entendeu que naquele caso a divergência de áreas não constituiu vício na coisa. A uma, porque, a rigor, objetivamente falando, o terreno não apresentava vício algum. A duas, porque também não se podia falar em vício em sentido subjetivo, nos termos do § 437 I BGB, o qual surge quando o objeto não apresenta as características acordadas entre as partes no contrato. Com efeito, para o Tribunal, o que foi objetivamente pactuado era que o credor - como na venda ad mensuram - receberia a extensão de terra correspondente à área representada em escala na planta, o que, de fato, ocorreu. Logo, não se poderia falar em vício em sentido subjetivo como desvio das características pactuadas no contrato. O fato das partes terem afastado expressamente a responsabilidade por vícios na coisa, bem como quaisquer garantias pelas características - inclusive pela dimensão - do terreno corrobora, na visão da Corte, a conclusão de que elas não fizeram um acordo sobre a extensão exata do terreno, o qual seria, ao contrário, adquirido em sua dimensão real a ser apurada com base na planta do imóvel. Para o BGH, o que houve, de fato, foi uma falsa representação das circunstâncias do negócio pelos contratantes. Adotando as conclusões da sentença, a Corte de Karlsruhe afirmou que o município partiu da ideia - perceptível, mas não contestada pela contraparte - de que os imóveis possuíam aproximadamente as mesmas dimensões. Decisivo não foi a representação feita acerca de determinada qualidade da coisa, mas a representação acerca da relação de valor (equivalência) entre prestação e contraprestação (relação de troca de 1:1), circunstância sobre a qual as partes alicerçaram a decisão de contratar e que configura a base subjetiva do negócio, prevista no § 313 II BGB. Com efeito, a jurisprudência alemã há décadas considera a representação das partes sobre a equivalência das prestações como base subjetiva nos contratos bilaterais7. Aqui cabe um parêntese para recordar que a base do negócio pode ser analisada sob os aspectos objetivo e subjetivo. Enquanto a base objetiva são aquelas circunstâncias externas (condições políticas, socioeconômicas, legais, técnicas, tecnológicas, climáticas, etc.), presentes no momento da celebração, que consciente ou inconscientemente influenciam na formação da vontade de contratar, a base subjetiva são as representações comuns das partes (ou de uma delas, sem objeção da outra) acerca da existência (ou futura ocorrência) de circunstâncias relevantes do negócio. No caso sub judice, como as representações das partes acerca da relação de equivalência entre prestação e contraprestação mostraram-se equivocadas quando posteriormente se apurou que um dos terrenos possuía 10.000m2 a menos que o incialmente suposto, houve uma perturbação na base do negócio jurídico tornando irrazoável, devido à sua magnitude, a manutenção do contrato nos termos inicialmente pactuados. A situação fática assemelha-se às hipóteses de erro sobre as qualidades essenciais do objeto, que dá ensejo à anulação do negócio tanto no direito alemão (§ 119 II BGB), quanto no direito nacional (arts. 138 e 139 I CC). Sem enfrentar, contudo, o espinhoso problema da concorrência entre os institutos do erro e da perturbação na base do negócio, o BGH limitou-se a afirmar que o erro comum às partes não impede a readaptação do contrato. De fato, doutrina e jurisprudência admitem, em casos excepcionais, que o erro comum às partes acerca de questões fáticas ou jurídicas relevantes (pense-se, por exemplo, no erro sobre o faturamento a ser alcançado com o objeto arrendado) permite a revisão do contrato quando, devido à relevância do erro, for irrazoável manter inalterados os termos inicialmente pactuados8. Porém, apesar dos hard cases, a base subjetiva do negócio distingue-se da figura do erro, como mostra o famoso caso da coroação de Eduardo VII, no qual a festa da celebração fora cancelada de última hora, frustrando a utilidade - e a finalidade - dos contratos de locação das sacadas dos imóveis localizados nas ruas por onde passaria o cortejo real. Nesse caso, locador e locatário não estavam em erro no momento da conclusão do contrato: ambos fizeram uma leitura correta da realidade, qual seja, que iria acontecer, como programado, a solenidade da coroação do monarca e, por esse motivo, celebraram o negócio. Logo, a festividade integrou a base (subjetiva) do negócio para ambos os contratantes. Porém, a superveniência de evento extraordinário e imprevisível (doença repentina do rei) alterou profundamente a base do negócio, impedindo que o contrato alcançasse sua finalidade primordial: permitir ao locatário assistir à festa da coroação. Aqui, contudo, não é o locus adequado para discutir as distinções e intersecções entre as figuras do erro e da perturbação da base do negócio, sob pena de fugir-se à questão de fundo discutida no acórdão: a existência de um dever jurídico de colaborar com a revisão do contrato. Tendo em vista a considerável diferença de metragem entre os imóveis (10.000 m2), o que representava um desvio de 35% em relação à área na qual as partes basearam seu consentimento, o BGH afirmou que não seria razoável exigir que o autor cumprisse o contrato em seus termos originais - muito embora fosse razoável esperar que o réu se afastasse do pactuado, por exemplo, restituindo parte da área correspondente à diferença de extensão dos terrenos. E, dessa forma, a Corte concluiu que a parte prejudicada com a perturbação na base do negócio estava legitimada a resolver o contrato, não obstante o § 313 III BGB privilegie, em princípio, a readaptação à extinção do contrato. Embora no caso concreto o réu tenha ignorado todas as tentativas do autor de renegociar amigavelmente o contrato, o BGH ressaltou que o direito de rescisão não surge pelo simples fato da contraparte se recusar a colaborar com a revisão contratual. Porém, em situações excepcionais, a recusa em "corresponder" à demanda legítima da parte prejudicada torna irrazoável a manutenção inalterada do pacto, justificando a extinção do vínculo contratual. Doutrina e jurisprudência alemãs explicam que a primazia da revisão contratual, vale dizer, o primado da conservação do contrato justifica-se pelo fato de que a extinção representa uma intervenção maior na autonomia privada dos contratantes do que a revisão. Por isso, o § 313 III BGB consagra a extinção contratual como medida excepcional, cabível apenas nos casos em que o reajuste do contrato se mostra impossível ou irrazoável para uma das partes. Mas quando as partes não estão interessadas na preservação do contrato, a prioridade da manutenção do negócio perde sua razão de ser. Foi o que aconteceu no caso concreto no qual o réu ignorou, sem qualquer justificativa, as tentativas do autor de renegociar extrajudicialmente a modificação do contrato, não se opondo também ao pedido de extinção contratual formulado na ação judicial pelo Poder Público. Isso levou a Corte a concluir que - face ao dever de colaborar para a adaptação do contrato - o comportamento do réu só poderia ser objetivamente interpretado como concordância tácita ao pedido de rescisão contratual formulado pela parte prejudicada. Falta, porém, ao acórdão uma fundamentação adequada para o reconhecimento do polêmico dever de renegociar. Com efeito, rechaçando a corrente majoritária contrária à imposição ex bonna fides desse dever lateral de conduta, a Corte limitou-se a afirmar que ao direito da parte prejudicada de readaptar o contrato, reconhecido no § 313 I BGB, correspondia o dever da contraparte de colaborar com o reajuste. "Pretensão e dever são dois lados do mesmo direito",9 afirmou o 5º. Senado do BGH. Assim, a pretensão da parte prejudicada à adaptação do contrato obrigaria a contraparte a colaborar com a modificação dos termos do negócio. Ante a recusa da contraparte em renegociar, pode a parte prejudicada requerer judicialmente a concordância daquela com a adaptação por ela tida como adequada ou exigir diretamente a prestação resultante dessa adaptação. A violação do dever de renegociar dá ensejo ao dever de indenizar, nos termos do § 280 I BGB, só justificando a rescisão do contrato em casos excepcionais, nos termos do § 313 III BGB.  Resumo da ópera Muito embora o dever de renegociar (Neuverhandlungspflicht) ou dever de colaborar (Mitwirkungspflicht) para a alteração do contrato seja defendido por importantes vozes no direito alemão, não faltaram críticas e oposições à decisão do Bundesgerichtshof10. E a primeira remonta a um dado histórico: o legislador não quis positivar na Codificação o dever de renegociar ou de colaborar para a readaptação do contrato às novas circunstâncias. Além do recurso à sempre questionável vontade de um (fictício) legislador omnisciente, outras convincentes razões de fundo depõem contra a existência do dever de renegociar. A ausência de um conteúdo material judicialmente exigível constitui, sem dúvida, um óbice de difícil superação, pois o fato de se tratar de um dever meramente procedimental que impõe às partes tão só um renegociar de boa-fé, i.e., um empenhar-se honestamente (seja lá o que isso signifique no caso concreto) para o alcance do consenso, dificulta sua exigibilidade em juízo. Outra objeção diz respeito à utilidade prática e à eficiência econômica desse dever, pois, embora obrigue as partes a investir tempo e dinheiro em conversações, fica ele privado de qualquer serventia quando os contratantes não chegam a consenso na medida em que o contrato permanece desequilibrado. E a falta de entendimento quanto à readaptação dá munição para que vozes antirevisionistas, contrárias a qualquer intervenção do juiz nos contratos, ponham em xeque a legitimidade do julgador para reequilibrar o pacto quando as próprias partes amigavelmente não o fazem. A aceitar-se tal argumento, o próprio dever de renegociar inviabilizaria a revisão contratual sempre que uma parte (até maliciosamente) impedisse o consenso, tornando a figura contraproducente. Esse argumento, porém, é falacioso, pois a doutrina mais abalizada sempre entendeu que, diante do dissenso, cabe ao juiz a tarefa de reequilibrar o contrato, como, aliás, prevê o art. 1.195 do Código Civil francês, de acordo com a nova redação dada pela reforma de 201611. Ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, o dispositivo não impõe um dever de renegociar, mas apenas exorta os contratantes a renegociar. Com efeito, a norma estabelece que a parte prejudicada por mudanças imprevisíveis das circunstâncias presentes na conclusão do contrato (base do negócio) pode requerer da contraparte a renegociação das condições contratuais se a execução se tornar excessivamente onerosa, devendo, contudo, nesse ínterim, continuar a adimplir suas obrigações. Em caso de recusa em renegociar ou de fracasso das conversações, as partes podem rescindir amigavelmente o negócio ou requerer ao juiz que proceda à revisão ou extinção do contrato. Ou seja, mesmo na França, último baluarte da (obsoleta) corrente contrária à revisão judicial dos contratos, o legislador atribui ao julgador pode alterar o negócio quando as partes não chegam a consenso. No Brasil, o dever de renegociar não tem base legal, salvo se - e enquanto - admitido como um dever ético-jurídico, deduzido da boa-fé (art. 422 CC) na fase de execução do contrato, momento no qual a superveniência se põe. Consequência lógica e necessária desse reconhecimento é que sua violação culposa configura o que Herman Staub batizou de violação positiva do contrato (positive Vertragsverletzung), que atualmente pode ser compreendida como o descumprimento dos deveres laterais da boa-fé durante a fase de execução do contrato. Com efeito, seria grave deturpação conceitual classificar como mora o descumprimento do dever de renegociar, vez que a alteração das circunstâncias pode se dar antes do termo e, ademais, o dever tem por escopo justamente viabilizar a execução do contrato, desequilibrado por eventos extraordinários e imprevisíveis não imputáveis à esfera de risco e responsabilidade do devedor. Da mesma forma, descabido o enquadramento como responsabilidade pré-contratual (culpa in contrahendo), pois o dever de renegociar não surge na fase pré-contratual, na qual ainda inexiste o próprio contrato, mas na fase da execução, logicamente superveniente à celebração. Dessa forma, aceitar a existência de um dever de renegociar ex bonna fides exige, lógica e substancialmente, reconhecer os institutos da quebra da base do negócio jurídico e da violação positiva do contrato no direito brasileiro. Do contrário, incorrer-se-ia na incoerente postura de colher o fruto, mas rejeitar a árvore. __________ 1 FINKENAUER, Thomas. In: Munchener Kommentar BGB. Wolfgang Krüger (redator). v. 2 §§ 241-432. 7a ed. München: Beck, 2016, p. 1921.  2 Dentre outros: LORENZ, Stephan; RIEHM, Thomas. Lehrbuch zum neuen Schuldrecht. München: Beck, 2002, p. 197. Confira, ainda: NUNES FRITZ, Karina. Webinar debate a revisão contratual sob a perspectiva do STJ e do BGH. German Report, Migalhas, 13/7/2022. 3 No original: "§ 19. Fortfall der Geschäftsgrundlage. Wird infolge einer Veränderung der allgemeinen Verhältnisse, mit deren Fortdauer die Beteiligten beim Vertragsschluss gerechnet hatten, das typische oder das nach dem Sinn des Vertrages vorausgesetzte Gleichgewicht von Leistung und Gegenleistung völlig zerstört, so ist jeder Teil verpflichtet, zu einer der Billigkeit entschenden Apassung des Vertragsinhalts an die veränderten Verhältnisse mitzuwirken. Kommt eine Einigung hierüber nicht zustande, so kann jeder Teil richterliche Vertragsgestaltung begehren. Ist eine Anpassung an die geänderten Verhältnisse untunlich, so kann jeder Teil das Vertragsverhältnis mit sofortiger Wirkung kündigen.". SCHMIDT, Jürgen, In: Staudinger Kommentar zum BGB. Michael Martinek (redator). 13a ed. Berlin: de Gruyter, 1995, p. 593. 4 Confira-se: Neuverhandlungspflicht. AcP 181 (1981), p. 255-288 e Gutachten und Vorschläge zur Überbearbeitung des Schuldrechts, v. 1, 1981. O tema é novamente abordado no artigo Die Anpassung langfristiger Verträge im internationalen Wirtschaftsverkehr. In: Die Anpassung langfristiger Verträge. Kötz, Marschall v. Bieberstein (editores). Frankfurt a.M., 1984. 5 No mesmo sentido: FIKENAUER, Thomas. In: Münchener Kommentar zum BGB. Wolfgang Krüger (redator). Bd. 2. 7a ed. München: Beck, 2016, § 313, Rn. 122, p. 1921. 6 Tradução livre: "Der Anspruch der durch eine Störung der Geschäftsgrundlage benachteilig-ten Partei auf Vertragsanpassung verpflichtet die andere Partei, an der An-passung mitzuwirken. Wird die Mitwirkung verweigert, kann die benachteilig-te Partei auf Zustimmung zu der als angemessen erachteten Anpassung oder unmittelbar auf die Leistung klagen, die sich aus dieser Anpassung ergibt. Die Verletzung der Verpflichtung, an der Anpassung des Vertrages mitzuwir-ken, kann Schadensersatzansprüche nach § 280 Abs. 1 BGB auslösen. Zu einem Rücktritt vom Vertrag berechtigt sie die benachteiligte Partei nur unter den Voraussetzungen des § 313 Abs. 3 BGB." 7 SCHMIDT, Jürgen. Op. Cit., p. 578.  8 Dentre outros: LORENZ, Stephan; RIEHM, Thomas. Lehrbuch zum neuen Schuldrecht. München: Beck, 2002, p. 206. 9 No original: "Anspruch und Verpflichtung sind zwei Seiten desselben Rechts.". BGH V ZR 17/11, Rn. 34, p. 14. 10 Dentre outros: THOLE, Christoph. Renaissance der Lehre von der Neuverhandlungspflicht bei § 313 BGB? JZ 69 (2014), p. 443-450. 11 Sobre a revisão judicial no direito francês, seja consentido remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Alteração das circunstâncias do negócio: como o direito francês poderia inspirar o PL n. 1.179/2020. Data da publicação: 27/4/2020. Disponível aqui.
Em recentíssima decisão, publicada no último dia 15 de setembro, a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - afirmou que a disponibilização de dados e informações em data room pelo vendedor não afasta automaticamente seu dever pré-contratual de informação e esclarecimento. Dessa forma, o vendedor de um imóvel deve informar suficientemente o comprador sobre custos futuros de reforma das áreas comuns do prédio, sendo insuficiente a inserção de documentos no ambiente virtual pouco antes da conclusão do contrato sem alertar o comprador. Os detalhes do caso A ré vendeu à autora, em 25/5/2019, mediante escritura pública, várias unidades comerciais de um complexo imobiliário em Hanover pelo preço de 1.525.000,00 euros, com exclusão de responsabilidade por vícios materiais no bem. No contrato de compra e venda, a vendedora garantia que não haver qualquer deliberação condominial estipulando a obrigatoriedade de pagamentos extraordinários pela compradora - salvo custos com a renovação do telhado no montante anual de ? 5.600,00. No decurso das negociações, a vendedora criou e disponibilizou para acesso e análise da compradora um data room com vários documentos relativos ao imóvel. Dentre os documentos encontrava-se, porém, uma ata da assembleia de condôminos do ano de 2016, na qual os proprietários decidiram repartir os custos de medidas de modernização das áreas comuns do complexo imobiliário. O problema é que o documento foi inserido na nuvem em uma sexta-feira e na segunda-feira seguinte as partes já tinham horário marcado no cartório para assinar a escritura de compra e venda. E como a vendedora nada disse à compradora, esta não viu o documento disponibilizado no apagar das luzes das tratativas. Após a aquisição da propriedade das unidades comerciais, a compradora foi surpreendida com a demanda dos coproprietários, com base na referida deliberação condominial, para assumir parte dos custos de reforma do complexo imobiliário. Ela, então, requereu o desfazimento do contrato alegando ter sido vítima de dolo (arglistige Täuschung) por parte da vendedora e pleiteando indenização por perdas e danos em decorrência da violação do dever pré-contratual de informação e/ou esclarecimento. O juiz de primeira instância julgou improcedente a ação, sentença confirmada em segunda instância pelo Oberlandesgericht Celle, que entendeu que a compradora tinha o ônus de levantar todas as informações necessárias antes da conclusão do negócio. O processo subiu ao BGH por meio do recurso de Revision, tendo a Corte de Karlsruhe, em síntese, devolvido o caso para novo julgamento. A decisão do Bundesgerichtshof A despeito das declarações e garantidas prestadas pelo vendedor, o BGH salientou que a quaestio iuris posta não dizia respeito a um vício material ou jurídico na coisa, mas sim à falha informacional durante a fase pré-contratual e, portanto, a um caso típico de culpa in contrahendo, i.e., de responsabilidade pré-contratual, positivada no § 311, inc. 2, n. 1 do BGB após a reforma do Código Civil alemão em 2002. O dispositivo estabelece que, com a entrada em negociações, surge entre os contraentes uma relação obrigacional com os deveres de consideração do § 241, inc. 2 do BGB, os quais obrigam as partes reciprocamente a ter consideração pelos bens, direitos e interesses legítimos da contraparte1.   Dentre os deveres de consideração (Rücksichtspflichten) - desenvolvidos histórica e substancialmente à partir do princípio da boa-fé objetiva, consagrado no § 242 do BGB - destacam-se os deveres de informação e esclarecimento, que obrigam uma parte a informar a outra acerca daquelas circunstâncias especiais sobre as quais tem (fácil) conhecimento e sabe - ou deveria saber - que influenciam decisivamente a decisão de contratar da contraparte, pois podem, por exemplo, pôr em risco a execução ou o alcance do sentido e do escopo do contrato2.   A regra, contudo, no direito alemão (e brasileiro) é que, pelo menos em relações paritárias, cada parte deve buscar as informações necessárias para a formação de sua decisão de contratar, pois presume-se que ambas tenham acesso - inclusive na mesma extensão - às mesmas fontes de informações, podendo igualmente se informar sobre as chances e riscos do negócio. Vigora aqui, em princípio, o ônus da autoinformação (Eigeninformationslast) e da autorresponsabilidade (Selbstverantwortung), inerentes à autonomia privada. Isso só vale, entretanto, quando se tratam de informações gerais de mercado, ou seja, aquelas informações que estão disponíveis para conhecimento geral. Quando se tratam, contudo, de informações sobre circunstâncias especiais, que impactam diretamente a decisão de contratar da contraparte, a parte que as detém - ou que a elas pode obter acesso com mais facilidade - deve comunica-las espontaneamente à outra3. O BGH fala, nesse sentido, em "circunstâncias de revelação obrigatória" ou offenbarungspflichtige Umstände. Por isso, o Tribunal afirmou que, no caso concreto, a vendedora deveria ter esclarecido espontaneamente - ou seja, ainda quando não questionada - a contraparte de que poderiam vir a surgir custos elevados em razão da reforma do objeto do contrato, pois o conhecimento dessas despesas e de sua extensão tinha grande relevância para a decisão da compradora de celebrar (ou não) o contrato. Esse esclarecimento era devido ainda quando os mencionados custos fossem suportados preponderante pela maioria dos coproprietários e mesmo que o valor exato ainda não tivesse sido apurado no momento da celebração, pois, em todo caso, havia para a compradora o risco concreto de ter que suportar parte desses custos futuramente. Como bem apontou o Bundesgerichtshof, o cerne da questão era saber se a compradora havia sido ou não suficientemente esclarecida antes da conclusão do negócio. E, para os juízes de Karlsruhe, a vendedora não se desincumbiu do dever ao ter simplesmente inserido no data room a ata da assembleia condominial na qual constava aquela informação.   Ou seja, a simples possibilidade do comprador obter por si próprio conhecimento acerca das circunstâncias de divulgação obrigatória, não exclui automaticamente o dever de informação e esclarecimento do vendedor. Um vendedor sensato e honesto pode até legitimamente supor que, em caso de vistoria, o comprador logo identificará os vícios perceptíveis na coisa e que, por isso, não será necessário qualquer esclarecimento adicional de sua parte. Mas há diferença considerável entre inspecionar in loco o objeto contratual e ter acesso apenas a dados e documentos. Ademais, segundo o BGH, o vendedor não pode esperar que o comprador vá procurar pelos vícios da coisa nos documentos de financiamento ou numa pasta com documentos sobre o objeto do contrato. O mesmo raciocínio deve ser aplicado mutatis mutandis aos casos em que o vendedor cria um data room com documentos acerca do objeto da compra e venda e franqueia seu acesso ao comprador. Em outras palavras: o simples fato do vendedor criar uma sala on-line de dados e liberar o acesso a tais dados e informações ao interessado não autoriza sempre a conclusão de que o potencial comprador tomará conhecimento das circunstâncias de revelação obrigatória. Logo, o vendedor de um imóvel, que concede ao comprador acesso a uma nuvem com documentos e informações sobre o bem, só cumpre seu dever de informação e esclarecimento se e na medida em que ele pode legitimamente supor que o comprador, através da consulta ao data room, tomará conhecimento das circunstâncias de divulgação obrigatória. E isso depende das peculiaridades do caso concreto, por exemplo, se e em que medida o comprador realizou uma due diligence (o que, por lei, não está obrigado a fazer), como o data room e seu acesso foram estruturados e organizados, quais regras foram acordadas em relação a isso, a importância da informação que deveria ter sido revelada, o grau de facilidade/dificuldade para encontrá-la no banco de dados, etc. No caso sub judice, a vendedora não poderia legitimamente supor que a compradora tomaria conhecimento da informação, contida na ata da assembleia condominial, antes da celebração do contrato, pois ela só inseriu o documento na nuvem no dia 22/3/2019, na véspera do fim de semana que antecedeu a celebração do contrato e não alertou a compradora para esse fato. A compradora, por seu turno, sem um alerta especial acerca do documento recém inserido, não tinha motivos para acessar o data room antes da manhã de segunda-feira (25/3/2019), data na qual as partes compareceram em cartório para celebrar a escritura de compra e venda. Dessa forma, o Tribunal concluiu que a compradora fazia jus à indenização dos danos sofridos em decorrência da violação culposa do dever pré-contratual de esclarecimento pela vendedora, nos termos dos § 280, inc. 1 c/c os §§ 241, inc. 2 e 311, inc. 2, n. 1 do BGB, vale dizer, por responsabilidade pré-contratual por violação do dever de informação e esclarecimento. Concluindo, pode-se dizer que o acórdão do BGH constitui significativo reforço dos deveres pré-contratuais dos vendedores de imóveis. O vendedor deve informar o comprador, de forma proativa, acerca de questões essenciais, como um investimento elevado que precisará ser realizado no bem em futuro próximo. Se algo for acrescentado à transação, isso não pode ser feito secretamente, devendo, ao contrário, ser claramente indicado pelo vendedor com a devida antecedência a fim de que o comprador não seja pego de surpresa no momento da celebração do contrato e lhe sobre tempo suficiente para examinar a questão.  Paralelo com o Brasil Em apertada síntese, pode-se dizer que o controle do efetivo cumprimento dos deveres de informação e esclarecimento, principalmente no âmbito de relações eminentemente privadas, ainda carece de aprofundamentos no direito brasileiro. É provável que, em situação análoga à aqui descrita, parte da doutrina e da jurisprudência entenda que o vendedor se desincumbiu de seus deveres informacionais simplesmente por ter disponibilizado a mencionada informação no data room. Até porque muitos sustentam - com base na boa-fé! - que o comprador tem o dever de se informar sobre todas as circunstâncias relevantes para a formação de sua decisão negocial, ignorando que o comprador, via de regra, não tem acesso a essas informações como tem em relação às informações gerais disponíveis no mercado, sobre as quais recai efetivamente o ônus da autoinformação. Talvez alguns considerem descumprido o dever pré-contratual devido ao tempo exíguo no qual a informação foi inserida no data room, muito embora parte significativa da doutrina entenda que a realização de due diligence afasta ou mitiga consideravelmente os deveres de informação do vendedor. Mas, no atual estágio da arte, é improvável que se sustente - como faz o BGH - que o vendedor só cumpre seu dever de informação e esclarecimento se e na medida em que ele puder legitimamente supor que o comprador, através da consulta ao data room, tomará conhecimento das circunstâncias que influenciam diretamente sua decisão negocial e que, por isso, são de divulgação obrigatória. De qualquer forma, admitida a violação do dever, surge outro problema relacionado a seu enquadramento dogmático: a doutrina majoritária tende a classificar as falhas informacionais durante a fase de preparação do contrato ora como dolo, ora como erro, ora como ambos. No rigor dogmático, porém, as figuras não se confundem. Enquanto o erro consiste em uma falha endógena na formação da vontade, oriunda da esfera de responsabilidade do próprio sujeito, o dolo nada mais é que o descumprimento intencional do dever de informação pré-contratual e, portanto, uma hipótese de responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Contudo, a responsabilidade surge ainda quando os deveres informacionais são violados negligentemente, como ocorreria se, no caso mencionado, o vendedor tivesse deixado de inserir no data room, por descuido, um bloco de documentos, dentre os quais a ata da assembleia dos condôminos, onde a informação sobre os custos da reforma poderia ser encontrada.    Nos casos de violação - dolosa ou negligente - dos deveres de informação e esclarecimento, tem-se uma falha exógena na formação da vontade (rectius: decisão de contratar) da parte, destinatária da informação, falha esta oriunda da esfera de responsabilidade da contraparte e que, portanto, não pode ser qualificada juridicamente como erro. Em outras palavras: indução (dolosa ou negligente) ao erro não é tecnicamente a mesma coisa que erro. A indução ao erro decorrente de falhas informacionais no período pré-contratual configura uma hipótese de responsabilidade in contrahendo por violação dos deveres de informação. Alguns autores procuram ainda ampliar o conceito de dolo para abarcar tanto a violação intencional, quanto a culposa dos deveres de informação, falando-se até em "dolo culposo", o que constitui grave contradictio in terminis tendo em vista que desde o direito romano o vocábulo dolus exprime uma ação intencional.  Além de perversão conceitual, a ampliação do instituto do dolo mostra-se desnecessária, pois a figura é inadequada para solucionar os problemas resultantes da violação dos demais deveres pré-contratuais da boa-fé, a exemplo do dever de lealdade, cujo descumprimento no estágio pré-contratual pode dar ensejo à configuração da responsabilidade in contrahendo por rompimento imotivado das negociações. Dessa forma, a solução mais coerente é reconhecer o instituto da responsabilidade pré-contratual ou, na terminologia de Rudolf von Jhering, culpa in contrahendo, categoria geral apta a abranger a violação (dolosa ou negligente) de qualquer um dos deveres da boa-fé na fase de preparação do contrato e que não se limita, ao contrário do que comumente se pensa, aos casos de rompimento imotivado das negociações. __________ 1 Os §§ 241 II e 311 II do BGB consolidam uma riquíssima dogmática desenvolvida ao longo do século 20 pela doutrina e jurisprudência alemãs que não pode ser aqui explicitada. À guisa de exemplo, basta mencionar que o § 311 II do BGB, ao se referir expressamente a uma relação obrigacional entre as partes durante a longa fase de preparação do contrato, consagra na lei a figura da relação obrigacional sem prestação, identificada inicialmente por Heinrich Stoll e aperfeiçoada por Karl Larenz, ideia que revolucionou - e modernizou - o conceito de obrigação herdado do direito romano. Sobre o tema, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. RDCC v. 15, 2018, p. 161-207. 2 EMMERICH, Christian. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. Wolfgang Krüger (coord.). v. 2, 7a ed. München: Beck, 2016, p. 1599. 3 EMMERICH, Christian. Op. Cit., p. 1599. Permita-se referir ainda a: NUNES FRITZ, Karina. Die culpa in contrahendo im deutschen und brasilianischen Recht - ein Vorvertragsregime auf der Grundlage der deutschen Schuldrechtsdogmatik. Berlin: de Gruyter, 2018, p. 393.
"O Estado democrático de direito não pode e não deve se entregar nas mãos de seus aniquiladores"Josef Christ No último dia 16 de agosto, o juiz do Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), Josef Christ, proferiu conferência magna no Tribunal Superior Eleitoral sobre o tema "Democracia defensiva". O evento contou com a presença de diversas autoridades, dentre as quais os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes (Supremo Tribunal Federal), Paulo Sérgio Domingues (Superior Tribunal de Justiça) e Jorge Messias (Advocacia Geral da União). Josef Christ veio participar de um ciclo de palestras organizado pelo Fórum de Democracia Europa-Brasil, coordenado pelo Diplomata Emil Richter, da Embaixada da Alemanha em Brasília, e pelo Fórum Jurídico Brasil-Alemanha, um fórum acadêmico coordenado por esta articulista. Durante a visita, o juiz do Bundesverfassungsgericht (BVerfG) falou ainda na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e no Tribunal Regional da 5ª região, em Recife, onde visitou a renomada Faculdade de Direito e conheceu um pouco da história da Escola do Recife de Tobias Barreto e Silvio Romero. O público brasileiro teve a oportunidade ímpar de ouvir, em primeira mão, acerca de um tema crucial para o nosso tempo: a democracia defensiva. De fato, o assunto não poderia ser mais relevante na medida em que - após a tragédia humanitária causada pelo totalitarismo no séc. 20 - observamos atônitos o crescimento de manifestações antidemocráticas em várias partes do globo. Itália, Espanha, Finlândia e Suécia - apenas para mencionar alguns países europeus - enfrentam o crescimento de partidos de extrema direita de cunho nacionalista, conservador, xenófobo e antidemocrático. Hungria e Polônia, com governos autoritários camuflados sob as vestes de um Estado liberal, há tempos desafiam a harmonia institucional no continente europeu, desrespeitando os padrões democráticos vigentes na Europa. Na América Latina, Venezuela, Nicarágua e Cuba dificultam a consolidação da democracia na região. Nesse contexto, Brasil e Alemanha não ficam imunes e enfrentam, em maior ou menor medida, os mesmos problemas, principalmente o crescimento do populismo e do extremismo político, que - conquanto não seja um problema novo - ganha dimensão alarmante com as novas mídias sociais, utilizadas como canais de propagação de desinformação, discursos de ódio contra grupos minoritários e de ataques aos valores constitucionais e às instituições democráticas. Na Alemanha, o partido de extrema direita, AfD (Alternativa para a Alemanha), que está oficialmente sob observação do Órgão Federal de Proteção da Constituição (Bundesamt für Verfassungsschutz), elegeu recentemente o prefeito de uma pequena cidade no estado da Alta Saxônia, antiga Alemanha Oriental, onde o extremismo e neonazismo têm raízes profundas. O assassinato em 2019 do político Walter Lübcke e a prisão, em dezembro do ano passado, de membros do grupo "Cidadãos do Império" (Reichsbürger), que planejavam derrubar o governo e a ordem constitucional vigente, mostram que o combate ao extremismo político é uma pauta a ser enfrentada pelo Estado em suas três esferas: Executivo, Legislativo e Judiciário. No Brasil, o extremismo político alcançou seu ápice em janeiro desse ano com a depredação dos prédios dos principais poderes da República (Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal) por um grupo de cidadãos inconformados com o resultado das eleições presidenciais que pediam a instauração de um governo militar no país. Mas não só: o Supremo Tribunal Federal passou a ser alvo de uma campanha que pretende desacreditar o Tribunal, transformando-o em inimigo da sociedade brasileira1. Seus ministros são alvos frequentes de ataques e ameaças nas redes sociais, que extrapolam o legitimo direito de crítica e descambam para práticas criminosas. Não se pode ignorar ou banalizar o efeito deslegitimador e desestabilizador dessas narrativas, pois os regimes autoritários contemporâneos principiam por desacreditar a Corte Constitucional e a reformar o sistema judiciário sob o pretenso combate ao ativismo judicial, atacando os preceitos essenciais da democracia liberal: separação de poderes, direitos humanos, liberdades civis, liberdade de expressão e reunião, e eleições livres, deformando o regime em uma democracia iliberal. Hungria e Polônia são exemplos dessa estratégia, seguida agora por Israel que - também sob o pretexto de combater os excessos judiciais - aprovou há pouco uma reforma que pretende sujeitar a Suprema Corte, na prática, a um Parlamento conservador, em claro processo de erosão institucional e democrática. Segundo Elmar Esser, Presidente da Associação de Juristas Alemã-Israelita, há mais de 180 projetos de lei tramitando no Parlamento israelense com o objetivo de subjugar o Poder Judiciário, v.g., reduzindo suas competências, alterando as regras de ingresso e progressão na carreira e até submetendo a ordem dos advogados de Israel ao controle do Ministério da Justiça2. Isso deve servir de alerta por aqui diante da tão discutida reforma do Judiciário a fim de que - também sob a bandeira da liberdade e do combate ao ativismo - não se enfraqueça um poder que, conquanto carente de aperfeiçoamento, é essencial para a manutenção da democracia brasileira. Nesse contexto, surgem questões angustiantes: Como lidar - em um Estado Democrático de Direito - com ideias e movimentos antidemocráticos? Como lidar com aqueles que, sob o escudo da liberdade de expressão, pretendem derrubar a ordem constitucional vigente ou difundir desinformação e ódio na população, destruindo valores e conquistas importantes da nossa civilização? Quais os limites do direito à informação e da liberdade de expressão? E qual a responsabilidade das grandes plataformas digitais nesse contexto? E mais: Qual o significado do dever de lealdade que agentes e funcionários públicos, inclusive magistrados, têm para com a Constituição? Ou será que o compromisso de respeitar a Constituição, feito pelos juízes no momento da investidura no cargo, tem eficácia mitigada? Magistrados alinhados a ideologias antidemocráticas devem ter o poder de dizer o que é direito no caso concreto? Em suma: como o Estado Democrático de Direito deve se defender contra os ataques de seus inimigos? E aqui vale o alerta feito recentemente pelo presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier: uma coisa são os opositores políticos; outra, os inimigos da Constituição3. Todas essas são questões complexas que desafiam o nosso tempo, como pontuou Josef Christ. Segundo ele, os Estados liberais e democráticos estão sob pressão em todo o mundo, pois as forças que rejeitam a liberdade e a democracia têm crescido ultimamente. Com isso, cresce também o temor de que até mesmo democracias consolidadas possam entrar em crise. Democracias liberais no mundo inteiro estão diante de um dilema: Pode o Estado garantir liberdade até mesmo aos inimigos da liberdade? Um Estado deixa de ser liberal por não tolerar essas forças? A Lei Fundamental alemã (Grundgesetz) de 1949, da mesma forma que a nossa Constituição de 1988, garante a todo cidadão diversas liberdades. Em princípio, mesmo aqueles que rejeitam a orientação livre e democrática da Lei Fundamental e o Estado de Direito podem invocar essa liberdade, pois seu art. 5°, inc. 1° garante a todo indivíduo o direito de expressar e divulgar livremente sua opinião - norma que encontra similar no art. 5° IV da Constituição brasileira. O Bundesverfassungsgericht já afirmou diversas vezes que essa liberdade de expressão cabe também aos cidadãos que rejeitam os valores fundamentais da Constituição e que o art. 5°, inc. 1° da Lei Fundamental protege até mesmo opiniões que defendam a extinção da democracia liberal, desde que manifestadas de forma pacífica e não através de meios violentos e combativos.   A norma se ampara na crença na força do livre embate de ideias como a arma mais eficaz contra a disseminação de ideologias totalitárias e de desprezo pelo ser humano. O juiz do BVerfG alertou, no entanto, que a democracia liberal na Alemanha não está indefesa, à mercê de seus inimigos, pois a Lei Fundamental contém diversos instrumentos destinados a evitar que a liberdade concedida constitucionalmente seja usada - e desvirtuada - por seus inimigos para instituir um sistema totalitário. Assim, a Constituição transformou a democracia liberal na Alemanha em uma "democracia defensiva", disse.  O que significa democracia defensiva? A Lei Fundamental alemã instaurou uma ordem estatal na qual democracia, liberdade e Estado de Direito estejam permanentemente garantidos. Isso significa que a Grundgesetz não concede uma liberdade que possa ser abusada e/ou desvirtuada para extinguir a própria ordem constitucional. Ela não permite que o exercício da liberdade possa se tornar um risco justamente para a própria liberdade. Por isso, o BVerfG tem afirmado que os inimigos da Constituição não podem - invocando as liberdades garantidas constitucionalmente - ameaçar, prejudicar ou destruir a ordem constitucional ou a existência do Estado. Essa é a ideia contida por trás do conceito de "democracia defensiva?, afirmou Josef Christ. Assim, em uma série de disposições, a Lei Fundamental adota medidas para proteger seus fundamentos liberais e democráticos contra ataques internos (do próprio Estado) e externos (da sociedade). Os mecanismos de autoproteção da Constituição, decorrentes de um conjunto de distintas normas, são designados pelo conceito de "democracia defensiva". Por que a Constituição é defensiva? Segundo o magistrado, a ideia da democracia defensiva tem raízes históricas, baseadas nas dolorosas experiências de ameaça e violação de direitos fundamentais, principalmente nas atrocidades cometidas pelo Estado durante o regime de terror do nacional-socialismo. A República de Weimar foi a primeira democracia em solo alemão, mas ela teve um fim abrupto com a tomada de poder pelos nazistas. Muitos atribuem a queda da República de Weimar à incapacidade de defesa da Constituição de Weimar, que carecia de instrumentos para a proteção da República. Além disso, a Teoria do Estado da época baseava-se em uma noção de Estado essencialmente positivista: a Constituição não vinculava por seus objetivos, mas exclusivamente pelo método jurídico que prescrevia. Hans Kelsen, por exemplo, sustentava que uma democracia - para permanecer fiel a si mesma - deveria tolerar também um movimento voltado à sua própria destruição. Ele dizia que era preciso permanecer fiel à sua bandeira, ainda que o navio afundasse. Ademais, a Constituição de Weimar podia ser alterada por meio de simples lei ordinária e se acreditava que o poder de alterar a Constituição era materialmente ilimitado. Mas foi ainda durante a República de Weimar que surgiu a ideia de democracia defensiva, sobretudo através dos trabalhos de Karl Loewenstein, que defendeu a existência de um "dever de autopreservação" da chamada democracia militante (milatant democracy). Para Josef Christ, a democracia defensiva foi uma resposta ao relativismo axiológico predominante na época da Constituição de Weimar. Face ao doloroso passado, havia consenso na Assembleia Nacional Constituinte, instituída após o fim da 2ª Guerra Mundial, de que a nova Constituição deveria conter instrumentos com os quais a ordem fundamental livre e democrática pudesse ser permanentemente protegida contra seus inimigos. A democracia defensiva é uma faca de dois gumes? Josef Christ alertou, porém, que a democracia defensiva traz o risco de que o embate público de opiniões, democraticamente desejado, seja impedido e que certas opiniões sejam excluídas da luta pelas melhores soluções. O princípio da democracia defensiva pode ainda ser deturpado para combater adversários políticos ou uma crítica indesejada. Por isso, é preciso tomar cuidado para que somente os inimigos da ordem fundamental livre e democrática sejam excluídos do confronto público de opiniões. Para tanto, a Lei Fundamental prevê quatro garantias contra a aplicação demasiadamente ampla dos instrumentos da democracia defensiva. Em primeiro lugar, esses instrumentos só podem ser usados para a proteção dos princípios básicos indispensáveis ao Estado constitucional liberal. Segundo, é necessário que haja um limiar elevado de risco a partir do qual os instrumentos da democracia defensiva sejam utilizados. Terceiro, a maioria dos instrumentos está sob monopólio do Tribunal Constitucional, cabendo exclusivamente a esse o poder de decisão e, quarto, os instrumentos da democracia defensiva estão claramente definidos quanto aos seus efeitos jurídicos, não deixando margem ao arbítrio ou a discricionariedades.  Os bens tutelados pela democracia defensiva De início, é importante notar que a democracia defensiva tutela apenas os princípios fundamentais elementares da ordem constitucional, descritos no art. 18 e art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental como "ordem fundamental livre e democrática". Aqui tratam-se de princípios fundamentais da Constituição, reconhecidos como valores absolutos. Para o Tribunal Constitucional alemão, fazem parte do conceito de ordem fundamental livre e democrática, dentre outros, o respeito à dignidade humana e aos direitos humanos, o federalismo, a democracia, o Estado de Direito, a soberania popular, a separação dos poderes, a independência dos tribunais, o monopólio estatal do poder e o pluripartidarismo.  Instrumentos de proteção da "ordem fundamental livre e democrática" Dentre os principais instrumentos da democracia defensiva previstos na Lei Fundamental, destacam-se: a proibição de associações anticonstitucionais (art.  9°, inc. 2°), a privação temporária de direitos fundamentais (art. 18), proibição de partidos anticonstitucionais ou sua exclusão do financiamento partidário estatal (art. 21, inc. 2° e 3°) e a aposentadoria compulsória de juízes que atentem contra a Constituição ou sua transferência para outro cargo (art. 98). A isso acresça-se o dever de lealdade dos funcionários públicos em geral (em especial, policiais e juízes) e a existência de órgãos de proteção da Constituição. Segundo Josef Christ, os instrumentos constitucionais da democracia defensiva estão configurados de forma muito rígida na Grundgesetz, não permitindo gradações em seus efeitos jurídicos, de modo que o Tribunal não tem discricionariedade para decidir sobre a extensão e a intensidade da medida no caso concreto. Aqui vale a regra do "tudo ou nada": ou uma associação será proibida ou não será. Se os pressupostos para a proibição de um partido político estiverem presentes, o partido deverá ser proibido, disse o magistrado. Em razão desses rígidos efeitos jurídicos, o Tribunal Constitucional interpreta restritivamente os pressupostos para cada medida, que não serão adotadas se houver medidas mais brandas para o alcance da mesma finalidade.  Proibição de partidos políticos e exclusão do financiamento partidário Dentre os instrumentos mais rígidos para a defesa da democracia destaca-se a possibilidade de proibição partidos anticonstitucionais ou sua exclusão do financiamento estatal, prevista no art. 21 da Lei Fundamental. O inc. 1º da norma garante inicialmente a liberdade partidária. Segundo a Constituição alemã, os partidos têm um status elevado e uma posição de destaque como um instituto constitucional, sendo reconhecidos como elementos indispensáveis à vida constitucional na medida em que têm a função de participar da formação da vontade política do povo, o que, por sua vez, pressupõe liberdade para sua fundação e para o exercício das suas atividades. Quando o art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental prevê a possibilidade da vedação de partidos políticos, ele o faz com o objetivo de evitar que os partidos se radicalizem e, dessa forma - tal como na fase final da República de Weimar - criem condições para a instauração de uma ditadura totalitária, afirmou Josef Christ. Nos termos do art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental, são inconstitucionais aqueles partidos políticos que, por seus objetivos ou pela conduta dos seus adeptos, tentem prejudicar ou eliminar a ordem fundamental livre e democrática ou pôr em perigo a existência da República Federal da Alemanha. O magistrado lembrou que o art. 17 da Constituição brasileira também prevê a liberdade partidária, mas a condiciona ao respeito ao sistema democrático, so pluripartidarismo e aos direitos humanos. O objetivo da proibição de partidos é vetar permanentemente a participação de uma organização anticonstitucional na formação da vontade política. Segundo o art. 21, inc. 4° da Lei Fundamental, cabe exclusivamente Tribunal Constitucional a competência para decidir acerca da (in)constitucionalidade do partido político, mediante requerimento do Parlamento (Bundestag), do Conselho Federal (Bundesrat) ou do governo federal. O BVerfG tem interpretado restritivamente a norma de banimento partidário, pois suas consequências são dramáticas: o partido é dissolvido, perde seu status constitucional, seu patrimônio é confiscado, ele fica proibido de fundar qualquer organização substituta e seus deputados perdem os mandatos. Na história da República Federal da Alemanha, apenas dois requerimentos de proibição de partidos políticos tiveram êxito: em 1952, o BVerfG dissolveu o Partido Socialista do Reich devido à sua orientação nazista e, em 1956, o Partido Comunista da Alemanha. Josef Christ explicou que os processos de proibição movidos contra o Partido Nacional-Democrata da Alemanha (NPD) em 2003 e 2017 não tiveram êxito. O primeiro, porque se baseou em provas colhidas por pessoas previamente infiltradas no partido pelo Departamento Federal de Proteção da Constituição; o segundo, porque a Corte entendeu que o NPD não tinha chances reais de prejudicar ou eliminar a ordem fundamental livre e democrática, como exigido pelo art. 21, inc. 2° da Lei Fundamental. A decisão do Tribunal Constitucional provocou uma alteração na Lei Fundamental, passando o inc. 3º do art. 21 a prever agora uma forma escalonada de mecanismos de autoproteção. Segundo o dispositivo, aqueles partidos anticonstitucionais que não possuem potencial suficiente de periculosidade - e que, portanto, não podem ser banidos - devem ser excluídos do financiamento estatal e dos benefícios fiscais. Trata-se de uma proteção a mais contra o radicalismo partidário. Denúncia contra juízes Outro instrumento sensível - e importantíssimo - para a democracia defensiva é a chamada denúncia contra juízes. Os juízes possuem um status especial devido à sua independência pessoal e material garantida constitucionalmente. O art. 98 da Lei Fundamental leva isso em consideração ao exigir que - apenas mediante requisição do Parlamento e com maioria de dois terços - o Tribunal Constitucional possa determinar a transferência de um juiz para outro cargo ou sua aposentadoria compulsória caso o magistrado, no âmbito do cargo ou fora dele, infrinja os princípios da Lei Fundamental. Josef Christ explicou que essa ação contra magistrados foi a resposta que a Lei Fundamental deu à radicalização de parte da magistratura durante o nacional-socialismo. Foi preciso adotar medidas para que a independência dos magistrados não fosse novamente usada contra a democracia. Na prática, porém, esse instrumento nunca foi utilizado. Em vez disso, tem-se utilizado das regras do direito administrativo do funcionalismo público para enquadrar os juízes inimigos da Constituição. Dever de lealdade à Constituição do serviço público De grande importância para a defesa da democracia na Alemanha é ainda o dever de lealdade à Constituição, que recai sobre os funcionários públicos em geral, inclusive juízes e soldados. Josef Christ sublinhou que se espera desses "empregados do Estado" que eles compartilhem os valores estruturais da Constituição. Nesse sentido, o Tribunal Constitucional já afirmou que um servidor público não pode atuar na estrutura estatal, gozando de garantias e vantagens, e, ao mesmo tempo, pretender destruir o fundamento de sua atividade. "O Estado democrático de direito não pode e não deve se entregar nas mãos dos seus aniquiladores", afirmou o magistrado. Tomando como exemplo os magistrados, ele explicou que só pode ser nomeado juiz quem dê garantias de sempre defender a ordem fundamental livre e democrática. Se, no período de experiência, surgirem dúvidas a esse respeito, ele será dispensado. Em caso de infrações durante o período de estabilidade, o juiz pode perder seu cargo ou ser aposentado compulsoriamente para que se evitem graves danos à Justiça. Dessa forma, espera-se dos juízes independência, neutralidade e lealdade à Constituição. "Garantia de eternidade" Outra expressão importante da democracia defensiva é a norma do art. 79, inc. 3° da Lei Fundamental, mais conhecida como cláusula pétrea - em alemão, literalmente: garantia de eternidade (Ewigkeitsgarantie). Segundo Josef Christ, a Grundgesetz tomou o caminho oposto à Constituição de Weimar que, devido ao relativismo axiológico reinante à época, podia ser alterada por meio de simples lei ordinária e, por isso, estabelece no mencionado dispositivo determinadas matérias como limites intransponíveis, subtraindo-as ao poder do legislador de modificar a Constituição. Dentre essas áreas cruciais estão o federalismo, a garantia da dignidade humana, os princípios da democracia, da república e do Estado social, bem como a vinculação dos três poderes à lei e ao direito. A Constituição brasileira prevê limites semelhantes em seu art. 60 com as chamadas cláusulas pétreas, as quais pretendem impedir que o Parlamento estabeleça um regime totalitário no país. A garantia pétrea serve, contudo, à democracia defensiva de forma diferente dos demais instrumentos já citados: enquanto, v.g., a proibição partidária pretende evitar que partidos anticonstitucionais possam alcançar a maioria necessária para realizar alterações na Constituição, se isso vier a acontecer a garantia da cláusula pétrea seria aplicável como a última barreira para alterações na Constituição incompatíveis com uma ordem livre e democrática. Proteção da Constituição Outra expressão da democracia defensiva na Alemanha, de grande relevância prática, é o órgão de proteção da Constituição, existente a nível federal e estadual. Nos termos do art. 73, inc. 1°, n. 10b da Lei Fundamental, o órgão de proteção constitucional tem a função de garantir a ordem fundamental livre e democrática, bem como a existência e a segurança da União ou dos estados da federação. Dentre suas atividades destaca-se o combate ao extremismo político de direita ou esquerda, ao extremismo islâmico, ao terrorismo, além de proteger o Estado e a sociedade contra espionagem, sabotagem e ataques cibernéticos. Para esse fim, os órgãos de proteção constitucional podem monitorar pessoas, grupos ou partidos políticos por eles classificados como anticonstitucionais e como ameaças à segurança, bem como coletar e analisar. Para isso, eles têm à disposição instrumentos de inteligência, como a observação, atuação de pessoas de confiança, o monitoramento de correspondências e de telecomunicações e o monitoramento na internet. Como esses meios de vigilância sigilosa atingem intensamente os  direitos fundamentais, eles só podem ser usados mediante o atendimento de rigorosos critérios de proporcionalidade. Até mesmo magistrados e deputados podem ser monitorados em sigilo se a proteção da ordem fundamental livre e democrática for mais premente que a proteção da independência e da liberdade de determinados juízes ou deputados. Isso pode acontecer, por exemplo, se um deputado abusar do seu mandato para combater ativamente a ordem fundamental do Estado, exemplificou Josef Christ.     Conclusão Josef Christ concluiu sua fala afirmando que não faltam na Alemanha instrumentos para combater as ameaças à ordem fundamental livre e democrática. Enquanto a proibição de partidos políticos e o dever de lealdade à Constituição por parte dos funcionários públicos, juízes e soldados protegem a ordem constitucional contra ameaças provenientes do interior do próprio Estado, a proibição de associações, a privação temporária de direitos fundamentais e os órgãos de proteção da Constituição protegem-na contra ameaças vindas da sociedade. A última tábua de salvação são as cláusulas pétreas. Com esses instrumentos, a Alemanha afastou as nefastas consequências das deficiências da democracia na República de Weimar e da terrível experiência nazista. Mas outra grande lição da República de Weimar é que a ordem livre e democrática é melhor protegida contra seus inimigos quando está firmemente arraigada na convicção política dos cidadãos e sustentada pela ampla maioria da população. __________ 1 Nesse sentido, alerta Georges Abboud que setores políticos da extrema direita elegeram o Judiciário, em especial o STF, como inimigo ficcional a quem atribuem todos as mazelas do cenário político atual. STF e TSE têm sido acusados de ativismo justamente quando agem em defesa das instituições democráticas, combatendo manifestações autocráticas, fake news e discursos de ódio. O autor pontua ser fundamental estar atento a essas narrativas para que saibamos criticar o Judiciário sem sacrificá-lo. Ativismo judicial. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 18s. 2 Gesetzesvorhaben der Regierung Netanjahus: Israels Rechtsstaat in der Krise. Legal Tribune Online, 26/7/2023. 3 STEINMEIER, Franz-Walter. Eine Demokratie muss wehrhaft sein. Der Spiegel, 9/8/2023.
Após o recesso de julho, dedicado aos preparativos da visita ao Brasil do dr. Josef Christ, juiz do Tribunal Constitucional alemão, que vem ao país na próxima semana para uma rodada de palestras sobre o atualíssimo tema da "Democracia Defensiva", a coluna German Report retoma suas atividades recebendo o contributo de Cícero Dantas Bisneto, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia. O autor aborda recente e importante alteração na jurisprudência da Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - sobre o ressarcimento dos danos decorrentes de choque psíquico sofrido pelo lesado, o chamado Schockschäden, tema sobre o qual nosso convidado tem se dedicado há alguns anos.  Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia, Cícero Dantas Bisneto está finalizando o doutorado em Direito Civil na Universidade de São Paulo sobre a causalidade psíquica, sob orientação do renomado Prof. José Fernando Simão. A tese busca demonstrar que a denominada "causalidade psíquica" constitui instituto jurídico autônomo, com conceito, características, pressupostos de aplicação e critérios de solução distintos das demais figuras causais. No trabalho, o autor examina a compatibilidade da figura com o direito brasileiro, bem como os critérios de imputação objetiva aplicáveis na resolução desse grupo de casos, sem descurar da análise de casos concretos extraídos da jurisprudência nacional e estrangeira. O tema da presente coluna tem, portanto, grande relevância. Confira! * * * Cícero Dantas Bisneto Em uma série de decisões, o Bundesgerichtshof tem aprofundado as discussões acerca do denominado "danos por choque psíquico1" ("Schockschäden")2. Recentemente, por meio de julgamento realizado em 6/12/2022 no processo BGH VI ZR 168/21, o Tribunal alemão alterou seu entendimento até então consolidado, deixando de exigir um dos pressupostos para a configuração da figura jurídica, ampliando seu espectro de incidência. Por tal razão, revela-se importante o estudo do caso apreciado pela Corte de Karlsruhe.  O caso: BGH, Urt. v. 6 6.12.2022 - VI ZR 168/21. No caso em comento, a filha do demandante foi abusada sexualmente dos cinco aos seis anos de idade. O réu foi condenado, em julgado do Landgericht Lüneburg, em 17/6/2016, entre outras coisas, por abuso sexual da filha do autor em dez casos. O requerente afirmou ter sofrido profunda depressão reativa e, em razão disso, ter se submetido a tratamento por meio de terapia hipnótica, após ter conhecimento dos atos perpetrados pelo réu. Durante as investigações, o autor ficou incapacitado para o trabalho de 9/6/2015 a 5/8/2016. Em virtude dos acontecimentos, sua capacidade de concentração teve um decréscimo significativo, de modo que a estabilização de seu estado psíquico somente aconteceu, de forma gradual, após a finalização dos procedimentos criminais. Devido às perturbações sofridas, o genitor da menor demandou indenização por danos morais (Schmerzensgeld) do responsável pelos atos ilícitos praticados. Em primeira instância, o Landgericht Lüneburg, à vista do laudo psiquiátrico e após a oitiva de testemunhas, condenou o réu ao pagamento de 4.000 ?, com acréscimo de juros e honorários advocatícios. O recurso do requerido restou improvido pelo Oberlandesgericht Celle, motivo pelo qual o BGH foi acionado, buscando-se a rejeição completa da demanda.    O BGH analisou detidamente os pressupostos para o estabelecimento do "dano por choque psíquico" ("Schockschaden"). Passa-se ao exame destes elementos, segundo a jurisprudência da Corte alemã. Violação a bens jurídicos ("Rechtsgutverleztung") É firme o entendimento do BGH no sentido de que o Schockschaden exige uma efetiva lesão à saúde do lesado, nos termos do § 823 I do BGB, não se mostrando suficiente o mero abalo psíquico, como o luto ou a dor emocional, a que estão sujeitos, geralmente, segundo as regras de experiência, os afetados pela morte ou grave lesão de um familiar3. Para fins de violação do direito absoluto à saúde, deve ficar provado que o fato lesivo causou uma doença psíquica na vítima (Krankheitswert4), mediante comprovação médica5.  Somente se verifica uma lesão à saúde, segundo a jurisprudência consolidada do BGH, quando as perturbações psíquicas resultarem em uma patologia constatável (pathologisch fassbar) e ultrapassarem os abalos à saúde a que estão expostas as pessoas afetadas pela morte ou pela lesão grave de um parente próximo. Apenas mediante a cumulação destes dois pressupostos reconhecia o BGH uma ofensa à saúde. Neste sentido, a Corte alemã já decidiu que o agravamento da dependência ao álcool, em razão de uma depressão profunda, após a morte do marido da demandante, não se apresentaria bastante para se admitir uma violação à saúde, segundo a opinião predominante sobre a matéria6.  Esta exigência superior de uma especial violação à saúde (besondere Gesundheitsverletzung) encontra apoio em parte da doutrina alemã7. Grüneberg8 apresenta como um dos pressupostos para o reconhecimento do Schockschaden a "perturbação grave" ("schwere Beeinträchtigung"), consistente na existência de um dano à saúde, patologicamente constatado e ancorado na circunstância de que esta lesão seja de uma natureza e gravidade tal que ultrapasse os abalos sofridos por familiares em casos semelhantes. Lange e Schiemann9 afirmam que experiências e notícias negativas não fundamentam o dever ressarcitório se não ocasionarem consequências mais graves do que qualquer pessoa deve esperar, estando abrangidas pelo "risco geral da vida" ("allgemeine Lebensrisiko"). Além disso, segundo os autores, a ocasião deve ser adequada para provocar um efeito de choque em uma pessoa que não seja excepcionalmente sensível.  A maioria da doutrina10, no entanto, se posiciona contra a aplicação deste critério especial. Karczewsk11 argumenta que não existe justificação para o tratamento diferenciado entre os danos psíquicos, por um lado, e, de outro, os danos externamente causados ao corpo e outras violações a direitos absolutos. No caso das lesões físicas, afirma o autor ser indiscutível que a compensação pode ser concedida mesmo que as consequências sejam mais limitadas, desde que seja necessário um atendimento médico, como, por exemplo, na hipótese de ferimentos leves suportados após um acidente de trânsito. Também lesões "menores" à propriedade ou a outros direitos absolutos conduzem ao dever de ressarcir12. No caso em discussão (BGH, Urt. v. 6 6.12.2022 - VI ZR 168/21), o BGH, atento às críticas doutrinárias, mencionadas no corpo da decisão, alterou seu entendimento tradicional, afirmando já não aderir à interpretação restritiva usualmente adotada. Reconhece, assim, que, na hipótese de "dano por choque psíquico", uma perturbação mental, em uma conotação patologicamente comprovável, constitui um dano à saúde, nos termos do § 823 I BGB, ainda que tenha sido provocado ao lesado indiretamente, transgredindo um bem jurídico. Se a perturbação mental for patologicamente constatável, de forma a ser considerada uma doença, não é necessário, para configuração de uma violação à saúde, que o distúrbio ultrapasse os prejuízos à saúde aos quais as pessoas afetadas por esse tipo de acontecimento estão normalmente expostas. O BGH deixa claro que a mudança jurisprudencial se faz necessária para equiparar os prejuízos físicos e psíquicos no âmbito do § 823 I BGB13. Nos casos dos denominados "danos por choque psíquico" ("Schockschäden"), o fundamento da responsabilidade não consiste em uma lesão a um bem jurídico de um terceiro, mas no próprio dano à saúde do requerente. A Corte alemã registra ainda vislumbrar o risco de que, seguindo-se a jurisprudência anterior, ao examinar a violação à saúde na forma de um "dano por choque psíquico", a comparação realizada entre o prejuízo ao demandante e a reação esperada dos parentes em situações semelhantes possa conduzir a resultados injustos. Assim, a imputação de responsabilidade poderia ser negada nas hipóteses de perturbações psíquicas causadas por infrações penais particularmente graves, uma vez que seriam consideradas consequências normais daquela espécie de acontecimentos. No entanto, seria estabelecida a responsabilidade nos casos de distúrbios psíquicos provocados por infrações "menores", uma vez que não afetariam os parentes da vítima de forma regular. Deve-se registrar que, no caso de morte, a discussão perde muito de sua relevância, tendo em vista que, em 2017, entrou em vigor a alteração legislativa (Gesetzes zur Einführung eines Anspruchs auf Hinterbliebenengeld) que introduziu uma terceira parte no § 844 do BGB. Segundo o comando normativo, a pessoa responsável pela reparação deve pagar aos sobreviventes, que, no momento da lesão, possuíam uma relação de proximidade particular com o falecido, uma adequada indenização em dinheiro em razão do sofrimento emocional provocado. A lei presume esta relação de proximidade se o sobrevivente for o cônjuge, o companheiro (Lebenspartner), o pai ou filho do falecido. Nexo de causalidade (imputação) No que toca à investigação da causalidade fática (teoria da equivalência) entre o abuso sexual sofrido pela filha e as perturbações psíquicas suportadas pelo genitor, entendeu o BGH não haver maiores discussões. Afirmou-se, no entanto, que o dever de reparar o dano deve ser limitado pelo âmbito de proteção da norma (Schutzzweck der verletzten Norm14). Para tanto, as consequências do ato ilícito devem ser abarcadas pelo campo de perigo delimitado pela norma. Tal não se verifica se se materializar um perigo que deve ser imputado ao "risco geral da vida" ("allgemeine Lebensrisiko") e, por conseguinte, à zona de risco do lesado.   Segundo o BGH, a imputação deve ser negada se a vítima, em sua busca neurótica por segurança, utilizar o fato como oportunidade para evitar as dificuldades e encargos da vida profissional. Também deve ser negado o nexo, segundo a Corte, se o resultado danoso for insignificante (Bagatelle), não atingindo uma predisposição especial do lesado, em virtude de se apresentar gravemente desproporcional ao acontecimento. Ressalta o BGH, no entanto, que não se deve deixar de imputar os danos psíquicos ao requerido nos casos em que a vítima é particularmente suscetível às lesões, devido a disposições físicas ou mentais, uma vez que o infrator não pode exigir ser colocado na posição de ter lesionado uma pessoa saudável15. Em relação aos "danos por choque psíquico" ("Schockschäden"), o BGH indicou que é reconhecido pela jurisprudência da Corte que inexiste a conexão exigida se o terceiro, que demanda a reparação dos danos, não possui uma relação de proximidade com a pessoa inicialmente afetada, concretizando-se, nesta hipótese, um "risco geral da vida". Não é essencial, entretanto, que o terceiro morra ou sofra ferimentos graves, assim como não se requer que o lesado esteja envolvido diretamente nos acontecimentos, bastando que ocorra um "dano por efeito remoto"16 ("Fernwirkungsschaden"). Firmou-se ainda a conclusão de que o fato de não terem sido demonstrados danos físicos ou psíquicos à filha do autor, diretamente afetada, não impede a imputação ao réu dos danos causados ao genitor.  De acordo com estes princípios, o BGH entendeu, no caso concreto, pela imputação dos danos ao réu. Segundo o Tribunal, o enfrentamento pelo pai de uma situação de abuso sexual repetido de sua filha não se enquadra no risco geral da vida do genitor. Isto se deve ao vínculo pessoal íntimo entre pais e filhos, de modo que a violação à integridade da filha deve ser entendida como uma transgressão à integridade do pai. Outrossim, ainda que se tenha constatado que o lesado tinha uma forma disfuncional de lidar com estresse, esta predisposição não se mostra suficiente para interromper o nexo de imputação17. Danos reflexos no direito brasileiro No Brasil, fala-se em dano reflexo ou por ricochete na hipótese em que a lesão sofrida pela vítima repercute em uma terceira pessoa18. De acordo com Fernando Noronha19,  o dano por ricochete atinge outras pessoas, conectadas àquela que é vítima imediata de certo acontecimento lesivo. O Código Civil de 2002, diferentemente do sistema português20, não trouxe um rol de legitimados aptos ao recebimento da indenização por dano extrapatrimonial nos casos de danos reflexos. O tema é tratado no art. 948 do CC/200221, que praticamente repetiu o art. 1.537 da Codificação de 1916, acrescentando-se a expressão "sem excluir outras reparações". A abertura sistemática garantida por esse texto assegura a indenização por danos reflexos, de forma autônoma e independente, suportados por pessoas próximas à vítima22.   O Superior Tribunal de Justiça, ancorado no art. art. 12, parágrafo único do CC/200223, tem entendido que o dano moral reflexo é presumido24 quando haja uma proximidade entre a vítima e o parente afetado, prescindindo-se da comprovação do efetivo abalo subjetivo por ela experimentado25. Assim, diferentemente do sistema alemão, não se faz necessário comprovar a existência de uma patologia psíquica, por meio de um profissional médico habilitado. A ausência de um rol de legitimados, no direito brasileiro, traz, como ponto positivo, o fato de ser possível conceder indenização por dano por ricochete a pessoas que, provavelmente, não seriam abarcadas pela enumeração legal, como no caso de sobrinhos que compunham o núcleo familiar da vítima. De outro lado, no entanto, reconhece-se a dificuldade de se limitar a amplitude do direito à indenização, não contando o direito brasileiro com estudos de maior impacto acerca dos limites da indenização por danos reflexos. Diante desta circunstância, a figura do nexo causal é utilizada para impor alguns parâmetros, exigindo-se que o dano por ricochete tenha relação com o evento principal26. Conclusão À guisa de conclusão, pode-se afirmar que o BGH não mais exige, para fins de configuração do "dano por choque psíquico" ("Schockschaden"), que a perturbação psíquica da vítima ultrapasse os prejuízos à saúde aos quais as pessoas afetadas por esse tipo de acontecimento são normalmente expostas. Basta que o dano psíquico seja patologicamente constatável, aferível por um profissional médico, ainda que não se constate qualquer dano na vítima primária. No direito brasileiro, por sua vez, não se mostra imprescindível que a lesão psíquica seja medicamente aferível, sendo mesmo presumido o dano quando parentes próximos são reflexamente atingidos pelo evento principal. Bibliografia BARRETO, Júlia d'Alge Mont'Alverne. Como Alemanha e Brasil indenizam o Schockschaden e os danos por ricochete. Revista eletrônica Conjur. São Paulo, 16 mai. 2022. Coluna Direito Civil Atual. Acesso em: 07 jul. 2023. BEHR, Angelina Maria. Schmerzensgeld und Hinterbliebenengeld im System des Schadensrechts: ein deutsch-italienischer Rechtsvergleich unter besonderer Berücksichtigung der Haftung im Strassenverkehr. Tübingen: Mohr Siebeck, 2020. DANTAS BISNETO, Cícero. Dano moral presumido (in re ipsa) no âmbito do contrato de transporte aéreo: uma análise das inovações trazidas pela Lei 14.034/20. Revista de Direito do Consumidor: RDC, v. 30, n. 137, p. 217-242, set./out. 2021. FACCHINI NETO, Eugênio. A tutela aquiliana da pessoa humana: os interesses protegidos. Análise de direito comparado. Revista da AJURIS, v. 39, n. 127, p. 157-195, set./2012. FISCHER, Michael. Der Schockschaden im deutschen Recht und im Common Law: eine rechtsvergleichende Untersuchung des deutschen, englischen, australischen und kanadischen Rechts. Berlin: Duncker & Humblot, 2016. FRADA, Manuel A. Direito civil, responsabilidade civil: o método do caso. Coimbra: Almedina, 2010. GORDLEY, JAMES; JIANG, Hao, MEHREN, Arthur Taylor von. An introduction to the comparative study of private law: readings, cases, materials. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2021 HELDERMANN, Guido Bernd. Schadensersatz für Schockschäden Dritter im Vergleich des deutschen Rechts gemäß § 823 I BGB zum englischen bzw. irischen Recht: eine rechtsvergleichende Untersuchung über die Möglichkeiten einer angemessenen und juristisch begründbaren Haftungsbegrenzung. Berlin: dissertation.de, 2004. KARCZEWSKI, Christoph. Die Haftung für Schockschäden: eine rechtsvergleichende Untersuchung. Frankfurt am Main; Bern; New York; Paris: Peter Lang, 1992. JANSEN, Nils. Conditio sine qua non in general: historical report. In: WINIGER, Bénédict et al. (orgs.). Digest of European Tort Law: essential cases on natural causation. Wien; New York: Springer, 2007. LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadensersatz. 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003. MARKESINIS, Basil S.; UNBERATH, Hannes; JANSSEN, André. Markesinis's German law of torts: a comparative treatise. 5. ed. Chicago: Hart Publishing, 2019. MEDICUS, Dieter; LORENZ, Stephan. Schuldrecht: besonderer Teil. 18., neu bearb. Auf. München: C.H.Beck, 2018 PETEFFI DA SILVA, Rafael; REINIG, Guilherme Henrique Lima. Dano reflexo ou por ricochete e lesão à saúde psíquica: os casos de "choque nervoso" (Schockschaden) no Direito Civil alemão.Civilistica.com, ano 6, n. 2, p. 1-34, 2017. REINIG, Guilherme Henrique Lima. O problema da causalidade na responsabilidade civil: a teoria do escopo da proteção da norma (Schutzzwecktheorie) e sua aplicabilidade no Direito Civil brasileiro. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. SILVA, Rafael Peteffi da; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Daño reflejo o por rebote: pautas para un análisis de derecho comparado. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 7, ano 3. p. 207-240, abr./jun. 2016. STOCO. Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 10 ed. Coimbra: Almedina, 2000, v. 1. WAGNER, Gerhard. Deliktshaftung für berufstypische Risiken. Neue Juristische Wochenschrift, 74. Jahrg., Hfet 6/2021, p. 897-900, März 2021. __________ 1 A tradução do vocábulo para o vernáculo não é pacífica. Ao tratar do tema, Antunes Varela se refere ao "abalo nervoso" sofrido pela mãe ao ver seu filho ser agredido ou atropelado (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 10 ed. Coimbra: Almedina, 2000, v. 1, p. 621, nota 1). Manuel Carneiro da Frada fala em "choque psicológico" (FRADA, Manuel A. Direito civil, responsabilidade civil: o método do caso. Coimbra: Almedina, 2010, p. 101). Guilherme Reinig e Rafael Peteffi preferem a utilização da expressão "choque nervoso" (PETEFFI DA SILVA, Rafael; REINIG, Guilherme Henrique Lima. Dano reflexo ou por ricochete e lesão à saúde psíquica: os casos de "choque nervoso" (Schockschaden) no Direito Civil alemão.Civilistica.com, ano 6, n. 2, p. 1-34, 2017, p. 6). A locução "choque nervoso" é também empregada por Júlia d'Alge Mont'Alverne Barreto (BARRETO, Júlia d'Alge Mont'Alverne. Como Alemanha e Brasil indenizam o Schockschaden e os danos por ricochete. Revista eletrônica Conjur. São Paulo, 16 mai. 2022. Coluna Direito Civil Atual. Acesso em: 07 jul. 2023). Eugênio Facchini Neto menciona que, no sistema de common law, é utilizado o termo "nervous schock" e, mais atualmente, "psychiatric injury" (FACCHINI NETO, Eugênio. A tutela aquiliana da pessoa humana: os interesses protegidos. Análise de direito comparado. Revista da AJURIS, v. 39, n. 127, p. 157-195, set./2012, p. 164-165). Opta-se, nestas breves linhas, pelo uso da expressão "dano por choque psíquico", utilizando-se a tradução literal, acrescida da menção ao tipo de choque sofrido, evitando-se a confusão com as lesões à integridade física. 2 Afirma-se que os pressupostos para o reconhecimento do Schockschaden foram desenvolvidos pelo Reichsgericht em 1931. O tribunal alemão teve que se pronunciar sobre um caso em que a autora sofreu um choque nervoso (Nervenschock) após um artefato ter explodido nas imediações, por culpa do réu, ferindo seu neto. O Reichsgericht admitiu o dever de ressarcimento em razão da violação à saúde da demandante, uma vez que esta se encontrava nas imediações dos acontecimentos (RG, Urt. v. 14.3.1931 - IX 540/30) (BEHR, Angelina Maria. Schmerzensgeld und Hinterbliebenengeld im System des Schadensrechts: ein deutsch-italienischer Rechtsvergleich unter besonderer Berücksichtigung der Haftung im Strassenverkehr. Tübingen: Mohr Siebeck, 2020, p. 220).  3 KARCZEWSKI, Christoph. Die Haftung für Schockschäden: eine rechtsvergleichende Untersuchung. Frankfurt am Main; Bern; New York; Paris: Peter Lang, 1992, p. 10. 4 DEUTSCH, Erwin; AHRENS, Hans-Jürgen. Deliktsrecht: unerlaubte Handlungen, Schadensersatz, Schmerzensgeld. 6. Auflage. München: Verlag Franz Vahlen, 2014, p. 242; MEDICUS, Dieter; LORENZ, Stephan. Schuldrecht: besonderer Teil. 18., neu bearb. Auf. München: C.H.Beck, 2018, p. 473. 5 FISCHER, Michael. Der Schockschaden im deutschen Recht und im Common Law: eine rechtsvergleichende Untersuchung des deutschen, englischen, australischen und kanadischen Rechts. Berlin: Duncker & Humblot, 2016, p. 88. 6 BGH, NJW 1984, 1405. 7 Markesinis assevera que esta exigência ilustra bem a forte ênfase que os tribunais alemães colocam na seriedade e na natureza extraordinária do choque para fins de compensação. Embora afirmem que o entendimento sofra críticas, acabam por concordar com o entendimento (MARKESINIS, Basil S.; UNBERATH, Hannes; JANSSEN, André. Markesinis's German law of torts: a comparative treatise. 5. ed. Chicago: Hart Publishing, 2019, p. 32) 8 GRÜNEBERG, Christian. Vorb v § 249. Palandt: bürgerliches Gesetzbuch. 79. Auflage. München: C.H. Beck, 2020, p. 294. 9 LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadensersatz. 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 149. 10 FISCHER, Michael. Der Schockschaden im deutschen Recht und im Common Law., cit., p 89. 11 KARCZEWSKI, Christoph. Die Haftung für Schockschäden., cit., p. 344-345. 12 Para maior aprofundamento das críticas à posição do BGH, cf. HELDERMANN, Guido Bernd. Schadensersatz für Schockschäden Dritter im Vergleich des deutschen Rechts gemäß § 823 I BGB zum englischen bzw. irischen Recht: eine rechtsvergleichende Untersuchung über die Möglichkeiten einer angemessenen und juristisch begründbaren Haftungsbegrenzung. Berlin: dissertation.de, 2004, p. 75; Wagner. § 823. In: Münchener Kommentar: Band 2: Schuldrecht - Allgemeiner Teil I. 8. Auflage. München: C.H. Beck, 2019, p. 418. 13 No caso em que um policial, ao enfrentar resistência de um jovem no cumprimento de seu dever, sofreu uma lesão em seu polegar direito, padecendo ainda de uma doença psiquiátrica, que o incapacitou permanentemente de trabalhar, o BGH já havia afirmado que não há razão para se diferenciar os danos físicos e psíquicos suportados pela vítima, de modo que também estes devem ser imputados ao lesante, ainda que um risco profissional se concretize (NJW 2021, 925). Para uma melhor análise do julgado mencionado, cf. WAGNER, Gerhard. Deliktshaftung für berufstypische Risiken. Neue Juristische Wochenschrift, 74. Jahrg., Hfet 6/2021, p. 897-900, März 2021. 14 Acerca da aplicação teoria do escopo de proteção da norma no direito brasileiro cf. REINIG, Guilherme Henrique Lima. O problema da causalidade na responsabilidade civil: a teoria do escopo da proteção da norma (Schutzzwecktheorie) e sua aplicabilidade no Direito Civil brasileiro. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. 15 Nils Jansen assevera que, já no direito romano, vigia a regra segundo a qual o perpetrador respondia pela lesão, independentemente da condição de debilidade da vítima (JANSEN, Nils. Conditio sine qua non in general: historical report. In: WINIGER, Bénédict et al. (orgs.). Digest of European Tort Law: essential cases on natural causation. Wien; New York: Springer, 2007, p. 12). 16 GORDLEY, JAMES; JIANG, Hao, MEHREN, Arthur Taylor von. An introduction to the comparative study of private law: readings, cases, materials. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2021, p. 439. 17 Não se apresenta correto falar-se em interrupção do nexo causal, uma vez que a causalidade não pode ser interrompida, mas, no máximo, a imputação jurídica (RISTOW, Till. Die psychische Kausalität im Deliktsrecht. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2003, p. 148). 18 STOCO. Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 1244. 19 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 624.  20 O Código Civil português estabelece, em seu art. 496, que, no caso de morte da vítima "o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem". 21 "Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima". 22 SILVA, Rafael Peteffi da; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Daño reflejo o por rebote: pautas para un análisis de derecho comparado. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 7, ano 3. p. 207-240, abr./jun. 2016, p. 218-219. 23 "Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau". 24 Já se teve a oportunidade de criticar, de forma mais detalhada, a ideia de dano moral presumido ou in re ipsa em: DANTAS BISNETO, Cícero. Dano moral presumido (in re ipsa) no âmbito do contrato de transporte aéreo: uma análise das inovações trazidas pela Lei 14.034/20. Revista de Direito do Consumidor: RDC, v. 30, n. 137, p. 217-242, set./out. 2021. 25 STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 1253018/ SP, rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª T., j. 18.10.2022, DJe 25.10.2022. 26 SILVA, Rafael Peteffi da; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Daño reflejo o por rebote..., cit., p. 223.
Para muitas pessoas, postar fotos e vídeos no Instagram, YouTube ou TikTok deixou de ser um passatempo e passou a ser uma atividade lucrativa. Com efeito, os chamados influenciadores digitais ditam moda nas redes sociais, criam desejos e tendências, e influenciam massivamente o comportamento - e o consumo! - de milhares de pessoas. De olho nessa nova forma de marketing digital, as empresas cercam as celebridades de mimos e presentes, quando não as contratam diretamente para divulgar seus produtos e/ou serviços nas redes sociais. A mídia digital permitiu o desenvolvimento de um intrincado ecossistema de publicidade digital envolvendo influenciadores, fornecedores de bens e/ou serviços e agentes intermediários. Por isso, cresce em todo o mundo o consenso de que as celebridades digitais exercem de facto uma atividade comercial, uma nova profissão surgida com as novas mídias sociais. E mais: o influenciador atua no mercado de consumo divulgando produtos, serviços e/ou a imagem de empresas, própria ou de terceiros, devendo, portanto, se submeter não só às leis de defesa do consumidor, mas também às leis de defesa da concorrência, posto que o exercício descontrolado da atividade pode lesar também outros players do mercado. Alguns países começaram a regulamentar a atividade dos influenciadores digitais, a exemplo da França, que recentemente promulgou a lei 451, de 9/6/23, a fim de regular a atividade do influenciador digital e combater os abusos por esses praticados nas redes sociais1. A lei francesa proíbe ao influencer promover diversos bens e serviços, como operações estéticas, tratamentos médicos e cirúrgicos, produtos com nicotina e certos produtos financeiros, além de restringir a divulgação de jogos de azar, que só poderá ser feita em plataformas que impeçam o acesso de menores de 18 anos. No que diz respeito à discussão central do presente texto, a lei francesa impõe ao digital influencer a obrigação de indicar o caráter publicitário das postagens remuneradas, colocando na imagem ou vídeo expressamente a palavra "publicidade" ou "colaboração comercial", de forma clara, legível e facilmente identificável durante toda a promoção. Ela joga ainda um balde de água fria nos truques das celebridades ao impor o dever de informar aos seguidores quando a imagem tiver sido retocada para, por exemplo, afinar ou avolumar a silhueta. Nesse caso, deve constar no post a menção a "imagens retocadas". O mesmo vale no caso de a imagem ser produzida por inteligência artificial ("imagens virtuais"). As penas para infrações são rígidas, variando de dois anos de prisão e multa de até 300 mil euros até a proibição, temporária ou permanente, de exercer a atividade de influenciador comercial. E nem adianta tentar se esquivar mudando de domicílio, pois o legislador francês exige que todo influenciador digital atuante no país tenha um representante legal no âmbito da União Europeia, bem como um seguro de responsabilidade obrigatório para garantir o ressarcimento de eventuais danos causados a terceiros. Na Alemanha, o legislador não fez uma ampla regulamentação da atividade do influenciador digital, mas inseriu, em 2022, na lei contra concorrência desleal - Gesetz gegen den unlauteren Wettbewerb (UWG) - o dever de indicar o cunho publicitário de postagens remuneradas em dinheiro ou in natura, i.e., sob a forma de qualquer tipo de proveito econômico como, por exemplo, o recebimento de produtos e/ou serviços, qualificando como prática comercial desleal a ausência de menção expressa ao caráter publicitário do conteúdo postado nas redes sociais. Com isso, o legislador toca num ponto nevrálgico do problema: a obrigação de indicar o cunho publicitário das postagens, sob pena de configuração da prática de concorrência desleal, pondo limites à atuação desenfreada das celebridades das redes sociais, que - como atesta a realidade brasileira - fazem diuturnamente publicidade oculta dos mais diversos bens e serviços (como roupas, acessórios, viagens, hotéis, cosméticos, alimentos, etc.), a maioria camuflada sob a forma de um neutro relato de uma experiência pessoal com aquele bem ou serviço. A alteração legislativa ocorreu depois que o Judiciário alemão começou a impor freios - leia-se: responsabilidades - à atividade do digital influencer, submetendo-o a regras que já vigoravam no mundo real para aqueles que produzem conteúdo comercial na mídia. De fato, em 2021, esta coluna (clique aqui)  noticiou as primeiras decisões sobre o tema proferidas pelo Bundesgerichtshof (BGH), Corte funcionalmente equivalente ao Superior Tribunal de Justiça, nas quais o Tribunal reconheceu o dever dos famosos de indicar o cunho publicitário de postagens remuneradas para promover produtos e/ou serviços de terceiros, entendimento reforçado recentemente no caso Diana zur Löwen.  O caso Diana zur Löwen Diana zur Löwen é uma das mais famosas influenciadoras da Alemanha. A jovem começou atuando nas áreas de moda e cosmética, mas vem diversificando suas atividades, falando atualmente sobre temas sensíveis, como política e investimentos financeiros. Ela foi processada por uma associação comercial de defesa da concorrência, chamada Verband Sozialer Wettbewerb e.V., por divulgar produtos e/ou serviços sob remuneração sem, contudo, indicar o caráter publicitário das postagens. O imbróglio começou quando a blogueira publicou no Instagram, em julho de 2018, fotos suas tiradas em diversas situações, nas quais fazia referência a roupas e acessórios de grifes marcadas na postagem com tap tags, um aplicativo que remete o internauta diretamente para o site da empresa quando ele clica sobre o nome da marca indicado no post. Primeiro, a associação notificou a influencer para que se abstivesse de fazer postagens com fins comerciais sem indicar o cunho publicitário do conteúdo - salvo se esse resultasse claramente das circunstâncias, por exemplo, através da menção expressa na postagem à palavra "publicidade" ou equivalente. As partes assinaram um acordo por meio do qual a blogueira se comprometia a não mais realizar publicidade oculta, sob pena de multa contratual. Porém, em outubro de 2019, a jovem voltou a fazer veladamente anúncios publicitários, levando a associação a mover ação requerendo a suspensão da prática e o pagamento de multa contratual no valor 10.200 Euros, mais juros e correção monetária. Em primeiro grau, a ação foi julgada procedente, sendo confirmada em grau de recurso pelo Oberlandesgericht de Colônia no processo OLG Köln I ZR 35/21. O recurso de Revision interposto pela influenciadora perante o BGH não teve melhor sorte. Trata-se do processo BGH I ZR 35/21, julgado em 13/1/2022.  Os fundamentos da decisão do BGH Preliminarmente, a Corte confirmou a legitimidade da associação para - nos termos do § 8 inc. 3 n. 2 da lei de defesa da concorrência2 - exigir a abstenção da conduta da influenciadora, considerada ato de concorrência desleal e aplicar a multa pela violação da lei de defesa da concorrência. No mérito, o BGH afirmou, em síntese, que o influenciador digital, que publica conteúdo pago promovendo produtos e/ou serviços, realiza atividade comercial e precisa, portanto, indicar o cunho publicitário de sua postagem, sob pena de incorrer em prática comercial desleal. a) A atividade do influencer constitui atividade comercial Ao contrário do que se imagina, a realização de postagens remuneradas promovendo produtos e/ou serviços não é apenas uma diversão ou a exposição de parte da vida privada de uma celebridade. Quem produz conteúdo remunerado por terceiros pratica uma ação comercial, tanto no mundo real, quanto no mundo virtual. Na Alemanha, a lei de defesa da concorrência, mais conhecida pela abreviação UWG, tem por escopo proteger os concorrentes, ou seja, os agentes econômicos que estão em concorrência entre si, bem como os consumidores e outros atores do mercado contra práticas comerciais desleais (unlautere geschäftliche Handlungen), tutelando, em última análise, o interesse da coletividade em uma concorrência sadia (§ 1 da UWG). O § 2, inc. 1, n. 2 do mencionado diploma define como ação comercial (geschäftliche Handlung) qualquer conduta de uma pessoa em benefício de sua própria empresa ou da empresa de outrem, realizada antes, durante ou após a conclusão de um negócio, que esteja direta e objetivamente relacionada à promoção da venda ou aquisição de bens ou serviços ou ainda, com a celebração e/ou execução de um contrato de bens ou serviços. Para fins de proteção da concorrência, consideram-se abarcados no conceito de produtos (Waren) os bens imóveis e os chamados conteúdos digitais e, no conceito de serviços (Dienstleistungen), os serviços digitais, bem como direitos e obrigações. A norma foi acrescida na parte final do § 2, inc. 1, n. 2 após a atualização da lei, ocorrida em 24/6/2022, na qual o legislador pretendeu adaptar alguns de seus dispositivos à realidade digital, sobretudo às novas formas de comunicação e marketing na internet. No caso em análise, a influenciadora fazia postagens para beneficiar não somente sua própria empresa, mas também empresas terceiras, como marcas de roupas, acessórios e cosméticos. E, dessa forma, realizava uma atividade comercial, nos termos do § 2, inc. 1, n. 2 da UWG, pois, segundo o BGH, todo influenciador digital que oferece em nome próprio produtos e/ou serviços ou que usa sua imagem para divulgar, de forma remunerada, produtos e/ou serviços de empresas terceiras, atua de forma comercial3. De fato, é evidente que a exploração de um perfil no Instagram, no qual são publicadas postagens comerciais, promove - ou é objetivamente apta a promover - eventual empresa do influencer, pois aumenta sua notoriedade e seu valor comercial, despertando o interesse de outras empresas em com ele estabelecer parcerias comerciais. Além disso, como as postagens realizadas têm por objetivo influenciar a decisão comercial dos consumidores ou de outros partícipes do mercado em relação aos produtos e/ou serviços divulgados, não restam dúvidas que o influencer desenvolve uma atividade comercial em prol de sua própria empresa. O mesmo se diga em relação às postagens destinadas a promover outras empresas. Aqui, à toda evidência, a atividade de promoção de produtos e/ou serviços pelo influenciador digital se caracteriza como uma ação comercial, mesmo que a empresa favorecida não tenha se obrigado contratualmente a realizar uma contraprestação a seu favor, afirmou a Corte de Karlsruhe. Para saber se uma determinada ação tem ou não cunho comercial, deve-se verificar a impressão geral (Gesamteindruck) que a postagem apresenta sob a ótica de um leitor (consumidor) razoavelmente informado, atento e sensato: se o conteúdo se apresentar excessivamente comercial - i.e., tiver cunho claramente publicitário, devido, por exemplo, à inserção de links que levam ao site das marcas divulgadas - a postagem pode ser qualificada como uma ação comercial em favor da empresa favorecida, ainda quando esta não tenha prometido ao influenciador digital qualquer contraprestação (ex: dinheiro, produtos, viagens, hospedagens, etc.). Esse é o mesmo critério utilizado pela jurisprudência alemã para identificar o caráter comercial de artigos redacionais publicados na imprensa tradicional. Dessa forma, o BGH rejeitou o argumento da blogueira de que a mera inserção na postagem do link de acesso à página da empresa na internet não poderia ser considerado um critério apto para classificar uma ação como comercial, vez que esse mecanismo é utilizado frequentemente - tanto nas mídias de notícias como nas mídias sociais - para facilitar o internauta a encontrar informações na rede. Mas o fato é que o uso dos links leva o internauta diretamente para a área de influência publicitária do fornecedor, expondo o consumidor aos produtos e/ou serviços da marca, daí resultando o cunho comercial do conteúdo.  b) A conduta da influenciadora configurou ato de concorrência desleal Uma vez caracterizada a atividade comercial da influenciadora - ao usar sua fama e prestígio para promover, mediante remuneração, produtos e/ou serviços de marca - o BGH concluiu que a falta de indicação do caráter publicitário das postagens configura ato de concorrência desleal, nos termos do § 5a, inc. 6 da UWG. Segundo o dispositivo, atua de forma desleal quem não indica claramente o escopo comercial de uma ação comercial (salvo se isso resulta diretamente das circunstâncias) e a omissão dessa informação for apta a induzir o consumidor a tomar uma decisão negocial que de outro modo não tomaria. O mencionado dispositivo (inc. 6) foi suprimido na nova versão da lei alemã de combate à concorrência desleal, constando do atual inc. 4 do § 5a da UWG com a seguinte redação:  "(4) 1 Atua ainda de forma desleal aquele que não indicar o escopo comercial de uma ação negocial, desde que isso não resulte diretamente das circunstâncias, e a não indicação seja adequada a induzir o consumidor ou outro partícipe do mercado a tomar uma decisão comercial que ele não tomaria de outro modo. 2 Uma ação em benefício da empresa de outrem não tem escopo comercial quando a pessoa que age não recebe de empresa alheia qualquer pagamento ou qualquer contraprestação similar pela ação, nem deixa que isso lhe seja prometido. 3 Presume-se o recebimento ou a promessa de uma prestação, a menos que a pessoa que age demonstre não o ter recebido."4  Dessa forma, pela nova redação do §5a, inc. 4 da UWG, uma postagem não patrocinada - em dinheiro ou vantagens patrimoniais - não tem, em princípio, escopo comercial. A lei, porém, presume que a divulgação de bens e/ou serviços pelo influenciador é feita de forma remunerada pela empresa beneficiada, cabendo ao influencer o ônus de provar que os respectivos bens e/ou serviços foram por ele adquiridos. Conquanto o caso sub judice não tenha sido julgado sob a égide da nova lei, que lhe é posterior, o BGH foi expresso ao reafirmar o dever do influenciador digital de indicar o cunho publicitário das postagens pagas, salvo se o caráter comercial resultar das circunstâncias de forma clara e evidente, logo à primeira vista, para o consumidor. E o caráter promocional do conteúdo deve ser indicado logo no início da postagem e não apenas ao final, depois que o seguidor já tomou conhecimento do conteúdo e foi "capturado" pela publicidade, disse o BGH, pois o escopo do dever de identificação publicitária é justamente evitar que o consumidor seja exposto, de forma despreparada - e, logo, seduzido - pelo conteúdo publicitário. Em outras palavras: o dever de indicar o cunho publicitário do post visa permitir que o consumidor possa se preparar para avaliar aquele conteúdo de forma crítica ou até decidir dele nem tomar conhecimento. Ademais, os seguidores esperam autenticidade do influenciador digital, ou seja, que a exposição de sua vida privada e de suas experiências não seja movida exclusivamente por fins comerciais e é essa expectativa que leva os seguidores a depositar uma confiança maior na avaliação do influencer do que em um anúncio publicitário. Portanto, os seguidores têm a expectativa legítima de que o influenciador informe claramente quando publicar conteúdo remunerado. No caso concreto, Diana zur Löwen havia divulgado roupas e joias sem indicar que se tratava de conteúdo publicitário - como, aliás, fazem diversas celebridades aqui no Brasil. Como ela demonstrou que as roupas utilizadas nas fotos lhe pertenciam, a violação do dever de identificação da publicidade restou configurada apenas em relação às joias que a empresa Six lhe dera de presente em troca de divulgação nas redes sociais. Segundo o BGH, a prática de concorrência desleal restou caracterizada, porque - além de não ter indicado o cunho publicitário da postagem em relação às joias utilizadas - a omissão da informação era apta a induzir o seguidor (consumidor) a tomar uma decisão comercial que de outra forma não tomaria. No direito alemão e europeu, decisão negocial (geschäftliche Entscheidung) não é apenas a decisão de contratar. Ela envolve toda decisão do consumidor - ou de outro partícipe do mercado - relacionada diretamente com o processo de aquisição do produto e/ou serviço, como, por exemplo, a decisão sobre se, como e sob quais condições ele vai contratar, efetuar um pagamento, manter ou devolver um produto e/ou serviço oferecido ou exercer um direito relacionado a esse contrato, como explicita o § 2, inc. 1 n. 1 da UWG. Para o BGH, o simples fato do internauta ler a postagem publicada pelo influenciador e eventualmente clicar sobre a imagem para ver a marca dos produtos e/ou serviços divulgados não configura uma decisão negocial, nos termos da lei de combate à concorrência desleal. Porém, o ato seguinte de clicar sobre o link que leva diretamente para o site da marca já pode ser qualificado como tal, pois, através desse mecanismo, o consumidor é exposto aos produtos e/ou serviços ofertados. Dessa forma, as postagens de Diana zur Löwen tinham nítido cunho publicitário, o qual foi, contudo, omitido e essa omissão era apta a induzir seus seguidores a tomar uma decisão negocial que de outro modo não tomariam, configurando a publicidade oculta um ato de concorrência desleal, nos termos do § 5a, inc. 6 da UWG (§ 5a, inc. 4 da versão atual da lei).  Síntese Em suma: a prática corriqueira da influenciadora de divulgar produtos sem indicar o cunho publicitário das postagens, ou seja, sem informar aos seguidores que se tratava de conteúdo pago, seja em dinheiro, seja em "presentes" da empresa beneficiada, configura no direito alemão ato de concorrência desleal na medida em que omite o escopo comercial da postagem e essa omissão é apta a induzir o consumidor - ou outro partícipe do mercado - a tomar uma decisão comercial que ele não tomaria de outro modo. Por essa razão, o BGH considerou válida a multa aplicada pela associação à influenciadora, que, desde então, tem inserido a expressão Werbung (publicidade) logo no início de suas postagens comerciais no Instagram. Note-se que o legislador alemão disciplinou apenas um aspecto da atividade do influenciador digital, impondo-lhe o dever de indicar o cunho comercial das postagens remuneradas a fim de combater práticas de concorrência desleal no mercado. Muitos outros aspectos da atividade do digital influencer, principalmente sua eventual responsabilização civil e penal, ainda estão em discussão por lá, da mesma forma que no Brasil.  A discussão no Brasil Por aqui, a doutrina tem se debruçado sobre a atividade - principalmente, a responsabilidade - do influenciador digital. Ainda não há legislação específica sobre o assunto e os influencers têm atuado nas redes sociais sem quaisquer freios e, não raro, de forma abusiva e desleal. O caso Diana zur Löwen serve de alerta para as celebridades brasileiras, que fazem postagens comerciais sem informar que se trata de conteúdo remunerado em dinheiro ou in natura, através de "presentes" enviados pelas empresas na clara expectativa de que o "mimo" seja devidamente divulgado nas redes sociais. Embora não haja na legislação brasileira uma disposição semelhante ao § 5a, inc. 4 da lei alemã de defesa da concorrência, que expressamente qualifica como prática desleal a omissão do cunho comercial de uma postagem remunerada, é evidente que o influenciador digital promove a venda de produtos e/ou serviços no mercado de consumo e, por isso, deve se submeter - também - aos ditames do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990). E, nesse ponto, o art. 31 do CDC é claro ao afirmar que toda oferta ou apresentação de produtos e/ou serviços deve ser correta, clara e precisa, exigindo o art. 36 do referido diploma que toda publicidade seja fácil e imediatamente identificada como tal pelo consumidor. A norma proíbe a publicidade oculta ou indireta (merchandising), vendando o art. 37 do CDC, por seu turno, toda publicidade enganosa ou abusiva. Vale lembrar ainda ser defeso fazer postagens para promover bebidas alcóolicas, tabaco, medicamentos, terapias e agrotóxicos em desconformidade com as exigências da Lei 9.294/96, que, com base no art. 220 § 4º da Constituição, restringe os anúncios publicitários de tais produtos e serviços. A inobservância dessas regras sujeita o infrator - inclusive, o influencer - a sanções no plano civil, administrativo e penal. Afinal, a internet não é terra sem lei e tudo o que vale no mundo real, vale no mundo virtual. Dessa forma, o digital influencer que faz publicidade oculta - e, portanto, ilícita - de produtos e/ou serviços em seus perfis nas redes sociais, viola o art. 36 do CDC, sujeitando-se, em decorrência da violação do dever de identificação publicitária, a sanções administrativas, como a multa, nos termos do art. 56, inc. 1 do CDC. Caso faça ou promova publicidade enganosa, abusiva ou capaz de induzir o consumidor (seguidor) a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança, incorrerá a celebridade nos tipos penais previstos nos arts. 67 e 68 do CDC, cuja pena varia de detenção de três meses a dois anos e multa5. Atento às novas formas de marketing digital e à complexidade da atividade do digital influencer, o CONAR elaborou, em 2021, um Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais, onde apresenta orientações para a aplicação das regras do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária ao conteúdo comercial difundido em redes sociais, em especial ao gerado pelos influenciadores digitais. O material deixa claro que toda mensagem, contratada por anunciante (fornecedor) ou agência, destinada a estimular o consumo de bens e/ou serviços, feita pelos influenciadores digitais, precisa ser claramente identificada como publicitária (item 1.1), salvo se o cunho publicitário resultar evidente de seu contexto. Se não evidente o cunho comercial da mensagem, é necessária a menção explícita da identificação publicitária por meio do uso das expressões como "publicidade", "publi", "publipost" ou equivalente. A identificação do cunho publicitário da postagem deve ser facilmente perceptível sobretudo para crianças e adolescentes, devendo o conteúdo comercial ser claramente distinto dos demais conteúdos gerados pelo influenciador (item 1.1.2). As disposições do CONAR, contudo, soam tímidas diante do poder que as celebridades têm de influenciar o comportamento de consumo de milhares de seguidores. Assim, para que o conteúdo gerado pelo influencer seja considerado de natureza comercial e, portanto, sujeito ao dever de identificação publicitária, o item 1 do Guia exige a presença de três elementos cumulativos: primeiro, a divulgação de um produto e/ou serviço; segundo, uma compensação ou relação comercial, ainda que não financeira, com o anunciante e/ou agência e, terceiro, o controle editorial da postagem do influenciador, ou seja, a ingerência por parte do anunciante e/ou agência sobre o conteúdo da mensagem divulgada. A exigência cumulativa desses elementos parece exagerada. Note-se que ao exigir que a empresa beneficiada ou uma agência exerça de fato o controle editorial do conteúdo da postagem, o CONAR permite que os influenciadores produzam por conta própria uma gama infindável de conteúdos comerciais sem a obrigação de identificá-los como publicidade, como vê-se com frequência em redes sociais como Instagram e YouTube. Além disso, nos termos do item 2 do referido Guia, o CONAR aparentemente não considera o recebimento de brindes, viagens e hospedagens como uma contraprestação in natura ofertada pela empresa na expectativa de divulgação pelo influenciador. E, portanto, a divulgação desse conteúdo não é qualificada pelo órgão como anúncio publicitário, mesmo quando seja evidente que esses "benefícios" podem afetar - e afetam, em regra - a imparcialidade da avaliação do influencer e, consequentemente, o teor da mensagem que, ao fim e ao cabo, destina-se a estimular o consumo do produto e/ou serviço nas redes sociais. Essa situação difere daquela em que o influenciador faz menção, de forma espontânea, a marcas de produtos e/ou serviços adquiridos por meios próprios, sem que os tenha recebido como recompensa - ou promessa de recompensa - pela divulgação nas redes sociais. Esse tipo de postagem não tem, de fato, cunho comercial, não surgindo aqui o dever de identificação publicitária. É o caso da celebridade que exibe no Instagram o vestido de grife recentemente adquirido. Se ela foi, porém, presenteada com o vestido, a postagem deve ser considerada publicitária. Por fim, mas não menos importante, é a discussão acerca da eventual responsabilidade do influenciador por fato ou vício do produto e/ou serviço, nos termos dos arts. 12, 14, 18 e 20 do CDC. A doutrina se divide, havendo quem pleiteie a irresponsabilidade dos influenciadores, quem sustente uma responsabilidade subjetiva e quem defenda a responsabilidade objetiva dos influencers, aos moldes da responsabilidade do fornecedor, no que tange aos efeitos patrimoniais decorrentes da realização da publicidade ilícita6. O tema, contudo, ainda exige reflexão. Do exposto, percebe-se que muito ainda precisa ser discutido acerca da atividade exercida pelos influenciadores digitais. Inicialmente um passatempo, hoje se trata de atividade comercial apta a lesar não apenas os consumidores, mas também a concorrência, como mostra a decisão alemã comentada. Em prol da segurança jurídica, seria importante o parlamento nacional regular a atividade a fim de evitar abusos nas redes sociais. ____________ 1 A França já havia regulado a atividade dos menores influenciadores, mais conhecidos como youtubers mirins, por meio da Lei 1266/2020. Sobre o tema, confira-se o excelente artigo de: DENSA, Roberta e DANTAS, Cecília. Regulamentação sobre o trabalho dos youtubers mirins na França e no Brasil. Migalhas de Responsabilidade Civil, Migalhas, 1/12/2020. 2 Tradução livre: "§ 8 Supressão e omissão. (1) Aquele que praticar um ato comercial inadmissível, nos termos do § 3 ou do § 7, pode ser interpelado para que promova sua remoção e, em caso de risco de repetição, se abstenha de o praticar. A pretensão à abstenção existe quando iminente uma infração ao § 3 ou ao § 7. (...). (3) As pretensões do inc. 1 cabem: (...) 2. às associações com capacidade jurídica para a promoção de interesses comerciais ou profissionais independentes, que estejam registadas na lista das associações comerciais qualificadas nos termos do § 8b, desde que a elas pertença um número substancial de empresários que ofereçam bens ou serviços, do mesmo tipo ou de tipo semelhante, no mesmo mercado e a infração afete os interesses dos seus membros, (...)." No original: § 8 Beseitigung und Unterlassung (1) Wer eine nach § 3 oder § 7 unzulässige geschäftliche Handlung vornimmt, kann auf Beseitigung und bei Wiederholungsgefahr auf Unterlassung in Anspruch genommen werden. Der Anspruch auf Unterlassung besteht bereits dann, wenn eine derartige Zuwiderhandlung gegen § 3 oder § 7 droht. (...). (3) Die Ansprüche aus Absatz 1 stehen zu: (...) 2. denjenigen rechtsfähigen Verbänden zur Förderung gewerblicher oder selbstständiger beruflicher Interessen, die in der Liste der qualifizierten Wirtschaftsverbände nach § 8b eingetragen sind, soweit ihnen eine erhebliche Zahl von Unternehmern angehört, die Waren oder Dienstleistungen gleicher oder verwandter Art auf demselben Markt vertreiben, und die Zuwiderhandlung die Interessen ihrer Mitglieder berührt, (...). 3 BGH IZR 90/20 (Influencer I), j. 9/9/2021, Rn. 34-36. 4 (4) 1 Unlauter handelt auch, wer den kommerziellen Zweck einer geschäftlichen Handlung nicht kenntlich macht, sofern sich dieser nicht unmittelbar aus den Umständen ergibt, und das Nichtkenntlichmachen geeignet ist, denVerbraucher oder sonstigen Marktteilnehmer zu einer geschäftlichen Entscheidung zu veranlassen, die er andernfalls nicht getroffen hätte. 2 Ein kommerzieller Zweck liegt bei einer Handlung zugunsten eines fremden Unternehmens nicht vor, wenn der Handelnde kein Entgelt oder keine ähnliche Gegenleistung für die Handlung von dem fremden Unternehmen erhält oder sich versprechen lässt. 3 Der Erhalt oder das Versprechen einer Gegenleistung wird vermutet, es sei denn der Handelndemacht glaubhaft, dass er eine solche nicht erhalten hat. 5 Sobre o caso envolvendo o cantor sertanejo Gustavo Lima, que fez lives durante a pandemia consumindo álcool em excesso, fato que levou o CONAR e instaurar a Representação Ética n. 078/20 contra o artista, confira-se: SILVA, Michael César; BARBOSA, Caio e GUIMARÃES, Glayder. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Coluna Migalhas de Responsabilidade Civil, Migalhas, 10/6/2020. 6 Para um panorama acerca do tema, confira-se: SILVA, Michael; BARBOSA, Caio e BRITO, Priscila. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC v. 2, n. 2, p. 1-21, mai-ago 2019. Veja-se, ainda, em relação à responsabilidade das celebridades: MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 3ª ed., São Paulo: RT, 2010, p. 220 ss.
O renomado designer francês de sapatos, Christian Louboutin, famoso por seus sapatos de salto alto com sola externa vermelha, obteve recentemente importante vitória contra a gigante Amazon no Tribunal de Justiça da União Europeia. Segundo a Corte, quando a empresa passa a impressão aos consumidores de que os sapatos com sola vermelha, fabricados irregularmente por terceiros, são vendidos em nome e por conta própria, presume-se que a própria Amazon utiliza sinais idênticos ao da marca registada, devendo, portanto, responder por violações à marca praticadas por terceiros vendedores. Para entender o caso O imbróglio começou quando Christian Louboutin tomou conhecimento de que no site da Amazon estavam sendo vendidos, sem sua autorização, sapatos com a sola externa vermelha, sinal característico de seus produtos1. Louboutin é conhecido mundialmente como designer de calçados e malas de mão de luxo, mas seus produtos mais famosos são os sapatos femininos de salto alto nos quais ele aplica uma sola exterior na cor vermelha, corresponde ao código 18-1663TP do catálogo de cores Pantone. A referida cor está registrada como marca Benelux, segundo a Convenção Benelux em matéria de propriedade intelectual, de 25/2/2005, a qual está devidamente registrada como marca europeia desde 10/5/2016. A Amazon, como sabido, explora sites na internet destinados à venda online de produtos variados, um marktetplace no qual os produtos são oferecidos tanto diretamente, em nome e por conta própria, como indiretamente, por meio da oferta de produtos de terceiros fornecedores. A expedição dos produtos colocados à venda por terceiros pode ser feita diretamente por eles ou pela Amazon, que, nesses casos, os armazena em seus centros de distribuição e os envia diretamente para os adquirentes. Alegando que sapatos de solas vermelhas estavam sendo anunciados à venda no site da Amazon sem seu consentimento, Louboutin moveu duas ações de contrafação contra a empresa na Bélgica e em Luxemburgo acusando a Amazon de usar ilegalmente um sinal idêntico ao da sua marca e requerendo que a mesma se abstenha - sob pena de sanção pecuniária - de utilizar tais sinais em suas operações comerciais em todo o território da União Europeia, bem como indenize os danos decorrentes da comercialização indevida. A primeira ação foi protocolada em 19/9/2019 no Tribunal d'arrondissement de Luxemburgo e a segunda, em 4/10/2019, perante o Tribunal das Empresas de Língua Francesa de Bruxelas (Tribunal de l'entreprise francofone de Bruxelles), originando os processos C-184/21e C-184/21 no TJUE depois que os respectivos órgãos jurisdicionais suspenderam o feito e apresentaram questões prejudiciais à Corte acerca da interpretação do art. 9º, n. 2, alínea a) do Regulamento (EU) 2017/1001, de 14/6/2017, que disciplina o registro e proteção uniforme da chamada "marca da União Europeia". A acusação, em apertada síntese, era que a Amazon estaria violando a marca Louboutin ao anunciar em seu site sapatos com sola vermelha, pertencentes a terceiros fornecedores, ou seja, produtos que ostentavam - sem autorização - sinal idêntico à sua marca. Além de exibi-los à venda no site, a Amazon ainda armazenava tais produtos em seus depósitos e ficava responsável pela expedição e entrega aos consumidores. Logo, a responsabilidade pela infração marcária deveria ser imputada à Amazon, porque a empresa desempenhava papel ativo na utilização do sinal (exibição à venda, detenção, expedição e entrega dos produtos contrafeitos), bem como pelo fato de que os anúncios dos produtos falsificados faziam parte da comunicação comercial da empresa, aqui entendida como qualquer forma de comunicação destinada a terceiros que tenha como objetivo promover sua atividade, bens ou serviços ou, ainda, indicar o exercício dessa atividade. Dessa forma, tendo em vista o modus operandi da Amazon, ela não pode ser considerada um mero fornecedor de armazenamento de sítios de internet ou um intermediário neutro, vez que presta "assistência" a vendedores terceiros, principalmente no que tange à otimização da apresentação dos anúncios publicitários aos consumidores, armazenamento e expedição dos produtos ofertados em seu site - serviços que fazem parte, na verdade, do conjunto de obrigações assumido nos contratos onerosos celebrados com os anunciantes dos produtos. Em sua defesa, a Amazon alegou, em suma, que não lhe poderia ser imputada a utilização do sinal idêntico à marca Louboutin, pois ela seria apenas a operadora de um site de comércio eletrônico (marketplace) e, como tal, não pode ser responsabilizada quando vendedores terceiros utilizam ilegalmente em seus produtos um sinal idêntico à marca do designer. No entender da empresa, o fato dela inserir seu prestigioso logotipo nos anúncios dos terceiros fornecedores não significa que ela se aproprie desses anúncios. Da mesma forma, o fato de prestar "serviços acessórios" a terceiros vendedores não permite considerar que as ofertas dos terceiros façam parte de sua comunicação comercial. Segundo a empresa, o fato de um prestador (Amazon) criar as condições técnicas necessárias (marketplace) para a utilização de um sinal (sola vermelha) idêntico a uma marca protegida (Louboutin) e de ser remunerado por isso, não significa que ele próprio esteja utilizando referido sinal. O Tribunal de Luxemburgo, porém, constatou que a Amazon adota um modelo comercial híbrido ao colocar à venda produtos próprios ao lado de produtos de terceiros. De fato, ela agrupa, para uma mesma categoria de produtos, anúncios próprios juntamente como anúncios de vendedores terceiros ativos em seu site, de modo que fica extremamente difícil para um consumidor - razoavelmente atento e informado - diferenciar a procedência dos produtos. Com isso, ela se diferencia de empresas como o eBay, que se limitam a explorar um site de comércio eletrônico mediante a publicação exclusiva de anúncios de vendedores terceiros, sem que elas próprias exerçam qualquer atividade de venda de produtos ao consumidor. Diante desse pano de fundo, os dois órgãos jurisdicionais mencionados suspenderam os processos na origem e submeteram à Corte Europeia várias questões prejudiciais. Tratam-se dos processos C-148/21 e C-184/21, julgados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 22/12/2022. Uma das questões centrais era saber se a interpretação do art. 9°, n. 2 do Regulamento 2017/1001 autorizaria a conclusão de que a utilização de um sinal idêntico a uma marca protegida - veiculado em anúncios publicados em sitio de comércio eletrônico - poderia ser imputável ao operador do site quando, na percepção de um internauta razoavelmente atento e informado, o operador tenha desempenhado um papel ativo na comercialização do produto (elaboração de anúncios com exibição do próprio logotipo, fixação dos preços de venda, armazenagem, expedição e entrega dos produtos contrafeitos) ou quando esse anúncio possa ser compreendido pelo internauta como parte da própria comunicação comercial do operador. Em outras palavras: os tribunais queriam saber se a utilização de um sinal (sola vermelha) idêntico à marca Louboutin em produtos de terceiros poderia ser imputável à Amazon pelo fato dela ter colocado à venda esses produtos sem o consentimento do titular da marca, Christian Louboutin. Isso é importante, porque envolve a questão de saber em quais circunstâncias um operador de marketplace responde por violação marcária perante o titular da marca quando oferece ao público um produto contrafeito produzido e anunciado por terceiro. A decisão do TJUE O Tribunal de Justiça da União Europeia deu razão a Christian Louboutin. Dentre os fundamentos legais invocados, destaca-se o art. 9° do Regulamento 2017/1001, que regula os direitos conferidos ao titular de uma marca registrada na União Europeia. Segundo o art. 9º, n. 1, o registo de uma marca da União Europeia confere a seu titular direitos exclusivos. O art. 9º, n. 2 dispõe que, sem prejuízo dos direitos dos titulares, adquiridos antes da data de depósito ou da data de prioridade da marca europeia, o titular da marca fica habilitado a proibir que terceiros, sem seu consentimento, façam uso, no decurso de operações comerciais, de qualquer sinal em relação aos produtos ou serviços, caso o sinal seja - diz a alínea a) - idêntico à marca europeia e seja utilizado para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca europeia foi registada. Atente-se que no caso, o sinal (sola externa vermelha) era usado em produto (sapatos femininos) idêntico ao produto registrado pela marca de Christian Louboutin. Nos termos n. 3 do referido dispositivo, o titular da marca pode proibir o terceiro, principalmente, de oferecer os produtos, colocá-los no mercado ou armazená-los para esses fins, ou oferecer ou prestar serviços sob o sinal (alínea b); utilizar o sinal em documentos comerciais e na publicidade (alínea e), bem como utilizar o sinal em publicidade comparativa, de forma contrária à Diretiva 2006/114/CE, de 12/12/2006, relativa à publicidade enganosa e comparativa (alínea f). Por sua vez, o art. 11 da Diretiva 2004/48/CE, de 29/4/2004, relativa aos direitos de propriedade intelectual, prevê que os Estados-Membros devem garantir que, constatada judicialmente a violação de um direito de propriedade intelectual, as autoridades competentes possam impor ao infrator uma medida inibitória da continuidade da violação, a qual, se descumprida, dá ensejo à aplicação de sanção pecuniária. Os Estados-Membros devem garantir ainda que o titular do direito violado possa requerer uma medida inibitória contra intermediários, cujos serviços sejam utilizados por terceiros para violar direitos de propriedade intelectual. O TJUE afirmou que, segundo a jurisprudência pacífica da Corte, o titular da marca fica habilitado a proibir o uso por terceiros, sem seu consentimento, de um sinal idêntico à referida marca quando esse uso se dê no âmbito de operações comerciais, i.e., de ofertas de produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca está registada, pois isso lesa - ou é suscetível de lesar - as funções da marca, dentre as quais a de garantir aos consumidores a proveniência do produto e/ou serviço2. Fazer uso implica necessariamente um comportamento ativo e um domínio, direto ou indireto, do ato que constitui o uso, afirmou o Tribunal, salientando que o art. 9°, n. 3 do Regulamento 2017/1001, que enumera de forma não exaustiva os tipos de uso que o titular da marca pode proibir, faz referência justamente a comportamentos ativos por parte do terceiro, dentre os quais o ato de oferecer produtos contrafeitos, de os colocar no mercado ou os armazenar para tais fins (art. 9º, n. 3, alínea b) do referido diploma). O objetivo do dispositivo é fornecer ao titular de uma marca da União Europeia um instrumento legal que lhe permita proibir e fazer cessar qualquer uso da marca que seja feito por terceiro sem autorização. A Corte ressaltou, porém, que só um terceiro que tenha o domínio, direto ou indireto, do ato (uso) está efetivamente em condições de o fazer cessar e, desse modo, de se conformar com a referida proibição. Isso implica, no mínimo, que o terceiro faça uso do sinal da marca em suas comunicações comerciais. Desse modo, é possível que um operador de sítio de comércio eletrônico permita que seus clientes façam uso de sinais idênticos ou semelhantes a uma marca registrada sem que ele próprio faça uso dos referidos sinais, desde que ele não use os referidos sinais em sua comunicação comercial3. Dito em outras palavras: é possível que o vendedor de um produto falsificado responda pelo uso indevido de sinais idênticos ou semelhantes a uma marca registrada sem que essa responsabilidade seja estendida à empresa operadora do marketplace, onde o produto é comercializado, quando a operadora não utiliza o sinal em suas ofertas de venda no site4. Por isso, o TJUE frisou que o simples fato de uma empresa criar as condições técnicas necessárias (site de comércio eletrônico) para o uso de um sinal e de ser remunerada por esse serviço não significa necessariamente que ela própria esteja fazendo uso do referido sinal, ainda que atue em prol de seus interesses econômicos, não podendo, consequentemente, ser responsabilizada pela violação dos direitos de propriedade industrial do titular da marca. Nessa linha de raciocínio, no acórdão Coty Germany C-567/18, de 2/4/2020, o TJUE afirmou que quando o operador de um site de comércio eletrônico oferece serviços de armazenamento a vendedores terceiros, mantendo em depósito - em nome dos respectivos vendedores - produtos que violam direito de marca de outrem sem, contudo, ter conhecimento do caráter contrafeito dos produtos e sem ter por objetivo oferecer e/ou colocar no mercado os bens armazenados por conta própria e nome próprio, deve-se considerar que o uso indevido dos sinais foi feito exclusivamente pelos vendedores e não pelo operador do marketplace5. O problema é que, no caso Lauboutin, a Amazon fazia uma apresentação uniforme das ofertas de venda veiculadas no site, exibindo simultaneamente os seus próprios anúncios e os anúncios dos vendedores terceiros, colocando seu logotipo de distribuidora de prestígio em todos os anúncios publicitários, além de prestar diversos serviços aos vendedores terceiros (contratantes diretos da Amazon) no âmbito da comercialização dos produtos, como apoio elaboração dos anúncios, fixação dos preços de venda, armazenagem, expedição e entrega dos produtos contrafeitos. Por isso, os órgãos jurisdicionais de reenvio questionaram ao TJUE se, em tais circunstâncias, o operador do marketplace pode responder, juntamente com o vendedor terceiro, pelo uso indevido de sinal idêntico à marca de outrem, ou seja, se a Amazon deveria responder, junto com o vendedor, pela violação da marca Louboutin em decorrência da oferta e venda de sapatos com sola externa vermelha, fabricados sem autorização do designer francês. O TJUE afirmou que a utilização de um sinal na própria comunicação comercial - isto é, em toda e qualquer forma de comunicação destinada a terceiros com o objetivo promover uma atividade, bens e/ou serviços - induz a crer, aos olhos de terceiros, que esse sinal faz parte integrante da comunicação e, portanto, da atividade da empresa. Segundo o Tribunal, quando o prestador de um serviço utiliza um sinal idêntico ou semelhante a uma marca alheia para promover produtos que um dos seus clientes comercializa com o apoio desse serviço, esse prestador passa a fazer uso do sinal quando o utiliza de tal modo que se estabelece perante o consumidor um nexo entre o referido sinal e seus serviços. É o que ocorre, por exemplo, quando o operador de marketplace - por meio de serviço de referenciamento na internet e a partir de palavra-chave idêntica a uma marca registrada de outrem - faz publicidade de produtos dessa marca colocados à venda por seus clientes (vendedor do produto) no seu sítio de comércio eletrônico, disse a Corte. Com efeito, essa publicidade cria, para os internautas, uma associação evidente entre os produtos da marca e a possibilidade destes serem adquiridos no referido site. É por esse motivo que o titular da marca (Christian Louboutin) pode proibir ao operador (Amazon) de fazer uso do sinal distintivo (sola vermelha do sapato) quando seu direito de marca for violado através de publicidade que impeça - ou dificulte - ao internauta razoavelmente atento e informado perceber que o referido produto não provém do titular da marca ou de empresa economicamente a ele ligada, mas sim de um terceiro falsificador. Portanto, concluiu o TJUE, para se determinar se o operador do marketplace utiliza um sinal idêntico à marca alheia, que figura em anúncios de produtos oferecidos por vendedores terceiros em seu site, deve-se verificar se um internauta normalmente informado e atento estabelece ou não uma associação entre os serviços do operador e o sinal distintivo, de tal forma que o consumidor pense que a plataforma de comércio eletrônico comercializa - em seu nome e por conta própria - o referido produto. No âmbito dessa apreciação global das circunstâncias concretas do caso assume especial relevo o modo de apresentação dos anúncios no site, a natureza e a diversidade dos serviços oferecidos pelo operador do marketplace. No que diz respeito ao modo de apresentação dos anúncios, a legislação europeia sobre comércio eletrônico exige que a exibição das ofertas seja feita de modo transparente, de forma a permitir a um consumidor atento e informado distinguir facilmente entre as ofertas do operador do site (Amazon) e as ofertas provenientes de vendedores terceiros que oferecem seus produtos e serviços no marketplace. Ora, o fato da Amazon apresentar de forma uniforme as ofertas, exibindo simultaneamente seus próprios anúncios junto com os anúncios de fornecedores terceiros, utilizando inclusive seu logotipo tanto no site como em todos os anúncios, torna difícil para o internauta distinguir os diversos fornecedores, causando a impressão de que a Amazon também comercializa, em nome próprio e por conta própria, os produtos colocados à venda pelos terceiros fornecedores. Essa impressão é reforçada por menções como "os mais vendidos", "os produtos mais procurados" ou "os mais oferecidos", referências que têm claramente a finalidade de promover as ofertas sem que se tenha o cuidado, porém, de mencionar sua respectiva procedência. Da mesma forma, a natureza e diversidade dos serviços prestados pela Amazon (operadora do marketplace) aos vendedores terceiros - nomeadamente a apresentação uniforme de anúncios publicitários, o tratamento das perguntas dos consumidores relativas ao produto, armazenamento, expedição e gestão das devoluções dos referidos produtos - também causam a impressão no internauta normalmente atento e informado de que esses produtos são comercializados pela empresa, por conta própria e em seu próprio nome. Diante disso, o Tribunal de Justiça da União Europeia concluiu que o art. 9º, n. 2, alínea a) do Regulamento 2017/1001 deve ser interpretado no sentido de que o operador do marketplace, que oferece seus produtos juntamente com os produtos de terceiros fornecedores, pode ser considerado utilizador de um sinal idêntico a uma marca protegida e, portanto, responsável pela violação do direito de marca quando vendedores terceiros coloquem à venda - sem o consentimento do titular da marca - produtos que ostentem ilegalmente tal sinal, desde que as circunstâncias da oferta causem no consumidor a impressão de que o operador do site comercializa - em nome próprio e por conta própria - os produtos contrafeitos. Em outras palavras: a Amazon pode ser responsabilizada pela venda em seu site de sapatos com o sinal típico da marca de Christian Louboutin - a famosa sola externa vermelha - sempre que, aos olhos dos usuários, ela os esteja comercializando por conta própria e em nome próprio. Trata-se, sem dúvida, de decisão que deixa os operadores de sites de comércio eletrônico com as barbas de molho... __________ 1 Nos Estados Unidos, Christian Louboutin parece ter dificuldades em proteger sua marca. Em 2011, um Tribunal de New York negou ação do designer para impedir que a empresa Yves Saint Laurent America Inc. comercializasse sapatos femininos com sola externa vermelha. Segundo o magistrado, Louboutin não pode monopolizar uma cor para artigos de moda, prejudicando os demais concorrentes de forma injustificada, até porque, em sua visão, a cor - da forma como empregada nos sapatos de Louboutin - não teria forma peculiar e distintiva, pressuposto essencial para a proteção marcária. Confira-se: GÄRTNER, Anette. Schlappe für Designer im Duell der High Heels. Legal Tribune Online, 17/8/2011 e Sieg für Louboutin vor dem EuGH: Amazon haftet für Markenrechtsverletzungen duch Drittanbieter. Legal Tribune Online, 22/12/2022. 2 Neste sentido, confira-se o acórdão TJUE C-179/15, de 3/3/2016, caso Daimler. 3 Nesse sentido, confira-se o acórdão TJUE C-567/18 de 2/4/2020, Coty Germany. 4 Foi o que decidiu o TJUE nos acórdãos L'Oréal C-324/09, de 12/7/2011 e Coty Germany C-567/18, de 2/4/2020. Nos dois casos, a Corte entendeu que o uso de sinais idênticos ou semelhantes a marcas registradas, em ofertas de venda exibidas em site de comércio eletrônico, foi feito exclusivamente pelos anunciantes vendedores e não pela própria empresa operadora do marketplace, uma vez que esta não utilizava o referido sinal no âmbito da sua comunicação comercial. 5 Atente-se que no julgado, o órgão jurisdicional de origem, competente para a análise dos fatos, afirmou expressamente ter restado demonstrado nos autos que naquele caso concreto a Amazon (operadora do marketplace) não tinha conhecimento da violação da marca e que não tinha, ela própria, colocado os produtos à venda, sendo a expedição dos produtos feita por prestadores externos, o que revela uma moldura fática distinta do caso Louboutin. Confira-se acórdão Coty Germany C-567/18, n. 9, 30 e 47. Apud: TJUE, acórdão Louboutin C-148/21 e C-184/21, n. 34.
O German Report comemora hoje uma data muito especial: há quatro anos atrás, no dia 28/5/2019, publicávamos a primeira coluna no Migalhas comentando julgado no qual a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - obrigava uma clínica de reprodução humana a revelar a identidade do doador de sêmen para uma moça gerada por meio de reprodução heteróloga, técnica na qual o material biológico usado na fecundação provém de doador anônimo. Na época, o BGH afirmou que todo ser humano tem o direito de conhecer sua origem biológica, o que é decorrência direta do direito geral de personalidade, consagrado no art. 2º I c/c art. 1º da Lei Fundamental. Esse direito fundamental da pessoa se sobrepõe ao direito fundamental do doador de manter sigilo sobre sua identidade e seus dados pessoais. Passados quatro anos, a discussão em torno do anonimato na reprodução assistida ainda anda a passos lentos aqui no Brasil. A opinião majoritária tende a priorizar o direito ao anonimato do doador do material genético face ao direito à identidade genética da pessoa, muito embora o mero conhecimento da identidade do doador e do laço de consanguinidade não gere automaticamente vínculo de parentesco entre a pessoa gerada e o doador. Em descompasso com o direito jusfundamental à identidade genética, o Conselho Federal de Medicina ainda se guia aparentemente pelo (infundado) temor de que o conhecimento da origem genética inviabilize o sistema de reprodução assistida heteróloga. Nesse sentido, a Resolução 2.320, de 1º/12/2022, ainda estabelece como regra o sigilo da identidade de doadores e receptores como requisito para a realização da reprodução assistida heteróloga, permitindo, em caráter excepcional, o conhecimento da identidade apenas quando o doador tiver parentesco até quarto grau com o receptor (item IV, 2)1. Ademais, as informações sobre o doador só podem ser fornecidas a médicos em situações excepcionais, mantendo-se sempre o sigilo de sua identidade civil (item IV, 4)2. Isso mostra o quanto se faz necessário - e útil - um diálogo comparado com o direito alemão, que é, sem dúvida, uma das ciências jurídicas mais avançadas na atualidade. A coluna German Report veio pioneiramente suprir uma lacuna ao trazer ao público brasileiro importantes decisões do judiciário alemão e europeu, analisadas sob uma perspectiva comparada e, dessa forma, fomentar o diálogo e a reflexão crítica. E tem sido extremamente gratificante ver a receptividade dos leitores, de modo que só resta a esta articulista expressar os mais sinceros agradecimentos a todos os que acompanham a coluna, bem como àqueles que com colaboraram para mantê-la atual e instigante. Dando continuidade ao trabalho, a coluna de hoje aborda um tema palpitante, que sempre gera discussões acaloradas: a venda a non domino, que exige do adquirente atenção e boa-fé, principalmente quando se trata de bem de alto valor. Foi o que afirmou recentemente o Oberlandesgericht (Tribunal de Justiça) de Oldenburg, cidade localizada no estado de Niedersachsen, mais conhecido como Baixa Saxônica. Para a Corte, quem deseja comprar carro esportivo de luxo no meio da noite, no estacionamento de uma lanchonete, precisa ter atenção redobrada! O imbróglio envolveu um apaixonado por carros esportivos, que queria adquirir uma Lamborghini, um dos carros de luxo italianos mais caros do mundo.  O imbróglio Tudo começou quando o comprador viu um anúncio no site mobile.de, que vende carros online na Alemanha. Ele entrou em contato com dois irmãos, anunciantes do veículo, que se diziam representantes do proprietário que, por sua vez, morava na Espanha. Após o primeiro contato, eles marcaram um encontro para o potencial comprador examinar o veículo. As partes se encontraram na noite do dia 13/8/2019 no estacionamento de um posto de gasolina na cidade de Wiesbaden. Após o exame do veículo, os contraentes acordaram a compra e venda e combinaram que o bem só seria entregue alguns dias depois, pois os irmãos iriam utilizar o carro para ir ao casamento de um amigo. Na data marcada, eles se encontraram (tarde da noite, porque os vendedores chegaram atrasados) no estacionamento de um posto de gasolina na cidade de Essen, onde foi feito o test drive e de lá todos foram para uma filial da rede de fast-food Burger King, onde o comprador assinou o contrato de compra e venda por volta de uma hora da manhã. Ele entregou 70 mil euros em espécie e seu próprio carro, avaliado em 60 mil euros, como complemento do preço, recebendo, em contrapartida, as chaves e alguns documentos, dentre os quais um certificado de registro e licenciamento da Lamborghini, emitido por um órgão alemão, além de uma cópia da parte frontal do documento de identidade do suposto proprietário do veículo. O problema era que o carro pertencia a outra pessoa e os dois irmãos não tinham poderes para vender o esportivo carro de luxo. Com efeito, o bem pertencia a um espanhol, que o havia deixado, por tempo determinado, em uma locadora de veículos para locação. A locadora alugara a Lamborghini para outro espanhol que, por sua vez, não devolveu o carro, fato que levou o proprietário a registrar pedido de busca no sistema europeu de informações. O comprador, porém, só descobriu a fraude quando tentou transferir a propriedade do veículo para o seu nome. O proprietário, então, entrou com ação judicial exigindo a devolução da Lamborghini, pedido julgado improcedente em primeiro grau pelo Landgericht (LG) Oldenburg ao argumento de que teria havido aquisição de boa-fé, nos termos do § 932 BGB. Mas o OLG Oldenburg reformou a sentença. Trata-se do processo OLG Oldenburg 9 U 52/22, julgado em 27/3/2023. Fundamentos da decisão Da mesma forma que no direito brasileiro, vigora no direito alemão o princípio basilar de que ninguém pode transferir mais direitos do que possui (princípio nemo plus iuris). Com efeito, terceiros não têm o poder jurídico para, através de atos de disposição, interferir nos direitos alheios, pois lhes falta justamente o poder de disposição (Verfügungsmacht). Essa regra, contudo, é excepcionada através da aquisição a non domino pelo terceiro de boa-fé ou, como dizem os alemães, pela aquisição de boa-fé de uma pessoa não legitimada, hipótese prevista no § 932 BGB. Reza o dispositivo: "§ 932. Aquisição de boa-fé de um não legitimado. (1) Através de uma alienação efetuada nos termos do § 929, o adquirente torna-se proprietário mesmo que a coisa não pertença ao alienante, salvo se não estiver de boa-fé no momento em que adquiriria a propriedade, nos termos destas disposições. No caso do inciso 2 do § 929, isso só se aplica se o adquirente tiver adquirido a posse do alienante. (2) O adquirente não está de boa-fé se souber ou desconhecer por negligência grave que a coisa não pertence ao alienante."3 Dois pontos merecem, de início, atenção. O primeiro é que a boa-fé aqui exigida é a boa-fé subjetiva, isto é, a crença justificada - i.e., amparada em dados objetivos e, portanto, em certa medida objetivada - de estar agindo conforme ao direito. O segundo é que o § 932 BGB contempla hipótese excepcional, prevista pelo legislador com o escopo de tutelar a segurança do comércio jurídico, ainda que às custas do real legitimado (proprietário). Em outras palavras: a aquisição a non domino de boa-fé é exceção, cuja necessidade de tutela precisa restar demonstrada. O § 929 BGB, por seu turno, disciplina a aquisição de coisa móvel afirmando no inciso 1 que para a transmissão da propriedade é necessário que o proprietário entregue a coisa ao adquirente e que ambos estejam de acordo de que deve ocorrer a transmissão do domínio. O inciso 2 diz que quando o adquirente já está na posse da coisa, basta o acordo sobre a transmissão da propriedade. São, assim, pressupostos para a aquisição de coisa móvel, nos termos do § 929 BGB: o acordo (Einigung) transmissivo do domínio e a tradição (Übergabe) do bem. Se a alienação se processar dessa forma (Einigung + Übergabe), diz o § 932 I BGB, o comprador adquire a propriedade ainda quando a tenha adquirido de pessoa não legitimada (Nichtberechtigter), salvo se não estiver de boa-fé no momento da aquisição da propriedade. O § 932 II BGB complementa a norma afirmando que o adquirente não está de boa-fé quando sabe - ou desconhece por grosseira negligência - que a coisa não pertence ao alienante. A jurisprudência alemã afirma que não é o comprador (no caso concreto: o réu) quem precisa provar ter agido de boa-fé, mas é o verdadeiro legitimado, (no caso, o proprietário do veículo, autor da ação) quem precisa demonstrar a ma-fé (Bösgläubigkeit) daquele4. Para o OLG Oldenburg, apesar dos vendedores terem apresentado o documento do veículo original, as circunstâncias do caso eram tão claramente suspeitas que obrigavam o comprador a ser mais desconfiado e diligente. Em primeiro lugar, não estava claro se o nome constante do registro era o do verdadeiro proprietário, pois lá fazia-se referência a uma suposta representação. Apesar disso, o comprador só negociou com os intermediários do negócio, não tendo o cuidado de entrar em contato direto com o proprietário do veículo, que morava na Espanha, nem de exigir dos intermediários a procuração autorizando a venda do automóvel. Além disso, havia uma diferença perceptível na grafia do nome e do endereço constante no documento do carro e no contrato de compra e venda, circunstância que, na visão do Tribunal, deveria ter acendido uma luz vermelha a fim de que o comprador investigasse melhor a procedência do veículo. Ele teria, então, descoberto que, na verdade, o bem estava sendo vendido no nome do espanhol que alugou a Lamborghini na locadora. Mas, por falta de diligência, o comprador só teve conhecimento da fraude posteriormente, no momento de passar o carro para o seu nome. O OLG Oldenburg também afirmou que as demais circunstâncias da contratação deveriam ter levado o adquirente a agir com mais prudência e diligência: o lugar e momento incomum da conclusão do contrato; o uso do carro pelos intermediários para fins privados, i.e., para uma festa de casamento; a troca dos automóveis sem quaisquer questionamentos ao proprietário do carro de luxo e o fato de se tratar de bem de alto valor. Tudo isso levou o Tribunal a concluir que o comprador agiu com negligência grosseira na aquisição do veículo, pois não percebeu culposamente que os irmãos não tinham legitimidade para vender o carro, seja porque não eram proprietários, seja porque não tinham poderes para tanto. Embora não se pudesse afirmar que o adquirente tinha positivamente ciência (dolo) de que os irmãos não eram proprietários, nem legitimados para vender o bem, ele agira com culpa grosseira. De fato, age com negligência grosseira (grobe Fahrlässigkeit) todo aquele que viola - em medida extraordinariamente incomum, de acordo com as circunstâncias do caso - o cuidado exigido no comércio jurídico. Dessa forma, a pessoa deixa de observar aquilo que no caso concreto deveria ser observado5. Trata-se, portanto, de verificar padrões objetivos de conduta na apuração da boa-fé subjetiva do adquirente, que não pode simplesmente alegar - como fez o comprador no caso concreto - que, no seu ponto de vista, se tratava de uma transação comercial habitual que ele ou membros de sua família já haviam efetuado várias vezes de modo semelhante, de forma que a compra não lhe pareceu especialmente suspeita, o que atestaria sua boa-fé, disse o OLG Oldenburg6. Segundo o Tribunal, um dos requisitos objetivos mínimos exigidos para uma aquisição de boa-fé de um automóvel é que o adquirente tenha acesso ao documento de registo do veículo a fim de verificar a legitimidade do vendedor. Porém, mesmo quando o vendedor esteja na posse do bem e do documento do veículo, o comprador pode estar de má-fé se circunstâncias especiais levantarem suspeita sobre o negócio e ele simplesmente as ignorar. Isso ainda mais se justifica quando se constata que o comprador não tem, em regra, um dever geral de investigação, disse a Corte. Com base no registro, é possível verificar com a pessoa lá registada o poder de disposição e transferência do possuidor do veículo. Essa checagem deveria ter sido feita pelo adquirente a fim de afastar uma negligência grosseira de sua parte. Em outras palavras: o comprador não poderia ter simplesmente presumido que os irmãos, possuidores do veículo, tinham poder para dele dispor pelo simples fato de estarem na posse do documento original do veículo, pois lá não constavam seus nomes, mas sim o de uma pessoa residente na Espanha. No entanto, o comprador deixou de entrar em contato direto com o espanhol e de exigir que os intermediários lhes apresentassem uma procuração com poderes especiais para vender a Lamborghini, confiando exclusivamente no que lhes diziam os intermediários e na apresentação do original do documento do veículo e de uma mera cópia da parte frontal da carteira de identidade do suposto proprietário - o que, evidentemente, é insuficiente para comprovar uma representação, afirmou a Corte. Na medida em que o adquirente comprou o carro sem examinar mais detalhadamente a pessoa do proprietário, nem o poder de representação dos intermediários, ele violou deveres de averiguação elementares nesse tipo de operação. Isso se fazia ainda mais necessário tendo em vista que se tratava de carro de luxo proveniente de outro país e que só há pouco tempo havia entrado em território alemão. Além disso, havia uma diferença na grafia do nome e endereço constante no documento do carro e no contrato de compra e venda e a circunstância extremamente incomum e suspeita de que os irmãos aceitaram imediatamente o carro usado do adquirente como parte do preço sem consultar previamente o proprietário e sem que este tenha tido a oportunidade de examinar o bem o os documentos do veículo. Diante de todas essas circunstâncias duvidosas, a Corte concluiu que existiam evidências suficientes de que se tratava de um carro importado ilegalmente para a Alemanha e que os dois irmãos, intermediários do negócio, não tinham poderes para dispor do veículo, o que exigia do comprador a conduta ativa de investigar a procedência do carro e a legalidade da operação. Ao fechar os olhos para a realidade, o adquirente não agiu de boa-fé, nos termos do § 932 BGB, frustrando, consequentemente, a aquisição a non domino, razão pela qual a Corte ordenou a devolução do veículo ao verdadeiro proprietário. A situação no Brasil Da mesma forma que no direito alemão, no direito brasileiro o negócio jurídico é insuficiente para transferir a propriedade da coisa, limitando-se a produzir apenas efeitos obrigacionais, ou seja, a gerar para o devedor o dever de cumprir a obrigação de dar coisa certa, estabelecida no contrato. Para que se dê a transferência da propriedade é necessário que ocorra a transcrição do título aquisitivo no cartório de registro de imóveis, no caso de bem imóvel (arts. 1.245 a 1.247 CC) e, no caso de bem móvel, a tradição, ou seja, o ato de entrega da coisa ao adquirente (art. 1.267 CC). Para produzir o efeito translatício da propriedade, a tradição requer a titularidade do domínio por parte do alienante, pois a ninguém é dado transferir mais direitos do que possui. Logo, quem não é dono, não pode transferir o domínio, pois falta poder de disposição sobre a coisa. E é nesse contexto que se põe a polêmica questão acerca da aquisição ou venda a non domino, expressão mais usual na doutrina e jurisprudência. Como explica Francisco Paes Landim, em obra de referência sobre o tema, a categoria das aquisições a non domino engloba uma enorme variedade de figuras jurídicas, inclusive figuras aquisitivas nas quais o patrimônio do verus dominus se desloca da titularidade de quem não é proprietário para a esfera jurídica do comprador7. Nesse ponto, conquanto tida como sinônimo de venda a non domino, dela se distingue, porque a alienação da coisa por quem não é proprietário, representante ou substituto negocial, com a entrega imediata da coisa ao comprador, não tem, em regra, efeitos translatícios da propriedade, como deixa claro o art. 1.268 CC, regra já constante do art. 622 do Código Beviláqua.  Reina dissenso na doutrina sobre se a venda a non domino constitui negócio inexistente8, nulo9 ou ineficaz10 - discussão que acaba se refletindo na jurisprudência, embora o Superior Tribunal de Justiça tenda a considerar a venda a non domino um vício que gera nulidade absoluta, impossível de ser convalidada11. Segundo o art. 1.268 CC, a tradição não produz efeitos translatícios da propriedade se a alienação foi feita por quem não era dono, exceto nos casos em que a coisa móvel é oferecida ao público em leilão ou estabelecimento comercial, situações que induzem o adquirente - ou qualquer pessoa - a crer na seriedade do negócio. Diz o dispositivo: "Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono. § 1º. Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição. § 2º. Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo." A regra, portanto, é que a venda pelo non domino de bem móvel não transfere o domínio ainda quando tenha havido a tradição do bem a terceiro de boa-fé, em respeito ao princípio nemo plus iuris. O dispositivo - considerado inovação em relação ao diploma anterior - só tutela o terceiro de boa-fé que adquire coisa móvel oferecida ao público em leilão ou estabelecimento comercial, pois a publicidade daí decorrente induz qualquer um a acreditar na titularidade aparente do bem12. A norma é uma aplicação da teoria da aparência, pela qual tutela-se a confiança legítima do adquirente de bem ofertado ao público em geral, garantindo-se, em última instância, a segurança do comércio jurídico. Nesse caso, a tutela da boa-fé subjetiva do adquirente (amparada nas circunstâncias objetivas da publicidade da venda e na verossimilhança da procedência da coisa) justifica a desconsideração do vício originário decorrente da falsa titularidade, ainda que às custas da posição jurídica do verdadeiro titular do direito de propriedade. O § 1º do art. 1.268 CC contempla a hipótese em que o alienante não titular adquire posteriormente a propriedade do bem alienado, circunstância que o legislador considera apta a transferir o domínio retroativamente desde o momento da tradição se o adquirente estava de boa-fé, ignorando a ausência de titularidade do tradens, regra que já constava da segunda parte do art. 622 do Código Beviláqua. Por fim, o § 2º do mencionado dispositivo estabelece que a tradição, baseada em negócio jurídico nulo, não tem o condão de transferir a propriedade, com o que a lei deixa claro que a tradição, no direito brasileiro, é ato causal que requer a validade do título subjacente.  Do exposto, conclui-se que no direito brasileiro e alemão vige o princípio nemo plus iuris e que, em casos excepcionais, a lei protege o adquirente de boa-fé. Porém, conquanto o art. 1.268 CC tutele o adquirente de boa-fé na venda a non domino, essa proteção é bem mais tímida que a proteção conferida no direito alemão, pois o § 932 BGB não exige que a coisa tenha sido ofertada ao público (situações em que a publicidade da venda justifica a presunção legal de boa-fé do adquirente), tutelando, portanto, o adquirente em outras situações de venda a non domino em que as circunstâncias do caso concreto também justificam a tutela da confiança do terceiro de boa-fé. __________ 1 "2. Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, exceto na doação de gametas ou embriões para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos), desde que não incorra em consanguinidade." 2 "4. Deve ser mantido, obrigatoriamente, sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores, com a ressalva do item 2 do Capítulo IV. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente aos médicos, resguardando a identidade civil do(a) doador(a)." 3 § 932. Gutgläubiger Erwerb vom Nichtberechtigten. (1) Durch eine nach § 929 erfolgte Veräußerung wird der Erwerber auch dann Eigentümer, wenn die Sache nicht dem Veräußerer gehört, es sei denn, dass er zu der Zeit, zu der er nach diesen Vorschriften das Eigentum erwerben würde, nicht in gutem Glauben ist. In dem Falle des § 929 Satz 2 gilt dies jedoch nur dann, wenn der Erwerber den Besitz von dem Veräußerer erlangt hatte. (2) Der Erwerber ist nicht in gutem Glauben, wenn ihm bekannt oder infolge grober Fahrlässigkeit unbekannt ist, dass die Sache nicht dem Veräußerer gehört. 4 OLG Oldenburg 9 U 52/22, p. 2. No mesmo sentido: SCHULTE-NÖLKE, Handkommentar BGB, § 932, Rn. 1, p. 1433. 5 OLG Oldenburg 9 U 52/22, p. 2, citando julgados do BGH: BGHZ 77, 274 e NJW 2013, 1946. 6 No original: "Im Rahmen des § 932 Abs. 2 BGB gibt es keine Entlastung wegen fehlendersubjektiver Fahrlässigkeit, weil der Rechtsverkehr sich bei der Konkretisierung des guten Glaubens auf gleichmäßige Mindestanforderungen einstellen können muss. Es gilt daher ein streng objektiver Maßstab, sodass die persönlichen Maßstäbe des Erwerbers und seine Handelsgewohnheiten den Maßstab nicht mindern (BGH LM § 932 Nr. 12, 21). Der Beklagte kann sich mithin nicht darauf berufen, dass es sich aus seiner Sichtum einen üblichen Geschäftsvorgang gehandelt habe, den er bzw. Familienangehörige bereits wiederholt inähnlicher Weise praktiziert hätten, der Kauf ihm persönlich unverdächtig vorkam und er gutgläubig gewesen sei." 7 A propriedade imóvel na teoria da aparência. São Paulo: Editora CD, 2000, p. 129 ss. Outro nome de referência na área de direitos reais, de leitura indispensável é Roberta Mauro Medina Maia. Teoria geral dos direitos reais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 8 ROSENVALD, Nelson e BRAGA NETTO, Felipe. Código civil comentado. 3ª ed. São Paulo: JusPodium, 2022, p. 1367. 9 Nesse sentido, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona entendem que a alienação a non domino conduz à nulidade absoluta do negócio jurídico por impossibilidade jurídica do objeto (art. 166 II CC). Para os autores, não há que se falar em inexistência do negócio, pois objeto há; todavia, é juridicamente impossível operar a transmissão devido à falta de legitimidade dominial do transmitente. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 223. 10 Nesse sentido: TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo e RENTERIA, Pablo. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 172s. Para os autores, a venda a non domino não configura negócio nulo, mas ineficaz para a transferência do domínio, embora produza outros efeitos, como a transferência da posse da coisa ao adquirente. 11 A guisa de exemplo, no EDcl no REsp. 1.199.972/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 19/5/2015, afirma-se que a venda a non domino dá azo à nulidade do negócio jurídico independente da boa-fé do terceiro adquirente; AgInt na AR 5.465/TO, Rel. Min. Raul Araújo, j. 12/12/2018 e Ag em REsp. 2.127.146/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 15/12/2022. 12 Veja-se o Ag em REsp. 579.886/SP, Rel. Min. Raul Araújo, j. 19/2/2015, no qual tutelou-se a boa-fé de quem adquiriu carro em leilão público e providenciou a transferência da propriedade no órgão de trânsito. No Ag em REsp. 1.986.149/SP, Rel. Min. Humberto Martins, j. 25/11/2021, o STJ afirmou que a proteção do adquirente de boa-fé só se dá na hipótese de alienação realizada em local público ou estabelecimento comercial, não abarcando a situação em que o veículo alugado fora vendido irregularmente pelo locatário a terceiro de boa-fé, caso em que o negócio foi considerado nulo.
A coluna German Report dessa semana recebe o contributo do jovem Professor João Alexandre Silva Alves Guimarães, que nos brinda com um julgado do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre um tema sensível e ainda não claramente resolvido aqui no Brasil: o direito ao esquecimento. O autor é Mestre em Direito da União Europeia pela Universidade do Minho, em Portugal, e doutorando na tradicional Universidade de Coimbra. É associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD), membro do Comitê Executivo do Laboratório de Direitos Humanos - LabDH da Universidade Federal de Uberlândia e pesquisador do Observatório Jurídico da Comunicação do Instituto Jurídico de Comunicação da Universidade de Coimbra. Nesse artigo, nosso convidado recorda que o direito ao esquecimento já foi reconhecido como direito fundamental tanto pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, quanto pelos tribunais alemães, estando expressamente previsto no art. 17 do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD). De fato, na Alemanha, a Corte infraconstitucional - Bundesgerichtshof (BGH) - já reconheceu em vários julgados a existência de um direito ao esquecimento, o qual, conquanto possua natureza jusfundamental, não tem caráter absoluto, devendo ser ponderado no caso concreto com os demais direitos fundamentais em colisão. E aqui vale observar que, apesar do reconhecimento do direito ao esquecimento, não se pode, em absoluto, apontar qualquer censura ou prejuízo à liberdade de expressão na terra de Goethe. Isso, por si só, já mostra o equívoco da decisão do Supremo Tribunal Federal, no Tema 786, que concluiu pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal. Mas a realidade dos fatos sempre acaba se impondo, mais cedo ou mais tarde, à lei ou a uma decisão equivocada e o fato é que várias situações de esquecimento na internet estão sendo chanceladas pelo Judiciário brasileiro sob o manto do direito à desindexação. Como salienta o autor ao longo do texto, o desafio (prático e teórico) agora é avaliar se - e, em caso positivo, até que ponto - o direito à desindexação é realmente algo distinto do direito ao esquecimento, como vêm afirmando a jurisprudência por aqui. Isso se torna mais premente tendo em vista que o art. 17 do RGPD coloca aparentemente o direito ao esquecimento como um gênero que engloba outros direitos, como apagamento e a desindexação. Essa desafiadora discussão é abordada com maestria pelo articulista. Confira!   * * *  João Alexandre Silva Alves Guimarães  Não podemos dizer de forma alguma que o direito ao esquecimento é algo novo. Quando olhamos para a ideia de Thomas Cooley1 com o right to be let alone, em 1879, sendo aplicado no direito civil com Samuel Warren e Louis Brandeis2 nos Estados Unidos em 1890, percebemos que a invasão da privacidade, a usurpação da imagem e da honra, faz parte da preocupação dos juristas há um tempo considerável. Porém, para discutir o presente, é importante revisar dois casos paradigmáticos julgados na Alemanha: Lebach I e II e, na sequência, examinar as recentes decisões da Corte infraconstitucional, o Bundesgerichtshof (BGH).  O caso Lebach O famoso caso Lebach I envolveu um latrocínio que teve lugar em 1969 na cidade de Lebach, na República Federal da Alemanha. O caso foi amplamente divulgado pela mídia e televisão, sendo conhecido como "o assassinato dos soldados de Lebach". Durante o incidente, quatro soldados foram assassinados e outro ficou seriamente ferido quando criminosos roubaram armas e munições do depósito onde eles estavam de guarda. Em 1970, dois réus foram sentenciados à prisão perpétua, enquanto outro recebeu uma pena de seis anos de reclusão por auxiliar na preparação do crime.3 A repercussão do caso Lebach foi tão grande que a emissora de televisão ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen) produziu um documentário sobre o crime, usando dramatização por atores e divulgando fotos e nomes reais dos condenados, incluindo informações sobre possíveis relações homossexuais entre eles. O documentário estava programado para ser exibido em uma sexta-feira, dias antes do terceiro condenado deixar a prisão após cumprir sua pena. No entanto, o terceiro condenado entrou com um pedido de medida liminar para impedir a exibição do programa.4 Embora o Tribunal de Justiça de Mainz e o Tribunal de Justiça de Koblenz tenham julgado o pedido improcedente, o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht ou BVerfG) decidiu que a reclamação constitucional era válida, alegando violação do direito ao desenvolvimento da personalidade. Como resultado, o BVerfG proibiu a exibição do documentário até a decisão final da ação principal pelos tribunais ordinários competentes.5 De acordo com as práticas do Bundesverfassungsgericht na época do julgamento, nem toda a esfera da vida privada desfruta de proteção absoluta dos direitos fundamentais.6 Se um indivíduo, em sua capacidade de cidadão, vive dentro de uma comunidade e entra em relações que afetam outros ou interferem nos interesses da vida comunitária, seu direito exclusivo de ser senhor de sua própria esfera privada pode se sujeitar a restrições, a menos que sua esfera mais íntima de vida esteja em causa.7 Em particular, qualquer envolvimento social suficientemente forte pode justificar medidas das autoridades públicas no interesse do público em geral, como a publicação de fotos de uma pessoa suspeita para facilitar uma investigação criminal.8 O Tribunal Constitucional alemão afirmou no julgado que a liberdade de expressão pode limitar as reivindicações baseadas no direito de personalidade, desde que o dano resultante não seja desproporcional à importância da publicação para a defesa da liberdade de comunicação. Na ponderação de interesses deve-se levar em conta a violação da esfera pessoal, o interesse específico atendido pela transmissão e se pode ser satisfeito de outra forma sem interferir na proteção da personalidade, disse a Corte.9 Porém, a garantia constitucional da personalidade não permite que a mídia trate indefinidamente da esfera privada do criminoso. O direito de "ser deixado em paz" ganha importância crescente uma vez que o interesse em receber informações foi satisfeito, limitando o desejo da mídia e do público de discutir ou entreter-se com a esfera individual da vida do indivíduo. Para o Tribunal Constitucional, após a condenação, invasões adicionais na esfera pessoal do criminoso não podem ser justificadas se o interesse público já foi atendido.10 O caso Lebach II pode ser considerado uma nova abordagem do problema do "direito ao esquecimento", com um resultado diferente. Em 1996, um canal de televisão alemão produziu uma série sobre crimes históricos, incluindo um episódio sobre o crime ocorrido em Lebach. Ao contrário do canal ZDF, os produtores da série, que seria transmitida no canal SAT 1, mudaram os nomes dos envolvidos e não mostraram suas imagens, e convidaram o ex-chefe de polícia de Munique para comentar o episódio.11 Os envolvidos no caso Lebach II solicitaram liminarmente que a série não fosse transmitida, solicitação deferida pela instância ordinária. Como resultado, a SAT 1 apresentou uma reclamação constitucional perante o BVerfG.12 Diferentemente do caso Lebach I, a Corte anulou a decisão anterior e, após ponderar a liberdade de radiodifusão do programa de televisão e o direito geral de personalidade dos reclamados, deferiu o pedido da SAT 1 para garantir a transmissão do documentário. Isso ocorreu devido ao fato que a SAT 1 não revelou a identidade dos ofensores, incluindo fotos e nomes, e devido ao tempo decorrido desde o crime, que mitigava os riscos de prejudicar a ressocialização dos condenados.13 Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 COOLEY. Thomas M. A treatise on the Law of Torts, or, The wrongs which arise independent of contract. 2ª Edição, Chicago: Callaghan and Company, 1879. 2 WARREN, Samuel D.; LOUIS, D. Brandeis. The Right to Privacy. Harvard Law Review, vol. 4, no. 5, p. 193-220, 1890. Disponível em . 3 Bundesverfassungsgericht. BVerfGE 35, 202 - Lebach, de 5 de junho de 1973. 4 CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; CARMONA, Flávia Nunes de Carvalho Cavichioli. A aplicação do direito ao esquecimento aos agentes delitivos: uma análise acerca da ponderação entre o direito à imagem e as liberdades de expressão e de informação. Rev. Bras. Polít. Pública. Brasília, v. 7, n.º 3, p. 436-452, 2017. Página 440. 5 Idem. 6 Idem. 7 Idem. 8 Idem. 9 Bundesverfassungsgericht. BVerfGE 35, 202 - Lebach, de 5 de junho de 1973. 10 Idem. 11 FRAJHOF, I. Z. O Direito ao Esquecimento na Internet: Conceito, Aplicação e Controvérsia. São Paulo: Almedina, 2019. Páginas 55 e 56. 12 Idem. 13 Idem.
A coluna German Report desta semana recebe o contributo do jovem Bruno Tostes Corrêa, dedicado estudioso do Direito Societário alemão, comentando um dos julgados mais emblemáticos do Landgericht München I, o juízo de primeira instância de Munique. O caso envolve temática palpitante no Direito Societário: os deveres dos administradores, tema em voga nas últimas décadas com o chamado dever de compliance, o qual vem associado, na Alemanha, ao chamado dever de controle da legalidade (Legalitätskontrollpflicht), que, por sua vez, é um corolário do dever de legalidade (Legalitätspflicht). Nosso articulista é bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), advogado e mestrando em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo sob a orientação do ilustre Prof. Mauro Rodrigues Penteado. Dentre suas recentes publicações, merece destaque o profundo artigo escrito com Gustavo Machado Gonzalez sobre o "Dever de legalidade dos administradores de sociedades", publicado em 2022 na Revista Semestral de Direito Empresarial. Boa leitura a todos! * * * No direito societário, os deveres dos administradores constituem um tema de enorme relevância. Afinal de contas, o bom funcionamento das sociedades depende de uma atuação adequada de tais atores. Tendo isso em mente, as ordens jurídicas determinam uma série de deveres aos administradores. Para além disso, em âmbito doutrinário e jurisprudencial, o assunto é normalmente objeto de inúmeros desenvolvimentos. No contexto dos deveres dos administradores, um tema que ganhou muita relevância nas últimas décadas é o chamado dever de compliance. Na Alemanha, isso não foi diferente. Em solo germânico, tal assunto é normalmente relacionado ao dever de controle da legalidade (Legalitätskontrollpflicht1), um corolário do dever de legalidade (Legalitätspflicht)2, entendido aqui como o dever de o administrador não só cumprir a ordem jurídica, mas também promover ou assegurar que a sociedade administrada cumpra todas as normas que recaiam sobre ela3. Para o desenvolvimento da matéria na Alemanha, há um precedente jurisprudencial que é considerado como um marco pela doutrina daquele país. Trata-se do caso Siemens/Neubürger, julgado pelo Landgericht München I4 em 10 de dezembro de 20135. Os fatos do caso O caso Siemens/Neubürger diz respeito a um escândalo de corrupção que envolveu a Siemens Aktiengesellschaft e suas subsidiárias. No início da década de 1980, um sistema de caixa dois foi instituído na companhia6, propiciando a utilização dos recursos disponíveis em tal sistema para pagamento de propinas. O método foi alterado nos primeiros anos da década de 2000 por diversos funcionários da Siemens: em vez de um sistema de caixa dois, passou-se a fazer uso de contratos de consultoria fictícios, que levavam à emissão de notas frias. Essa estrutura ilícita era mantida por funcionários da Siemens, não havendo, ao menos em tese, a participação direta de membros da administração da companhia. De todo modo, desde o final da década de 1990, os membros do Vorstand (diretoria) da Siemens já sabiam da importância de a companhia agir conforme a lei, em especial nos meses seguintes à entrada em vigor da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE)7. A necessidade de completa observância da Siemens ao Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) americano também foi destacada internamente, chegando-se a informar aos funcionários da companhia sobre o conteúdo das normas do FCPA8. Em 2000, apareceu o primeiro grande sinal de que havia um esquema de corrupção na estrutura da Siemens. O chefe do departamento jurídico da companhia compartilhou com Heinz-Joachim Neubürger, diretor financeiro (Finanzvorstand), uma carta do governo da Áustria elaborada a partir de uma determinação judicial do Poder Judiciário suíço. No caso, o objeto da carta eram recursos financeiros de propriedade de um ex-ditador da Nigéria. Entre as contas bancárias listadas na carta, havia uma que tinha sido aberta secretamente por um dos funcionários da Siemens, sem o conhecimento e consentimento da administração da companhia. No âmbito interno da Siemens, os recursos depositados na referida conta haviam sido usados para pagamentos clandestinos, sempre classificados como despesas úteis. Nos anos subsequentes, outras evidências de que havia um esquema de corrupção vieram à tona. Por exemplo, em 2003, uma auditoria tributária realizada descobriu que haviam sido feitos pagamentos suspeitos com base em contratos de consultoria. Também no mesmo ano, auditores reportaram a Heinz-Joachim Neubürger que tinham notado um saque considerável de dinheiro numa conta bancária da companhia em Munique. À vista dessas evidências, ele determinou o início de uma investigação interna, cujo resultado foi a descoberta de um saque de 4 milhões de euros, montante que fora enviado para a Nigéria por alguns empregados. Logo após esse incidente, ainda em 2003, o departamento jurídico da Siemens chegou a recomendar que houvesse uma reforma do sistema interno de compliance da companhia, mas isso foi rejeitado pelo Vorstand. Cerca de um ano depois, o sistema interno de compliance da Siemens foi finalmente reestruturado. Na vigência desse novo sistema interno, Heinz-Joachim Neubürger chegou a encaminhar, por exemplo, uma circular que determinava que quaisquer saques de dinheiro que ultrapassassem o piso que disparasse o dever de notificação, nos termos das respectivas leis de combate à lavagem de dinheiro locais, só poderiam ser efetivados se explicitamente aprovados pelo diretor financeiro da sociedade titular da conta e que deveria haver uma explicação detalhada sobre o uso de tais recursos. Esses esforços tardios da Siemens não foram suficientes para isentar a companhia de sofrer punições, seja do Estado alemão, seja do Estado americano, a partir do momento em que houve o estouro do escândalo, em novembro de 2006. Em tal data, policiais e promotores revistaram os escritórios da Siemens - a suspeita era de que havia uma estrutura de subornos em grande escala. Em outubro de 2007, o juízo de primeiro grau de Munique (Landgericht München I) condenou a Siemens num processo criminal ao pagamento de multa no valor de 201 milhões de euros9. Em dezembro de 2008, a promotoria (Staatsanwaltschaft München I)10 multou a Siemens em 395 milhões de euros11. Nos Estados Unidos, a Siemens e algumas de suas subsidiárias sofreram punições no Distrito de Colúmbia12 e perante a Securities and Exchange Commission13 - ao todo, em solo americano, isso significou um prejuízo de 800 milhões de dólares para o grupo Siemens. Todas essas punições, vale dizer, foram aplicadas considerando uma série de atos de corrupção que foram descobertos mundo à fora envolvendo o grupo Siemens - como, por exemplo, na Venezuela, na Argentina, no México, em Israel, no Iraque e na Nigéria. O esquema era feito para o grupo Siemens ganhar contratos nas mais diversas ordens jurídicas. O processo e a decisão Considerando as punições recebidas pela companhia e suas subsidiárias em função do escândalo de corrupção, o conselho de supervisão (Aufsichtsrat) da Siemens tomou a decisão de processar antigos membros da diretoria (Vorstand) que estiveram na administração ao longo de vários anos nos quais o esquema esteve vigente. Ao mesmo tempo, ofereceu a todos a possibilidade de celebrar acordos. Este foi o caminho escolhido por quase todos os antigos administradores da Siemens. A exceção ficou com Heinz-Joachim Neubürger, antigo diretor financeiro, que recusou a celebração de um acordo no qual pagaria 4 milhões de euros à companhia. Em sua visão, ele não tinha violado nenhum dever. Por esse motivo, a Siemens ingressou em juízo contra Heinz-Joachim Neubürger, pleiteando a condenação do antigo administrador ao pagamento de uma indenização. Apesar de, em tese, poder pleitear um valor muito maior, a companhia se contentou em processar seu ex-administrador para condená-lo ao pagamento do montante de 15 milhões de euros. Em grande parte, o referido montante correspondia aos valores que a companhia teria gastado para pagamento de honorários a uma firma de advocacia americana após a deflagração do escândalo de corrupção. Entretanto, o valor pleiteado em juízo também incluía quantia que havia sido paga pela Siemens no âmbito de um contrato de consultoria fictício relacionado aos negócios da companhia na Nigéria. Os advogados da Siemens decidiram escolher apenas esses dois elementos - i.e., o que fora pago aos advogados americanos e aquilo que fora desembolsado no contexto de um contrato de consultoria fictício específico - por uma razão bem simples: tratava-se daquilo que era mais fácil de provar e calcular14. Como fundamento para sua pretensão, a Siemens argumentou basicamente que Heinz-Joachim Neubürger teria violado seus deveres como administrador ao falhar em garantir a licitude da conduta da companhia e de seus empregados. Ele não teria assegurado que a companhia tivesse um eficiente sistema de compliance, nem teria tomado medidas adequadas ante uma série de indícios de que havia comportamentos ilícitos na estrutura do grupo Siemens. Em sua defesa, o ex-administrador contra-argumentou que não ter violado nenhum dever. Em linhas gerais, seu argumento foi o seguinte: ele teria tomado todas as precauções que alguém em sua posição teria feito, inclusive em matéria de compliance,e que não seria razoável que se imputasse responsabilidade a ele pela efetivação de pagamentos ilícitos na Nigéria, algo que não estaria dentro da sua alçada. No entanto, o Landgericht München I deu ganho de causa à Siemens. O substrato teórico utilizado pelo tribunal para proferir seu julgamento foi o dever de legalidade (Legalitätspflicht) em sua acepção de garantir a instituição de uma estrutura de controle da legalidade dos atos praticados pela companhia (Legalitätskontrollpflicht). Nos termos da decisão, o dever dos membros do Vorstand de assegurar que a conduta da companhia esteja em conformidade com a lei inclui o dever de organizar e supervisionar a sociedade de modo que inexistam violações à lei, como o pagamento de propinas a pessoas localizadas em países estrangeiros, sejam elas da iniciativa pública ou privada. Para o tribunal, isso significaria o dever de os membros da diretoria implementarem um sistema de compliance adequado para prevenção de danos e controle de riscos. As medidas necessárias para cumprimento do referido dever dependeriam (i) do tipo de negócio explorado pela sociedade, (ii) do seu tamanho e de sua organização interna, (iii) do conjunto de normas aplicáveis, (iv) do seu escopo geográfico e (v) de eventuais condutas suspeitas praticadas no passado. Assim, o Landgericht München I não só reconheceu a existência do dever de legalidade (Legalitätspflicht), mas também do dever de controle da legalidade (Legalitätskontrollpflicht), ainda que não tenha usado explicitamente esta última expressão15. A esse respeito, vale ainda dizer que o reconhecimento do referido dever pelo Landgericht München I ocorreu à míngua de previsão expressa do tema na Lei das Sociedades por Ações (Aktiengesetz). Aliás, o tribunal preferiu não se preocupar tanto com a fonte legal do dever de compliance na Aktiengesetz, tendo afirmado que era pouco relevante saber se o dever decorreria do § 91, Abs. 216 ou das disposições gerais previstas no § 76, Abs. 117 e no § 93, Abs. 118. Em matéria de provas, o tribunal afirmou que a Siemens havia comprovado os fatos constitutivos de seu direito. Nesse sentido, haveria provas suficientes de que Heinz-Joachim Neubürger não teria agido de modo diligente ante os indícios de ilegalidades que estavam sendo cometidas no grupo Siemens. Por exemplo, argumentou-se que ele não teria buscado incrementar adequadamente o sistema de compliance da Siemens, mesmo após receber informações de que estava - ou poderia estar - havendo ilícitos de corrupção. Por consequência, ele foi responsabilizado, em conformidade com o § 93, Abs. 219 da Aktiengesetz. Considerando que se tratava de uma decisão proferida por um órgão judiciário de primeira instância, contra a qual houve a interposição de recurso, esperava-se que o caso seria revisto ao menos pelo Oberlandesgericht München, órgão de segunda instância. Na melhor das hipóteses, sob a perspectiva daqueles interessados na evolução da discussão, o Bundesgerichtshof também analisaria o tema. Entretanto, nada disso ocorreu. A decisão proferida pelo Landgericht München I terminou inalterada, tendo em vista que as partes chegaram a um acordo meses após a prolação do acórdão.                Relevância da decisão Acima de tudo, a decisão do caso Siemens/Neubürger é considerada uma enorme referência no Direito alemão quando se fala em compliance. Para além de fazer considerações teóricas de grande relevância sobre o dever de compliance, que nada mais é que uma materialização do dever de controle da legalidade (Legalitätskontrollpflicht), o acórdão teve consequências práticas20. Uma delas foi mostrar que um sistema de compliance deve efetivamente existir no mundo real e ser eficaz - i.e., não pode apenas estar no papel, nem ser completamente ineficaz, apresentando falhas sistemáticas ou permanentes. Outra foi indicar que esse tema diz respeito aos membros da administração - no caso, os membros do Vorstand -, não podendo ser delegado totalmente para outros membros da estrutura societária21. Assim, um sistema de compliance deficiente pode trazer sérias consequências não só para a própria companhia, mas também para os membros da administração, com sua responsabilização. Por fim, uma outra consequência que merece ser apontada se refere à extensão do dever de compliance ao conjunto de atividades exercidas pelas sociedades alemãs em países estrangeiros, inclusive por meio de subsidiárias. Desse modo, afasta-se de uma vez por todas o argumento de que seria aceitável a prática de ilícitos de corrupção em países estrangeiros nos quais isso é uma prática generalizada. O tema no Brasil No Brasil, como ocorre na Alemanha, igualmente se reconhece, especialmente no âmbito de companhias abertas, que a administração deve instituir um sistema de compliance, normalmente por meio de expressões como sistema de controles internos. A respeito disso, dois julgados proferidos pelo Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) merecem destaque: os casos Telemig22 e Petrobras23. O caso Telemig originou-se do denominado "escândalo do Mensalão", no qual a Telemig foi utilizada para pagamento de propinas mediante a emissão de notas frias no âmbito de contratos de publicidade. A questão levada ao Colegiado da CVM era saber se o diretor responsável pelas atividades relacionadas ao departamento de marketing teria descumprido o dever de constituir controles internos adequados. O caso Petrobras, a seu turno, teve como origem os fatos ilícitos descobertos no âmbito do "escândalo do Petrolão", na esteira das investigações da denominada "Operação Lava Jato". No referido caso, o Colegiado da CVM teve que decidir, entre outros pontos, se os membros do conselho de administração da Petrobras teriam descumprido seu dever na supervisão dos controles internos da companhia no contexto da construção da Refinaria Abreu e Lima. Em ambos os precedentes, similarmente ao ocorrido no caso Siemens/Neubürger, o Colegiado da CVM apontou a existência de uma dimensão do dever de diligência relacionada à supervisão das atividades da companhia, aplicável tanto ao conselho de administração (caso Petrobras), quanto à diretoria (caso Telemig)24. Apesar de a base teórica utilizada pela CVM em tais julgados derivar, explícita ou implicitamente, do Direito americano, a construção feita é bastante similar àquela empreendida pelo Landgericht München I no caso Siemens/Neubürger. Conclusão O dever de compliance dos administradores de sociedades, tema relevante em diversos países do mundo, teve seu grande impulso na Alemanha a partir do escândalo envolvendo a Siemens. O julgamento do caso Siemens/Neubürger, que surgiu em decorrência do referido escândalo, estabeleceu as bases de uma discussão que ainda hoje é relevante na Alemanha, como se pode ver em decisões mais recentes25 e, inclusive, em alteração legislativa de 202126, promovida na esteira do escândalo da Wirecard.27 __________ 1 Há quem prefira o termo Legalitätsorganisationspflicht (cf., por exemplo, GRIGOLEIT, Hans Christoph; TOMASIC, Lovro. § 93. In: GRIGOLEIT, Hans Christoph [Hg.]. Aktiengesetz Kommentar. 2. Aufl. München: Beck, 2020, p. 985), que poderia se traduzir como dever de organização da legalidade. 2 Cf., nesse sentido, SEIBT, Christoph H. § 76. In: SCHMIDT, Karsten; LUTTER, Marcus (Hrsg.). Aktiengesetz Kommentar. Bd. I, §§ 1-132 AktG. 4. Aufl. Köln: Dr. Otto Schmidt, 2020, p. 1.096. 3 HABERSACK, Mathias. Die Legalitätspflicht des Vorstands der AG. In: BURGARD, Ulrich; HADDING, Walther; MÜLBERT, Peter O.; NIETSCH, Michael; WELTER, Reinhard (Hrsg.). Festschrift für Uwe H. Schneider. Köln: Dr. Otto Schmidt, 2011, p. 431-432. 4 Na estrutura do Poder Judiciário alemão, os Landgerichte são equivalentes aos juízos de 1ª instância brasileiros. Sobre o tema, cf. BENEDUZI, Renato. Introdução ao processo civil alemão. 2. ed., rev., ampl e atual. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 45. 5 Landgericht München I, 10.12.2013 - 5 HK O 1387/10, Neue Zeitschrift für Gesellschaftsrecht, 17. Jahrgang, Heft 9, 2014, p. 345 e ss. Na doutrina, fala-se que nenhum outro julgado proferido por um órgão de primeira instância é considerado tão importante - na área do direito societário - quanto aquele proferido no caso Siemens/Neubürger (cf. BACHMANN, Gregor. Siemens/Neubürger - LG München I NZG 2014, 345: Compliance-Pflicht des Vorstands und Organhaftung. In: FLEISCHER, Holger; THIESSEN, Jan (Hrsg.). Gesellschaftsrechts-Geschichten. Tübingen: Mohr Siebeck, 2018, p. 692). 6 Sobre o sentido de caixa dois, cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Infidelidade patrimonial e caixa dois: a perspectiva alemã. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (Org.). Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora 2017, p. 234 ("[f]ala-se em um 'caixa dois' quando se mantém parte de um patrimônio administrado por terceiro, que atua sob confiança do dono do patrimônio, fora da contabilidade oficial da empresa (geralmente em conta bancária apartada), com o objetivo de utilizar o dinheiro no real ou suposto interesse da empresa, evitando, assim, um controle externo"). 7 No Brasil, a referida convenção foi ratificada em 15 de junho de 2000 e promulgada pelo Decreto Presidencial nº. 3.678/2000. 8 A necessidade de estrito cumprimento ao FCPA se impunha em razão da listagem dos valores mobiliários de emissão da Siemens na bolsa de Nova York. 9 Com fundamento no § 30, Abs. 1, da Lei de Infrações Administrativas alemã (Gesetz über Ordnungswidrigkeiten - OWiG), cumulado com o § 334 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch - StGB). 10 No Direito alemão, as Staatsanwaltschaften são equivalentes ao Ministério Público brasileiro (cf. NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade. Notas sobre a Justiça e o Ministério Público no Direito da Alemanha Ocidental. Revista de Processo, v. 47, p. 168-214, 1987, item 14). 11 Com fundamento nos §§ 30 e 130 da Lei de Infrações Administrativas alemã (Gesetz über Ordnungswidrigkeiten - OWiG). 12 A punição sofrida no Distrito de Colúmbia ocorreu em razão de violações ao FCPA. 13 Segundo a Securities and Exchange Commission, a Siemens teria violado alguns dispositivos do Securities Exchange Act de 1934 - Section 13(b)(2)(A), Section 13(b)(2)(B) e Section 30A. 14 BACHMANN, Gregor. Siemens/Neubürger..., cit., p. 713. 15 BACHMANN, Gregor. Siemens/Neubürger..., cit., p. 710. 16 "§ 91 Organisation. [...] (2) Der Vorstand hat geeignete Maßnahmen zu treffen, insbesondere ein Überwachungssystem einzurichten, damit den Fortbestand der Gesellschaft gefährdende Entwicklungen früh erkannt werden. [...]". Em tradução livre: "§ 91 Organização. [...] (2) O Vorstand deve tomar as medidas adequadas e, em especial, instituir um sistema de monitoramento, a fim de permitir que sejam identificados em uma fase inicial eventos que possam comprometer a continuidade da sociedade. [...]". 17 "§ 76 Leitung der Aktiengesellschaft (1) Der Vorstand hat unter eigener Verantwortung die Gesellschaft zu leiten. [...]". Em tradução livre: "§ 76 Direção da sociedade anônima (1) O Vorstand deve dirigir a sociedade sob sua própria responsabilidade. [...]". 18 "§ 93 Sorgfaltspflicht und Verantwortlichkeit der Vorstandsmitglieder (1) Die Vorstandsmitglieder haben bei ihrer Geschäftsführung die Sorgfalt eines ordentlichen und gewissenhaften Geschäftsleiters anzuwenden. [...]". Em tradução livre: "§ 93 Dever de diligência e responsabilidade dos membros do Vorstand (1) Os membros do Vorstand devem empregar, em sua gestão, a diligência de um gestor prudente e criterioso. [...]". 19 "§ 93 Sorgfaltspflicht und Verantwortlichkeit der Vorstandsmitglieder [...] (2) Vorstandsmitglieder, die ihre Pflichten verletzen, sind der Gesellschaft zum Ersatz des daraus entstehenden Schadens als Gesamtschuldner verpflichtet. [...]". Em tradução livre: "§ 93 Dever de diligência e responsabilidade dos membros do Vorstand [...] (2) Os membros do Vorstand que violarem seus deveres serão solidariamente responsáveis por indenizar a sociedade por qualquer dano que daí resulte". [...]". 20 BACHMANN, Gregor. Siemens/Neubürger..., cit., p. 723. 21 FLEISCHER, Holger. Aktienrechtliche Compliance-Pflichten im Praxistest: Das Siemens/Neubürger-Urteil des LG München I. Neue Zeitschrift für Gesellschaftsrecht, 17. Jahrgang, Heft 9, p. 321-329, 2014, p. 323. 22 Processo Administrativo Sancionador CVM nº 24/06, Dir. Rel. Otavio Yazbek, j. 18.02.2013. 23 Processo Administrativo Sancionador CVM nº 05/2016, Dir. Rel. Henrique Machado, Voto do Diretor Gustavo Machado Gonzalez, j. 03.11.2020. 24 Para um aprofundamento de ambos os casos, relacionando o tema ao dever de legalidade aplicável aos administradores de sociedades, cf. GONZALEZ, Gustavo Machado; TOSTES CORRÊA, Bruno. Dever de legalidade dos administradores de sociedades. Revista Semestral de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, n. 30, p. 1-87, jan./jun. 2022, p. 50 e ss. 25 Cf., nesse sentido, Oberlandesgericht Nürnberg, 30.03.2022 - 12 U 1520/19 (reconhecendo o dever de compliance imputável ao administrador de uma GmbH & Co. KG). 26 Faz-se referência à Finanzmarktintegritätsstärkungsgesetz, de 2021, que incluiu expressamente na Aktiengesetz (§ 91, Abs. 3) o dever de compliance no contexto das companhias abertas (cf. FLEISCHER, Holger. § 91. In: SPINDLER, Gerald; STILZ, Eberhard (Hrsg.). Beck-Online Großkommentar Aktienrecht. Band 1: §§ 1-132 AktG. 5. Auflage. München: Beck, 2022. p. 1.697). Nos termos do § 91, Abs. 3, "Der Vorstand einer börsennotierten Gesellschaft hat darüber hinaus ein im Hinblick auf den Umfang der Geschäftstätigkeit und die Risikolage des Unternehmens angemessenes und wirksames internes Kontrollsystem und Risikomanagementsystem einzurichten". Em tradução livre: "o Vorstand de uma companhia aberta deve também estabelecer um sistema de controles internos e um sistema de gestão de riscos que sejam apropriados e eficazes tendo em vista o alcance das atividades empresariais e a situação de risco da sociedade". 27 O escândalo da Wirecard diz respeito a uma enorme fraude financeira que envolveu a Wirecard AG, uma companhia aberta alemã que explorava primordialmente o ramo de processamento de pagamentos. Por muito tempo, a Wirecard AG foi considerada a principal fintech alemã, chegando a ter suas ações listadas no DAX (Deutscher Aktienindex), o principal índice da bolsa de valores de Frankfurt (Börse Frankfurt). Em 2020, descobriu-se que uma quantia bilionária que constava das demonstrações financeiras da Wirecard AG simplesmente não existia. O escândalo foi objeto de excelente documentário produzido pela Netflix, disponível em sua plataforma desde setembro de 2022 (Skandal! Bringing Down Wirecard).
Recentemente, a Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof (BGH), proferiu interessante decisão acerca do direito do doador de revogar a doação em decorrência de ingratidão do donatário. A decisão veio solucionar controvérsia existente na doutrina alemã e devido à sua significação fundamental (grundsätzliche Bedeutung) subiu à Corte em Karlsruhe.  O caso O caso girava em torno de doação de quatorze imóveis feita a título de antecipação da legítima pela mãe a seus três filhos. A doação foi feita com reserva de usufruto gratuito e vitalício para a genitora. Um outro imóvel, localizado em Frankfurt am Main, foi doado exclusivamente ao filho. Anos depois, após ficar internada longo período em um hospital, a mãe resolveu extinguir o direito de usufruto instituído a seu favor em documento com firma reconhecida em cartório. O documento deveria ficar guardado em um cofre na sede da administração do condomínio até que eles decidissem o que fazer. O filho, porém, se apossou do documento e tentou convencer a mãe e suas duas irmãs a decidir logo o que fazer com a declaração. Embora as partes não tenham chegado a consenso, ele se recusou a devolver o documento e levou-o ao cartório, solicitando o registro do cancelamento do usufruto no cartório de registro de imóveis (Grundbuchamt). Esse fato azedou ainda mais a relação entre mãe e filho, que já estava abalada pelo fato da empresa do rapaz ter suspendido o pagamento da renda de outro imóvel da genitora, arrendado pela sociedade, o que levou a mãe a pleitear em juízo um débito de mais de um milhão de euros. Assim que a genitora foi informada pelo cartório acerca da averbação da extinção do usufruto, ela cancelou uma antiga procuração dada ao filho e requereu judicialmente o cancelamento da mencionada averbação. In continenti, escreveu ao filho comunicando a revogação da doação e entrou com ação na justiça pedindo a devolução do domínio dos imóveis transferido ao filho. Como a genitora faleceu durante o processo, as filhas deram prosseguimento à ação. No curso do processo, a genitora alegou ter revogado a doação por ingratidão do filho, tendo em vista o comportamento dele em registrar contra sua vontade, de forma sorrateira, o cancelamento do usufruto, além de suspender o pagamento do aluguel do imóvel comercial locado, forçando-a a levar o caso ao Judiciário. Além disso, o filho teria chantageado as irmãs no imbróglio envolvendo o cancelamento do usufruto. O Tribunal de primeira instância (Landgericht) de Frankfurt a.M. julgou procedente a ação, condenando o filho (donatário) a devolver a propriedade dos imóveis à genitora, decisão que fora, porém, reformada em grau de recurso pelo Oberlandesgericht Frankfurt a.M. no processo n. 8 U 142/13, julgado em 27/12/2019. Em apertada síntese, o Tribunal de Justiça declarou a nulidade do ato, porque a doadora não indicou na notificação os motivos (fundamento) para a revogação da doação. Ademais, a Corte entendeu que a conduta do donatário, de requerer o averbamento do cancelamento do usufruto, não poderia ser classificada como ingratidão. O processo subiu a Karlsruhe, cidade sede dos tribunais superiores na Alemanha. O Bundesgerichtshof deu provimento ao recurso de Revision interposto, afirmando, em suma, que a declaração de revogação da doação não precisa de fundamentação.  Para entender o caso Para entender o caso, faz-se necessário, inicialmente, recordar que a doação é, em princípio, um contrato que não pode ser revogado ao arbítrio do doador. Pelo contrato de doação, uma pessoa, por liberalidade, transfere de seu patrimônio bens ou vantagens para o patrimônio de outrem (art. 538 do Código Civil). Além da movimentação patrimonial, para o aperfeiçoamento do contrato é necessário que as partes acordem entre si que a transferência será feita de forma gratuita, sem que o donatário se obrigue a uma contraprestação, como ressalva atentamente o § 516 do BGB1. A doação só pode ser desfeita em situações excepcionais. A codificação brasileira prevê expressamente duas hipóteses no art. 555, quais sejam, os casos de ingratidão do donatário ou de inexecução do encargo. O art. 557 CC elenca algumas hipóteses de ingratidão, como atentar contra a vida ou cometer homicídio contra o doador, ofensa física, injúria ou calúnia ou recusar fornecer alimentos ao doador necessitado. A revogação pode ocorrer quando o ofendido for cônjuge/companheiro, ascendente, descendente ou irmão do doador (art. 558 CC). O direito de revogar a doação é direito potestativo e personalíssimo que só pode ser exercido pelo próprio doador, sendo permitido a seus herdeiros apenas continuar a demanda revocatória já instaurada (art. 560 CC), salvo em caso de homicídio doloso do doador, quando a ação caberá evidentemente aos herdeiros (art. 561 CC). O direito de revogação por ingratidão deve ser exercido por meio de ação revocatória a ser movida no prazo de decadencial de um ano, nos termos do art. 559 CC. A doutrina discute se o art. 557 CC consagra um rol taxativo (numerus clausus) de formas de ingratidão ou se outras situações igualmente graves poderiam justificar o desfazimento da doação. Nesse sentido, o Enunciado 33 da I Jornada de Direito Civil diz que "o Código Civil de 2002 estabeleceu um novo sistema para a revogação da doação por ingratidão, vez que o rol legal previsto no art. 557 deixou de ser taxativo, admitindo, excepcionalmente, outras hipóteses". O direito alemão, ao contrário, não possui um rol taxativo de hipóteses de ingratidão, mas dispõe de uma cláusula geral, estampada no § 530 I BGB, segundo a qual a doação pode ser revogada quando o donatário (Beschenkte), através de grave falta cometida contra o doador (Schenker) ou familiar próximo, incorrer em grosseira ingratidão (grober Undank)2. Dessa forma, faz-se necessário uma valoração ampla das circunstâncias do caso concreto, inclusive do comportamento do doador3, para saber se o donatário faltou com a gratidão que a moral social normalmente espera seja devida ao doador. Como atentamente observa Ingo Saenger, Professor da Universidade de Münster, a norma do § 530 I BGB trata, a rigor, de caso especial de perturbação da base do negócio (§ 313 BGB) na medida em que um grave comportamento superveniente do donatário (ingratidão grosseira) altera profundamente as circunstâncias iniciais do negócio, fazendo surgir para o doador o direito (rectius: pretensão) de revogar a doação feita, pleiteando a devolução do objeto doado4. A jurisprudência alemã é rica em exemplos de grosseira ingratidão: maus-tratos, cárcere privado, ofensa grave, pedido de interdição manifestamente infundado, denúncia ou queixa-crime infundada, ofensa à honra, exclusão deliberada da empresa familiar, abertura de empresa concorrente pelo donatário que recebeu quotas sociais da empresa do doador, tentativa de captação de clientes, etc. Em certas circunstâncias, até mesmo a negativa de concessão de um direito real de uso pode justificar a revogação da doação5. Para a configuração da ingratidão no direito alemão, é necessário, em apertada síntese, a existência de dois pressupostos fundamentais: primeiro, uma falha grave do donatário e, segundo, a reprovabilidade moral da conduta por demonstrar falta de gratidão para com o doador6. Esses são, por assim dizer, os pressupostos materiais para a revogação da doação por ingratidão do donatário. Segundo o § 531 BGB, a revogação deve ser feita por meio de declaração dirigida ao donatário (inc. 1) e, uma vez revogada a doação, a restituição da coisa se dará pelas regras do enriquecimento sem causa (inc. 2)7. A doutrina diverge quanto à necessidade de o doador indicar na declaração a causa da revogação, isto é, de fundamentar sua decisão. A opinião majoritária entende que o doador precisa indicar na declaração a causa da revogação (Widerrufsgrund), fazendo menção ao comportamento ingrato do donatário até para que esse possa verificar a veracidade da causa e a observância do prazo decadencial de um ano estipulado no § 532 BGB8. Corrente minoritária, porém, afirma que isso seria desnecessário tendo em vista a dicção do § 531 I BGB, que exige apenas que o doador emita uma declaração de vontade receptícia, sem forma especial, no prazo de um ano, contado do momento em que toma conhecimento da ocorrência dos pressupostos de seu direito, i.e., do fato e da autoria da ingratidão (§ 532 BGB). A Corte de Karlsruhe, reconhecendo a divergência, filiou-se à corrente minoritária e afirmou que a declaração de revogação não requer fundamentação. Trata-se do processo BGH X ZR 42/20, julgado em 11/10/2022 pelo 10º Senado do BGH.  A decisão do BGH Com efeito, o Tribunal entendeu que o comunicado feito pela mãe ao filho, informando que estava revogando a doação dos imóveis e requerendo a devolução do domínio sobre os mesmos, era suficiente para atender à exigência do § 531 BGB, que requer apenas que a revogação seja feita por meio de declaração de vontade endereçada ao donatário na qual conste claramente a decisão de desfazer a doação. Uma interpretação literal da norma revela que o legislador não impôs ao doador o dever de mencionar a causa da revogação (Widerrufsgrund) na declaração de revogação (Widerrufserklärung). Em outras palavras: a norma não cria um dever de fundamentação (Begründungspflicht) para o doador. Esse dever também não resulta do sentido (Sinn) e escopo (Zweck) da norma, afirmou a Corte. Exigir que o doador fundamente sua declaração de revogação seria criar um requisito formal que a própria lei não instituiu. Ademais, disse o BGH, uma interpretação sistemática revela que o Código Civil alemão não exige fundamentação em hipóteses semelhantes, como na denúncia de relações obrigacionais duradouras por motivo relevante (Kündigung aus wichtigen Grund). Com efeito, no contrato de prestação de serviço (Dienstvertrag), qualquer das partes pode denunciar o contrato a qualquer tempo quando surgem fatos graves que - considerando todas as circunstâncias do caso concreto e ponderando os interesses das partes envolvidas - tornem irrazoável, segundo a boa-fé objetiva (Treu und Glauben), a continuidade do vínculo contratual. Essa é a regra constante do § 626 I BGB, norma especial que disciplina a denúncia extraordinária, sem prazo e por motivo relevante (justa causa), nos contratos de prestação de serviços, a qual se aplica no direito alemão inclusive aos contratos de trabalho9. Para que a denúncia extraordinária seja feita de forma válida, ela deve ser efetivada dentro do prazo fatal de duas semanas, mediante declaração de vontade, denominada Kündigungserklärung, na qual conste, de forma inequívoca, a vontade do declarante de encerrar imediatamente o contrato. A denúncia feita fora do prazo é inválida. Como deixa claro o inc. 2 do § 626 BGB, a parte denunciante não precisa indicar a causa da denúncia na declaração. Segundo o dispositivo, ela só precisa informar - por escrito e imediatamente - a causa da denúncia se a contraparte assim solicitar10. Disso se conclui que a comunicação do motivo do encerramento do contrato não é requisito de validade para a denúncia extraordinária. Para o BGH, a mesma lógica deve ser aplicada aos casos de revogação da doação por ingratidão - para os quais a lei sequer previu um dever de fundamentação a posteriori aos moldes do § 626 II BGB. Isso não significa, porém, que o donatário fique desprotegido pela ordem jurídica. Com efeito, sua tutela se dá quando a lei lhe permite verificar os requisitos materiais de validade do ato de revogação, ou seja, a emissão de declaração inequívoca revogando a liberalidade (§ 530 BGB) e a observância do prazo legal (§ 532 BGB). Além disso, na eventualidade de processo judicial, a lei impõe ao doador o ônus de demonstrar em juízo a existência do suporte fático da ingratidão grosseira, ou seja, a falha grave do donatário (requisito objetivo) e a reprovabilidade da conduta por exprimir a ausência da gratidão que o doador poderia esperar naquela situação (requisito subjetivo). Sem a presença dos elementos caracterizadores do suporte fático da ingratidão, o negócio jurídico não pode ser desfeito. Nesse caso concreto, os autos foram devolvidos à instância inferior para novo julgamento, uma vez que o BGH entendeu que o Tribunal a quo não avaliou adequadamente todas as peculiaridades do caso. Com efeito, o OLG Frankfurt a.M. não analisou se poderia ser considerado falha grave o fato do filho - contra a inequívoca vontade da mãe e das irmãs - ter se apossado indevidamente do documento e averbado o cancelamento do usufruto vitalício no cartório de registro de imóvel. Para o BGH, tendo em vista a vontade clara da mãe de não cancelar naquele momento o usufruto sobre o imóvel e o desejo de que qualquer decisão fosse tomada conjuntamente entre todos os codonatários, o filho não poderia simplesmente usar o documento em prol de seus próprios interesses, prejudicando a donatária com a extinção de seu direito de usufruto vitalício. Ao assim agir, o donatário pôs-se em clara oposição à vontade da doadora, deixando margens para se questionar se não faltara no caso com a devida consideração pelos interesses da doadora, inerentes à gratidão que a ordem jurídica - e moral - espera para com o doador. Epílogo Esse interessante caso de ingratidão do donatário para com o doador mostra a importância de se superar, no direito brasileiro, a estreita visão de que o art. 557 do Código Civil contém um rol exaustivo de hipóteses de revogação da doação. Embora a jurisprudência já venha permitindo, por analogia, o desfazimento da liberalidade nos casos em que o doador é vítima de difamação por parte do donatário, a verdade é que existem uma infinidade de situações de ingratidão que não são abarcadas pelas estreitas hipóteses do art. 557 CC, as quais, em sua maioria, recebem reprovação na esfera civil por configurarem crime na esfera penal. Ler o art. 557 CC como um rol exemplificativo é, sem dúvida, mais consentâneo com a realidade social contemporânea e com a ratio do sistema jurídico, que tem a clara - e legítima - preocupação de proteger o doador. Outra não é a razão pela qual a disciplina legal dos contratos de doação diverge em vários aspectos do padrão geral válido para os demais contratos. É para proteger os interesses do doador que a lei, por exemplo, dificulta a celebração do contrato, exigindo obrigatoriedade de forma (art. 541 CC) e decretando a nulidade da doação universal (art. 548 CC); flexibiliza a força vinculante do pacto, possibilitando a revogação por ingratidão e inexecução do encargo (art. 555 CC), e permitindo a estipulação de cláusula de reversão (art. 547 CC), bem como quando estabelece uma responsabilização atenuada para o doador ao isentá-lo de responsabilidade por evicção, vício redibitório e juros moratórios (art. 552 CC). Julgados como esse mostram de que se faz necessária entre nós uma proteção mais eficaz dos doadores naquelas situações mais delicadas, nas quais a base do negócio é posteriormente subtraída por atos reprováveis de grave ingratidão do donatário. Isso certamente fomentará nos agraciados um grau mais elevado de gratidão e consideração pelos interesses daquele que se empobreceu para beneficiá-los. __________ 1 § 516 Begriff der Schenkung. (1) Eine Zuwendung, durch die jemand aus seinem Vermögen einen anderen bereichert, ist Schenkung, wenn beide Teile darüber einig sind, dass die Zuwendung unentgeltlich erfolgt. Tradução livre: "§ 516 Conceito de doação. (1) Doação é uma oferta por meio qual uma pessoa enriquece outrem à custa de seu patrimônio, se ambas as partes acordam que a oferta seja gratuitamente." 2 § 530 Widerruf der Schenkung. (1) Eine Schenkung kann widerrufen werden, wenn sich der Beschenkte durch eine schwere Verfehlung gegen den Schenker oder einen nahen Angehörigen des Schenkers groben Undanks schuldig macht. 3 Nesse sentido, BGHZ 46, 394. Apud: SAENGER, Ingo. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar (BGB-Handkommentar). Reiner Schulze (coord.). 8a ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, §§ 530-534, Rn. 2, p. 789. 4 SAENGER, Ingo. Op. cit., Rn. 1, p. 789. 5 SAENGER, Ingo. Op. cit., Rn. 2, p. 789. 6 HERMANN, Elke. In: Erman Bürgerliches Gesetzbuch (Erman-BGB). Harm Peter Westermann (org.). 11a ed. Köln: Otto Schmidt Verlag, 2004, § 530, Rn. 2, p. 1826. 7 § 531 Widerrufserklärung. (1) Der Widerruf erfolgt durch Erklärung gegenüber dem Beschenkten. (2) Ist die Schenkung widerrufen, so kann die Herausgabe des Geschenks nach den Vorschriften über die Herausgabe einer ungerechtfertigten Bereicherung gefordert werden.   8 HERMANN, Elke. Op. Cit., p. § 531, Rn. 1, p. 1827. 9 Retratando a opinião majoritária sobre o tema, Klaus Schreiber na obra já citada BGB-Handkommentar, § 626, Rn. 5-6, p. 933. 10 § 626 Fristlose Kündigung aus wichtigem Grund. (1) Das Dienstverhältnis kann von jedem Vertragsteil aus wichtigem Grund ohne Einhaltung einer Kündigungsfrist gekündigt werden, wenn Tatsachen vorliegen, auf Grund derer dem Kündigenden unter Berücksichtigung aller Umstände des Einzelfalles und unter Abwägung der Interessen beider Vertragsteile die Fortsetzung des Dienstverhältnisses bis zum Ablauf der Kündigungsfrist oder bis zu der vereinbarten Beendigung des Dienstverhältnisses nicht zugemutet werden kann. (2) Die Kündigung kann nur innerhalb von zwei Wochen erfolgen. Die Frist beginnt mit dem Zeitpunkt, in dem der Kündigungsberechtigte von den für die Kündigung maßgebenden Tatsachen Kenntnis erlangt. Der Kündigende muss dem anderen Teil auf Verlangen den Kündigungsgrund unverzüglich schriftlich mitteilen. Tradução livre: "§ 626. Denúncia sem aviso prévio por motivo relevante. (1) A relação de prestação de serviço pode ser rompida por motivo relevante por qualquer das partes, sem aviso prévio, se presentes fatos que, considerando todas as circunstâncias do caso individual e ponderando os interesses de ambas os contratantes, tornem irrazoável para o denunciante a continuação da relação de prestação de serviço até ao termo do prazo de denúncia ou até o fim acordado para a relação de prestação de serviços. (2) A denúncia só pode ser efetivada no prazo de duas semanas. O prazo inicia-se no momento em que a parte legitimada toma conhecimento dos fatos relevantes para a denúncia. O denunciante deve informar a outra parte, a pedido, por escrito e sem demora, a causa da denúncia."
quinta-feira, 30 de março de 2023

Entrevista: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva

A coluna German Report desta semana tem a honra de entrevistar o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ricardo Villas Bôas Cueva, uma das maiores autoridades em Direito Digital na Corte. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo, Ricardo Cueva fez LL.M na renomada Harvard Law School, em Cambridge, nos Estados Unidos, em 1990, na área de direito tributário, tendo recebido a láurea Oliver Oldman Award pelo trabalho. Em 1994, rumou para a Alemanha para cursar o doutorado na Johann Wolfgang Goethe Universität, com tese escrita em alemão sobre os incentivos econômicos para a proteção ambiental, na qual abordou o problema sob a perspectiva comparada no ordenamento jurídico brasileiro e alemão. Ricardo Cueva teve uma atuação profissional polivalente: atuou na advocacia privada e pública, ocupando o cargo de procurador do Estado de São Paulo e da Fazenda Nacional, em São Paulo e Brasília, assumindo, por fim, o mandato de conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), onde permaneceu até 2008, sendo indicado, em 2011, para o STJ, onde preside atualmente a 3ª Turma de Direito Privado. Paralelamente, exerceu a docência e publicou inúmeros escritos nos mais diversos ramos do direito, como direito concorrencial, propriedade intelectual, direito empresarial e societário, proteção de dados e, mais recentemente, direito digital, o que revela sua ampla formação e compreensão da complexidade do fenômeno jurídico. Ultimamente, tem se dedicado com afinco ao estudo do direito digital, debruçando-se principalmente sobre a questão da proteção de dados, da regulamentação das plataformas e do uso da inteligência artificial. Com efeito, em dezembro de 2022, o Ministro entregou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o relatório final da comissão de juristas constituída para propor subsídios à regulação da Inteligência Artificial (IA) no Brasil. Durante vários meses, a comissão, sob a presidência de Ricardo Cueva, promoveu profunda discussão com vários especialistas a fim de traçar um mapa completo sobre o que se pensa no Brasil e no mundo a respeito desse tema sensível, que está na ordem do dia, sobretudo na Europa, que saiu à frente na regulação das plataformas e da economia digital. Ainda ontem, a revista alemã Der Spiegel publicou matéria informando que mais de mil pessoas assinaram um manifesto requerendo uma pausa de pelo menos seis meses no desenvolvimento de sistemas mais evoluídos de IA. Dentre os subscritores, diversos especialistas e empresários, como Elon Musk, um dos fundadores da OpenAI, e Steve Wozmiak, da Apple1. A grande preocupação é que a coisa saia do controle. O manifesto pede que sistemas mais evoluídos que o GPT-4 só sejam desenvolvidos quando se possa ter uma ideia clara acerca dos riscos que eles acarretam à humanidade e dos efetivos benefícios, sempre prometidos, mas ainda um tanto duvidosos. Afinal, um dos temores que afligem especialistas, políticos e a sociedade civil em geral é o fato de que os sistemas mais modernos de IA podem acabar com os postos de trabalho de milhares de pessoas e promovam ainda mais, de forma descontrolada, a difusão de fake news, discursos de ódio e antidemocráticos na rede. Isso, por si só, já mostra a relevância do trabalho realizado pela comissão de juristas que se debruçou sobre a regulação do uso de inteligência artificial no Brasil e o papel central desempenhado por Ricardo Cueva nesse processo como um dos grandes pensadores do direito digital na atualidade. Nessa entrevista, ele fala um pouco sobre sua experiência na Alemanha e sobre algumas das questões mais angustiantes que as novas tecnologias lançaram sobre o direito. Confira! O senhor fez doutorado na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt am Main, em direito tributário ambiental, com tese escrita em alemão. Conte-nos um pouco sobre como começou sua ligação com o direito germânico e sobre sua experiência na Alemanha como bolsista do DAAD (serviço alemão de intercâmbio acadêmico). Sim, fui bolsista do DAAD, que me propiciou um curso intensivo de alemão em Mannheim, por três meses, antes de começar o doutorado na Universidade de Frankfurt. Eu já havia estudado o idioma em São Paulo, em razão de meu interesse pela filosofia e pela literatura alemãs. O doutorado em Direito ampliou meu interesse pela cultura alemã em geral, especialmente pela produção doutrinária em vários ramos do Direito, que procuro sempre ler.  Dentre suas diversas atividades profissionais ao longo da carreira, o senhor foi Conselheiro do CADE. Na Europa está em vigor o Digital Markets Act (DMA), regulamento que visa proteger a concorrência no mercado digital e que restringe o poder e impõe rígidas obrigações a um grupo específico de agentes econômicos, os gatekeepers ou "controladores de acesso", um pequeno grupo de empresas digitais que dominam o mercado e são capazes de distorcer o ambiente competitivo do mercado. Como o senhor vê a atuação e os desafios do CADE perante as big techs sem uma legislação específica como o DMA ou uma legislação concorrencial atualizada? O direito da concorrência não tem acompanhado os desafios criados pelos mercados digitais, em decorrência, de certo modo, de um consenso forjado entre os aplicadores do direito de que seria mais prudente evitar intervenções contundentes pra não ameaçar a inovação tecnológica. Três décadas depois da criação da internet, essa abordagem leniente e tímida tem se revelado inadequada, pois nos mercados digitais é possível identificar complexas estratégias anticompetitivas, que não têm merecido escrutínio das autoridades de defesa da concorrência, apesar de não propiciarem eficiências compensatórias. Vê-se agora, com clareza, que os custos de não intervenção são substanciais e justificam uma nova perspectiva para a investigação e a correção das condutas danosas à sociedade. O senhor tem se dedicado com afinco ao estudo da proteção de dados. Acompanhando a experiência estrangeira, sobretudo europeia, vemos que lá há um nível de proteção maior dos titulares de dados pessoais do que aqui. Quais os principais desafios para uma efetiva proteção de dados no Brasil? A experiência europeia com a proteção de dados pessoais vem se aprofundando há muitas décadas. Mesmo assim, a entrada em vigor, há poucos anos, do Regulamento Geral de Proteção de Dados exigiu grande esforço de adaptação das autoridades, das empresas e da sociedade em geral. No Brasil não poderia ser diferente. Nossa legislação, fortemente inspirada no modelo europeu, é bastante complexa e exige mudança cultural e uma longa adaptação ao novo paradigma de proteção da privacidade. Muito se fala - e se clama - por proteção da privacidade, não obstante as pessoas se exponham diuturnamente nas redes sociais. As plataformas, que rasteiam initerruptamente os internautas, têm se valido da bandeira para impedir a transmissão da herança digital aos herdeiros, com o que se apropriam das contas e, portanto, de informações e dados íntimos e sensíveis de seus usuários falecidos. Enquanto na Europa, tem-se garantido o acesso dos familiares às contas dos herdeiros, aqui algumas decisões têm impedido a família de ter acesso aos perfis a fim de resgatar as últimas lembranças de seus entes queridos. Como o senhor tem visto o problema da intransmissibilidade da herança digital? Como assinalado em recente artigo escrito com você, Karina, percebe-se nitidamente, no mundo todo, uma forte tendência favorável à transmissão do acervo digital aos familiares e herdeiros, que não pode ser impedida ao frágil argumento de violação aos direitos da personalidade do falecido e da proteção de dados. No ano passado, o senhor entregou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o relatório final da comissão de juristas constituída para propor subsídios à regulação da inteligência artificial no Brasil. Pode nos dizer, em linhas gerais, quais as principais propostas apresentadas? Por um lado, a minuta de substitutivo, tendo em vista a centralidade do ser humano como valor fundamental, procura definir com clareza direitos para proteção do elo mais vulnerável, a pessoa natural, continuamente afetada por sistemas de inteligência artificial, desde as seleções e recomendações de conteúdo e direcionamento de publicidade, na internet e nas mídias sociais, até a sua análise de elegibilidade para tomada de crédito e para determinadas políticas públicas. Por outro, estabelece instrumentos de governança, controle, bem como um arranjo institucional de fiscalização e supervisão, procurando com isso aumentar a previsibilidade acerca da sua interpretação e, em última análise, segurança jurídica para inovação e o desenvolvimento econômico-tecnológico. É preciso criar novas regras para regular os impactos da inteligência artificial na responsabilidade civil ou já temos normas suficientes para regular a questão? Como se percebe na proposta de substitutivo apresentada pela comissão de juristas, diferentemente do que se vê no PL 20/2021, optou-se por um regime que compreende o fornecedor e o operador de sistema de IA. Sempre que algum desses agentes causar dano (patrimonial, moral, individual ou coletivo), será obrigado a repará-lo integralmente, independentemente do grau de autonomia do sistema. Como na proposta adotou-se o modelo europeu de classificação de riscos, há uma diferenciação importante no capítulo da responsabilidade civil: quando se tratar de sistema de IA de alto risco ou de risco excessivo, o fornecedor ou operador respondem objetivamente pelos danos causados, na medida da participação de cada um no dano. E quando se tratar de IA que não seja de alto risco, a culpa do agente causador do dano será presumida, aplicando-se a inversão do ônus da prova em favor da vítima. Em sua opinião, os juízes podem se valer da inteligência artificial para prolatar sentenças e decidir um caso concreto, deixando-se substituir pelas máquinas no ato de julgar? Não. As ferramentas de inteligência artificial podem ser muito úteis para a aprimorar a gestão do Poder Judiciário, evitando, por exemplo, demandas predatórias. São importantes também para a automação de tarefas repetitivas e para pesquisas, mas não devem se substituir ao juiz. O ato de julgar é humano e não deve ser delegado a um robô. Na proposta apresentada ao Senado pela comissão de juristas, aliás, a utilização de inteligência artificial no Judiciário é classificada como de atividade de alto risco, a exigir mecanismos específicos de governança e controle. __________ 1 Experten fordern Denkpause für künstiliche Inteligenz. Der Spiegel, 29/3/2023.
terça-feira, 21 de março de 2023

Europa regula o mercado de serviços digitais

Para a insatisfação das grandes empresas de tecnologia, o mundo discute intensamente a regulação das plataformas digitais, instando-as a sair da cômoda posição de mediador - supostamente neutro - de conteúdo para a de formador de opinião e, portanto, responsável pelo conteúdo disseminado na rede. Por aqui, o tema está sob os holofotes, encontrando-se na pauta do Supremo Tribunal Federal, que irá realizar audiência pública no próximo dia 28/3 para tratar de pontos da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da internet) que eximem as empresas de tecnologia de responsabilidade sobre conteúdos compartilhados por seus usuários. A audiência deveria ter sido realizada em março de 2020, mas acabou suspensa por causa da pandemia. Centro da polêmica é o art. 19 do Marco Civil da Internet que só obriga as plataformas a promover a remoção de conteúdo mediante decisão judicial. Nesse ínterim, tramita na Câmara dos Deputados, o PL 2.630/2020, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), que visa combater as fake news e tem inspiração mais avançada e condizente com o papel das plataformas e a gravidade dos riscos decorrentes do exercício dessa atividade, que atingem não apenas o usuário individual, mas também a sociedade e o Estado Democrático de Direito. Para se ter a dimensão dos riscos envolvidos nas atividades de mediação - leia-se: seleção e recomendação personalizada - de conteúdo realizada pelas grandes plataformas, basta lembrar o escândalo da Cambridge Analytics, a importância das fake news no processo de votação do Brexit, nas eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro, além dos atos terroristas de 8 de janeiro. A discussão nos EUA Nos Estados Unidos, o assunto ganhou destaque devido à expectativa do julgamento pela Supreme Court de processos questionando a responsabilidade de plataformas por disseminação de conteúdo de ódio e terrorismo. A grande questão é saber se a conservadora Corte norte-americana vai revisar a regra que isenta as plataformas digitais de responsabilidade pelo conteúdo publicado por seus usuários. Nos Estados Unidos, a Seção 230 da Lei de Decência das Comunicações - criada em 1996 a fim de fomentar o desenvolvimento da internet e que inspirou a legislação de países como o Brasil (vide o malfadado art. 19 do Marco Civil da Internet) - praticamente blinda as big techs de qualquer responsabilidade por publicações dos usuários, reservando a elas apenas a função de "moderação" de conteúdo. Uma das ações foi proposta pela família de Nohemi Gonzale, jovem americana morta em um dos atentados realizados pelo Estado Islâmico em Paris, em novembro de 2015. A família processou o Google, argumentando que algoritmos do YouTube recomendaram a seus usuários vídeos de propaganda do Estado Islâmico, com o que a empresa teria contribuído para a radicalização dos usuários da plataforma1. Matéria do jornal O Globo, do dia 10/3, informa que em outro caso, empresas de tecnologia como Twitter, Google e Facebook, recorreram à Suprema Corte após serem derrotadas em ação que apontou haver cumplicidade das plataformas com atos de terrorismo, já que hospedam o conteúdo de usuários que apoiam grupos que praticam esses atos violentos. A dúvida agora é se a Suprema Corte norte-americana vai manter a imunidade jurídica das big techs ou se, ao contrário, vai reconhecer o anacronismo da mencionada Seção 230 e impor a responsabilização das plataformas digitais. Até mesmo porque as plataformas - longe de serem meras mediadoras de conteúdo - exercem atualmente importante papel na formação da opinião pública, como alertou a ministra do Tribunal Constitucional alemão, Sibylle Kessal-Wulf, na medida em que, através de algoritmos, filtram para o usuário, dentre a avalanche de informações disponíveis na internet, aquelas que podem ser de seu interesse e, dessa forma, acabam decidindo na prática quais informações serão oferecidas ao usuário, influenciando diretamente a formação de sua opinião2. Segundo o jornal alemão Die Welt, os juízes da Suprema Corte mostraram-se céticos em relação à pretensão da família da jovem vítima de ataque terrorista. O justice Clarence Thomas teria expressado dúvidas de que o algoritmo poderia ter contribuído para os ataques terroristas, vez que se trata do mesmo algoritmo que recomenda vídeos sobre a preparação de pratos com arroz3. Ao mesmo tempo, eles especularam se o uso de software com inteligência artificial (ex: a tecnologia do ChatGPT adicionada ao mecanismo de busca Bing da Microsoft) não mudaria a situação das plataformas, vez que, ao produzir textos, elas passariam à situação de produtoras de conteúdo, não tuteladas pela Section 2304. Independente da decisão da Suprema Corte, muita água ainda vai rolar até que os Estados Unidos tenham uma lei tão moderna quando a europeia. A regulação europeia Com efeito, de olho na importância assumida pelas novas tecnologias digitais em todos os aspectos da vida moderna, bem como nos riscos e desafios a ela inerentes, a União Europeia decidiu intervir e regular o mercado. Assim, em 2022, o Parlamento Europeu aprovou duas leis que devem aumentar a fiscalização do mercado digital e trazer maior proteção aos usuários (consumidores e comerciais): o Digital Services Act (DSA), a Lei dos Serviços Digitais e o Digital Markets Act (DMA), a Lei dos Mercados Digitais. Com isso, a União Europeia se torna a primeira jurisdição a submeter as big techs a um amplo conceito regulatório. Ambos os regulamentos estabelecem normas claras para o funcionamento do mercado digital e para a prestação de serviços digitais no continente europeu em conformidade com os direitos e valores fundamentais da União Europeia. Parlamentares louvaram o pacote de medidas como um dos mais importantes aprovados no período legislativo do ano passado. O deputado alemão no Parlamento Europeu, Martin Schirdewan, disse aos jornais que DSA e DMA são as pedras fundamentais para organizar a internet e combater os monopólios digitais, enquanto sua colega Svenja Hahn saudou o pacote legislativo como uma conquista do movimento dos direitos civis5. Margrethe Vestager, vice-presidente da Comissão Europeia afirmou que, "com a lei sobre serviços digitais, existe agora um quadro jurídico claro. As plataformas online estão no centro de aspectos importantes da nossa vida quotidiana, das nossas democracias e das nossas economias. Por conseguinte, é apenas lógico garantir que cumpram as suas responsabilidades em reduzir a quantidade de conteúdos ilegais online, mitigar outros danos na rede e proteger os direitos fundamentais e a segurança dos usuários."6 Em apertada síntese, os objetivos principais do pacote regulatório podem ser assim resumidos, respectivamente: (a) criar um espaço digital mais seguro, no qual os direitos fundamentais de todos os usuários de serviços digitais sejam protegidos e (b) estabelecer condições equitativas para promover a inovação, o crescimento e a competitividade no mercado único europeu. Sem qualquer pretensão de completude, apresenta-se aqui um panorama geral acerca das principais inovações do DSA e DMA. O Digital Marktets Act O Digital Markets Act, em vigor desde 1/11/2022, tem sido considerado peça chave para a estratégia digital da União Europeia. Ele cria um novo código de conduta para as grandes empresas digitais (denominadas gatekeepers) a fim de garantir boas práticas concorrenciais no mercado europeu. A lei tem destinatário certo: as grandes empresas de tecnologia, que dominam o mercado digital e oferecem serviços de mediação, serviços de busca, serviços de mensagem, redes sociais, plataformas de streaming, etc., as quais são assim classificadas conforme os critérios fixados na normativa. Sven Giegold, Secretário de Estado do Ministério da Economia e Proteção Climática (Bundesministerium für Wirtschaft und Klimaschutz) da Alemanha, afirmou que, com o DMA, a Europa chegou a consenso acerca das regras mais rigorosas do mundo para garantir uma maior concorrência e equidade entre os grandes players digitais. "As grandes empresas de plataforma estarão sujeitas a regras claras e duras e não poderão mais determinar unilateralmente as regras do jogo. Durante muito tempo, os grandes gigantes digitais como Google, Facebook, Amazon & Co dominaram o mercado, tornando quase impossível aos novos concorrentes ganharem uma posição de destaque. No futuro, um código de conduta claro será aplicado a todas as grandes empresas digitais"7, disse ele. O Digital Markets Act tem regras mais rígidas para os gatekeepers, como a vedação de publicidade personalizada, que só poderá ser feita com o consentimento do usuário, o que acaba restringindo o uso de dados pessoais pelas big techs (art. 5, inc. 2). A lei obriga ainda as gigantes digitais a garantir uma maior interoperabilidade com os produtos e serviços de terceiros, a oferecer mecanismos mais fáceis para desinstalação de softwares e sistemas operacionais (art. 6, inc. 7), além de assegurar uma maior portabilidade dos dados. Os dos and don'ts impostos às grandes empresas de tecnologia são sancionados com pesadas multas em caso de infrações (até 10% do faturamento) e reincidências das obrigações legais impostas. O DMA irá beneficiar não apenas os usuários consumidores, mas também os chamados usuários comerciais, ou seja, pequenas e médias empresas que dependem dos gatekeepers, como os hotéis, que em breve não mais poderão ser impedidos de oferecer seus serviços a preços mais baixos em seus próprios sites ou plataformas de terceiros (art. 5, inc. 3). O Digital Services Act O Digital Services Act, por sua vez, visa regular a internet de forma sistêmica e, com isso, criar um meio ambiente virtual seguro, previsível e confiável a fim de garantir a proteção dos direitos fundamentais (Schutz der Grundrechte) dos usuários da internet e impedir a divulgação de conteúdos ilegais (illegale Inhalten). Esses são os dois principais objetivos da regulação. Para isso, a lei impõe uma série de obrigações legais a todos os fornecedores de serviços digitais, que intermediam bens, serviços e conteúdos aos consumidores. A ideia central que guiou a elaboração da lei foi a seguinte: o que é ilegal fora da internet, deve ser ilegal no mundo virtual e quanto maior a empresa, maior a responsabilidade. O DSA trata dos serviços digitais, com o que abrange uma gama de serviços online, desde a disponibilização de simples websites até serviços de infraestrutura de internet, plataformas online, serviços de hospedagem, etc. As regras especificadas na Lei de Serviços Digitais são dirigidas a todos aqueles que fornecem produtos, serviços ou conteúdos aos consumidores. O legislador europeu teve em mira, porém, em primeiro lugar, os intermediários e plataformas online, como mercados online, redes sociais, plataformas de compartilhamento de conteúdo, lojas de aplicativos e plataformas de viagens e acomodações online. Dentre eles estão novamente os gatekeepers, ou seja, as grandes plataformas digitais como Google, Facebook, Apple, Microsoft e Amazon, que têm um papel sistêmico no mercado e funcionam como intermediários entre empresas e consumidores de importantes serviços digitais. O art. 25, inc. 1 do DSA define as grandes plataformas como aquelas que possuem pelo menos 45 milhões de usuários ativos por mês dentro da União Europeia. Dentre os objetivos centrais da lei destacam-se o combate e a retirada imediata de conteúdos ilegais, como fake news, discursos de ódio, conteúdo antidemocrático, propaganda terrorista, incitação a atos violentos ou conteúdos com efeitos negativos, por exemplo, sobre crianças e adolescentes, segurança pública ou sobre o processo eleitoral, além do combate à venda de produtos falsificados. O DSA estabelece rígidas obrigações aos prestadores de serviços digitais, como o dever de combate à propagação de conteúdos ilegais, desinformação e outros riscos sociais, deveres que são diretamente proporcionais ao papel, à dimensão e influência que a plataforma tem no ecossistema virtual. Dentre as novidades, destacam-se: adoção de medidas de combate a conteúdos ilegais, principalmente fake news, discursos de ódio e conteúdos antidemocráticos; dever de retirada imediata de conteúdos ilegais e de disponibilizar mecanismos eficientes e de fácil manuseio para os usuários notificarem as plataformas acerca de conteúdos ilegais; obrigação das plataformas de reagir rapidamente, respeitando simultaneamente os direitos fundamentais dos usuários, dentre os quais a liberdade de expressão e a proteção de dados; maior transparência e responsabilização das plataformas: elas são obrigadas, por exemplo, a indicar claramente os conteúdos publicitários, mencionando o nome da empresa anunciante, bem como os parâmetros utilizados para aquele anúncio fosse direcionado ao usuário a fim de que esse possa saber quem está por trás do anúncio e por que ele lhe foi endereçado; dever de informar quando o método de profiling for utilizado; proibição do uso do profiling com base em dados sensíveis, v.g., dados de saúde, ideologia política, orientação sexual, etc.; vedação de profiling em publicidades direcionadas a crianças; dever de fornecer informações claras sobre a moderação de conteúdos e a utilização dos algoritmos utilizados na recomendação de conteúdos; proibição de práticas enganosas e de determinados tipos de publicidade direcionada, como as que visam crianças ou anúncios baseados em dados sensíveis; são igualmente proibidos os chamados dark patterns ou "padrões obscuros" (elementos de interface que, por meio de cores, posicionamento, ícones chamativos e outras dificuldades artificiais, tentam induzir o usuário a optar por algo que ele, na verdade, não gostaria). As plataformas e os motores de busca na internet de grandes dimensões (com 45 milhões ou mais de usuários mensais), que apresentam risco mais elevado, terão de cumprir obrigações adicionais mais rigorosas, como amplas avaliações anuais dos riscos emanados de seus serviços (por exemplo, no que respeita à divulgação de bens ou conteúdos ilegais ou de desinformação), prevenção de riscos sistêmicos e a realização de auditorias independentes.  Elas devem tomar medidas adequadas para mitigar os riscos e se submeter a auditoria externa e independente que avaliará seus serviços e a adequação das medidas de mitigação adotadas, além de se estarem sujeitas a diversas obrigações de prestação de contas. Além disso, elas terão de facilitar o acesso a seus dados e algoritmos às autoridades e aos técnicos habilitados. As pequenas plataformas e start-ups se beneficiarão, ao contrário, de um número reduzido de obrigações, de isenções especiais de certas regras e, sobretudo, de maior clareza e segurança jurídica para operar em todo o mercado da União Europeia. Como a lei visa proteger os direitos fundamentais dos usuários de internet, as novas regras para tutelar a liberdade de expressão dificultam a tomada de decisões arbitrárias pelas plataformas na moderação dos conteúdos e oferecem aos usuários a adoção de novas medidas contra a plataforma quando seus conteúdos forem moderados. Eles têm, por exemplo, várias possibilidades de contestar decisões de restrição de conteúdos, mesmo que essas decisões se baseiem nos termos e condições, e podem reclamar diretamente na plataforma ou optar por acionar um órgão extrajudicial de solução de conflitos ou o próprio judiciário. A lei seguiu o princípio do "notice-and-takedown". Mas ele difere consideravelmente do modelo adotado no art. 19 do Marco Civil da Internet, segundo o qual a plataforma só é obrigada a retirar um conteúdo após notificada por decisão judicial. No DSA, o notice-and-takedown significa que a obrigação de eliminar o conteúdo surge quando a plataforma for notificada de uma infração pelo usuário ou dela tomar conhecimento. Ou seja, o usuário não precisa percorrer o calvário da via judicial, cuja lentidão contrasta diretamente com a celeridade da internet e com a rapidez com que o dano se propaga. As big techs estão, portanto, obrigadas a introduzir procedimentos de fácil utilização que permitam aos usuários denunciar na própria plataforma os conteúdos ilegais, pleiteando sua exclusão imediata. Exatamente o que elas relutam em fazer no Brasil, amparadas no escudo protetor do art. 19 do Marco Civil da Internet. O objetivo da normativa europeia é, evidentemente, fazer com que as grandes plataformas assumam mais responsabilidades por conteúdos ilícitos postados por terceiros e que determinados conteúdos sejam retirados rapidamente da rede, devido aos graves danos que sua divulgação e perpetuação na internet provocam ao lesado. O Digital Service Act entrou em vigor em novembro de 2022, embora muitas de suas normas só passarão a valer a partir de fevereiro de 2024. O diploma prevê pesadas multas em casos de infrações, as quais podem chegar a até 6% do faturamento anual da empresa infratora. Resumo da ópera Do exposto, conclui-se que a Europa deu passo importantíssimo na regulação da internet com os dois diplomas legais: DSA e DMA. Ambos visam, em suma, disciplinar o mercado digital e o poder das grandes plataformas de tecnologia, chamando-as a assumir responsabilidades e a atuar em harmonia com os valores e os direitos fundamentais dos usuários europeus. O que se almeja, em suma, é um mercado digital mais ético e transparente. Os discursos alarmistas sobre as externalidades negativas da regulação, como o empecilho ao desenvolvimento de modelos de negócios inovadores ou o chilling effect sobre o exercício de direitos fundamentais, principalmente sobre a liberdade de expressão, que seria exageradamente restringida pelas plataformas com o dever de retirada imediata de conteúdos ilícitos, não foram suficientes para impedir a União Europeia de regular a economia digital. Esses discursos, apesar do barulho, visam, no frigir dos ovos, tão somente impedir a regulação do mercado digital, que fatura cifras astronômicas com a mineração e o tratamento de dados e tem - além de asfixiado a concorrência - subtraído direitos e poderes importantes dos usuários, nos lançando na era do chamado "feudalismo digital", na qual os consumidores, tal como os vassalos medievais, detêm apenas a posse de produtos digitais, vez que muitas das faculdades inerentes ao domínio permanecem enfeixadas nos copyrights dos novos senhores feudais: as big techs. O Brasil deve seguir o exemplo do continente europeu. Afinal, todos ganham com uma regulação eficiente do mercado digital: as empresas de tecnologia, a concorrência, os usuários consumidores... e a democracia. __________ 1 Julgamento da Suprema Corte dos EUA deve ditar rumos de big techs no Brasil e no mundo. Entenda por quê. O Globo, 10/3/2023. 2 EMERJ discute fake news, discurso de ódio e liberdade de expressão - Parte I. Coluna German Report, Migalhas, 23/8/2022. 3 Oberstes US-Gericht vorsichtig bei wichtiger Internet-Regel. Die Welt, 22/2/2023. 4 Oberstes US-Gericht vorsichtig bei wichtiger Internet-Regel. Die Welt, 22/2/2023. 5 Strengere Regel für Technologiekonzerne: EU-Parlament stimmt Digital Services Act zu. LTO, 5.7.2022. 6 No original: "Mit dem Gesetz über digitale Dienste gibt es nun einen klaren Rechtsrahmen. Online-Plattformen stehen im Mittelpunkt wichtiger Aspekte unseres Lebensalltags, unserer Demokratien und unserer Volkswirtschaften. Es ist daher nur folgerichtig, dafür zu sorgen, dass sie ihrer Verantwortung im Hinblick auf die Verringerung der Menge illegaler Online-Inhalte, die Minderung anderer Online-Schäden sowie den Schutz der Grundrechte und der Sicherheit der Nutzer gerecht werden." Für ein besseres Internet: Das Gesetz über die digitalen Dienste (DSA) tritt heute in Kraft. Disponível aqui. Acesso: 7/12/2022. 7 No original: "Die großen Plattformunternehmen werden klaren und harten Regeln unterworfen und können nicht mehr länger einseitig die Spielregeln bestimmen. Zu lange haben die großen Digitalriesen wie Google, Facebook, Amazon und Co den Markt dominiert, so dass es neuen Wettbewerbern fast unmöglich war, Fuß zu fassen. Künftig gilt für alle großen Digitalunternehmen ein klarer Verhaltenskodex.". Confira-se o comunicado publicado em 25/3/2022 no site oficial do Ministério da Economia e da Proteção Climática (Bundesministerium für Wirtschaft und Klimaschutz), intitulado: Staatssekretär Giegold: "Mehr Fairness und Wettbewerb auf digitalen Märkte".
O Judiciário alemão tem estado atento à sutis ofensas à ordem constitucional livre e democrática e exercido, sem se intimidar, seu papel de defensor da Constituição. Recentemente, um policial aposentado, que se candidatou a um cargo público por um partido de extrema-direita na Alemanha, perdeu o direito de continuar recebendo os proventos de aposentadoria do Estado. Em outro caso, um candidato ao cargo de agente policial foi desclassificado pelo uso de tatuagem suspeita. O fundamento: violação ao dever de lealdade à Constituição.  O caso do policial candidato pelo NPD O caso envolveu um policial aposentado, que exerceu a função de funcionário público (Beamter) no setor administrativo das Forças Armadas (Bundeswehr). Segundo o acórdão, ele estava afastado do trabalho por motivo de doença desde 2013 e, em 2020, se aposentou por invalidez. Contudo, em 2016 o policial aposentado se candidatou a um cargo público pelo Partido Nacional-Democrático da Alemanha (Nationaldemokratische Partei Deutschlands - NPD), conhecido por ter matriz neonazista e por difundir ideias racistas, xenófobas e antidemocráticas. No mesmo ano, foi aberto um processo administrativo disciplinar contra o agente público sob a acusação, dentre outras, de ter se candidatado nas eleições locais pelo NPD e feito postagens de conteúdo claramente extremista em seu perfil público no Facebook. Em 19/10/2021, o tribunal administrativo de primeira instância da comarca de Magdeburg julgou procedente a acusação e cortou a aposentadoria do antigo policial, levando-o a interpor apelação para o Oberverwaltungsgericht (OVG) de Sachsen-Anhalt, que, por sua vez, rejeitou o recurso, confirmando a sentença. Trata-se do processo OVG Sachsen-Anhalt Az 11 L 2/21, julgado em 31.1.20231. O Tribunal de segunda instância afirmou que, ao se candidatar às eleições estaduais pelo NPD, o funcionário público descumpriu o dever nuclear (Kernpflicht) do funcionalismo público, qual seja, o dever de lealdade à Constituição (Verfassungstreue). Segundo a Corte, os funcionários públicos que têm em uma relação especial de serviço público e de lealdade para com o Estado - por força da qual podem emitir ordens em nome do Estado e, assim, impor uma posição de poder - precisam não só professar seu compromisso com a ordem democrática, livre, social e de direito da Lei Fundamental (Grundgesetz), como também defendê-la. O Tribunal afirmou que o NPD e seus membros querem afastar a ordem constitucional livre e democrática na Alemanha e que a concepção política do partido é inconciliável com a garantia da dignidade humana, consagrada no art. 1, inc. 1 da Grundgesetz. Logo, ao se filiar e concorrer às eleições municipais pelo NPD, o funcionário público estava se engajando em uma organização contrária à Carta Magna, que os alemães classificam mesmo de "inimiga da Constituição" (verfassungsfeindlich), deixando explícitos para a sociedade em geral seu engajamento e objetivos. Para complicar ainda mais sua situação, o policial publicara diversas postagens no Facebook que o Tribunal considerou ofensivas à ordem constitucional vigente, bem como à própria República Federal da Alemanha e seus órgãos constitucionais, o que também configura, segundo a Corte, violação do dever de lealdade à Constituição. Dessa forma, concluiu o OVG Sachsen-Anhalt, ele perdeu totalmente a confiança de seu "patrão" (Estado alemão) e da coletividade. Da decisão ainda cabe recurso ao Bundesverwaltungsgericht, o Tribunal Federal Administrativo. Independente do desfecho final do imbróglio, o caso mostra o quanto o Judiciário alemão está atento às formas mais sutis de ataques à ordem constitucional livre e democrática estabelecida pela Lei Fundamental. O caso do soldado tatuado Em outro julgado recente, do final do ano passado, o Tribunal Administrativo de Rheinland-Pfalz julgou improcedente o recurso de um homem que foi reprovado em concurso público para agente policial por causa de uma tatuagem. Não era uma tatuagem qualquer. O sujeito mandou inscrever em suas costas as palavras "Loyalty, Honor, Respect, Family", ou seja, lealdade, honra, respeito e família - uma espécie de código de honra que remente a dois grupos de extrema-direita proibidos na Alemanha: "blood and honour" e "Oldschool Society". A associação aos movimentos extremistas era reforçada pelo tipo de fonte usada na grafia do lema, a Old English, semelhante à utilizada pelos mencionados grupos. Para a Polícia de Rheinland-Pfalz, a tatuagem levantou fundadas dúvidas acerca da aptidão para o serviço policial, vez que o código de honra, tatuado nas costas, não se harmoniza com os valores de uma moderna polícia cidadã (moderne Bürgerpolizei). O art. 33, inc. 2 da Lei Fundamental alemã indica os critérios a serem observados na escolha de candidatos ao serviço público: aptidão, capacidade e desempenho técnico. A aptidão envolve, principalmente, uma avaliação da personalidade e das qualidades de caráter exigidas pelo cargo. Para auferir essa integridade de carácter faz-se necessário uma avaliação prognóstica a fim de identificar até que ponto o candidato irá satisfazer a lealdade, honestidade, confiabilidade, capacidade de cooperação e atitude de serviço exigidas para o cargo ou função. Isso requer, segundo a jurisprudência do Bundesverwaltungsgericht, a avaliação de todos os aspectos do comportamento do candidato que permitam extrair conclusões acerca das características pessoais relevantes para a formação do carácter. E nesse ponto, o empregador tem um amplo campo de avaliação, que se submete a estreito controle judicial2. A jurisprudência alemã é firme no sentido de que a recusa da contratação não exige a comprovação de que o candidato é inadequado ao cargo, bastando a dúvida justificada na idoneidade do caráter. A ação movida pelo candidato reprovado foi julgada improcedente em primeiro e segundo grau3. Segundo a Corte, os candidatos ao serviço policial estão sujeitos a exigências especialmente rígidas no que tange à avaliação da integridade do caráter. Nesse exame ganha relevo, principalmente, a disposição interna do candidato e sua aptidão para observar no exercício de suas atividades os princípios constitucionais, a defesa dos direitos de liberdade dos cidadãos e o respeito às regras do Estado democrático de direito. Para o Tribunal de apelação, o problema não era o uso em si de uma tatuagem, que atualmente é algo comum e socialmente aceitável, sendo frequente o uso de tatuagens entre policiais. O acórdão frisou que uma tatuagem não pode ser proibida pelo simples fato de um empregador a considerar inadequada ou inestética. Mas, embora a tatuagem seja, em princípio, uma decoração corporal que identifica, por vezes, a pessoa, não se pode olvidar que ela exprime uma mensagem, consistindo, portanto, em meio de comunicação. E o problema surge quando o conteúdo da tatuagem suscita dúvidas quanto à aptidão do candidato - e/ou agente público - de respeitar os (futuros) deveres inerentes ao cargo, dentre os quais o dever de lealdade à Constituição. Nesse caso, é legítima a reprovação ou a sanção do funcionário público, como ocorreu no caso do policial aposentado acima comentado. Afinal, o Estado democrático de direito não precisa tolerar em seus quadros pessoas que não compartilham, i.e., que não são leais aos valores constitucionais vigentes. Disso decorre que todo (candidato a) funcionário público deve a mais absoluta lealdade à ordem constitucional livre e democrática, em serviço ou fora dele. Ambos os julgados mostram como o Estado democrático de direito, por meio do Poder Judiciário, está se defendendo na Alemanha contra formas sutis de ataques à ordem constitucional livre e democrática, camuflados sob o manto da liberdade de expressão. A democracia defensiva Em julgados como esses, vemos o Judiciário alemão aplicar na prática a ideia da democracia defensiva (wehrhafte Demokratie). Quando se fala em democracia defensiva, está-se a dizer que o Estado democrático pode - e deve - se defender contra os seus inimigos. Isso significa que a democracia nunca deve dar a seus adversários a oportunidade de abolir o regime democrático que, não custa lembrar, é protegido como cláusula pétrea do art. 79 III da Lei Fundamental, da mesma forma que no art. 60 § 4º da Constituição Federal de 1988. Para tal fim, a democracia recorre a meios legítimos para coibir ataques a si própria - ou tentativas de investidas, como a malfadada tentativa de golpe armado planejada pelo grupo Reichsbürger (clique aqui). Não se trata de censura. Evidentemente, em um Estado democrático de direito todos têm o direito de criticar o Estado. Isso faz parte da liberdade de expressão. Mas, aqueles - sejam partidos, associações e/ou pessoas - que querem abolir a democracia, devem ter consciência de que sofrerão sanções, pois o regime democrático tem seus mecanismos de defesa. Dessa forma, ao delimitar o conteúdo do direito jusfundamental à liberdade de expressão e dele expurgar o que não está protegido sob seu manto, o Judiciário tutela a democracia. Outro meio legal de proteção à democracia é, por exemplo, a vedação de partidos ou associações antidemocráticas, seja por meio de lei ou por decisão judicial. Paradigmáticas, nesse sentido, são duas decisões históricas do Tribunal Constitucional alemão, da década de 1950, na qual a Corte proibiu o funcionamento de dois partidos extremistas antidemocráticos: o SRP, de direita e o KPD, de esquerda. Atualmente, para que haja qualquer proibição de agremiação partidária, é necessária uma prévia avaliação cuidadosa do potencial de ameaça à democracia feita pelo Bundesamt für Verfassungsschutz (BVerfSch), o órgão federal de proteção constitucional. Com efeito, a experiência histórica da fracassada República de Weimar (1919-1933), soterrada pela ditadura nazista, levou os alemães a criar um órgão de proteção à Constituição, cuja tarefa principal - como o próprio nome indica - consiste na proteção dos valores fundamentais consagrados na Lei Fundamental de Bonn. Para isso, o órgão central trabalha de forma integrada com os órgãos estaduais de proteção constitucional (Landesbehörde für Verfassungsschutz) presentes nos 16 estados federados da Alemanha. Esses órgãos estaduais são, em suma, encarregados de coletar e analisar, dentro de seus territórios, informações sobre atividades contrárias à ordem constitucional, sejam elas realizadas por grupos, partidos ou por cidadãos individuais. Essas informações e análises são compartilhadas na rede coordenada pelo órgão central (BVerfSchu), localizado em Colônia, que cuida de diversos temas sensíveis como extremismo de direita e de esquerda, espionagem (inclusive espionagem e sabotagem comercial), ataques cibernéticos e terrorismo, dentre os quais o terrorismo islâmico, que se põe de maneira mais proeminente na Europa e que visa implantar uma ordem social e política baseada no Alcorão, abolindo, assim, a ordem constitucional livre e democrática e inúmeros direitos fundamentais consagrados na Lei Fundamental. Foi, inclusive, um relatório produzido pelo Verfassungsschutz que serviu de base para a polícia alemã prender 25 membros do grupo Reichsbürger (cidadãos do Império) que - ao contrário dos participantes do 8 de janeiro - "apenas" planejavam um ataque armado às instituições do Estado. Em suma Do exposto, percebe-se que a defesa da democracia cabe a todos, ou seja, a todos os poderes do Estado e a todos os cidadãos. Os julgados alemães dão um recado claro: o Estado democrático não pode ter em seu corpo células antidemocráticas, principalmente quando se trata de ocupantes de cargos e funções públicas relevantes. Em outras palavras: discurso antidemocrático não é liberdade de expressão, mas violação do dever de lealdade à Constituição. A República de Weimar foi uma república sem republicanos e sem democratas e, por isso, acabou corroída internamente por seus adversários, ruindo com a ascensão ao poder do partido de nazista. Ao que tudo indica, o mesmo erro não será cometido pela atual República Federal da Alemanha, que dá um bom exemplo a ser seguido por aqui, onde a liberdade de expressão tem sido usada - inclusive por políticos, magistrados, policiais e demais agentes públicos - como álibi para proferir ataques sistemáticos à democracia e suas instituições. Portanto, o diálogo com o direito alemão mostra-se extremamente promissor, tendo em vista sobretudo que ambos os sistemas jurídicos decorrem do mesmo tronco comum: o direito romano-germânico. ___________ 1 Até o fechamento da coluna, o acórdão do OVG Sachsen-Anhalt ainda não havia sido disponibilizado. Dessa forma, o presente texto foi escrito com base na publicação do Legal Tribune Online, de 16/2/2023, com o título: "OVG Sachsen-Anhalt zum Beamtenrecht: Kein Ruhegehalt für Beamten, der für NPD kandidiert". 2 Confira sentença do Verwaltungsgericht Trier 7 L 2837/22.TR, julgado em 22/9/2022, p. 4. 3 OVG Rheinland-Pfalz Az. 2 B 10974/22, julgado em 8/12/2022.
terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

O caso Reichsbürger e os ataques à democracia

Após um ano atribulado, a coluna German Report sofreu algumas reformulações e passa agora a ter periodicidade quinzenal. E iniciamos a primeira coluna do ano com um tema polêmico: os recentes ataques à democracia. O novo ano começou conturbado por aqui. Após a posse no novo presidente eleito, o país assistiu atônito e incrédulo à invasão - e depredação - do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Foi o maior ataque às principais instituições democráticas perpetrado no país com o intuito declarado de derrubar a ordem constitucional vigente e implantar um regime autoritário sob o comando do candidato derrotado nas urnas ano passado. Muitos partícipes da tentativa de golpe foram presos e a polícia e o Ministério Público estão em busca dos reais organizadores e financiadores do fracassado golpe. Algo semelhante, mas em menor escala em termos de destruição, ocorreu em 6/1/2021 nos EUA quando os apoiadores do então presidente Donald Trump invadiram o Congresso norte-americano a fim de reverter sua derrota nas eleições presidenciais e impedir a certificação da vitória do candidato democrata, Joe Biden. Dois anos após a invasão do Capitólio, o FBI, a polícia federal norte-americana, já prendeu mais de 950 envolvidos, 350 pessoas foram condenadas por acusações variadas, 192 já receberam sentenças de prisão e cerca de 350 pessoas ainda estão sendo procuradas por suspeita de participação no maior ataque à democracia estadunidense1. Trump, por sua vez, vem enfrentando uma série de processos desde que deixou o cargo. Em dezembro de 2022 foi divulgado o relatório final da Comissão da Câmara que investigou o episódio. O documento, com mais de 800 páginas, concluiu que o ex-presidente conspirou com várias pessoas para anular os resultados legais das eleições de 2020 e não agiu para impedir que seus partidários atacassem a sede do Congresso. Também restou comprovado que comitês do Partido Republicano e a campanha de Trump pagaram mais de 12,6 milhões de dólares para as pessoas e empresas que organizaram o comício que antecedeu o ataque ao Capitólio2. A Comissão constatou que o ex-presidente desempenhou um papel central na insurreição e que os acontecimentos não teriam ocorrido sem sua participação. Em outras palavras: Donald Trump foi o principal responsável pela invasão do Capitólio3. Por isso, a Comissão recomendou ao Departamento de Justiça processar Trump pelos crimes de insurreição, obstrução de procedimentos oficiais, conspiração para promover fraude, sedição (conspiração para derrubar o governo) e falsas declarações. Foi a primeira vez na história norte-americana que o Congresso recomendou um processo criminal contra um ex-mandatário da nação. A Comissão também propôs que Trump e seus aliados sejam impedidos de ocupar cargos políticos, com base na 14ª Emenda da Constituição do país, que prevê o banimento de insurgentes. Da mesma forma que o ataque no Brasil, o assalto ao Capitólio não tem precedentes na história dos Estados Unidos e foi classificado como terrorismo interno pelo FBI, sendo visto como uma tentativa de golpe de Estado por Donald Trump. Nessa quadra conturbada da história estamos vivenciando vários ataques à democracia, camuflados, em sua maioria, sob o escudo da liberdade de expressão. Na Alemanha, 25 pessoas foram presas em 7/12/2022 sob a acusação de tramar para derrubar a ordem constitucional vigente.  O Caso Reichsbürger O evento ficou conhecido como o Caso Reichsbürger, cuja tradução literal seria "Cidadãos do Império", um grupo que pretendia restaurar o Império Alemão sob o comando do até então desconhecido "príncipe" Heinrich 13º P. R., que já tinha até negociado uma nova ordem para o país com autoridades russas, a ser implantada assim que o atual governo fosse derrubado. Estima-se que o grupo de insurretos tenha cerca de 21 mil membros espalhados principalmente pelos estados de Brandenburg, Mecklenburg-Vorpommern e na Baviera4, muito embora alguns integrantes tenham sido detidos na cidade austríaca de Kitzbuehel e em Perugia, na Itália. Dentre os membros do Reichsbürger encontram-se aristocratas, políticos, magistrados, ex-membros da polícia e ex-soldados da Forças Armadas (Bundeswehr) e do Nationale Volksarmee (NVA), o antigo Exército Nacional Popular, da Alemanha Oriental, ironicamente denominada República Democrática Alemã (Deutsche Demokratische Republik - DDR). Segundo a Promotoria, esses homens possuem treinamento militar especial e, por isso, são considerados particularmente perigosos. Um dos integrantes do grupo, o aristocrata Rüdiger Wilfried Hans von Pescatore, foi comandante de um batalhão de paraquedistas e acabou sendo expulso do exército devido à venda não autorizada de armas dos estoques do antigo exército da Alemanha Oriental. A figura tem passagens pelo Brasil. Segundo noticiado na imprensa, o extremista de direita chegou com a família ao sul do país em 2016, tendo passado antes por São Paulo e Rio Grande do Norte. Embora já de volta à Alemanha, ele tem empresas abertas em Pomerode e Blumenau5. A escolha de Santa Catarina não foi à toa: o sul concentra a maior quantidade de células neonazistas no Brasil, como demonstrou a antropóloga Adriana Dias, que estuda o neonazismo no país desde 20026. Foi ainda em Santa Catarina, na cidade de São Miguel do Oeste, que manifestantes bolsonaristas, protestando contra o resultado das eleições, fizeram supostamente uma saudação nazista durante a execução do hino nacional7. Outro membro importante preso na operação Reichsbürger foi a juíza Birgit Malsack-Winkemann, ex-deputada do partido de extrema direita Alternative für Deutschland (AfD), que até então atuava no juízo de primeira instância (Landgericht) em Berlim. Ou seja, os membros do Reichsbürger são pessoas com importantes contatos, que detém conhecimento acerca das instituições democráticas e recursos financeiros para promover uma tentativa de golpe que, ainda quando malsucedida, pode disseminar fragmentos da ideologia extremista no meio social, concluiu a Procuradoria-Geral da República na Alemanha. O grupo nega a existência da República Federal da Alemanha e afirma que o Estado atual é uma organização administrativa ainda ocupada pelas potências vencedoras da 2ª Guerra Mundial: EUA, Reino Unido e França. Para esses lunáticos, as fronteiras de 1937 do Império Alemão ainda existem. Eles não aceitam a legalidade das autoridades governamentais e autodenominam seus pequenos "territórios nacionais" com nomes como "Segundo Império Alemão", "Estado Livre da Prússia" ou "Principado da Germânia". Eles se recusam a pagar impostos, têm passaportes e carteiras de motorista próprios, e confeccionam camisetas e bandeiras para fins publicitários, não obstante tais atividades sejam claramente ilegais. O Departamento Federal de Proteção da Constituição (Bundesverfassungsschutz), que tem, dentre outras competências, o dever de observar movimentos antidemocráticos no país, vem investigando o Reichsbürger há algum tempo. Segundo o Bundesverfassungsschutz, a maioria dos membros do Reichsbürger é do sexo masculino e tem mais de 50 anos. Eles são adeptos de ideologias populistas de direita, antissemitas e neonazistas, o que levou o órgão a classificar o grupo como de extrema direita8. Mas a verdade é que esse grupo, como tantos outros, congrega um mix heterogêneo de tendências, como - ainda - teóricos da conspiração e ideologias de liberdade e resistência, formando uma perigosa mistura ideológica que o sociólogo alemão Andreas Zick denomina de "extremismo conspiratório"9. Em comum eles têm a perda da fé na democracia, que aparenta ser incapaz de solucionar crises em um mundo cada vez mais complexo, razão pela qual buscam o estabelecimento de um Estado alternativo. Fiel às práticas nazistas, o Reichsbürger, tem especial apreço por armas de fogo e pela prática de atos de violência. Na operação policial, a polícia encontrou grandes depósitos de armas e munições. Com base nas investigações e relatórios do Bundesverfassungsschutz, o Procurador-Geral da República, Peter Frank, concluiu que a associação tinha o objetivo de eliminar a ordem fundamental livre e democrática, usando violência e meios militares, razão pela qual ordenanou a grande operação policial que prendeu vários membros do grupo acusados de formar uma célula terrorista que pretendia derrubar o governo por meio de ações violentas.  Os presos estão sendo processados, dentre outros, pelos crimes de atra traição (Hochverrat) do § 83 alínea 1 e formação de associação terrorista, nos termos do § 129a, ambos do Strafgesetzbuch (StGB), o Código Penal alemão. Interessante notar que a prisão e o processo criminal se deram por bem menos do que aqui, pois os Reichbürger não saíram do estágio do mero planejamento de golpe de estado, ao contrário do que ocorreu em 8 de janeiro, em que uma turba bolsonarista ultrapassou os limites do mero plano e partiu para a ação, depredando os três poderes mais importantes da república a fim de derrubar o governo e a ordem livre e democrática vigente. A mensagem dada aos terroristas alemães é clara: a democracia não tolera ataques, nem sequer planos ou tentativas de golpe contra a ordem democrática constitucional. A democracia vai se defender com suas armas institucionais contra qualquer tipo de tentativa de derrubada do Estado Democrático de Direito. E, evidentemente, não adianta recorrer ao discurso ensaiado de que, ao bradar contra a democracia, tais grupos estão apenas exercendo o direito legítimo de liberdade de expressão. O Judiciário alemão tem mostrado que sabe, como poucos, separar o joio do trigo e delimitar o que faz - e, principalmente, o que não faz - parte do conteúdo do direito fundamental à liberdade de expressão.  Democracia defensiva Nessa esteira, a jurisprudência alemã tem sido uníssona ao afirmar que discursos antidemocráticos, fake news e discursos de ódio não são abarcados e tutelados pela liberdade de expressão, ainda quando provenientes de agentes políticos, como parlamentares. Tais discursos precisam, ao contrário, ser combatidos, tendo em vista que a democracia é clausula pétrea garantida no art. 79 III da Grundgesetz (GG), a Lei Fundamental alemã, que não por acaso é chamada de cláusula ou garantia eterna (Ewigkeitsklausel ou Ewigkeitsgarantie, respectivamente). Com isso, resta claro que a norma possui validade permanente no ordenamento jurídico enquanto a Lei Fundamental vigorar na República Federal da Alemanha. Protegidos pela imutabilidade da Ewigkeitsgarantie encontram-se ainda, v.g., a dignidade humana (art. 1 GG), a liberdade, os direitos fundamentais e os princípios estruturantes do Estado alemão: república, democracia, forma federativa, estado social e estado de direito. Dessa forma, como bem frisou a Min. Sibylle Kessal-Wulf, do Tribunal Constitucional alemão, em palestra ano passado no Supremo Tribunal Federal, comentada nesta coluna, a Lei Fundamental alemã optou pela democracia defensiva e não tolera ataques contra a ordem livre e democrática sob o pálido manto da liberdade de expressão.  O problema da vinculação de magistrados à ordem constitucional Na esteira desses dramáticos acontecimentos de claro cunho antidemocrático, surge o espinhoso problema da vinculação de agentes públicos - e, a rigor, também políticos - à ordem constitucional estabelecida pela Grundgesetz, em vigor desde 1949. A prisão da juíza Birgit Malsack-Winkemann trouxe à tona a dúvida sobre o que fazer quando magistrados conspiram ou se opõem à ordem constitucional livre e democrática vigente. Já estavam tentando afastar a juíza, por meio da premiada aposentadoria, antes da prisão devido às suas posições reacionárias e pouco republicanas quando ela ainda era deputada do partido de extrema direita AfD, entre os anos de 2017 a 2021. Com a prisão em dezembro do ano passado, sua situação está praticamente insustentável10. Afastada do cargo, ela enfrenta atualmente processo penal e administrativo. O temor é que suas declarações - sobretudo contra imigrantes - despertem na sociedade a impressão de que a ela não pode mais dizer o direito, i.e., julgar com imparcialidade, prejudicando a imagem da magistratura como um todo. Segundo a mídia, a juíza é conhecida adepta de teorias conspiratórias e da ideologia QAnon, um grupo norteamericano, de tendências extremistas de direita, que desde 2017 vem propagando teorias conspiratórias na internet. Por tudo isso, Malsack-Winkemann está correndo o risco de perder definitivamente seu cargo. Foi o que aconteceu com outro juiz, também ex-deputado da extrema direita (AfD), Jens Maier, que foi aposentado compulsoriamente pelo Landgericht (LG) de Leipzig em sentença prolatada em 1/12/2022, nos autos do processo Az. 66 DG 2/22, depois de ter sido qualificado pelo Departamento Federal de Proteção da Constituição como extremista de direita. Após perder as eleições para o Bundestag em 2021, Maier queria retornar à magistratura, mas o Ministério da Justiça de Dresden achou por bem aposentá-lo compulsoriamente a fim de evitar grave dano à administração da Justiça11. De acordo com o § 31 da Lei da Magistratura alemã - a Deutsches Richtergesetz (DRiG) - a fim de evitar um grave prejuízo para a administração da Justiça, um juiz pode ser transferido ou colocado em aposentadoria se assim o exigirem fatos externos à sua atividade judicial. Diz a norma: "§ 31. Remoção no interesse da administração da justiça. Um juiz vitalício ou um juiz temporário pode ser colocado 1. em outro cargo judicial com o mesmo salário base final, 2. em aposentadoria temporária ou 3. em aposentadoria se fatos externos à sua atividade judicial exigirem obrigatoriamente uma medida deste tipo, a fim de evitar um grave prejuízo para a administração da justiça."12 O LG Leipzig afirmou que um juiz precisa se portar de forma a não pôr em risco sua independência e imparcialidade e esse dever não é restringido por um mandato parlamentar. Ademais, as inúmeras declarações polêmicas de Jens Maier não foram feitas apenas da tribuna do Parlamento, mas em espaço público e nas mídias sociais como Twitter e Facebook, antes mesmo do início de seu mandato parlamentar. A decisão foi pioneira e tem forte caráter educativo na medida em que deixa claro que "nenhum inimigo da Constituição pode dizer o direito na Alemanha", como sintetizou a Ministra da Justiça da Saxônia, Katja Meier13, comemorando a decisão de afastamento do magistrado extremista. Em outras palavras: juiz que não mantém lealdade à Constituição, não pode dizer o direito. Birgit Malsack-Winkemann está em maus lençóis: além de estar presa sob suspeita de terrorismo e temporariamente afastada do cargo, corre o risco de perder definitivamente a função e suas remunerações, pois - ao contrário daqui - jl há um movimento político no Parlamento alemão para que os proventos de aposentadoria do juiz sejam cortados nesses casos. Assim, o magistrado não seria premiado com a aposentadoria e suas benesses, mas tratado como se demitido por justa causa, disse Lena Kreck, política do partido de esquerda (Linke) que está articulando uma mudança urgente na legislação14. A situação no Brasil No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça está começando a julgar casos semelhantes, mas ainda não puniu magistrados envolvidos em atos antidemocráticos, nem aqueles que adotam clara postura antidemocrática, seja no exercício de suas funções ou fora delas. Mas, é provável que, em breve, surjam as primeiras decisões definitivas nesse sentido tendo em vista a frequência com que magistrados têm exposto seus posicionamentos político-partidários, por vezes extremistas, sob o escudo da liberdade de expressão. Recentemente, o órgão decidiu, por unanimidade, aplicar pena de censura à juíza eleitoral da cidade de Guaraniaçu (PR), Regiane Tonet dos Santos, pelo compartilhamento de publicações em rede social com conteúdo político-partidário em pleno ano eleitoral15. Em outro caso mais problemático, o Corregedor Nacional de Justiça, Min. Luís Felipe Salomão, afastou o juiz Wauner Batista Machado, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte (MG) por ter autorizado um empresário a obstruir uma avenida pública para realizar ato em frente ao quartel do Exército16. A decisão foi derrubada pelo Min. Alexandre de Moraes (STF) na ADPF 519/DF logo após os atos terroristas ocorridos em Brasília no fatídico dia 8 de janeiro. Na Decisão CNJ 1471456, de 9/1/2023, o Corregedor foi no ponto: decisões judiciais não podem atentar contra o próprio Estado Democrático de Direito. Salomão entendeu que no caso concreto houve a prática de graves infrações disciplinares pelo juiz, como a utilização do cargo para a prática de atos que favoreciam ataques ao Estado Democrático de Direito, o que legitima o afastamento imediato do magistrado do exercício de suas funções jurisdicionais. O CNJ também está investigando outros magistrados envolvidos em postagens e/ou declarações antidemocráticas. Maria do Carmo Cardoso, juíza do TRF-1, teve seus perfis nas redes sociais Instagram e Twitter suspensos por postagens reveladoras de postura político-partidária17, o que é vedado pelo art. 95, parágrafo único, inc. III da Constituição Federal. Outra submetida a processo disciplinar foi a juíza Ludmila Lins Grilo, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que participou de evento com conotação política e fez ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal, além de divulgar na internet o canal do blogueiro bolsonarista, Allan dos Santos, após suas contas terem sido bloqueadas pelo STF no inquérito das fake news18. No Brasil, os magistrados também estão - evidentemente - sujeitos a diversos deveres funcionais inerentes à magistratura, dentre os quais o de manter conduta irrepreensível na vida pública e particular. Em relação especificamente ao uso de redes sociais, o CNJ publicou a Resolução 305, em 17/12/2019, na qual o órgão - preocupado em zelar pela autonomia e independência do Poder Judiciário, bem como pelos princípios da moralidade e da impessoalidade, previstos no art. 37 da Constituição - estabelece diretrizes éticas a serem observados no uso das redes sociais. Tal como o Judiciário alemão, o CNJ tem consciência de que a integridade de conduta do magistrado, fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional, contribui para a confiança dos cidadãos na judicatura. Daí a necessidade de impor restrições e exigências pessoais no uso das redes sociais, distintas das acometidas aos cidadãos em geral. Até porque, a conduta individual do magistrado nas redes sociais pode acarretar profundos impactos - positivos e negativos - sobre a percepção da sociedade em relação à credibilidade, legitimidade e respeitabilidade da atuação da Justiça. Em outras palavras: a confiança da sociedade no Poder Judiciário está diretamente relacionada com a imagem dos magistrados, inclusive com o uso que eles fazem das redes sociais fora do âmbito da atividade jurisdicional. Assim, conquanto a manifestação do pensamento e a liberdade de expressão sejam direitos fundamentais dos magistrados, o CNJ ressalta que esses direitos não são absolutos e precisam ser compatibilizados com os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, principalmente com o direito de ser julgado por um Judiciário imparcial, independente, isento e íntegro. Por isso, o art. 3º da mencionada normativa exige, em seu inciso I, dentre outras coisas, que o juiz adote postura seletiva e criteriosa para o ingresso - e sua identificação - em redes sociais (alínea a) e atue de forma moderada, com decoro e respeito (alínea b). No que tange ao conteúdo das manifestações, os juízes devem, v.g., evitar expressar opiniões ou compartilhar informações que possam prejudicar, perante a sociedade, a independência, imparcialidade, integridade e idoneidade do magistrado e/ou abalar a confiança do público no Poder Judiciário (art. 3º, inc. II, alínea a). Eles devem se abster que publicar e/ou compartilhar conteúdo impróprio ou inadequado (art. 3º, inc. II, alínea c), bem como - e principalmente - evitar autopromoção ou superexposição nas redes sociais (art. 3º, inc. II, alínea b). Dentre as condutas expressamente vedadas está a manifestação de opiniões que demonstrem atuação político-partidária, como apoio ou crítica a candidatos, lideranças políticas ou partidos políticos, nos termos do art. 4º, inc. II da mencionada Resolução, que reproduz o art. 95, parágrafo único, inc. III da Constituição. Outra importante vedação é a emissão e/ou compartilhamento de discursos de ódio ou discriminatórios, prevista no art. 4º, inc. III da Resolução 305/2019. Embora não haja previsão expressa à manifestações antidemocráticas, parece evidente - em razão da vinculação do juiz à ordem constitucional - que o exercício da função jurisdicional é incompatível com ataques à ordem livre e democrática estabelecida pela Carta Magna de 1988. É como dizem os alemães: os inimigos da Constituição não podem dizer o direito. __________ 1 Dois anos após ataque ao Capitólio, há mais de 900 presos, 192 condenados à prisão e 350 foragidos. Extra, 6/1/2023. Disponível aqui. 2 O que aconteceu com invasores do Capitólio, nos EUA. Deutsche Welle, 10/1/2023. Disponível aqui. 3 U-Ausschuss veröffentlicht Abschlussbericht: Trump hauptverantwortlich für Sturm aufs Kapitol. LTO, 23.12.2022. Disponível aqui. 4 Quem é o grupo suspeito de planejar um golpe na Alemanha. DW 7/12/2022. 5 Ex-militar preso acusado de organizar golpe contra o governo alemão já morou no Brasil e tem empresas em SC. G1, 9/12/2022. Disponível aqui. 6 Segundo a antropóloga, existem pelo menos 530 núcleos extremistas no Brasil, um universo que pode chegar a 10 mil pessoas. Os estudos indicam que houve um crescimento de 270,6% de janeiro de 2019 a maio de 2021.  Eles exaltam o masculinismo, em uma masculinidade tóxica que implica em ódio ao feminino, mas também ao negro, à população LGBTQIAP+, a nordestinos e a imigrantes, além de serem antissemitas e de negarem o holocausto, diz a estudiosa. Grupo neonazistas crescem 270% no Brasil em 3 anos; estudiosos temem que presença online transborde para ataques violentos. Globo.com, 16/1/2022. Disponível aqui. 7 Manifestantes fazem saudação nazista durante execução do hino nacional em SC. Correio Braziliense, 2/11/2022. Disponível aqui. 8 Quem é o grupo suspeito de planejar um golpe na Alemanha. DW 7/12/2022. 9 Quão perigoso era o grupo que tramava golpe na Alemanha? DW 09/12/2022. 10 Gross-Razzia in Reichsbürgerszene: Auch Richterin und Ex-AfD-Abgeordnete festgenommen. LTO, 7/12/2022. 11 AfD-Politiker muss in vorzeitigen Ruhestand: Jens Maier darf nicht wieder Richter sein. LTO, 1/12/2022. 12 No original: "§ 31. Ein Richter auf Lebenszeit oder ein Richter auf Zeit kann 1. in ein anderes Richteramt mit gleichem Endgrundgehalt, 2. in den einstweiligen Ruhestand oder 3. in den Ruhestand  versetzt werden, wenn Tatsachen außerhalb seiner richterlichen Tätigkeit eine Maßnahme dieser Art zwingend gebieten, um eine schwere Beeinträchtigung der Rechtspflege abzuwenden." 13 AfD-Politiker muss in vorzeitigen Ruhestand: Jens Maier darf nicht wieder Richter sein. LTO, 1/12/2022. 14 Berliner Justizsenatorin will Reichsbürger-Richterin in den Ruhestand versetzen. Welt, 22/12/2022. Disponível aqui. 15 Juíza eleitoral é punida por posicionamento político em redes sociais. In CNJ, 29/11/2022. Processo Administrativo Disciplinar 0003379-07.2022.2.00.0000, instaurado em 2017. 16 Corregedoria afasta juiz mineiro que autorizou ato contra o Estado Democrático de Direito. In CNJ, 10/1/2023. Disponível aqui. 17 Corregedor do CNJ bloqueia juíza bolsonarista nas redes sociais. Folha de São Paulo, 14/12/2022. 18 CNJ investiga juíza de MG por 'possível envolvimento` com blogueiro bolsonarista. Correio Braziliense, 21/9/2022.
O Tribunal infraconstitucional da Alemanha, Bundesgerichtshof (BGH), proferiu recentemente polêmica decisão que reacendeu a discussão em torno da diferença entre eutanásia e suicídio assistido, prática permitida no país desde a paradigmática decisão do Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht), proferida em 2020. Para entender o caso, alguns esclarecimentos iniciais fazem-se necessários.  Para entender o caso O § 216 do Strafgesetzbuch (StGB), o Código Penal alemão, pune a eutanásia com pena de prisão de seis meses a cinco anos. A norma descreve o tipo penal como a conduta de determinar, isto é, provocar a morte de alguém sob pedido expresso e sério da pessoa falecida1. O vernáculo alemão reserva a expressão Tötung auf Verlagen, cuja tradução literal - "homicídio a rogo" - bem revela os complexos dilemas que o problema envolve, principalmente quando se considera que o termo eutanásia provém do grego eu + thanatos, significando boa morte2. De qualquer forma, segundo o § 216 StGB, o crime de eutanásia se configura quando o médico ou outra pessoa, a pedido do doente, tem uma participação ativa direta na obtenção do resultado letal, ainda que a morte não se concretize, pois a tentativa também é punível. É o caso do médico que dá uma injeção letal no paciente. Distinta é a situação do suicídio assistido: aqui todos os atos que conduzem ao resultado morte são praticados "pelas próprias mãos" do doente, de forma que ele detém o controle do processo fatal até o momento final. É o caso do médico ou da esposa que coloca o veneno na mão do doente para ele ingerir. A prática do auxílio ao suicídio - a rigor, a melhor tradução da expressão Sterbehilfe - era criminalizada no § 217 StGB até a decisão do Tribunal Constitucional de 26/2/2020, nos autos dos processos BVerfG 2 BvR 2347/15, 2 BvR 651/16 e 2 BvR 1261/16, sob a relatoria da juíza Sibylle Kessal-Wulf, que declarou a norma inconstitucional. O dispositivo, porém, proibia apenas o suicídio assistido comercial, isto é, aquele praticado com fins lucrativos. Segundo o § 217 StGB, qualquer pessoa que, com a intenção de promover o suicídio de outrem, concede, permite ou organiza a oportunidade do suicídio de forma comercial sujeita-se a pena de prisão de até três anos ou multa. O § 217, inc. 2 do StGB isentava de pena o partícipe que não agia de forma profissional, bem como parentes ou pessoas próximas do falecido3. Mas agora, depois da decisão da Corte Constitucional, o auxílio ao suicídio encontra-se em zona cinzenta, pois o Parlamento ainda não disciplinou a matéria4, como exortado pelo Bundesverfassungsgericht aquando da publicação da decisão. No julgado, o BVerfG reconheceu o direito do indivíduo de determinar a própria morte ou direito à morte autodeterminada (Recht auf selbstbestimmtes Sterben). Segundo a Corte, o direito de determinar a terminalidade da vida é expressão da autodeterminação pessoal e decorre do direito geral de personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht), previsto no art. 2 II c/c art. 1 II da Lei Fundamental. Esse direito inclui não apenas a liberdade de tirar a própria vida, mas ainda o direito de buscar a ajuda gratuita e voluntária de terceiro. Isso significa que a ação não pode ter fins financeiros e que nenhum médico pode ser obrigado a ajudar um paciente a se suicidar. O Estado também não é obrigado a participar fornecendo medicamentos letais para doentes graves que desejem pôr fim à própria vida, como deixou claro o acórdão do Tribunal Constitucional, embora também aqui caiba ao Legislador regular a questão. Dessa forma, para alguns, não apenas o auxílio ao suicídio estaria liberado, mas ainda a chamada eutanásia passiva, que se configura quando, a pedido do paciente, são suspensos procedimentos e tratamentos que prolongam artificialmente a vida, como alimentação artificial, transfusão de sangue, respiração por aparelhos, etc. Há quem entenda que até que a eutanásia indireta estaria permitida. O método é praticado em casos de pacientes com dores crônicas e se caracteriza pela prescrição de medicação analgésica que têm por efeito colateral o aceleramento da morte do paciente. O caso da insulina O caso submetido a análise do BGH envolveu a participação ativa da esposa do falecido e ficou conhecido como "caso da insulina" (Insulin-Fall). A pedido do marido, com quem fora casada por quase cinquenta anos, uma enfermeira aposentada injetou nele uma dose letal de insulina. O marido sofria dores crônicas decorrentes de fratura na vértebra lombar sofrida ainda na adolescência e hérnia de disco. Desde 1993, ele sentia fortes dores nas costas e na região da nuca e dos ombros, que o impediam de trabalhar e acabaram levando à sua aposentadoria por invalidez. Ele sofria ainda com problemas de obesidade, mialgia, hipertonia, artrose nas mãos, diabete, distúrbios psicossomáticos de sono e episódios depressivos de grau médio. Para piorar o quadro, o marido precisou operar o quadril em 2016, passando a necessitar de cuidados diários a partir de então. Como ele não quis ficar em casa de repouso ou internado no hospital, a esposa passou a cuidar dele diuturnamente em casa. O desejo de pôr fim à própria vida, repetidamente manifestado, remonta a essa época. Em 2019, suas dores se intesificaram e seu estado de saúde piorou consideravelmente a ponto dele ficar permanentemente acamado. Isso reforçou no enfermo o desejo e a certeza de que era hora de partir. Ele chegou a entrar em contato com uma associação de apoio a suicidas, mas como a prática dessa atividade comercial é ilegal na Alemanha, ele se viu impedido de obter ajuda externa. O enfermiço combinou, então, com a esposa que o término da vida não seria conduzido por nenhum médico, mas pelo casal. Ele chegou a pedir uma vez que a esposa se ausentasse de casa por alguns dias a fim de que ele pudesse tomar um coquetel letal, mas ela se recusou a atender o pedido. Naquele ano, porém, as dores se intensificaram de tal forma que nenhum remédio ajudava mais, mesmo quando ministrado em alta concentração. Em 7/8/2019, as dores estavam tão insuportáveis que ele decidiu que havia chegado o dia. Os dois tomaram café juntos à tarde e falaram sobre a vida. O marido fumou dois cigarros e deixou claro para a esposa que havia chegado o momento de partir. Às 23h, ele pediu à esposa que lhe desses todos os comprimidos que o casal possuía em casa a fim de que ele tomasse uma overdose de medicamentos. Ela lhe pediu que escrevesse uma carta de despedida a fim de que não fosse acusada de assassinato. Embora achando desnecessário, o marido escreveu em um bloco de anotações que estava sofrendo de dores insuportáveis e que havia proibido a esposa de chamar socorro. Com mãos tremulas, ele escreveu ainda que pediu a ela os remédios em estoque em casa na esperança de que aquilo acabasse com seu sofrimento. Segundo o enfermo, ele tomou conscientemente o coquetel de medicamentos, pedindo, em seguida, que a esposa injetasse todas as doses de injeções de insulina que havia em casa para garantir que ele não sobrevivesse como um zumbi. Ele adormeceu lentamente e às 03:30 da madrugada, a esposa constatou que ele não mais respirava, informando a polícia. A causa da morte foi a hipoglicemia provocada pelas injeções de insulina. O coquetel de comprimidos também o levaria à morte, mas apenas algumas horas depois, constatou a perícia. O processo Em primeira instância, a enfermeira foi condenada pelo Landgericht Stade a um ano de prisão por crime de eutanásia, nos termos do § 216 do Strafgesetzbuch, cumprida sob o regime de liberdade condicional. Ela teria matado de forma ativa o marido ao aplicar nele as seis injeções letais de insulina. Embora o doente estivesse totalmente consciente, ele não teve mais condições de determinar o destino de sua vida. Ao contrário: a sina da vida do marido ficou até o momento da morte nas mãos da esposa, que poderia ter tentando evitar o desfecho fatal, disse o veredito final. A decisão do Bundesgerichtshof Contudo, em grau de recurso, o BGH absolveu a acusada nos termos dos §§ 349, alínea 4 e 354, alínea 1 do Código de Processo Penal (Strafprozessordnung). A 3ª. Câmara Penal do BGH entendeu que a esposa não praticou uma conduta punível, pois seu comportamento permaneceu no plano do auxílio ao suicídio, não sancionável pelo Código Penal alemão. Trata-se do processo Az. 6 StR 68/21, julgado em 28/6/2022 pela 3ª Câmara Penal (Strafsenat) do Bundesgerichtshof, que não se localiza em Karlsruhe, cidade sede da Corte infraconstitucional, mas em Leipzig. Para a Corte, autor do crime de eutanásia é quem domina de fato todos os eventos que conduzem à morte, ainda quando subordinado à vontade suicida de alguém. No suicídio assistido, ao contrário, é a vítima quem realiza com as próprias mãos o ato que ceifa a vida e tem o controle - e a livre decisão - sobre seu destino. Se o suicida, após realizar todos os atos, se coloca nas mãos do outro, tolerando que ele interrompa o evento morte, então este passa a ter o domínio do fato (Tatherrschaft). Se, ao contrário, a vítima conserva até o último momento a decisão sobre seu destino, então ele mata-se a si mesmo, ainda que com a ajuda de terceiro, afirmou o Tribunal. Isso vale não apenas quando a sucessão de causas foi provocada pelo próprio suicida, mas também quando foi causada por outra pessoa. Enquanto o suicida, após a execução do(s) ato(s) da outra pessoa, continuar com a liberdade e o poder de afastar os efeitos, tem-se configurado o suicídio assistido. Por essa razão, concluiu a 3ª Câmara Penal do BGH, a distinção entre eutanásia e suicídio assistido não pode ser feita sob uma ótica puramente naturalística, focada na ação ativa ou passiva do sujeito, mas precisa ser feita sob uma perspectiva normativa (normative Betrachtung). Para os juízes da Corte, não foi a enfermeira quem dominou os eventos que conduziram à morte do marido, mas ele próprio. Essa afirmação vale ainda quando a ré tenha - de forma ativa - ministrado as doses de insulina que levaram ao óbito.  Focar apenas na conduta da ré, de ministrar as injeções letais, não leva em conta adequadamente todo o plano global do enfermo de tirar a própria vida, desejo há muito tempo manifestado. O Tribunal afirmou que o plano do marido era se suicidar através da ingestão dos medicamentos e que as injeções de insulina tinham por fim apenas garantir o evento morte a fim de que ele não sobrevivesse como um "zumbi". Sob uma perspectiva valorativa, disse o BGH, a ingestão dos comprimidos e as injeções de insulina constituíram um ato único de terminalidade da vida, cuja execução foi determinada unicamente pelo marido. Ele tomou por suas próprias mãos o coquetel de compridos e só não se auto aplicou as injeções devido às suas condições físicas. Em última análise, considerando o plano traçado, foi um acaso que a insulina tenha provocado a morte, pois também os comprimidos ingeridos anteriormente eram aptos para provocar o evento morte, ainda quando seus efeitos fossem sentidos posteriormente. Ambos os componentes (medicamentos e injeções) faziam parte de um "plano global" e consistiram em um ato único determinado pelo próprio falecido, que continuou ainda um período consciente, durante o qual ele poderia ter pedido para a esposa acionar a emergência, mas não o fez. Por isso, o Tribunal considerou equivocada a conclusão de primeira instância de que o falecido teria colocado seu destino nas mãos da esposa, tolerando eventuais condutas dela tendentes a interromper o processo letal. Como a ré não teve o domínio do fato, não restou preenchido o tatbestand do § 216, inc. 1 do StGB, concluiu a Corte. No acórdão, o BGH afirma ainda que "tende a entender" que os princípios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional acerca do suicídio assistido do § 217, inc. 1 do StGB também se aplicam aos casos de eutanásia, pois também o § 216, inc. 1 do StGB precisa ser submetido a uma interpretação conforme à constituição a fim de que se retire de seu campo de incidência aqueles casos nos quais é praticamente impossível à pessoa tirar a própria vida sem que outrem execute o ato causador da morte.  Assim, o § 216 do StGB precisa ser interpretado conforme a Constituição a fim de que não restrinja indevidamente a possibilidade da pessoa tirar a própria vida, possibilidade que acaba sendo limitada quando o indivíduo precisa de ato de terceiro para exercer sua autonomia constitucionalmente protegida. A Corte ressaltou ainda que a ré não poderia ser condenada pelo crime de prática de eutanásia por ter deixado de adotar medidas para salvar o cônjuge depois que ele adormeceu, pois não havia um dever de evitar a morte, punível no plano penal. Ainda quando exista entre um casal de um dever de cuidado e proteção recíproco, com base na 2ª parte do inc. 1 do § 1.353 do BGB, segundo o qual os cônjuges ou companheiros, ao formar uma comunhão de vida, passam a ser responsáveis por zelar pela vida e integridade psicofísica do outro, o BGH entendeu que essa responsabilidade não obrigaria a ré a evitar a morte do marido no caso concreto. Isso, porque a vontade firme e decidida de morrer do marido, manifestada claramente na proibição feita à esposa de pedir socorro, levaria à suspensão do dever de se responsabilizar pela vida do outro. O mesmo se diga quanto ao dever de proteção do médico, decorrente da relação médico-paciente. Esse dever de proteção finda no momento em que o paciente manifesta, de forma livre e consciente, sua vontade de morrer e pede apenas ao médico um acompanhamento no momento da morte. Afinal, o direito à autodeterminação - protegido constitucionalmente - confere ao titular a liberdade de recusar mesmo tratamentos médicos vitais, dispondo, dessa forma, sobre sua própria terminalidade. E essa vontade expressa precisa ser respeitada mesmo após o paciente perder a consciência, afirmou o BGH, desde que, evidentemente, a vontade tenha sido livremente formada e implementada sem qualquer vício ou déficit de consciência e responsabilidade, e se mantido íntegra até o fim. Dessa forma, a esposa foi absolvida do crime de eutanásia mesmo tendo ministrado as injeções letais de insulina no marido.  Repercussões da decisão  A decisão provocou imediata reação. A fundação alemã de proteção dos pacientes (Deutsche Stiftung Patientenschutz) está alarmada, pois, a seu ver, o BGH derrubou as fronteiras entre suicídio assistido (Suizidbeihilfe) e eutanásia ativa (aktive Sterbehilfe). Segundo seu diretor, o Tribunal suspendeu a proibição de eutanásia, sendo necessário a imediata intervenção do Parlamento para que a eutanásia continue proibida, sob pena de se aumentar a pressão sobre pessoas idosas, carentes de cuidado, vítimas de doença grave ou deficiência5. Tonio Walter, juiz e Professor de Direito Penal da Universidade de Regensburg, considera a decisão equivocada, conquanto compreensiva "moralmente". Segundo ele, cabe apenas ao Legislador descriminalizar a eutanásia, não ao Judiciário e principalmente quando isso é feito de uma forma tão "generosa", como se deu no caso da insulina6. Ele acusa a Corte de, a fim de afastar a eutanásia ativa, ter considerado a aplicação das injeções - "sob a ótica normativa" - não como um ato da esposa, mas do marido. Se decisivo é quem pratica com as próprias mãos o ato letal, só se pode chegar a uma conclusão: a esposa matou o marido, ainda que a seu pedido. O consentimento da vítima é, aliás, o único elemento que diferencia o crime de eutanásia, tipificado no § 216, inc. 1 do StGB, para o crime de homicídio. Mas ambos são puníveis. Para Walter, o § 216 do StGB não é uma norma chicanosa, que visa apenas prolongar o sofrimento de doentes crônicos. A norma tem o triplo escopo de garantir a inviolabilidade da vida humana; dar ao suicida a chance de interromper o ato até o último segundo e de evitar absolvições nos casos em que ainda não esteja claro o que a pessoa morta queria. Existem cada vez mais pessoas carentes de cuidado. Quando pessoas idosas e doentes puderem ser mortas com uma simples injeção e o autor puder alegar que o morto assim o quis, isso representará um perigo de vida para muitos idosos e doentes, acusa Walter. Segundo ele, a eutanásia ativa só pode ser admitida quando o suicida não puder praticar os atos com suas próprias mãos. E tudo isso precisa estar devidamente documentado em um procedimento especial a ser detalhado pelo Legislador7. Até lá, qualquer conduta ativa de terceiro deve ser considerada crime. O tema é sensível não apenas na Alemanha, mas também no Brasil. Por aqui, qualquer prática - ativa ou passiva - de acelerar a morte de alguém continua punível como homicídio. Existem poucos estudos sobre o tema, dentre os quais as valiosas contribuições de Henderson Fürst e Luciana Dadalto, dois grandes pesquisadores na área da bioética. As discussões na Alemanha jogam luzes no problema sob perspectivas filosóficas e dogmáticas, cruciais para o aprofundamento do debate entre nós. Com os avanços da ciência, que desenvolve a cada dia novas técnicas de dominação - ou, pelo menos, prolongamento - da vida, está cada dia mais difícil morrer. No Brasil, conquanto seja muito fácil morrer em decorrência da violência, ainda é muito difícil morrer de forma digna autodeterminada. __________ 1 § 216 Tötung auf Verlangen. (1) Ist jemand durch das ausdrückliche und ernstliche Verlangen des Getöteten zur Tötung bestimmt worden, so ist auf Freiheitsstrafe von sechs Monaten bis zu fünf Jahren zu erkennen. (2) Der Versuch ist strafbar. Tradução livre: § 216 Eutanásia. (1) Se uma pessoa for determinada a matar, mediante pedido expresso e sério da pessoa falecida, a pena será de prisão por um período de seis meses a cinco anos. (2) A tentativa é punível. 2 FÜRST, Henderson. No confim da vida: direito e bioética na compreensão da ortotanásia. Belo Horizonte: Letramento, Casa do Direito, 2018, p. 140. 3 § 217 Geschäftsmäßige Förderung der Selbsttötung. 1) Wer in der Absicht, die Selbsttötung eines anderen zu fördern, diesem hierzu geschäftsmäßig die Gelegenheit gewährt, verschafft oder vermittelt, wird mit Freiheitsstrafe bis zu drei Jahren oder mit Geldstrafe bestraft. 2) Als Teilnehmer bleibt straffrei, wer selbst nicht geschäftsmäßig handelt und entweder Angehöriger des in Absatz 1 genannten anderen ist oder diesem nahesteht. 4 BGH spricht Frau vom Vorwurf der strafbaren Tötung frei: Tötung mit Insulinspritze war straflose Beihilfe zum Suizid. LTO, 11/8/2022. 5 BGH spricht Frau vom Vorwurf der strafbaren Tötung frei: Tötung mit Insulinspritze war straflose Beihilfe zum Suizid. LTO, 11/8/2022. 6 WALTER, Tonio. Tötung bleibt Tötung. LTO, 19/8/2022, p. 2. 7 Ibidem, p. 4.
As fake news são mais propagadas que notícias verdadeiras.  Hoje dá-se continuidade à coluna publicada em 23/8 acerca do evento sobre "fatos alternativos", fake news, discurso de ódio e liberdade de expressão, realizado na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro em 12/8, sob a coordenação desta articulista e da Des. Cristina Tereza Gaulia, Diretora da EMERJ.  O evento contou com a presença da Ministra do Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), Sibylle Kessal-Wulf e do Des. André Gustavo Corrêa de Andrade (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), cuja brilhante fala apresenta-se agora ao leitor, ainda que com o reducionismo das sínteses.  Ambos painelistas foram unânimes em acentuar o grande potencial lesivo que as fake news e os discursos de ódio causam ao debate público, à formação da opinião pública e, em última instância, à democracia, como temos presenciado nessa quadra da história em diversos cantos do globo.  A mentira faz parte do tecido social  Andrade iniciou sua fala explicando que a mentira faz parte, até certo ponto, do próprio tecido social. Mentimos sem pensar, para evitar conflitos e tornar mais fácil a convivência em sociedade. Basta pensar nas chamadas "mentiras brancas", aquelas que contamos para evitar ferir os sentimentos dos outros ou para não sermos considerados deselegantes ou desagradáveis. O mesmo se dá com as mentiras "benevolentes" ou "benéficas", como as contadas a um paciente no leito de morte com o intuito de aliviar seu sofrimento ou para proteger a vida ou a integridade de uma pessoa.  Distinção entre desinformação (fake news) e informações falsas (misinformation) Essas mentiras brancas ou inverdades não demandam uma resposta do direito. Problemáticas, contudo, são as informações falsas que, publicadas em meio digital, deliberadamente ou não, têm o potencial de causar danos a terceiros, geralmente com o propósito de alcançar algum resultado econômico, político ou de outra natureza. Essas são as chamadas fake news ou "desinformação", explicou o magistrado. Andrade afirmou ser importante distinguir ainda entre informações falsas ou imprecisas, as quais são difundidas desconhecendo sua falsidade, daquelas informações que são disseminadas com a consciência de que não correspondem à verdade. No primeiro caso, a falsidade não é deliberada, pois a falta de correspondência entre o que é afirmado e a realidade deriva de erro ou ignorância, sendo, por isso, denominadas na língua inglesa de misinformation. No segundo caso, da mentira deliberada, as informações são fabricadas ou disseminadas com a consciência de sua falsidade e/ou inexatidão com o propósito de enganar, ludibriar ou confundir terceiros. Essa caracteriza a desinformação ou disinformation, explicou. Mas existe ainda uma terceira categoria, denominada mal-information, na qual uma informação de conteúdo verdadeiro é compartilhada com o propósito de causar dano a uma pessoa, organização ou país. É o caso da divulgação de informações pessoais, como a orientação sexual de alguém, sem que haja legítimo interesse público a justificar a propagação. A manipulação da expressão "fake news" como estratégia política O magistrado da Corte fluminense chamou atenção para o fato de que a expressão fake news vem sendo utilizada de forma abusiva com o intuito de desacreditar a imprensa e o trabalho de jornalistas. Governantes populistas, especializados em manipular a verdade, disse, estão sempre prontos a se valer da expressão para acusar jornais e matérias jornalísticas que contrariam seus interesses políticos e pessoais. Em tempos de polarização ideológica, é mais fácil desacreditar uma pessoa ou veículos de imprensa do que refutar racionalmente, com argumentos e evidências, uma notícia falsa, afirmou. Donald Trump é um bom exemplo: o ex-presidente norte-americano chegou a confessar certa vez que usava deliberadamente a expressão fake news para desacreditar a cobertura negativa da imprensa sobre seu governo1. É a estratégia de atacar a credibilidade do emissor para não ter que prestar contas em relação ao conteúdo da mensagem (a notícia), criando uma cortina de fumaça sobre fatos de interesse público, constatou o Desembargador, com a precisão que lhe é peculiar. Ele lembrou, porém, que nem sempre a falsidade é evidente. Com frequência, ela vem mascarada para não ser facilmente identificada e rebatida. A falsidade da mensagem pode decorrer não só de seu conteúdo, mas também da forma como é apresentada: ela pode vir fora de contexto ou ser apresentada de forma incompleta, parcial ou fragmentada, com a omissão de detalhes importantes, levando o receptor a equívocos graves. Muitas vezes, a falsidade está já na manchete, que pode ser falsa, dúbia ou exagerada, explicou o conferencista. Frequente é ainda a sobreposição de fatos e opiniões, fazendo com que não se consiga distinguir facilmente uns dos outros. Nesses casos, as opiniões vêm, em geral, alicerçadas sobre premissas factuais falsas e, com essa estratégia, o autor da mensagem busca se eximir de responsabilidade ao argumento de que está apenas expondo sua opinião, quando o que faz, na verdade, é apresentar um ponto de vista que se apoia em uma falsidade. Enfim, inúmeras são as formas que a falsidade assume, tornando difícil sua identificação e controle, afirmou Andrade. Notícias falsas ganham proporções endêmicas na era digital O problema é que a distorção, dissimulação e o falseamento da verdade ganham proporções endêmicas na era digital. Segundo o magistrado, o fenômeno das fake news está intimamente relacionado com o conceito de "pós-verdade" (post-truth), segundo o qual a verdade é uma noção relativa, que tem menos relevância do que as convicções ou crenças pessoais. O que se vê nas redes sociais e em outros meios digitais é tão somente o apego radical a certas crenças, sejam elas ideológicas, políticas ou religiosas ou, ainda, a sentimentos e emoções, com desprezo e repúdio a argumentos, evidências ou provas factuais. O problema é que, quando isso ocorre, os fatos e as evidências deixam de ser a base comum da qual se parte para um debate e, sem essa base factual comum, subsistem apenas as paixões políticas, ideológicas, religiosas, etc. Em tempos de pós-verdade, não há fatos incontestáveis ou inquestionáveis, mas apenas versões ou narrativas. A credibilidade do que é dito depende mais de quem o diz ou sobre quem se diz do que do conteúdo em si. A crença cega se sobrepõe à evidência e quando as evidências são apresentadas e se mostram irrefutáveis, elas são rejeitadas ou desconsideradas sob a irônica acusação de fake news, disse ele. Mas não se pode confundir fatos com opiniões, alertou Andrade, em sintonia com o entendimento do Tribunal Constitucional alemão, exposto pela Min. Sibylle Kessal-Wulf. Fatos são acontecimentos que podem ser comprovados, verificados, demonstrados por evidência e passíveis de refutação pela experiência. Opiniões, ao contrário, constituem crenças ou julgamentos subjetivos e variáveis, que dependem de seu emissor e intérprete. Por que acreditamos tão facilmente em fake news? E o Desembargador lança uma questão central na atualidade: mas, afinal, por que acreditamos tão facilmente em fake news? Não há uma resposta simples, disse ele. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que o ser humano tende a acreditar naquilo que lhe é dito, mesmo quando tem boas razões para duvidar. A vida em sociedade seria extremamente difícil, senão impossível, se duvidássemos constantemente uns dos outros, explicou. Viver em uma sociedade complexa e plural exige um considerável grau de confiança mútua. E faz sentido que assim seja, porque a comunicação humana é, em sua imensa maioria, honesta. Além disso, há outra explicação fornecida pela psicologia da comunicação. Os estudos mostram que o cérebro humano funciona com dois sistemas distintos de pensamento: o Sistema 1, que opera de forma automática e rapidamente, com pouco esforço e o Sistema 2, no qual se processam atividades mentais mais laboriosas e complexas. Embora tendamos a pensar que agimos de forma refletida, ponderada e calculada, com base no Sistema 2, que exige de nós esforço mental e reflexão, a verdade é que operamos na maior parte do tempo com o Sistema 1, fazendo associações rápidas e automáticas a partir de nossas impressões, sensações, emoções e crenças, agindo de forma intuitiva. E é justamente por isso que somos suscetíveis a acreditar em notícias falsas, passada adiante logo após a leitura (apenas) do título, sem que tenhamos parado para ler e analisar seu conteúdo. E, o que é mais assustador: manteremos essa crença em alguma parte da nossa mente, mesmo que a notícia seja posteriormente desmentida. E como nossa mente opera primordialmente pelo Sistema 1, estamos mais suscetíveis a acreditar na informação primária do que na "metainformação", ou seja, na informação sobre outra informação. Duvidar da veracidade de uma informação ou notícia exige reflexão, esforço, uma postura mental ativa que não é exigida de nossa mente quando somos impactados pela notícia falsa. Em outras palavras, a primeira impressão é a que fica, mesmo que falsa. Falando sobre a resistência humana em se confrontar com informações que contrariam suas próprias crenças, Andrade explica, com base nos estudos da psicologia da comunicação, que todos nós somos formados por ideias, sentimentos, crenças e convicções pessoais acerca do mundo que nos cerca. Quando nos depararmos com informações que contrariam nossas crenças, opiniões e até nosso comportamento, ocorre uma "dissonância cognitiva" (cognitive dissonance), expressão usada para descrever a sensação de desconforto psicológico do indivíduo que se vê diante de informações conflitantes com suas crenças, valores ou atitudes. E quando a dissonância se refere a crenças e opiniões particularmente sensíveis (como política, moral e religião), o indivíduo se vê ameaçado e afetado em sua própria identidade. Ele tende, então, a eliminar ou reduzir essa dissonância, seja (a) mudando sua opinião e/ou comportamento; (b) escondendo sua opinião, evitando debates sobre o tema e ignorando fontes de informação contrárias à sua crença ou (c) buscando justificativas ou racionalizações em apoio à sua crença ou opinião. Nesse último caso, ocorre o "viés de confirmação" (confirmation vias), fenômeno psicológico caracterizado pela tendência dos indivíduos de favorecer informações que confirmam suas crenças ou ideias preexistentes e desconsiderar as que a contrariam. O fenômeno das câmaras de eco nas redes sociais O indivíduo com esse viés, explica o magistrado, passa a buscar apenas fontes que confirmem ou apoiem suas crenças e valores, ignorando evidências que indicam que ele está errado. Quanto mais importante for uma opinião ou convicção pessoal, mais a pessoa tende a rejeitar informações que a contrariem e mais inclinado estará a procurar justificações ou opiniões que a suportem. O viés de confirmação acaba sendo reforçado pelas chamadas "câmaras de eco" (echo chambers), metáfora que faz referência a ambientes específicos da web nos quais pessoas de um grupo compartilham das mesmas ideias e opiniões, sem margem para dissensos. Dentro desses espaços, os usuários compartilham informações semelhantes, basicamente "ecoando" umas às outras. Em um ambiente no qual todos compartilham da mesma opinião, o indivíduo tem suas crenças reforçadas e passa a desconsiderar pontos de vista distintos. No que diz respeito a questões políticas, os membros do grupo acabam desenvolvendo uma "visão de túnel", tornando-se cegos a opiniões discordantes2. E é justamente nas redes sociais on-line que esses ambientes têm proliferado e atraído um grande número de pessoas. Nesses ambientes, é comum a disseminação de rumores e informações não baseadas em evidências. Como os integrantes compartilham da mesma ideologia, não há preocupação com checagem das fontes e com a veracidade das mensagens, que reforçam as ideias de todo o grupo. Vozes eventualmente dissidentes dentro do grupo acabam sendo excluídas ou desacreditadas. Polarizações dos grupos e a vertiginosa propagação das notícias falsas As câmaras de eco tendem a influenciar as emoções dos integrantes e a intensificar a "polarização de grupo" (group polarization), fenômeno que consiste na exacerbação e radicalização das posições originárias dos indivíduos que integram esses espaços. E, na medida em que suas ideias são confirmadas por outros, as pessoas se sentem mais fortalecidas e confiantes, e tendem a avançar em direção a pontos de vista, decisões e atitudes mais extremas. E, para piorar, os estudos comprovam que as notícias falsas têm uma propensão a se espalhar mais rapidamente do que notícias reais, principalmente nas redes sociais. Ao contrário do que se imagina, a disseminação de informações falsas não se deve apenas ao uso de internet bots. Os estudos mostram que as notícias falsas se propagam mais rapidamente no Twitter, porque muitas pessoas - de carne e osso - "retweetam" essas notícias. Ou seja, as pessoas, não os robôs, são os principais responsáveis pela maior disseminação de fake news. O estudo trouxe dados preocupantes: notícias falsas têm 70% mais chances de serem "retweetadas" do que histórias verdadeiras; histórias falsas se disseminam seis vezes mais rápido do que as verdadeiras e, além disso, as falsidades, com frequência, se disseminam em alta velocidade como resultado de um "efeito cascata" (cascade effect), refletindo uma espécie de "comportamento de rebanho" ou "comportamento de manada". Dentre as principais forças que impulsionam as cascatas informacionais está a "homofilia" (homophily), fenômeno estudado na Sociologia e observado nas redes sociais, caracterizado pela maior tendência dos indivíduos se associarem e se relacionarem com indivíduos com os quais compartilham semelhanças, ou seja, os mesmos gostos, interesses, inclinações políticas, religião, educação, gênero e outras características sociais. Esse fenômeno ajuda a compreender porque determinadas informações tendem a se disseminar mais em certos grupos do que em outros. Essa tendência psicológica é potencializada pelos mecanismos de busca da internet, que, com os seus algoritmos, constroem o perfil do usuário, para filtrar e exibir as informações que estejam mais de acordo com esse perfil. Esses mecanismos acabam por conceber um universo de informações específico e sob medida para cada um de nós, alterando o modo como nos deparamos com as ideias e informações. Ao nos direcionar para aquilo que nos deixa mais confortável psicologicamente, o filtro, porém, nos reduz e empobrece, pois nos afasta daquilo que é diferente ou contrário ao nosso perfil. Em consequência, alguém que é mais conservador ou mais liberal tenderá a receber informações que mais se encaixem nesse perfil, em um constante processo de retroalimentação que subtrai o recebimento de informações que desafiem suas convicções, alerta o painelista. O mais grave é que isso ocorre de forma imperceptível, sem nos darmos conta. Acabamos por ficar presos em um mundo digital personalizado, pasteurizado e unidimensional. Em consequência disso, no ambiente on-line já não somos verdadeiramente autônomos, nem inteiramente livres para dirigir nossas escolhas, afirmou o magistrado, que vem estudado o tema da liberdade de expressão há muitos anos.  Desinformação e danos à democracia Particularmente grave e danoso para a democracia é a utilização de fake news com o objetivo de propagação de notícias falsas com o intuito de influenciar no processo de decisão política, alerta. Essas notícias falsas têm sido disseminadas em larga escala nas mídias sociais com o auxílio de programas ou softwares (internet bots ou social media bots) que, de forma automática e em larga escala, fazem postagens ou enviam mensagens como se fossem usuários reais, de carne e osso. E não se pode ignorar que o problema da desinformação política tende a se agravar com o uso de vídeos adulterados (doctored vídeos), com manipulação de imagens e sons. Ainda mais preocupante é a desinformação com o emprego da chamada deep fake, técnica baseada na inteligência artificial que permite criar vídeos falsos, com a superposição de imagens, através do uso de softwares que utilizam a técnica de reconhecimento facial (facial recognition) e "clonagem" de voz, com grau de acuidade cada vez maior. Os resultados podem ser altamente convincentes, especialmente em vídeos de baixa resolução, comuns em postagens on-line, alerta o magistrado. Regular ou não regular as redes sociais, eis a questão  Segundo o conferencista, é evidente que conceber o ciberespaço como um território inteiramente livre, imune a qualquer tipo de restrição ou regulação, onde a liberdade de expressão poderia ser exercitada em sua plenitude, constitui uma visão romantizada do ambiente digital, que não se sustenta diante dos inúmeros abusos praticados na internet. Os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada não podem estar acima ou à margem da lei, disse categórico. "Toda liberdade implica responsabilidade", afirmou em harmonia com o entendimento amplamente majoritário no direito europeu. A internet é um poderoso instrumento de comunicação, mas, como todo instrumento, pode ser - e tem sido - utilizada para práticas nocivas e danosas, com a divulgação de discursos de ódio; a postagem de mensagens ofensivas à honra; o cyberbulling; a violação da privacidade e da intimidade; a prática de pornografia de vingança; a veiculação de pornografia infantil; a disseminação de fake news, etc. "Tais abusos não podem ser tolerados em nome da liberdade de expressão. A liberdade encontra limites naturais na liberdade e nos direitos de outrem", afirmou. São esses limites que tornam a vida em sociedade possível. Os inúmeros abusos cometidos diariamente nas redes sociais, com a proliferação e viralização de mensagens falsas, coloca em xeque essa convicção apresentada, séculos atrás, por Milton, que acreditava que, no confronto livre de ideias, a verdade sempre triunfaria. Nos tempos atuais, isso nem sempre ocorre, reconheceu o conferencista. A metáfora de um livre "mercado de ideias", ao qual toda e qualquer manifestação de pensamento deveria ser submetida, para demonstrar sua força, credibilidade e aceitação, tal como idealizado por Oliver Wendell Holmes Jr.3, certamente fazia mais sentido em uma época anterior à internet, reconheceu Andrade. A autorregulação não tem se mostrado suficiente para dar conta dos diversos abusos ocorridos na internet, dentre eles a proliferação das fake news. As redes sociais são administradas por empresas privadas, que, como tal, pautam suas decisões por um raciocínio eminentemente econômico, de modo que não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que, no enfrentamento de mensagens e notícias falsas, essas companhias tomem atitudes que possam ameaçar a lucratividade do seu negócio. A partir dessa percepção, muitos preconizam a criação de diploma normativo que estabeleça um sistema de "autorregulação regulada" dos grandes provedores de redes sociais, como defendido na Alemanha. O modelo alemão da autorregulação regulada Através do modelo da autorregulação regulada é possível associar as vantagens da autorregulação - em especial, a expertise tecnológica das redes sociais e sua agilidade na correção de fraturas no ecossistema informacional - com as vantagens da regulação estatal - em especial, o poder de coerção e a atuação voltada primordialmente para o atendimento do interesse público, explicou Andrade. A Alemanha deu passo importante nesse sentido com a promulgação de lei que busca combater o hate speech e as fake news nas redes sociais, a chamada Netzwerkdurchsetzungsgesetz (NetzDG), em vigor desde 01.10.2017. Como em geral acontece quando há um novo diploma legislativo, críticas e elogios foram feitos à lei alemã, dentro e fora da Alemanha, recordou o Desembargador. Uma das críticas mais comuns apontava para o risco de overblocking, ou seja, censura de conteúdos legítimos por receio de responsabilização das plataformas, o que tem sido refutado pelos defensores da nova lei4, como também afirmou a Min. Sibylle Kessal-Wulf em sua fala, alertando para o discurso do pânico. Andrade fez coro com a magistrada alemã lembrando que a União Europeia chegou a um acordo com o objetivo de regular as mídias digitais através de lei, o Digital Services Act (DSA). Mas não há ainda um diploma legal que regule especificamente os serviços dos provedores de redes sociais e de mensageria privada. A situação no Brasil A tendência, no entanto, disse o magistrado, parece ser a da regulação dos serviços dos chamados grandes provedores5. Em assim sendo, porém, não se deve perder de vista que a democracia no Brasil ainda é relativamente jovem e precisa sedimentar uma cultura jurídica em torno do princípio da liberdade de expressão, ponderou. Ainda carecem de fixação entre nós parâmetros jurídicos e doutrinários seguros em relação à interpretação desse princípio fundamental, disse Andrade. Por essa razão, impõe-se cuidado redobrado com ideias de combater as fake news através de lei, que, se não for bem pensada, pode comprometer aquilo que, para muitos, é a grande vantagem e o sucesso da rede mundial de computadores: uma robusta liberdade de expressão, com ampla troca de informações. Uma coisa é definir, de forma genérica e abstrata, o conceito de desinformação, outra coisa bem distinta é determinar, no exame do caso concreto, se uma determinada notícia ou mensagem entra ou não nessa categoria. Tudo isso aponta para os riscos trazidos pelo exame de conteúdo de mensagens por juízes e tribunais, que terão que lidar com a complexidade da linguagem humana, para, concretamente, interpretar se uma dada mensagem constitui ou não fake news, concluiu o magistrado. __________ 1 Veja-se, a respeito aqui. 2 Veja aqui. 3 Oliver Wendell Holmes cunhou a metáfora do "marketplace of ideas" no julgamento do caso Abrams v. United States, 250 U.S. 616, 630 (Supreme Court 1919). 4 Veja-se: EIFERT, Martin. A Lei Alemã para a Melhoria da Aplicação da Lei nas Redes Sociais (NetzDG) e a Regulação da Plataforma. In: Fake News e Regulação. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 181 e seg. 5 Atualmente, tramita no Congresso Nacional o PL 2630, que tem por objetivo regular os serviços dos grandes provedores de redes sociais e de mensageria privada.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Entrevista: Professor Dr. Claudio Scognamiglio

A coluna German Report tarda, mas não falha! E, nesse mês de setembro, temos a honra de trazer aos leitores uma entrevista exclusiva com um dos mais renomados juristas italianos da nova geração: Claudio Scognamiglio. Nascido em Napoli em 1962, Scognamiglio concluiu o curso de direito em 1985 perante a célebre Faculdade "La Sapienza", em Roma, doutorando-se em 1993 sob orientação do renomado Prof. Giovanni Battista Ferri com tese sobre a teoria revisionista da pressuposição de Bernhard Windscheid: Die Lehre des römischen Rechts von der Voraussetzung (1850). Após passar por distintas instituições, atualmente Scognamiglio é Professor Titular de Direito Privado na Faculdade de Direito da Universidade de Roma - Tor Vergata, tendo sido eleito recentemente para presidir a renomada Associazione Civilisti Italiani no triênio 2022 a 2024. O autor tem inúmeras publicações relevantes nas áreas da responsabilidade civil, obrigações e contratos, abordando temas como as funções da responsabilidade civil, danos punitivos, dano biológico, autonomia privada, cláusulas gerais, responsabilidade pré-contratual, contrato preliminar, revisão e interpretação contratual, apenas para mencionar algumas questões centrais do direito privado na atualidade. Scognamiglio fala ao leitor do German Report sobre sua vida e sobre temas candentes da contemporaneidade, como a modernização do direito privado, análise econômica do direito, eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, terceiro gênero de responsabilidade civil, causa do contrato, revisão contratual e onerosidade excessiva, dentre outros. Essa entrevista foi feita a quatro mãos e agradeço penhoradamente ao ilustre colega, Thiago Rodovalho, Professor Doutor da Faculdade de Direito da PUC-Campinas, pelo prazeroso trabalho conjunto. Confira a entrevista!  Você tem forte influência da doutrina germânica. Como ocorreu sua ligação com a língua e o direito alemão? Cresci numa família de juristas. Meu pai foi professor durante cerca de cinquenta anos, primeiro de direito civil, depois de direito do trabalho e, portanto, ficou imediatamente claro para mim a centralidade da literatura jurídica alemã na formação de um jurista, pelo menos nos anos 80 do século passado, mas diria que ainda hoje: começando pela Pandectista e terminando com Larenz, Flume, Medicus, Fikentscher - cito apenas alguns dos autores que foram mais importantes para os meus estudos. Enquanto as obras dos pandectas alemães foram, em sua maioria, traduzidas para italiano, o mesmo não ocorreu com as obras dos outros autores que mencionei e muitos outros, razão pela qual comecei a estudar alemão quando tinha dezesseis anos no Goethe Institut em Roma. Devo dizer que a ideia de estudar alemão foi feliz, porque, sabendo que eu conhecia a língua tedesca, meu mestre acadêmico, Prof. Giovanni Battista Ferri, atribuiu-me uma tese de láurea sobre a pressuposição (Voraussetzung), um assunto que não teria sido fácil estudar em profundidade sem conhecer o alemão.  A boa-fé objetiva do § 242 BGB foi um dos principais instrumentos de modernização do direito das obrigações alemão no século 20. Ela serviu de base legal para o desenvolvimento de figuras como a culpa in contrahendo, violação positiva do contrato, quebra da base do negócio, contrato com eficácia de proteção face a terceiros e a teoria da confiança. Qual a importância da boa-fé para o desenvolvimento do direito privado italiano? A cláusula geral de boa-fé teve, e continua a ter, uma importância fundamental no desenvolvimento do direito privado italiano, no contexto de um clima cultural cada vez mais favorável à utilização de cláusulas gerais, especialmente como instrumentos de adaptação do sistema normativo - por meio do trabalho de concretização pela jurisprudência - às solicitações provenientes da realidade econômica e social. Considerando que, respondendo outra pergunta, terei oportunidade de falar sobre a boa-fé no contexto da responsabilidade pré-contratual, quero chamar aqui a atenção para duas outras questões que foram estabelecidas pela doutrina e pela jurisprudência através da cláusula geral de boa-fé. Refiro-me, antes de tudo, à teoria da responsabilidade pelo contato social qualificado, que foi objeto de um desenvolvimento particularmente cuidadoso através de uma decisão ainda recente das Secções Unidas da Corte di Cassazione (n.º 826/2020). A hipótese reconstrutiva a partir da qual esta elaboração se move é resolvida na questão de saber se, ao lado do modelo representado pela responsabilidade pré-contratual, podem se delinear outras hipóteses de confiança capazes de dar origem a obrigações entre partes que não possam ser reconhecidas na qualificação de devedor e credor instaurada pela obrigação de prestação. É precisamente a boa-fé que permite dar uma resposta positiva à questão, na medida em que permite atribuir relevância jurídica à confiança que uma parte pode depositar na conduta da outra, mesmo em contextos caracterizados pela ausência de uma relação contratual no sentido próprio. É particularmente interessante notar, no que diz respeito precisamente à fundamentação do acórdão referido - referente a um caso de responsabilidade da Administração Pública por comportamento contraditório adotado face a um particular por ocasião da preparação de um empreendimento edilício - como a decisão reconstrói o conteúdo da situação jurídica subjetiva do particular que seria tomada em consideração aqui. Essa, segundo a Corte de Cassação, pode ser descrita como "uma situação autônoma, protegida em si mesma, e não em sua relação com o interesse público, como uma confiança sem culpa de natureza civilista, que se fundamenta... na confiança, na lesão da confiança e no dano sofrido como resultado da conduta determinada pela confiança mal depositada", ou seja, "uma expectativa de coerência e de não contrariedade do comportamento da Administração, fundada na boa-fé". A importância da teoria do contato social qualificado é confirmada pelo grande número de hipóteses a que tem sido aplicada: desde a responsabilidade face ao paciente do médico que, conquanto inserido em uma instituição de saúde pública ou privada, não tem uma relação contratual direta com o paciente (questão que foi objeto recente de intervenção normativa destinada a reconduzir a matéria à área da responsabilidade extracontratual) até a responsabilidade do banco pela negociação irregular de um cheque intransferível; desde a responsabilidade da autoridade de controle de certas atividades empresariais até a responsabilidade do professor de escola pelos danos sofridos pelos alunos sujeitos à sua vigilância. A expansão desse modelo reconstrutivo, todo fundado na boa-fé, tem sido tal que recentemente tem havido uma tendência a criticar essa expansão excessiva. O segundo caso para o qual quero chamar a atenção é aquele que foi decidido, ainda mais recentemente, pela Corte de Cassação n. 16743/2021. Esse último pronunciamento, no contexto de uma motivação bastante articulada e complexa, fez uso da boa-fé essencialmente para permitir a entrada em nosso sistema jurídico do instituto da Verwirkung. Em outras palavras, o acórdão considerou que um comportamento de prolongada inércia no exercício de um direito pode ser valorado, segundo a boa-fé, para tornar abusiva a iniciativa posterior destinada, em vez disso, a fazer valer o direito. Nessa ordem de ideias, o que - como no caso da Verwirkung, foi efetivamente definido como uma cláusula geral do direito processual civil - poderia parecer coerente com uma abordagem sensível ao raciocínio daqueles (Nicolò Lipari) que recentemente colocaram no centro do discurso do jurista a referência à razoabilidade "como indício justificativo de uma decisão de relevância jurídica", de modo a identificar "um critério de ligação entre o sistema institucional e a sociedade civil que, sem necessidade de justificações particulares, torna a decisão aceitável para a maioria, no pressuposto de que qualquer outra solução seria claramente inadequada". Enquanto os alemães recorrem à figura da culpa in contrahendo para solucionar o problema da violação culposa do dever pré-contratual de informação, outros ordenamentos jurídicos recorrem à figura do dolo ou do erro, em um processo de elastecimento conceitual dessas figuras. Como a Itália tem resolvido esse problema? Na Itália, existe uma posição similar à da doutrina germânica no sentido de que a violação culposa dos deveres pré-contratuais de informação deve ser reconduzida sobretudo à figura da culpa in contrahendo. De fato, nos últimos vinte anos, tem-se desenvolvido uma construção doutrinária e jurisprudencial que, em caso de violação do dever de boa-fé na fase das tratativas (por exemplo, por falhas no fornecimento de uma informação à contraparte), admite uma responsabilidade ressarcitória (devido à menor conveniência do contrato, decorrente justamente do déficit informativo) mesmo quando se possa dizer que o contrato foi validamente celebrado pela ausência de um vício no consentimento (ver, por exemplo, Cass. 24795/08). A Corte di Cassazioni, assim como o STJ, tem decisão considerando a culpa in contrahendo um terceiro gênero de responsabilidade civil, situado entre o contrato e o delito. Qual a natureza jurídica da culpa in contrahendo no direito italiano? Após um longo período durante o qual, pelo menos no plano jurisprudencial, a tese da natureza extracontratual da responsabilidade pré-contratual era aceita de forma pacífica, a tendência inverteu-se a partir de 2011 com os acórdãos n. 24438 e 27648 da Corte di Cassazione. A questão da admissão da natureza "contratual" da responsabilidade pré-contratual, no sentido de uma "violação de uma obrigação preexistente", foi, então, posteriormente desenvolvida no julgado Cass. n. 14188/16. Assim, foi necessário mais de meio século até a jurisprudência da Corte de Cassação chancelar as conclusões (ainda que sem todos os argumentos) da orientação doutrinária de Luigi Mengoni que, já em 1956, tinha salientado que, "com o disposto no art. 1337, o novo legislador estendeu o imperativo da boa-fé à fase das negociações e da formação do contrato, o que significa que as obrigações recíprocas de retidão, referidas no art. 1175 do Código Civil, surgem já nesta fase em função do específico interesse de proteção de cada parte em relação à outra enquanto tal, uma vez que, através da relação instaurada pelas tratativas, há uma possibilidade específica (que, de outra forma, não haveria) de interferência prejudicial na esfera jurídica da contraparte". E, de fato, Mengoni havia ainda concluído, a partir dessa premissa, que a responsabilidade pré-contratual configura uma hipótese de responsabilidade pelo descumprimento de uma relação obrigacional pré-existente e que, "quando uma norma jurídica sujeita o desenvolvimento de uma relação social ao imperativo da boa-fé, isso é um indicio seguro de que essa relação social se transforma, no plano jurídico, em uma relação obrigacional, cujo conteúdo se trata precisamente de especificar à luz de uma valoração conforme a boa-fé". É claro que ainda existe alguma resistência doutrinária - e, em menor grau, também jurisprudencial - à tese acima delineada, mas pode-se dizer agora que essa prevalece. A teoria da onerosidade excessiva do art. 1.467 do Código Civil italiano não se manteve fiel nem à teoria francesa da imprevisão, nem à teoria alemã da quebra da base do negócio jurídico. Trata-se de uma solução própria e adequada para abarcar todas as hipóteses de alteração superveniente das circunstâncias? A disposição do art. 1.467 do Código Civil representou uma novidade significativa na concepção do Código Civil de 1942, na medida em que representava um primeiro reconhecimento normativo da relevância das superveniências contratuais, com referência à área dos contratos de execução continuada ou diferida, os denominados de duração. Foi observado a este respeito (por Fabrizio Piraino) que "a principal característica das obrigações de longa duração deve ser buscada na relevância do tempo, que aqui não atua como um elemento instrumental para o adimplemento, como poderia acontecer nas obrigações cuja execução requer um certo lapso temporal para a elaboração ou para a obtenção dos meios para sua execução, ou seja, nas chamadas obrigações de trato sucessivo (por exemplo, a obrigação do empreiteiro de obras), mas como um requisito essencial intrínseco, poder-se-ia dizer, ao adimplemento". Nos contratos de longa duração, de fato, como uma abordagem doutrinária muito antiga, mas ainda não desatualizada, tinha salientado (refiro-me a Giorgio Oppo), "a prestação é determinada em função da própria duração, uma vez que a sua extensão quantitativa depende da duração da relação. A duração atua, segundo a expressão de Osti, como uma nota individual da prestação e não como um modo de execução dela", delineando assim o que foi definido no acordo como um "diferimento da pretensão creditória, cuja satisfação incorpora a realização no tempo, de modo que, se as obrigações são ex contractu, o tempo rompe com a causa do contrato". Mais recentemente, a reflexão doutrinária acerca da categoria dos contratos de duração e, portanto, da relação entre contrato e tempo, foi enriquecida, também na Itália, através da elaboração teórica dos contratos relacionais. Esta, por sua vez, partiu da constatação da importância, na atual ordem econômica, dos contratos que não se mantêm dentro de um prazo circunscrito e que se apresentam, só por esta razão, fortemente entremeados pelas relações e interações subsistentes entre as partes, legitimadas a esperar, uma da outra, uma disponibilidade mais acentuada de partilhar os encargos e benefícios derivados do contrato. Esta passagem mostrou a limitação mais significativa da disciplina codificada da resolução por onerosidade excessiva superveniente, que se resolve essencialmente em intervenções dissolutivas da relação contratual, tendo em conta o conteúdo do art. 1467, terceira parte, ao qual voltaremos em breve, e do art. 1468 do Código Civil, que circunscreve a possibilidade de ocorrer uma redução da prestação nos casos em que os pressupostos do remédio se verificam diante de um contrato com obrigações a cargo de uma só das partes. Daí também, e em grande medida, as críticas feitas por Francesco Macario. Mas esse ponto me leva à pergunta seguinte. O Prof. Francesco Macario tem criticado a teoria da onerosidade excessiva, pois, embora se apresente como uma teoria revisionista, manda extinguir o contrato por causa de um problema conceitualmente contornável na execução contratual. Como você vê essa disfuncionalidade? É, de fato, bem conhecido, e foi novamente recordado recentemente por muitos dos enfrentaram a questão das superveniências contratuais no quadro da emergência causada pela pandemia - sobre a qual me debruçarei na resposta à pergunta seguinte - que a disciplina do Código Civil não apresenta uma sensibilidade particular para a área temática dos contratos relacionais que acaba de ser evocada: a abordagem tradicional do discurso sobre o contrato, considerando-o sob a perspectiva de um ato isolado de troca, é provavelmente a base dessa escolha sistemática. E uma vez colocado o centro de gravidade da regulação do contrato fora da dimensão relacional acima evocada, é fácil compreender como a perspectiva corretiva atenta à necessidade de uma adaptação do regramento contratual às circunstâncias supervenientes, em hipóteses capazes de afetar a realização dos interesses perseguidos pelos contratantes, permaneceu circunscrita a hipóteses inteiramente marginais: como o demonstra a posição sistemática, bem como a própria regra, a oferta de redução por equidade, tal como disciplinada no art. 1467, terceira parte, do Código Civil, anteriormente referido, só pode ser feita pela parte contra a qual a resolução foi solicitada e após a correspondente demanda judicial ter sido apresentada pela parte afetada pela onerosidade excessiva superveniente. Neste sentido, compreende-se, a meu ver, o ponto central da crítica - inteiramente partilhada - de Francesco Macário à forma como o art. 1467 do Código Civil foi concebido pelo legislador e inserido no sistema do Codice: os problemas suscitados pela questão das superveniências contratuais exigem essencialmente que sejam utilizadas técnicas para disciplinar a execução do contrato segundo a boa-fé. E a mesma cláusula geral da boa-fé pode fundamentar a obrigação de renegociar o contrato afetado pela superveniência. A pandemia de Covid-19 tem sido considerada um evento extraordinário e imprevisível apto a permitir a revisão dos contratos?  A resposta jurisprudencial ao problema da incidência da pandemia como tal, ou das medidas normativas adotadas para combatê-la, nem sempre foi unívoca: e é impossível dar conta de todas as diferentes orientações no breve espaço de resposta à pergunta em uma entrevista. Tanto mais que estes também foram parcialmente afetados pelas peculiaridades de eventos individuais. Pode-se dizer, no entanto, que a pandemia, precisamente por seu alcance geral, desse ponto de vista, é realmente comparável a um evento bélico e tem confirmado a maior eficiência dos remédios de natureza preservadora do regramento contratual, pois estes são capazes de assegurar a ambas as partes, mesmo que apenas em parte, a utilidade derivada da execução do contrato, evitando, assim, a perda econômica que, para cada uma delas (e, ao final, com efeitos cumulativos para o sistema), derivaria do desfazimento total do negócio. De fato, a peculiaridade da contingência socioeconômica desencadeada pela pandemia consiste precisamente no fato de que ela envolve (direta ou, ao menos, indiretamente, i.e., após as medidas de contenção que suspenderam quase a totalidade das atividades econômicas e produtivas) uma porcentagem muito significativa de relações contratuais em curso, tornando, assim, o destino de cada uma delas um problema tanto individual quanto sistêmico. Dito, embora com alguma aproximação, na linguagem dos economistas, trata-se de uma situação que afeta, ao mesmo tempo e em medida igualmente devastadora, as curvas da demanda e da oferta, tornando necessário, mesmo para o civilista, raciocinar sobre as possíveis soluções que evitem, na medida do possível, deteriorar tanto uma quanto a outra. Na esteira dessas considerações, constata-se que as soluções dedutíveis das regras do Código Civil sobre a resolução de contratos por impossibilidade superveniente ou onerosidade excessiva, mesmo que tecnicamente sustentáveis, poderiam ser inadequadas para o fim, em razão da dimensão assumida pela emergência econômica em sua complexidade. E aqui é o caso de refletir sobre todas as propostas reconstrutivas que têm evocado, elegantemente, o recurso ao instituto da pressuposição (como Vincenzo Roppo), que, reconduzida no plano operacional à disposição do art. 1464 do Codice, poderia, de fato, permitir uma flexibilidade reequilibradora da relação perturbada pela superveniência. No entanto - e para além do fascínio de uma solução que colocaria em campo, para resolver um problema dramático da contemporaneidade, um dos frutos mais refinados, e que me é particularmente caro em razão do estudo já mencionado - subsiste a dúvida sobre a facilidade de administrar, no caso individual, uma figura conceitual com contornos ao menos parcialmente efêmeros. No Brasil fala-se cada vez mais em análise econômica do direito. Na interpretação do contrato no direito italiano prioriza-se mais a eficiência econômica do que outros parâmetros interpretativos, como a boa-fé e os usos e costumes? Não me parece que a análise econômica do direito tenha, na doutrina italiana, uma influência particular sobre o tema da interpretação contratual. Um dos mais recentes contributos da doutrina italiana em matéria de interpretação (a referência é a Aurelio Gentili) partiu da questão do que deve ser interpretado quando se interpreta um contrato e observou, no quadro de uma contradição entre texto e contexto, que não é nova na reflexão sobre o assunto, que "fatos (individuais, sociais) e valores (éticos e econômicos) são relevantes para o intérprete" na medida em que "dão contexto. Feita de negociações nas quais, através de um cálculo em certa medida racional baseado nas circunstâncias em que certas partes operam por meio daquele quid que é o contrato, satisfazem - em certa medida, satisfatoriamente - certas necessidades através de certos bens, coisas ou prestações, que depois trocam materialmente de uma forma normalmente coerente com os objetivos". No entanto, observa esta mesma doutrina que os fatos individuais e sociais, assim como os valores éticos e econômicos, não são capazes de dar um sentido ao que se valora e se faz e, em particular, não podem restituir o elemento de prescritividade e sua concretização na única dimensão na qual essa pode se manifestar como deveria ser, nomeadamente na linguagem: não dão, portanto, o sentido e não dão a regra, que constitui precisamente o sentido prescritivo que é o objetivo da interpretação. O contrato, portanto, de acordo com esta abordagem, é, ao fim da interpretação, a regra (o regramento): "aquele particular sentido vinculante que um fato (psicológico, social, ético, econômico) assume em um ordenamento jurídico. Em uma troca há, sem dúvida, diversas necessidades, interesses e bens (e isso é sociologia) capazes de os satisfazer e, portanto, úteis (e isso é economia), em relação aos quais uma parte e a outra concebem uma vontade, respectivamente, de alienação/aquisição (e isso é psicologia), que nas circunstâncias dadas consideram justas (e isto é ética). Mas, em relação a tudo isso, para falar de contrato, é necessário estabelecer a produção e o sentido dos poderes e deveres específicos, que serão os instrumentos de atuação da vontade de satisfazer as necessidades através de poderes sobre bens que o outro terá o dever de fornecer", porque "só os poderes e deveres são direito e só o seu conjunto particular (o sentido abrangente das regras que lhe prescrevem e conformam) é o contrato. Chegamos, então, e nessa perspectiva afirmando a seguinte tese: "a interpretação do contrato não é somente e acima de tudo a procura da verdade... mas também procura de justificação, motivo pelo qual dizemos que uma parte, interpretando o contrato "desta forma" em vez "de outra forma", tem mais justificação do que outra versão que a conteste. A interpretação do contrato pretende ser a justa composição de um conflito, conseguindo sê-lo "quando encontra um sentido prescritivo do texto que supera as objeções". E uma interpretação segundo este critério é aquela que corresponda à concepção básica do contrato, o respeito à autonomia privada. Em outras palavras, e em conclusão, "à interpretação o contrato, se oferecido como regra, expressa pelo texto, que pode ser determinada com base no contexto constituído pelo fatos individuais e sociais e pelos valores éticos e econômicos envolvidos, e subordinadamente e em dúvida com base nas regras de oportunidade político-legislativa escolhidas pelo legislador por considerações de eficiência e/ou justiça". Considerou-se oportuno avançar em busca de um resposta a essa recentíssima reconstrução doutrinária, porque fica claro que a análise econômica do direito pode ser tida (também) como matéria interpretativa, que é sempre o processo através do qual se busca conferir ao contrato o sentido que lhe é juridicamente relevante e, portanto, vinculante para os contratantes, somente quando extraído de uma norma jurídica. Com efeito, em ordenamentos jurídicos, tais como o italiano, em que a hermenêutica contratual é objeto de uma disciplina positiva, o argumento de maior solidez se mede pelo fato de se basear nas regras da interpretação do contrato postas pelo legislador, podendo se apresentar como insuscetível à crítica da contraparte contratual. Afinal, o que o direito italiano entende por causa? Qual o conceito paralelo no direito alemão (Zweck)? Tentar responder a essa pergunta, no curto espaço de uma entrevista, é realmente muito difícil. Na minha opinião, e não apenas pelo profundo vínculo com meu Mestre, que, como já mencionei, é Giovanni Battista Ferri, autor de um volume fundamental sobre o assunto, datado de 1966, a concepção mais acreditada é a da causa como uma função econômica individual. Entendida como uma função econômico-individual, a causa, longe de meramente evocar instâncias e sugestões típicas das teorias subjetivas, parece ser "o elemento de coesão de todos os demais elementos (primários ou secundários) de que tal atividade é composta" e "o índice de como esta regra privada é a expressão objetivada dos fins subjetivos que o autor ou os autores do negócio jurídico pretendem perseguir": portanto, "o elemento que liga tecnicamente a operação econômica, a que o negócio dá vida, entendida em sua totalidade, aos sujeitos que dela são autores" e "a dimensão racional e razoável (Zweck e junto Grund, se assim podemos dizer) da específica regra negocial, através da qual as partes regularam os seus interesses específicos e concretos, tendo em conta a especificidade que in concreto os caracteriza". É precisamente nesta ordem de ideias que é feita, com particular rigor, a crítica relativa às consequências da sobreposição entre o nível da causa e o do tipo contratual, que decorreu da definição da causa como uma função econômico-social típica e que conduzia à necessidade de distinguir um esquema causal abstrato, representado pelo tipo, da causa concreta do negócio de fato. Ao contrário, observa-se, "a disciplina contida em uma figura contratual expressa, por esquemas abstratos, apenas um modelo, uma hipótese de organização de interesses a que as partes podem dar vida, não uma regulação concreta de interesses", enquanto a causa abstrata não existe, pois existe somente "a causa do negócio jurídico de fato". A teoria da causa como função econômica individual, com base nesses desenvolvimentos, certamente não ficou confinada a uma área de pura crítica ideológica da teoria da função econômico-social, sendo, ao contrário, rica em importantes corolários práticos: desde a valorização da causa como instrumento de interpretação do contrato e de reconstrução da regra negocial na complexidade de sua articulação, até o afiançamento de uma técnica mais dúctil para selecionar os interesses que efetivamente justificaram a operação contratual, preparando assim também o remédio para sanar a falta de funcionalidade do contrato no que diz respeito aos interesses perseguidos pelas partes e valorando a eventual ilegalidade. Em outro nível do discurso, então, a ênfase colocada na dimensão racional do ato de autonomia privada, que pode ser reconstruída justamente em termos de função econômico-individual, abre caminho para a afirmação da nulidade do contrato, quando o sentido de seu funcionamento não pode ser reconstruído nem mesmo pela interpretação: isto é, nudum pactum, compreendido justamente como um ato cujo significado racional não pode ser apreendido de forma alguma. A mesma teoria da causa concreta, que se deve a Cesare Massimo Bianca, bem como os desenvolvimentos mais recentes que utilizaram a causa, e a referência ao interesse digno de proteção (contido no art. 1322.º do Código Civil italiano, mas agora entendido em um sentido profundamente diferente da abordagem original do Código Civil) para resolver problemas que poderíamos definir como o controle da autonomia privada, são, na minha opinião, resultado de desenvolvimentos da concepção de Ferri.  O Prof. Pietro Perlingieri formou no Brasil a escola do direito civil constitucional, que prega a eficácia direta da Constituição sobre o direito privado. Na Alemanha e em outros países europeus sustenta-se, porém, a eficácia mediata dos direitos fundamentais no direito privado (mittelbare Drittwirkung). Qual corrente prevalece, em geral, no direito italiano? O quadro não é totalmente uniforme e não apenas no sentido de que, como sempre acontece, as posições tomadas pela doutrina e pela jurisprudência diferem de tempos em tempos. Pode-se dizer, ainda que simplificando muito, que, em matéria de responsabilidade aquiliana, surgiu um sistema de fontes dentro do qual, na evolução do instituto nas últimas décadas, os princípios da Constituição e do que podemos chamar compreensivamente de Cartas de Direitos supranacionais desempenharam um papel particularmente incisivo, filtrado através da tessitura de normas ou cláusulas gerais pelas quais o assunto está entrelaçado, mas ao final destinado a uma espécie de aplicação direta. Esse processo, porém, não se deu na esteira da abordagem de Perlingieri, sendo fruto das obras de Stefano Rodotà - através da referência ao limite da solidariedade, como elemento em cuja perspectiva se lê a fórmula da injustiça do dano contida no art. 2.043 do Código Civil italiano - e dos estudiosos (Castronovo, mas também Alpa) que desenvolveram a categoria do dano biológico a partir do art. 32 da Constituição. Nesta perspectiva, tem-se sustentado recentemente uma via hermenêutica para a constitucionalização do direito privado, reconhecendo um exemplo disso no desenvolvimento da categoria do dano biológico: este foi, de fato, o resultado da inserção, no tronco da responsabilidade civil, de uma situação jurídica subjetiva deduzida diretamente do art. 32 da Constituição com base em uma interpretação que adotou o modelo argumentativo da Drittwirkung, ou seja, da eficácia das normas constitucionais também no nível das relações entre particulares ou "horizontal". Do lado do direito contratual, o discurso é muito mais articulado, porque as decisões que colocaram em prática uma aplicação direta dos princípios constitucionais têm sido frequentemente objeto de crítica forte e persuasiva. Pense-se na decisão (Corte de Cassação 14343/09) que reconheceu na aplicação direta dos princípios constitucionais gerais dos artigos 2, 29 e 30 da Constituição a técnica argumentativa por meio da qual se atacava com a sanção da nulidade a cláusula de um contrato de locação que, sob pena de resolução do contrato, proibia o locatário de hospedar não-temporariamente pessoas que não fizessem parte do núcleo familiar, conforme indicado no momento da assinatura do contrato. Deste modo, no entanto, está credenciada uma solução que aparece, antes de tudo, carente de controle, segundo a boa-fé, da racionalidade da escolha contratual expressa na cláusula: racionalidade que aqui poderia ser reconhecida no interesse do locador a evitar modos de utilização do imóvel que comprometam, pelo menos potencialmente, a sua boa conservação; e que não considera, então, a necessidade de inibir atos de exercício, pelo locador, do direito decorrente da cláusula, que impeçam formas constitucionalmente garantidas de desenvolvimento da personalidade do locatário (tais como, por exemplo, o direito de escolher e de mudar de companheiro e, portanto, a pessoa com quem viver), o que poderia mais apropriadamente ser confiado à regra da boa-fé na execução do contrato, bem como enriquecido, do ponto de vista dos valores, com o forte apelo à dignidade, também contido na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Por sua vez, o credenciamento por outro, bem conhecido, pronunciamento (Cass. n. 20106/09) do abuso de direito como técnica de controle da autonomia privada, em um contexto tipicamente relacional, como o exercício de um direito potestativo de fonte contratual, sofre do limite metodológico da escolha de um princípio menos específico - o do abuso do direito (para além da natureza jurídica ainda pelo menos controversa, apesar das disposições do art. 54 da Carta dos Direitos Fundamentais), no que diz respeito à cláusula geral de boa-fé, que por si só teria sido certamente adequada como instrumento de avaliação do ato de exercício do direito de resolução também quanto à sua racionalidade, entendida como congruência em relação aos interesses com ele perseguidos. E isso sem prejuízo de que, como oportunamente se fez notar, a boa-fé seja seguramente susceptível de fundamentar a alegação de que os direitos decorrentes do contrato não são exercidos de forma a prejudicar "o interesse da contraparte em medida superior ao necessário para satisfazer o interesse próprio (conforme consagrado no regulamento contratual e/ou previsto na lei), mas não pode ser utilizada para reduzir direitos que (validamente e) legalmente o contrato ou a lei atribuem ao contratante ou para criar obrigações que ainda não decorram do contrato ou da lei (a menos que sejam obrigações meramente 'acessórias' e instrumentais, ou seja, relativas aos métodos estritos de cumprimento das obrigações principais ou aos métodos para o correto exercício do direito)". Igualmente conhecidos, e particularmente relevantes para efeitos de reconstrução das questões aqui tratadas, são duas decisões do Tribunal Constitucional (Corte Cost. 248/13 e 77/14) que considerou que a inexistência de previsão normativa sobre a redutibilidade do depósito confirmatório excessivo e a existência de um 'direito vital' que excluía a aplicação analógica a esta hipótese do art. 1384 do Código Civil Italiano não afastavam o problema de ilegitimidade constitucional do art. 1385 c/c 2º da Constituição. De fato, de acordo com a abordagem da Corte, o juiz no mérito poderia muito bem ter proposto uma interpretação constitucionalmente orientada da disciplina em referência, chegando à decretação de ofício "da nulidade (total ou parcial da própria cláusula), nos termos do art. 1418 do Código Civil italiano, em contraposição ao preceito do art. 2º da Constituição (para o perfil do cumprimento dos deveres obrigatórios de solidariedade) que permeia o contrato em conjugação com o cânone da boa-fé, que atribui vis normativa, funcionalizando assim a relação jurídica para proteger também o interesse do parceiro negociador na medida em que não colida com o interesse próprio do obrigado". E também neste caso a abordagem pareceu (em particular a G. D'Amico) em muitos aspectos subversiva do atual sistema de direito contratual: de fato, se "os 'princípios' constitucionais (e as cláusulas gerais) são diretamente adequados para conformar o poder da autonomia privada, qualquer regulamentação legal do exercício desse poder é 'relativizada' de uma só vez, pois qualquer limite pode (mais ou menos facilmente) remeter a um princípio constitucional (ou a uma cláusula geral). Portanto, sua disposição explícita pelo legislador não acrescentaria nada que já não fosse imanente ao 'sistema' e, inversamente, a falta de disposição expressa em nada impediria a afirmação da existência do limite em qualquer caso (derivando-o dos princípios e cláusulas gerais)". Como já mencionado, portanto, um arcabouço denso e complexo, que não permite fornecer uma única resposta à pergunta.
No último dia 12/8, a juíza do Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), Sibylle Kessal-Wulf, encerrou um ciclo de palestras no Brasil sobre "fatos alternativos", fake news, discurso de ódio e liberdade de expressão.  Ela veio a convite da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), presidida pela ilustre Des. Cristina Tereza Gaulia, e aproveitou a estadia para debater o espinhoso tema em conferências em Brasília e na Bahia, as quais tive o prazer de organizar juntamente com a EMERJ e o Fórum de Democracia Alemanha-Brasil, coordenado pela Embaixada da Alemanha.  No dia 3/8, Kessal-Wulf foi recepcionada pelo Min. Luiz Fux no Supremo Tribunal Federal, em evento que contou com a participação dos ministros Luís Roberto Barroso (STF), Luís Felipe Salomão (STJ) e Mauro Campbell (Corregedor-Geral do TSE), além do Embaixador da Alemanha, Heiko Tohms. Dia 8/8, a magistrada falou para um auditório lotado no Tribunal da Justiça da Bahia juntamente com Carlos Ayres Britto, Ministro aposentado do STF.  A viagem encerrou com chave de ouro no plenário do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com a presença dos desembargadores Henrique Carlos de Andrade Figueira (Presidente do TJRJ), Ricardo Rodrigues Cardoso (Corregedor Geral de Justiça), Cristina Tereza Gaulia, Eduardo Gusmão, André Gustavo Correia Andrade e do Prof. Fábio Carvalho Leite.  Devido à relevância do tema na atual quadra da história e à riqueza das exposições, o German Report faz hoje uma explanação das principais questões levantadas por Sibylle Kessal-Wulf (Parte I) e o próximo número abordará os pontos mais importantes da rica fala de André Gustavo Correia Andrade (Parte II).  Ainda vivemos no mesmo universo? Sibylle Kessal-Wulf iniciou sua exposição explicando que durante as comemorações do aniversário da Grundgesetz, a Lei Fundamental alemã, em 23/5 desse ano, houve uma mesa redonda sobre o tema: "Fatos alternativos: será que ainda estamos vivendo no mesmo universo?".   O termo "fatos alternativos" foi eleito na Alemanha, em 2017, por um júri de linguistas, como a Unwort des Jahres, i.e., a "não-palavra" ou "antipalavra" do ano justamente por se tratar de uma expressão enganosa, que esconde a tentativa de legitimar afirmações falsas no debate público, tornando-as socialmente aceitáveis. Fatos alternativos são um fenômeno da nossa época (Zeitgeist-Phänomen), que surgiu nos Estados Unidos na era do ex-presidente Donald Trump, mas que há muito está presente na realidade constitucional alemã. Basta recordar a máquina de propaganda nazista, responsável pela distorção e produção massiva de notícias falsas. Mas não só: sempre existiram tentativas de formar e/ou manipular a opinião pública (sobretudo as opiniões políticas) a fim de guiar o comportamento social na direção almejada, algo comum em regimes ditatoriais. O que há de novo são as dimensões técnicas que temos hoje na era da globalização e da internet, disse a conferencista. A questão atual é: quem forma minha opinião? Não há dúvidas hoje em dia do impacto que as tecnologias provocam na formação da opinião pública. Com efeito, esses espaços virtuais de comunicação, nos quais muitos usuários reforçam mutuamente suas opiniões, têm tido uma importância crescente para a escolha de informações pelo indivíduo.   Segundo Kessal-Wulf, plataformas como Facebook (Meta) e Google têm assumido a tarefa, através de algoritmos, de filtrar para o usuário, na avalanche de informações disponíveis na internet, aquelas que podem ser de seu interesse e, dessa forma, acabam decidindo, na prática, quais informações serão oferecidas ao usuário.  Assim, a grande questão que se põe atualmente não é mais como eu formo minha opinião, mas quem forma minha opinião, disse a renomada magistrada. Se, por um lado, as novas tecnologias digitais significam progresso, não se pode ignorar, por outro, que elas podem deflagrar o que em inglês se denomina de "slippery slope", uma espécie de "ladeira escorregadia", que traduz a ideia de perda de controle. A juíza do Bundesverfassungsgericht (BVerfG) afirmou que a digitalização mudou a comunicação e, com isso, o acesso ao discurso democrático. Diante da difusão ilimitada de informações na internet, o emissor perde facilmente o controle sobre as suas manifestações, sendo praticamente impossível reverter as informações falsas, as quais podem adquirir, por vezes, uma dinâmica própria. O simples fato do indivíduo poder participar das discussões sob o manto do anonimato faz com que muitas pessoas percam a inibição e, não raramente, as opiniões de vários usuários se transformam - de forma espontânea ou deliberada - em ataques coletivos (Shitstorms), contribuindo para um embrutecimento na comunicação. Com isso, a polarização das opiniões aumenta, surgem novas frentes de conflitos e o embate de opiniões torna-se mais acirrado. A tolerância e a cultura do debate tornam-se palavras desconhecidas a ponto de muitos alertarem atualmente para a existência de um "ódio digital" (digitaler Hass). Kessal-Wulf adverte, porém, que a mera possibilidade de se propagar uma informação falsa na mídia digital produz uma atmosfera de desconfiança e um clima insalubre no seio social, fazendo com que toda e qualquer espécie de declaração seja rotineiramente checada a fim de verificar se os fatos veiculados são eventualmente "fatos alternativos".   O problema é que os "fatos alternativos" minam a confiança dos cidadãos nos agentes públicos. E, entanto, essa confiança é essencial em uma democracia representativa e elemento imprescindível à convivência em uma sociedade pluralista.. Se isso não existe, alerta Kessal-Wulf, pode surgir uma espécie de desânimo político generalizado e nos tornaremos uma sociedade na qual os cidadãos acabam se afastando do sistema político e da democracia. Como evitar a "década sem limites"? Por isso, a grande questão, segundo ela, não é se ainda vivemos no mesmo universo, mas sim como podemos evitar que a nossa década entre para a história como a "década sem limites", na qual perdemos os limites e o respeito, permitindo a desintegração das regras sociais e jurídicas até então existentes e sedimentadas. As primeiras consequências da temida "ladeira escorregadia" já podem ser sentidas, disse a juíza do 2. Senado do Bundesverfassungsgericht. O Estado tem perdido em capacidade de comando; a sociedade, em competência social e a democracia tem perdido o fundamento para o discurso público, necessário para seu funcionamento. O processo democrático tornou-se mais difícil e, devido a reiterados discursos de ódio contra candidatos a cargos públicos, cada vez menos cidadãos estão dispostos a enfrentar uma campanha eleitoral. Kessal-Wulf disse que na Alemanha, alguns candidatos a cargos municipais já desistiram de se candidatar para se proteger e/ou preservar sua família e seu entorno social desse ambiente tóxico. A pandemia da covid-19 é outro bom exemplo dos danos provocados pelo descontrole das mídias digitais: circularam nas redes sociais informações falsas não apenas sobre o vírus, mas também sobre os riscos, a suposta falta de eficácia da vacina e diversas teorias conspiratórias de cunho racista e até antissemita.   A magistrada revelou que o relatório do Departamento de Proteção da Constituição, de 2021, contém, pela primeira vez, um capítulo sobre os movimentos radicais que surgiram no país. Segundo o documento, surgiu "um cenário de hostilidade à Constituição, que ataca, de forma contínua e sistemática, as instituições e as medidas estatais; despreza o parlamentarismo; desrespeita as decisões dos tribunais de forma consciente e provocativa, e ataca os representantes da mídia não só verbal, mas também fisicamente"1. Ela citou alguns exemplos dos riscos que a verborragia do ódio pode causar: grupos radicais convocaram seus adeptos pela internet a sequestrar e torturar o Ministro da Saúde, acusado de representar a "ditadura da covid-19" e a marchar rumo à residência de um governador a fim de intimidá-lo. Até o Tribunal Constitucional foi acusado de confirmar, de forma servil, as decisões do legislador quanto à pandemia e de se transformar em um instrumento do chamado "regime do corona". Tudo isso sobrecarrega o aparato policial e judiciário, pondo em risco a capacidade do Direito Penal de se impor, afirmou. As vítimas sentem-se cada vez mais indefesas enquanto os contraventores têm a certeza da impunidade, o que passa a impressão de que a internet é um espaço sem lei, criticou Kessal-Wulf. Ela asseverou, porém, que é tarefa dos três poderes do Estado - Executivo, Legislativo e  Judiciário - intervir e tomar as medidas de necessárias para combater essa situação. E isso deve ser feito no plano fático, mas, principalmente, no plano jurídico. No plano fático, deve-se observar os fatos e, se for o caso, corrigi-los, disse. Foi o que fez, por exemplo, o encarregado da supervisão das eleições da Alemanha, que corrigiu expressamente a falsa notícia, veiculada na internet nas últimas eleições parlamentares de 2021, de que eleitores que votassem pela primeira vez poderiam participar de um sorteio desde que colocassem seu nome na cédula eleitoral. No plano jurídico, tanto o judiciário quanto o legislador têm combatido com firmeza a difusão de fake news e discursos do ódio na Alemanha, avaliou Kessal-Wulf. A liberdade de expressão é direito fundamental, mas não absoluto Segundo a ministra, o Bundesverfassungsgericht tem afirmado, pelo menos desde a corajosa decisão que extinguiu o radical partido comunista alemão (KPD) em 1956, que a liberdade de expressão é um dos bens jurídicos mais importantes de qualquer democracia liberal, pois só com o embate de ideias os cidadãos conseguem formar suas opiniões pessoais.   Kessal-Wulf ressaltou que a livre disputa intelectual é pressuposto indispensável ao funcionamento da democracia liberal, pois só ela garante o debate público sobre questões de interesse geral e de importância político-estatal. A formação livre de ideias ocorre em um processo de comunicação e pressupõe, de um lado, a liberdade de emitir e divulgar opiniões e, de outro, a liberdade de se informar e de tomar conhecimento das opiniões externadas por outras pessoas. Segundo o BVerfG, o direito fundamental à liberdade de expressão é a manifestação mais imediata da personalidade humana e um dos direitos humanos mais elementares. Ele é, em certo sentido, o fundamento de toda e qualquer liberdade pessoal.   Isso significa que a pessoa pode dizer e acreditar em bobagens. Os juízos de valor, disse Kessal-Wulf, precisam ser protegidos independente de serem racionais ou emocionais, certos ou errados, de terem ou não valor sob a ótica de terceiro. Há, por assim dizer, um "direito à insensatez" (Recht auf Unvernunft) ou até um "direito à burrice" (Recht auf Dummheit), afirmou provocativamente.  A questão tormentosa que se põe nesse contexto é: se posso acreditar em bobagens, posso também divulgá-las? E de que forma isso pode ser feito?  Fatos alternativos não são protegidos pela liberdade de expressão A ministra afirmou, inicialmente, que não se pode hoje em dia ignorar a realidade de que as transformações digitais alteraram profundamente a formação da opinião pública. Mas, por outro lado, é necessário evitar o que tem sido chamado de "lixo verbal" das mídias sociais. Na análise do que é ou não protegido sob o manto da liberdade de expressão, o Tribunal Constitucional alemão faz importante distinção entre afirmações de fatos (Tatsachenbehauptungen) e juízos de valor (Werturteile). Segundo a Corte, afirmações falsas sobre fatos não são protegidas como liberdade de expressão, pois fatos não são juízos de valor. Esses se caracterizam por conter um elemento de opinião, ausente nas meras declarações factuais.   Kessal-Wulf reconheceu que nem sempre é fácil distinguir o que é afirmação factual e juízos de valor, devendo o intérprete, em caso de dúvida, priorizar a liberdade de expressão sob pena de restringir inadequadamente a proteção do direito fundamental à liberdade de expressão. Ponderação dos direitos fundamentais Apesar dessa interpretação ampla e favorável ao direito fundamental, a Lei Fundamental alemã - conquanto proibindo a censura no art. 5, inc. 1 - impõe limites à liberdade de expressão, como, por exemplo, o respeito às leis gerais (aquelas que têm por escopo a proteção de bem jurídico individual ou de valores sociais comuns, que gozam de precedência em relação à manifestação da opinião), às normas de proteção de crianças e adolescentes ou ao direito à honra. Isso requer uma ponderação entre as posições jusfundamentais em colisão. Tomando como exemplo violações ao direito à honra, isso significa uma ponderação entre a gravidade da violação do direito de personalidade e a restrição à liberdade de expressão. Também importante levar em consideração a forma e a propagação da opinião manifestada, disse Kessal-Wulf. Quem dela tomou conhecimento: apenas a pessoa afetada, os participantes de um círculo fechado ou a opinião pública em geral? A opinião foi expressa de forma verbal ou ficou perpetuada por escrito ou na internet, que, como dizem, não esquece tão rapidamente? A ministra lembrou que o Tribunal Constitucional alemão reconheceu expressamente, em maio de 2020, que a internet pode aumentar o efeito violador da honra da pessoa atingida. A ponderação entre os direitos em colisão é obrigatória e só pode deixar de ser realizada em casos excepcionais, afirmou a conferencista, como no caso da chamada crítica degradante (Schmährkritik), a qual não se baseia em um contexto material, mas tem por fim exclusivo denegrir a pessoa, atingindo sua dignidade, como no caso em que uma política alemã foi vítima de ataques na internet com expressões do mais baixo calão (leia aqui a coluna German Report).  Críticas a pessoas e agentes públicos Kessal-Wulf ressaltou, porém, que, em princípios, as pessoas públicas e os agentes políticos têm que tolerar criticas, mesmo as formuladas de forma ácida, exagerada ou polêmica. E aqui, a proteção da honra cede quando não estão em jogo questões relacionadas à esfera privada da pessoa, mas questões de interesse público. Nesse casos, dá-se prevalência à participação democrática do cidadão no debate público. "Quando um cidadão, por receio de (sofrer) sanções jurídicas, não participa mais do discurso público, isso pode pôr em risco os fundamentos da democracia, já que não ocorre mais uma intercâmbio livre de opiniões", surgindo o chamado "efeito silenciador" (silencing-Effekt)2. Faz parte, portanto, da liberdade de expressão que o cidadão possa criticar um detentor de cargo público, inclusive de forma acusadora e pessoal. Isso não significa, porém, ponderou Kessal-Wulf, que políticos e detentores de cargos públicos devam tudo tolerar, afinal, só se pode esperar que as pessoas se disponham a atuar no estado e na sociedade se lhes for assegurada uma proteção suficiente a seus direitos de personalidade. Por isso, é também do interesse público que haja uma proteção eficaz dos direitos de personalidade de políticos e outros detentores de cargos públicos, dentre os quais os juízes, disse a palestrante.   Eficácia horizontal dos direitos fundamentais A ministra chamou atenção ainda para a interessante questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no contexto da liberdade de expressão nas redes sociais. Segundo ela, doutrina e jurisprudência precisam refletir com mais vagar sobre o papel da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas tendo em vista que atualmente o usuário precisa recorrer a um provedor privado para manifestar suas opiniões. E aqui surge a controvérsia: será que o operador de uma rede social pode apagar, por iniciativa própria, as postagens de seus usuários, tuteladas pela liberdade de expressão, quando elas violarem as regras de comunicação estabelecidas no contrato?, questionou de forma provocativa. A seu ver, essa questão ainda não foi suficientemente discutida na Alemanha e carece de uma resposta das cortes superiores, inclusive do Tribunal Constitucional.   De qualquer modo, disse ela, no processo de interpretação das regras privadas em conformidade com os direitos fundamentais, não se pode levar em conta apenas a liberdade de expressão dos usuários, devendo-se considerar ainda os direitos fundamentais dos provedores, mais precisamente o direito ao livre exercício da profissão, garantido no art. 12 da Lei Fundamental. Mas, a verdade é que a comunicação digital levanta uma série de novas questões na medida em que o indivíduo depende dos serviços de empresas privadas para emitir suas opiniões, reconheceu Kessal-Wulf. A reação do legislador às fake news e discursos de ódio Não apenas o judiciário alemão, mas também o legislador tem estado alerta aos abusos da liberdade de expressão. Em abril de 2021, entrou em vigor, na Alemanha, a lei de combate ao extremismo de direita e à criminalidade de ódio que, dentre outras coisas, promoveu uma alteração do Código Penal. O legislador fez o que ele gosta de fazer nessas situações: adaptou o Direito Penal, tornando-o mais rígido, disse em tom de crítica a magistrada. Na exposição dos motivos, o legislador justificou as medidas adotadas em razão do crescente embrutecimento da comunicação na internet e nas mídias sociais, que põe em risco a liberdade de expressão. E face às massivas interferências no discurso público (inclusive no discurso político), o Estado tem - independente de denúncia do ofendido - um interesse próprio na persecução penal do autor a fim de impor no meio digital o respeito pelo Estado de Direito e pelas regras democraticamente postas, disse a conferencista. Com isso, ao lado da tutela a bens jurídicos individuais, surge aqui uma proteção do espaço do discurso público e, com isso, um interesse supraindividual, da sociedade como um todo, o qual deve ser levado em conta, segundo a vontade do legislador, pelas novas normas penais. A "Lei do Facebook" Fora da esfera penal, há na Alemanha, desde 2017, uma lei que regula as plataformas: a Netzwerkdurchsetzungsgesetz (NetzDG),  popularmente apelidada de Lei do Facebook. Trata-se de lei nacional que visa combater a crescente disseminação de crimes de ódio e outros conteúdos ilícitos nas mídias sociais como Facebook, Youtube e Twitter. A lei vale para todos os operadores de redes sociais que possuam mais de dois milhões de usuários não país. Dentre os conteúdos tidos por ilegais, destacam-se: ameaça ao Estado Democrático de Direito, a incitação do povo ao ódio, crimes contra a ordem pública, como a formação de associações criminosas, o xingamento de comunidades religiosas, calúnia, injúria, difamação, bem como a falsificação de dados relevantes para a produção de provas, como a convecção de passaporte de vacina falso pelos negacionistas do coronavírus. As plataformas que receberem durante o ano mais de cem reclamações de seus usuários acerca de conteúdos ilícitos são obrigadas a apresentar uma prestação de contas, em língua alemã, relatando como lidaram com essas reclamações, a qual deve ser publicada no diário oficial e em sua própria homepage. Os operadores de plataformas sociais devem bloquear ou apagar, em 24 horas, os conteúdos manifestamente ilícitos. Em casos mais complexos, a plataforma dispõe do prazo de sete dias para decidir sobre o apagamento ou bloqueio, o qual pode ser prorrogado por motivo justificado, concedendo-se oportunidade de defesa ao usuário, autor da postagem. Além disso, as plataformas devem, mediante ordem judicial, fornecer os dados constantes de seus acervos ao prejudicado quando necessário para ele pleitear em juízo pretensões de natureza civil - em regra: indenização - pela violação de seus direitos provocada pela postagem de conteúdo ilícito. As empresas são obrigadas ainda a indicar um representante legal para receber citação na Alemanha, o que se justifica pelo fato das grandes empresas de tecnologia estarem sediadas no exterior.   A observância das novas normas será fiscalizada pelo Departamento Federal de Justiça e seu descumprimento sujeita a empresa infratora a pesadas multas. Desde fevereiro de 2022, a nova versão da lei obriga as plataformas a comunicar ao departamento da polícia federal (Bundeskriminalamt) determinados conteúdos para fins de persecução penal nos casos em que houver indícios concretos de ameaça ao Estado Democrático de Direito ou à ordem pública. Para tanto, foi criada uma central de denúncias de conteúdos ilícitos na internet, a qual consta com cerca de duzentos funcionários encarregados de verificar a relevância penal e/ou o potencial de ameaça das postagens, identificar o autor e informar o ocorrido aos órgãos competentes para eventuais persecuções penais. As críticas e oposições às novas regras não tardaram a surgir, contou Kessal-Wulf. Houve, sobretudo, resistência ferrenha por parte dos operadores das redes sociais. As críticas vão desde o aumento dos custos com recursos humanos que as novas regras acarretam (só o Facebook tem atualmente mais de mil moderadores de conteúdo na Alemanha) até o questionamento de sua constitucionalidade. Ao que parece, as plataformas estão tentando burlar as novas regras, não reagindo, por exemplo, às reclamações dos usuários. Estudos mostram que conteúdos que polarizam opiniões e provocam cisão no seio social estão sendo difundidos por algoritmos - como o do Facebook - com uma velocidade maior que os conteúdos que trazem uma informação mais equilibrada, disse a magistrada. Isso ocorre, porque esses conteúdos induzem uma interação maior dos usuários, que permanecem mais tempo na plataforma permitindo que seus dados possam ser usados de forma lucrativa em publicidade. Além disso, o Facebook esconde os canais de reclamação, enquanto o Twitter tem um formulário de reclamações desnecessariamente complicado, criticou Kessal-Wulf. Em relação aos problemas de constitucionalidade, alguns alegam que a lei limita indevidamente a liberdade de opinião. Os curtos e rígidos prazos para apagamento ou bloqueio de postagens fazem com que as redes, na dúvida, prefiram retirar determinados conteúdos mesmo quando a liberdade de opinião exija uma ponderação no caso concreto. Os operadores seriam obrigados a apagar também conteúdos potencialmente lícitos sem uma decisão prévia dos tribunais estatais. A solução de apagar em caso de dúvida traz consigo o risco de um overblocking, alertam os críticos. Em última análise, a lei acaba transferindo às plataformas tarefas que cabem ao Estado e que não deveriam ser exercidas por um particular. Evitar e combater o discurso de ódio e as fake news é uma tarefa pública, à qual o Estado não pode se furtar, dizem os opositores das medidas.  A ministra informou que o Google, a pedido de sua subsidiária YouTube, já acionou a justiça administrativa na Alemanha questionando as novas regras. Facebook (Meta), TikTok e Twitter também entraram com ações. O Digital Service Act Kessal-Wulf mencionou ainda que recentemente foi aprovado na União Europeia um pacote abrangente de regras para regular as plataformas online: o Digital Services Act, conhecido como a lei dos serviços digitais. O diploma europeu surgiu a partir da constatação de que um único país não tem condições de combater sozinho, de forma eficaz, os desenvolvimentos negativos na internet. A lei dos serviços digitais tem por fim fazer respeitar os valores europeus no espaço digital. Ela veio complementar e atualizar partes da diretiva sobre o comércio eletrônico, promulgada há 20 anos. Isso inclui uniformizar em toda a Europa os procedimentos de denúncia e remoção imediata de conteúdos ilegais, bem como impor deveres de diligência às grandes plataformas. Em razão da invasão russa na Ucrânia e de possíveis manipulações de informações online, Kessal-Wulf informou que foi proposto recentemente um novo regulamento que introduz um mecanismo que permitirá analisar as atividades das principais plataformas e motores de busca e seu impacto na Guerra da Ucrânia, possibilitando ainda, se necessário, a adoção de medidas para salvaguardar os direitos fundamentais. A chegada a um denominador comum no plano europeu tem sido vista de forma positiva na Europa, disse a juíza do BVerfG. Fala-se até em uma virada na história da regulamentação da internet. As discussões constitucionais vão nos acompanhar no futuro, afirmou, mas temos vários catálogos fundamentais para nos ajudar: a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção Europeia de Direitos Humanos e as constituições nacionais, concluiu a palestrante. Conclusão: a Lei Fundamental optou pela democracia defensiva Kessal-Wulf finalizou suas reflexões afirmando que a democracia precisa da liberdade de expressão e da diversidade de opiniões para poder se desenvolver e evoluir. A democracia precisa, por isso, suportar não apenas as opiniões contrárias, mas também as opiniões incômodas, errôneas e absurdas. "Nisso se manifesta a força da democracia", acentuou a ministra alemã3.  Mas, acima de tudo, a democracia precisa de uma coisa: de democratas, que a preencham com vida, alertou. A democracia só pode ser protegida e preservada se os cidadãos se identificarem com ela e participarem no debate intelectual e político. Se isso não ocorre, porque, devido a notícias falsas e discursos de ódio, ninguém quer se envolver-se na vida política, então estamos, de fato, ameaçados pela "ladeira escorregadia" e, como resultado, por uma "década desregrada".  Por isso, a liberdade de expressão pode e deve ter limites. A Lei Fundamental alemã optou expressamente pela democracia defensiva e, por isso, ela não permite que os inimigos da Constituição, sob o escudo da liberdade de expressão, destruam ou ameacem a ordem constitucional e a existência do Estado Democrático de Direito, concluiu brilhantemente Kessal-Wulf. Sábias lições para qualquer democracia, sobretudo as mais jovens. __________ 1 "Hier ist eine verfassungsfeindliche Szene entstanden, die staatliche Maßnahmen und Institutionen anhaltend und systematisch attackiert, die den Parlamentarismus verächtlich macht, gerichtliche Entscheidungen bewusst provozierend missachtet und Medienvertreter verbal und auch körperlich angreift." 2 "Wenn Bürger aus Angst vor rechtlichen Sanktionen nicht mehr am öffentlichen Diskurs teilnehmen, kann das die Grundfesten der Demokratie gefährden, weil kein freier Meinungsaustausch mehr stattfindet (sogenannter "silencing"-Effekt)." 3 "Demokratie braucht Meinungsfreiheit und Meinungsvielfalt, um sich entfalten und weiterentwickeln zu können. Demokratie muss deshalb nicht nur die jeweils andere Meinung, sondern auch die unbequeme Meinung und selbst die irrige und abwegige Meinung aushalten. Gerade darin zeigt sich demokratische Stärke."
O legislador alemão fechou a porta, mas o judiciário abriu a janela para a revisão contratual com a crise socioeconômica provocada pela 1ª Guerra Mundial. No último dia 29/6/2022, a Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), presidida pela Des. Cristina Gaulia, realizou Webinar sobre o tema mais controvertido do direito contratual desde o início da pandemia: as alterações supervenientes das circunstâncias e a revisão contratual.  O evento foi organizado pelo Fórum Permanente de Direito Comparado da EMERJ, que tenho o prazer de presidir juntamente com o e. Des. Eduardo Gusmão (TJ/RJ). Para debater tão candente temática, a EMERJ recebeu a ilustre presença da Min. Nancy Andrighi (Superior Tribunal de Justiça) e do Prof. Dr. Jan Dirk Harke, Desembargador do Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Jena, na Alemanha, além da Profa. Dra. Viviane Ferreira (FGVSP), que fez instigantes provocações nos debates. Enquanto a Min. Nancy Andrighi apresentou um panorama geral da jurisprudência do STJ sobre revisão contratual, Jan Dirk Harke falou sobre a teoria alemã da quebra da base do negócio, que fundamenta e justifica a revisão judicial dos contratos na Alemanha e nos demais países que recepcionaram - direta ou indiretamente - a teoria, a exemplo de Portugal. O ponto de partida comum foi a pergunta: o que fazer quando, após a conclusão do contrato, ocorrem eventos graves e extraordinários que alteram profundamente as circunstâncias iniciais (base) do negócio, tornando o cumprimento extremamente difícil para o devedor ou frustrando o fim do contrato? Se as partes não chegam a uma solução consensual, deve-se exigir o cumprimento tal como acordado, reajustar ou extinguir o contrato? A revisão contratual na ótica do STJ A Min. Nancy Andrighi apresentou o estado da arte da revisão judicial dos contratos por alterações supervenientes das circunstâncias na jurisprudência da Corte, considerando os julgados proferidos nos últimos cinco anos, entre 2017 e 2022. De início, a Ministra fez uma constatação, evidenciada com o estopim da pandemia de Covid-19: é inegável a incompletude do sistema jurídico do Código Civil para revisar os contratos.   Segundo ela, os juízes devem ter um "novo olhar" para as questões jurídicas geradas pela pandemia, as quais estão aportando paulatinamente no Poder Judiciário. É dever do juiz não manter a mente aprisionada, incapaz de fazer mudanças. Ele deve aplicar a lei com um "toque de altruísmo e equidade, o que significa ler a lei e aplicá-la de forma humanizada". Revisar ou rescindir contratos com fundamento nas alterações produzidas pela pandemia, é uma atividade judicial que exige estudo, reflexão e a utilização de regras legais, muitas vezes insuficientes, mas que - calcadas nos princípios, nas lições e nas experiências de outros países - produzirão uma "sentença que devote o olhar adequado e com equidade para ambas as partes", disse Nancy Andrighi. Essa fala introdutória da Ministra é importante, porque mostra a importância do direito comparado para a aplicação e o aperfeiçoamento do próprio direito e, também, porque afasta a ideia, sustentada por abalizada doutrina, de que pandemia teria provocado apenas uma "dificuldade financeira" para o devedor, o que não autorizaria o reajuste do contrato. Recorde-se que muito se discutiu se a pandemia seria ou não causa, em tese, para a revisão dos contratos. O art. 7º da Lei 14.010/2020 (RJET) tentou até separar a crise pandêmica da crise econômica, efeito colateral do coronavírus, ao afirmar que "não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário". Mas Nancy Andrighi não hesitou ao afirmar: "É evidente que a pandemia provocou profundos impactos nas relações contratuais, de forma que as obrigações assumidas anteriormente tornaram-se insustentáveis. Surge nesse contexto o interesse da parte prejudicar de revisar o contrato a fim de alcançar um equilíbrio mínimo que permita o prosseguimento do negócio pactuado". E deu como exemplo os contratos de locação de lojas de shoppings centers: embora as lojas tenham sido fechadas por causa da pandemia, fazendo com que os locatários ficassem impedidos de auferir renda, esses permaneceram obrigados a arcar com o aluguel da loja, surgindo aqui o conflito. A primeira solução, disse a magistrada, reside no âmbito negocial, com uma alteração consensual do contrato. Mas o problema efetivamente se põe quando uma das partes quer a revisão e a outra não, pretendendo a manutenção do contrato nos exatos termos em que pactuado. Quid iudis? Nancy Andrighi relembrou que a revisão contratual por alterações superveniente nas circunstâncias presentes na celebração - trocando em miúdos: por quebra da base do negócio - já foi objeto de várias teorias, como a imprevisão, a onerosidade excessiva e a quebra da base objetiva do negocio. No Brasil, observou, por força do principio da legalidade (vigente, aliás, em todos os sistemas de civil law), as possibilidades e os limites da revisão contratual devem observar os contornos previstos pela lei, de modo que é a partir da interpretação legal que se deve identificar a teoria adotada. Segundo a doutra magistrada, os limites da revisão judicial dos contratos foram intensificados pela Lei de Liberdade Econômica que, acrescentando o Parágrafo único ao art. 421 e o art. 421-A III ao Código Civil, estabeleceu o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Dessa forma, afirmou, o Brasil caminha no sentido de privilegiar os contratos nos limites pactuados pelas partes, permitindo apenas o controle judicial de forma absolutamente restrita e em hipóteses excepcionais - entendimento, aliás, deve-se repisar, que não destoa da regra geral no direito alemão, no qual vigora o princípio do pacta sunt servanda e a excepcionalidade da revisão contratual. Nancy Andrighi lembrou que a base legal para a revisão contratual por alteração superveniente das circunstâncias encontra-se principalmente nos arts. 317 e 478 CC e no art. 6 V CDC. Enquanto no Código Civil estão previstos os requisitos oriundos das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, a lei do consumidor exige apenas que os fatos sejam supervenientes e as prestações se tornem excessivamente onerosas. O art. 6 V CDC recepciona - ou, pelo menos, teve como inspiração - a teoria da base objetiva do negócio, muito embora, acrescentou a Ministra, muitos sustentem que a teoria da base é perfeitamente compatível com o Código Civil, a partir da aplicação do princípio da boa-fé objetiva do art. 422 CC. A fim de identificar as teorias mais utilizadas pelo STJ para justificar a revisão contratual, Nancy Andrighi fez meticuloso apanhado das decisões da Corte Especial e das duas Turmas que compõem a Seção de Direito Privado. Com a pesquisa, foram obtidos 464 acórdãos: 314 tratam da onerosidade excessiva, 129 mencionam a teoria da imprevisão, 12 aludem à teoria da base objetiva e 09 reportam-se ao termo genérico da alteração superveniente das circunstâncias. Restringindo a busca aos últimos cinco anos, chega-se a um total de 123 acórdãos, sendo 86 sobre onerosidade excessiva, 27 sobre a teoria da imprevisão, 04 sobre base objetiva e 06 sobre alterações das circunstâncias. No entanto, Nancy Andrighi explicou que parte dos 123 acórdãos se limita a analisar a admissibilidade dos recursos e só menciona as teorias nos relatórios, por constarem das alegações das partes e/ou nos acórdãos recorridos. Alguns julgados até analisam o mérito, mas, por afastar a revisão contratual no caso concreto, não aprofundam a discussão sobre as teorias revisionistas. Em apenas 15 decisões, o STJ analisou o mérito das teorias, admitindo a possibilidade da revisão contratual. Dessas, 10 referem-se à onerosidade excessiva, 03 à teoria da imprevisão e 02 à alteração das circunstâncias. Dos 10 acórdãos que mencionam a onerosidade excessiva, nem todos dizem respeito efetivamente à teoria: 06 deles são julgados sobre contratos de consumo e mencionam o termo não por causa da teoria, mas pela previsão expressa do requisito da onerosidade excessiva no art. 6 V CDC. Ou seja, apenas 04 julgados da Corte tratam abordam a teoria! O grande precedente que norteou os demais foi o REsp. 1.321.614/SP, julgado pela 3a Turma em 16/12/2014. O caso trata de ação de revisão contratual pleiteada em decorrência da maxidesvalorização do real frente ao dólar em 1999. O Relator, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, fundamentou seu voto na teoria da base objetiva do negócio, afirmando que ela se aplicaria não somente às relações de consumo, mas ainda às relações privadas regidas pelo Código Civil. Para afastar o argumento de que a desvalorização da moeda era evento previsível, o Relator defendeu a aplicação da teoria da base, que não exigiria a imprevisibilidade do fato superveniente que alterou a base do negócio. Contudo, o voto vencedor, capitaneado pelo e. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, concluiu que o Código Civil adotou apenas as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, ao passo que a teoria da base objetiva do negócio só teria sido recepcionada na lei consumerista, que permite a revisão por onerosidade excessiva decorrente de fatos supervenientes, independente destes serem ou não imprevisíveis, disse a painelista. A decisão, em apertada síntese, centrou-se na ideia de que a teoria da base do negócio dispensaria o requisito da imprevisibilidade e, por isso, só fora se aplicaria às relações de consumo. Outra preocupação clara do julgado foi afastar a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo o direito das obrigações uma regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor. E, assim, no caso concreto, a 3a Turma do STJ negou a revisão do contrato por considerar que, na época dos fatos, a maxidesvalorização do real era um evento previsível. Da análise jurisprudencial feita, Nancy Andrighi concluiu que poucos são, na verdade, os julgados em que há efetivamente a revisão judicial dos contratos, o que se explica pela estreiteza das teorias adotadas, mas também pelas Súmulas 5 e 7 do STJ, que impedem a Corte de reanalisar fatos e interpretar as cláusulas contratuais. A segunda conclusão extraída pela Ministra é que o STJ nunca fez uma diferenciação dogmática precisa entre as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva. A Corte está em falta, disse. Uma terceira conclusão importante, também ressaltada, é que nenhum acordão versou sobre a eventual possibilidade do ordenamento jurídico exigir requisitos semelhantes, mas não necessariamente iguais às teorias clássicas, para a revisão dos contratos, concluindo, por fim, que a alteração superveniente das circunstâncias está a reclamar um estudo cauteloso da Corte. A Ministra fez menção ainda às duas primeiras decisões do Tribunal sobre a pandemia. A primeira, o REsp. 1.971.304/SP, julgado pela 3a Turma em 14/6/2022 sob sua relatoria, não trata de revisão contratual, mas de ação questionando a legalidade da decisão de síndico que, a pretexto de evitar o contágio, impediu o proprietário de adentrar em sua unidade condominial. A segunda decisão foi proferida pela 4a Turma no REsp. 1.998.206/DF, julgado em 14/6/2022 sob relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão. O caso diz respeito à revisão de contrato de consumo, em que o consumidor pleiteava a redução do valor das mensalidades escolares durante a pandemia, tendo em vista que as aulas passaram a ser ministradas de forma online. No acórdão, ainda não publicado, ficou assentado que a situação decorrente da pandemia "não constitui fato superveniente apto a justificar a redução das mensalidades em contratos de prestação de serviços educacionais". Quer isto dizer que no caso concreto não restou evidenciado o desequilíbrio excessivo autorizador da redução do valor das mensalidade. Em outras palavras: o consumidor não logrou demonstrar a excessiva dificuldade de continuar cumprindo as prestações (pagamento da mensalidade integral). A Min. Nancy Andrighi alertou, porém, que o judiciário precisa ter muito cuidado para não aplicar a decisão de maneira equivocada, como se a pandemia não fosse uma causa autorizadora de revisão contratual, pois dúvida não há quanto aos efeitos nefastos causados pela pandemia na economia mundial e nas relações privadas. Em sínteses conclusiva, dois pontos da fala da Min. Nancy Andrighi merecem destaque: primeiro, o STJ ainda não fez uma análise dogmática aprofundada das teorias revisionistas e, segundo, o regime revisional criado pelo legislador no Código Civil não soluciona todos os casos de alterações supervenientes das circunstâncias. O direito alemão partiu de um cenário pior que o nosso, pois o legislador do séc. 19 - ao contrário do legislador brasileiro de 1975 - rejeitou expressamente a revisão judicial dos contratos. Mas a jurisprudência resolveu o imbróglio provocado pelas alterações supervenientes das circunstâncias através da teoria da quebra da base do negócio. A revisão contratual no direito alemão O Prof. Jan Dirk Harke iniciou sua fala fazendo uma retrospectiva histórica muito ilustrativa para a discussão atual no Brasil. Ele lembrou que o legislador histórico - responsável pela elaboração do Código Civil alemão, o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) - rejeitou expressamente a possibilidade do juiz intervir nos contratos. Na época da elaboração do BGB, Bernard Windscheid já havia desenvolvido, à partir da ideia medieval da cláusula rebus sic stantibus, a chamada teoria da pressuposição (Lehre der Voraussetzung). Ele dizia que nos contratos havia uma condição não expressa de que a vontade negocial só teria validade diante da existência, ocorrência ou permanência de determinadas circunstâncias (pressuposição). Por isso, afirmava que a pressuposição era uma "condição não desenvolvida" (unentwickelte Bedingung). Apesar do prestígio e da influência de Windscheid, a teoria não foi incorporada ao BGB sob o argumento - utilizado atualmente pelo discurso da análise econômica do direito - de que a intervenção do juiz nos contratos provocava grave insegurança jurídica e que o legislador não poderia flexibilizar o "sagrado" princípio do pacta sunt servanda, o que naquele tempo se justificava, ressaltou Harke, porque vivia-se uma época de estabilidade. Porém, o mundo da estabilidade começou a ruir logo nas primeiras décadas do séc. 20. Com efeito, a 1ª Guerra Mundial trouxe, além de destruição e morte, profundas alterações nas condições-quadro gerais (ex: sociais, econômicas, políticas, etc.). Sobretudo os embargos à exportação de produtos alemães e a elevada alta dos preços dificultavam enormemente o cumprimento dos contratos tal como inicialmente pactuado. A hiperinflação, disse Harke, só viria a se instalar nos anos 20, mas a realidade da vida já se impunha ao direito de forma inexorável, fazendo com que, embora o legislador tenha rejeitado deliberadamente a teoria windscheidiana, o judiciário passasse a reajustar os contratos. Ou seja, o legislador fechou as portas, mas o judiciário abriu as janelas à revisão judicial dos contratos impelido pela realidade implacável dos acontecimentos. Os tribunais alemães passaram, então, a readaptar os contratos apoiados, inicialmente, na ideia de "impossibilidade econômica" e, em seguida, na teoria da pressuposição, à época há aperfeiçoada por Paul Oertmann, genro de Windscheid, e denominada de teoria da base do negócio. Segundo o painelista, renomado romanista contemporâneo, a teoria de Oertmann foi imediatamente adotada pelo Tribunal Imperial (Reichsgericht) para lidar com os casos de aumento exagerado de preços em decorrência do conflito bélico e com a hiperinflação de 1923, fazendo com que a antiga ideia de impossibilidade econômica fosse totalmente abandonada. Cabe aqui abrir um parêntese e notar como soa, no mínimo, anacrônica a tentativa de "ressuscitar", em pleno séc. 21, as teorias da impossibilidade econômica e da pressuposição, abandonadas em seu país de origem devido às suas deficiências, para solucionar os problemas causados pela pandemia, como tem sido feito por aqui e em outras latitudes. Na Itália, nomes como Vincenzo Roppo chegaram a propor o recurso all'istituto della presupposizione para justificar a revisão dos contratos desequilibrados pela pandemia e, dessa forma, contornar as dificuldades da teoria da onerosidade excessiva, como dá notícia o Prof. Claudio Scognamiglio em entrevista ao German Report (no prelo). Fechando o parêntese e retornando à exposição do Prof. Jan Dirk Harke, ele falou que após essas décadas turbulentas, tornou-se incontroverso na Alemanha o poder do juiz de estabilizar os contratos em decorrência de gravosas superveniências. A teoria da base do negócio, porém, continuou sofrendo aperfeiçoamentos teóricos, sobretudo após sua vinculação ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no § 242 BGB. E assim, a teoria deixa de ter fundamento na vontade (fictícia) dos contraentes, que teriam acordado uma condição não desenvolvida de que as situações decisivas para a conclusão do negócio permaneceriam hígidas, e passa a embasar-se na ideia de retidão e consideração pelos interesses da contraparte, núcleo duro do mandamento da boa-fé ética. A teoria da base do negócio acaba, por fim, aperfeiçoada por Karl Larenz, que demonstra, em 1951, que se pode identificar não apenas uma base subjetiva do negócio (representações das partes), como faziam Windscheid e Oertmann, mas ainda uma base objetiva do negócio, aquelas condições-quadro gerais (políticas, sociais, econômicas, etc.), presentes no momento da celebração, sobre as quais os contratantes formam a vontade negocial. Ambas podem sofrer alterações em decorrência de eventos supervenientes. Segundo Larenz, o juiz dever reajustar o contrato sempre que as circunstâncias presentes no momento da celebração (base do negócio) sofrerem profundas alterações não antevistas pelas partes (e, portanto, não reguladas no contrato), tornando excessivamente difícil o cumprimento do contrato tal como inicialmente pactuado ou frustrando definitivamente o alcance do fim último do negócio. Embora não prevista no BGB/1900, a teoria da quebra da base do negócio encontrou amparo legal no § 242 BGB, cuja tacanha redação diz apenas que o devedor deve cumprir a prestação de boa-fé, observando os usos do tráfego. Apesar da estreita literalidade da norma, doutrina e jurisprudência alemãs viram ali uma cláusula geral da boa-fé ética, que passou a fundamentar a teoria da base do negócio, pois, afinal, nada pode ser mais desleal do que o credor exigir o cumprimento inalterado de um contrato desequilibrado por acontecimentos não imputáveis à esfera de risco e responsabilidade do devedor. Revelando-se profundo conhecedor do direito brasileiro, Harke afirmou que o § 242 BGB encontra equivalência no art. 422 CC2002, embora seja muito mais limitado em seu conteúdo do que o dispositivo brasileiro, pois manda apenas o devedor observar a boa-fé durante a execução, enquanto o art. 422 CC exige a boa-fé nos momentos da conclusão (pré-contratual) e da execução do contrato. O Professor da Universidade de Jena chamou atenção para o fato de que a teoria da base do negócio foi aplicada pelo judiciário alemão por mais de um século sem qualquer previsão legal, com base apenas no princípio da boa-fé objetiva do § 242 BGB. Segundo ele, os tribunais só não aplicaram a teoria com mais frequência devido à estabilidade econômica experimentada na Alemanha após a 2ª Guerra Mundial e porque o legislador alemão - em vários momentos extraordinários - interveio para reequilibrar os contratos através de leis especiais transitórias, como ocorreu após a 2ª Guerra Mundial, com a mudança da moeda em 1948, por ocasião da reunificação alemã, e, por último, com a pandemia de Covid-19, o que tornou desnecessário o recurso ao poder judiciário. E após um século de aplicação sem previsão legal e contra a "vontade" do legislador histórico, o legislador da reforma de modernização do direito das obrigações do Código Civil alemão (2001/2002) finalmente positivou a teoria da quebra da base do negócio no § 313 BGB. Não houve qualquer mudança teórica, mas apenas a recepção e incorporação de um instituto jurídico desenvolvido pela doutrina e jurisprudência contra a vontade inicial do legislador, mas em conformidade com o necessário aperfeiçoamento e adaptação do direito aos novos tempos. Harke explicou que o § 313 BGB exige, em suma, três pressupostos indispensáveis para autorizar a revisão - ou, excepcionalmente, a extinção - do contrato por alterações supervenientes das circunstâncias. Primeiro, um elemento factual, qual seja, a superveniência de uma profunda alteração nas circunstâncias iniciais do negócio, base da decisão de contratar das partes. Segundo, um elemento hipotético, ou seja, a demonstração de que as partes não teriam celebrado o contrato - ou o teriam feito com outro conteúdo - se tivessem previsto a alteração das circunstâncias, o que mostra que a teoria da base não dispensa o caráter da imprevisibilidade dos efeitos (alteração das circunstâncias) do evento, pois se os contratantes anteviram a superveniência e distribuíram os riscos no contrato, prevalece o pactuado. Atente-se, porém, que, conquanto importante, o elemento da imprevisibilidade da alteração das circunstâncias não tem na teoria da base do negócio o papel decisivo e o caráter absoluto que ocupa na (antiga) teoria francesa da imprevisão. Terceiro, um elemento normativo, ou seja, a prova da irrazoabilidade da manutenção inalterada do contrato. Em outras palavras: a prova de que o devedor está com excessiva dificuldade de cumprir a prestação ou que a superveniência frustrou o fim útil do contrato. E falando especificamente sobre a crise pandêmica, o renomado historiador afirmou que sempre reinou consenso na comunidade jurídica alemã de que a pandemia de Covid-19 foi um evento extraordinário e imprevisível que provocou profundas alterações nas condições sociais e macroeconômicas que davam sustentação a muitos contratos. Daí falar-se que a pandemia provocou a perturbação da grande base do negócio (Störung der großen Geschäftsgrundlage). Dessa forma, foi até redundante o legislador alemão, por meio de lei emergencial de 22/12/2020, acrescentar o § 7 ao art. 240 da Lei de Introdução ao BGB para estabelecer a presunção de que pandemia provocara a quebra da base dos contratos de locação comercial, pois doutrina e jurisprudência eram unânimes em reconhecer que as medidas de combate à pandemia abalaram gravemente as circunstâncias de muitos negócios. Ademais, a profunda alteração na base do negócio é apenas um dos três requisitos legitimadores da revisão contratual e não autoriza por si só a readaptação, sendo imprescindível que o contratante prejudicado demonstre ainda a presença dos demais pressupostos, disse Harke. É bem verdade que a prova do segundo pressuposto (elemento hipotético) - i.e., a demonstração de que as partes não teriam celebrado o contrato ou o teriam celebrado com outro conteúdo se tivessem antevisto a alteração das circunstâncias - não gerou grandes dificuldades, pois para todos era óbvio que uma catástrofe da dimensão da Covid-19 foi um problema não antevisto por nenhum dos contratantes. Ninguém esperava - pelo menos, antes de 2020 - as medidas adotadas pelo Estado para contenção da pandemia, como a paralização das atividades econômicas, o fechamento de lojas e o distanciamento social. Ou seja, na Alemanha, ao contrário do Brasil, não houve controvérsias acerca da imprevisibilidade da pandemia e de seus efeitos catastróficos. Da mesma forma, era evidente que as partes, se tivessem antevisto a pandemia e seus graves efeitos colaterais, teriam celebrado o contrato com outros termos ou desistido da celebração, disse Harke ecoando a (sensata) opinião generalizada no meio jurídico germânico. Dessa forma, o maior obstáculo na prática tem sido demonstrar a excessiva dificuldade de prestar ou a frustração do fim do contrato. Vale dizer: a prova do elemento normativo, que é o mais difícil, porque só pode ser avaliado caso a caso. E na Alemanha há um ingrediente a mais a ser levado em conta nessa avaliação: o auxílio emergencial fornecido pelo Estado. Com efeito, como noticiado nessa coluna, o governo alemão forneceu milhões de euros em auxílio emergencial para pessoas físicas e empresas de pequeno, médio e grande porte atingidas duramente pelas medidas de combate à pandemia. Esse subsídio era fornecido de forma diferenciada, mas tinha por fim ajudar essas pessoas a suportar o período de perda ou forte redução do faturamento, funcionando como compensação pelo fechamento dos estabelecimentos. Por isso, na análise do caso concreto, o juiz tem observado se houve perda ou redução substancial na renda, i.e., a redução concreta do volume de negócios, mas também se o locatário recebeu - ou poderia ter recebido - auxilio do governo ou eventual seguro pela interrupção das atividades. E a razão é evidente: o locatário que recebeu auxilio financeiro do governo tem maior dificuldade de fazer a prova de que o cumprimento tornou-se excessivamente difícil e, por isso, na prática, o recebimento do auxílio estatal tem impedido a revisão de muitos contratos. Harke ressaltou que cabe ao locatário o ônus de provar detalhadamente sua situação econômica, i. e., a dificuldade econômica provocada pela pandemia, não podendo o judiciário presumir que a pandemia provocou perdas generalizadas, como têm feito alguns julgados aqui no Brasil. Recorde-se, à guisa de exemplo, recente decisão do TJ/SP, de 31/5/2022, que reduziu pela metade o valor do aluguel de posto de gasolina sem prova concreta da perda substancial de faturamento e, o que é mais esdrúxulo, determinou que a redução perdure até que o PIB retorne ao patamar anterior à pandemia (clique aqui). Harke ressaltou, porém, que o contratante não precisa provar estar à beira da ruina financeira (risco da ruina), ou seja, que sua existência está ameaçada, mas deve demonstrar detalhadamente o impacto da pandemia sobre sua renda. O painelista explicou ainda que há consenso doutrinário e jurisprudencial de que o fechamento das lojas não configura impossibilidade, nem cumprimento defeituoso pelo locador ou vício da coisa. E não é defeito da coisa, a uma, porque não foi afetada a adequação (substância) do bem ao uso previsto no contrato e, a duas, porque o locatário não foi impedido de exercer seu direito ao uso por um problema imputável à esfera do locador. Há unanimidade, ainda, de que o risco da pandemia não pode ser atribuído somente ao locatário, pois trata-se de um risco geral da vida que já não se enquadra no risco normal de utilização do bem, suportado pelo locatário. A única controvérsia é saber se o juiz deve reduzir o valor do aluguel pela metade, distribuindo os custos da pandemia equitativamente entre os contratantes, já que o flagelo é um risco geral da vida que atinge a grande base do negócio e que deve, portanto, ser suportado em igual medida por ambas partes ou se a redução deve ser analisada caso a caso. Enquanto vários tribunais de segunda instância entenderam que o aluguel deveria ser reduzido em 50%, a Corte infraconstitucional, Bundesgerichtshof (BGH), em julgado comentado nessa coluna, afirmou que não cabe uma solução padronizada, vale dizer, uma redução fifty-fifty da prestação, pois todas as circunstâncias do caso concreto devem ser ponderadas adequadamente. Resumo da ópera A partir das duas exposições, conclui-se que as comunidades jurídicas brasileira e alemã adotaram posturas diversas perante a pandemia. Enquanto no Brasil houve intensa discussão sobre se os impactos da Covid-19 nos contratos autorizariam ou não a revisão, na Alemanha ninguém duvidou que a peste foi uma catástrofe que alterou profundamente as circunstâncias (base) de vários contratos, dificultando seu cumprimento nos termos inicialmente pactuados e que, por isso, os contratos deveriam ser reajustados sempre que o contratante prejudicado provasse a excessiva dificuldade de prestar e que, se tivesse antevisto a superveniência, teria celebrado o contrato sob outras condições.  A exposição do Prof. Jan Dirk Harke nos convida a refletir acerca da real concepção da teoria da base do negócio, principalmente sobre o papel que a imprevisibilidade dos efeitos (alterações das circunstâncias) do fato superveniente exerce na análise dos pressupostos autorizadores da revisão contratual. Afinal, a imprevisibilidade da alteração das circunstâncias não é irrelevante para a teoria da base do negócio, pois se as partes anteviram a superveniência e distribuíram seu risco no contrato, vale o pactuado. Mas esse elemento não assume papel central como na vetusta teoria da imprevisão, não positivada sequer em seu país de origem, com a nova redação do art. 1.195 do Code Napoleon, introduzida com a reforma de 2016. Ouve-se com frequência, ainda, que o legislador brasileiro conhecia a teoria da base do negócio e não a positivou. Para além de questionável à partir de uma interpretação histórica do material legislativo, o argumento não se sustenta tendo em vista que a lei não é um produto pronto e acabado, mas precisa ser permanentemente aperfeiçoada e atualizada à nova realidade social pela doutrina e jurisprudência. E aqui o direito alemão dá novamente um bom exemplo, pois, quando o legislador fechou as portas, o judiciário abriu, com cautela e prudência, as janelas para a revisão dos contratos, premido pela realidade dos fatos e pela necessidade de adaptar o direito aos novos tempos de instabilidade. A seguir esse raciocínio, a jurisprudência brasileira estaria tolhida de fazer inúmeros avanços realizados no direito patrimonial e existencial nas últimas décadas. Com efeito, a própria concepção de obrigação como processo não poderia ser adotada no direito brasileiro, pois o Código Civil parte claramente da concepção romana estática de crédito-débito. Não poderia haver o reconhecimento da responsabilidade pré-contratual, da responsabilidade pós-contratual, da violação positiva do contrato, nem do venire contra factum proprium, supressio e surrectio, pois o legislador não regulou os suportes fáticos e os efeitos jurídicos de nenhuma dessas figuras. No campo existencial, os efeitos desse pensamento exegético seriam ainda mais catastróficos, pois ficariam sem tutela as múltiplas formas de famílias não previstas na Codex, nem se poderia reconhecer a autonomia do gênero não-binário e das uniões homoafetivas, porque o art. 1.514 CC e próprio art. 226 § 3º da CF1988 partem literalmente da união entre homem e mulher. Dessa forma, não é a falta de previsão legal de um instituto jurídico que vai impedir seu reconhecimento doutrinário e jurisprudencial em pleno séc. 21, como bem o demonstra a robusta metodologia jurídica ocidental. Aguarda-se, assim, com expectativa, como o STJ solucionará os pleitos de revisão dos contratos de locação comercial vez que o valor do aluguel não foi alterado com a pandemia e, portanto, sua redução não se deixa justificar nem pelo art. 317 CC, que exige manifesta desproporção das prestações, nem pelo art. 478 CC, que exige a onerosidade excessiva da prestação e extrema vantagem para a contraparte. A Corte debate-se entre duas teorias deficientes: a da imprevisão (art. 317 CC) e da onerosidade excessiva (art. 478 CC), que não dialogam adequadamente entre si, vez que, enquanto uma manda readaptar, a outra manda extinguir um contrato, cuja prestação ainda pode ser executada, revelando a ineficiência econômica da solução. Uma coisa é certa: o regime revisional dos arts. 317 e 478 não soluciona todas as hipóteses de alterações supervenientes das circunstâncias, como deixam claro os casos de frustração do fim do contrato e de excessiva dificuldade de prestar em decorrência da perda considerável de renda provocada pelas medidas de combate à pandemia. É chegada a hora do STJ fazer uma análise dogmática das diversas teorias revisionistas existentes e corrigir a deficiência legal. E aqui deve-se recordar as sábias palavras da Min. Nancy Andrighi ao afirmar que a boa-fé é a regra cardinal da interpretação do negócio jurídico e que, por meio dela, pode-se fazer uma leitura humanizada da lei e trazer de volta o equilíbrio aos contratos. "As leis e as instituições são como relógios: é preciso de tempos em tempos pará-las, limpá-las, inserir óleo e recolocá-las na hora certa. É tempo de parar e ajustar a doutrina e jurisprudência para que a prestação jurisdicional atenda, com efetividade, os anseios da sociedade.". Sem dúvida!
Atualmente, vários países membros da União Europeia permitem, com base em uma diretiva, que empresas aéreas coletem, sem qualquer motivo concreto, uma gama extensa de dados dos passageiros de voos que chegam ou saem para outros países e transfiram esses dados às autoridades públicas para fins de combate ao terrorismo e outras criminalidades graves. A prática, contudo, viola o direito comunitário, mais precisamente os direitos fundamentais à privacidade e proteção de dados, disse o TJE - Tribunal de Justiça Europeu semana passada, em importante julgado envolvendo questionamento feito pela Bélgica. Segundo a Cour de Justice de L'Union Européene, a coleta, tratamento e transferência de dados de passageiros deve se limitar ao estritamente necessário para a luta contra o terrorismo. A decisão reforça a proteção da privacidade e dos dados pessoais de milhares de pessoas que entram e saem do continente europeu. Para entender o caso A Diretiva (EU) 2016/681, de 27/4/16, chamada Diretiva PNR (Passenger Name Record), prevê o tratamento sistemático - i.e., a coleta, tratamento, armazenamento e transferência - de grande número de dados de passageiros que atravessam as fronteiras externas do bloco, ou seja, dos chamados voos externos, que chegam de ou partem para um país não pertencente à Comunidade Europeia. O objetivo da medida é descobrir, prevenir e reprimir atos terroristas e outros crimes graves, de modo que a utilização dos dados deve ser feita exclusivamente para fins policiais. O Considerando 5 da mencionada Diretiva afirma, nesse sentido, que a medida tem por objetivo garantir a segurança pública, proteger a vida e a segurança das pessoas, bem como criar um regime jurídico aplicável à proteção dos dados constantes dos registros de identificação dos passageiros (Passenger Name Record) no que respeita a seu tratamento pelas autoridades competentes. Assim, à guisa de exemplo, um brasileiro que viaje para a Bélgica tem inúmeros dados pessoais e relativos à viagem coletados pelas autoridades belgas para checagem a fim de identificar eventual envolvimento com práticas criminosas graves. Dentre os dados armazenados incluem-se, v.g., os dados pessoais do passageiro (documentos, nacionalidade, sexo, data de nascimento, etc.), endereço, telefone, e-mail, data da reserva/emissão do bilhete, data(s) da viagem, itinerário completo, todas as informações sobre a forma de pagamento, informação de passageiro frequente, agência e/ou agente de viagens, situação do passageiro (ex: não comparecimento, passageiro de última hora sem reserva, etc.), todas as informações relativas às bagagens e os nomes e dados de eventuais acompanhantes, que com ele viajaram. De acordo com o art. 4º da Diretiva 2016/681, cada Estado-Membro deve criar ou designar uma autoridade competente - denominada UIP - Unidade de Informações de Passageiros - responsável, dentre outras coisas, pela coleta dos dados dos registros de identificação dos passageiros junto às companhias aéreas. Ela também é responsável pelo tratamento, conservação e transferência desses dados às autoridades competentes, dentre as quais a Europol. Cada Estado-Membro, por sua vez, possui uma lista das agentes habilitados a solicitar e/ou receber das UIP os chamados "dados PRN", ou seja, aquela gama de dados acima mencionados, constantes dos registros de identificação dos passageiros. De posse desses dados, os agentes públicos poderão, nos termos do art. 7º, inc. 1 da Diretiva 2016/681, analisar minuciosamente todas as informações e adotar as medidas cabíveis de prevenção, detenção, investigação e repressão de infrações terroristas e da criminalidade grave, elencadas no Anexo II do diploma. Há um verdadeiro intercâmbio de informações entre os Estados-Membros do bloco, como deixa claro o art. 9º da Diretiva 2016/681, podendo, em casos específicos, ocorrer a transferência de dados para países terceiros (art. 11). O art. 13 obriga, porém, os Estados-Membros a assegurar que os passageiros tenham garantidos seu direito à proteção dos dados pessoais, como, v.g., direito de acesso, retificação, apagamento e limitação. O processo belga A Ligue des droits humains, organização belga de direitos humanos, entrou com ação contra o Conseil des Ministres perante o Tribunal Constitucional da Bélgica questionando a legalidade de uma lei, de 25/12/16, que permite a coleta, tratamento, armazenamento e transferência de dados de passageiros. Com essa lei, o legislador belga pretendeu, a um só tempo, transpor para o direito interno a mencionada Diretiva 2016/681 (Diretiva PNR), mas também a Diretiva 2004/82/EU (Diretiva API), que estabelece a obrigação de comunicação de dados dos passageiros pelas empresas aéreas para fins de combate à imigração ilegal e aperfeiçoamento do controle das fronteiras. Em apertada síntese, a liga questionou a forma como a Bélgica implementou a Diretiva Passanger Name Record, pois o citado diploma legal permite a coleta automática de dados sensíveis de qualquer passageiro em trânsito em solo belga, ainda quando não haja qualquer indício objetivo de que essa pessoa represente um risco para a segurança pública. Segundo a organização, a lei belga viola o direito à privacidade e à proteção dos dados pessoais, consagrados nos arts. 7 e 8 da Carta Europeia de Direitos Humanos, bem como fere o principio da proporcionalidade, que serve de parâmetro para qualquer restrição dos direitos e liberdades fundamentais reconhecidos na Carta, nos termos do art. 52, inc. 1, na medida em que obriga as companhias aéreas, ferroviárias, empresas de ônibus, de transporte e viagens a transmitir os dados de seus passageiros, que cruzam as fronteiras nacionais, a um órgão central composto, dentre outros, por representantes da polícia e do serviço secreto belga. Ou seja, a lei belga estendeu internamente o âmbito de incidência da Diretiva 2016/681, ordenando a transferência dos dados não apenas de passageiros de voos externos, ou seja, que chegam ou saem para fora da União Europeia, mas também de passageiros de voos internos no bloco e de usuários de outros meios de transporte. A Ligue des droits humains aduz ainda que a citada lei restringe a liberdade de circulação, uma vez que reintroduz indiretamente os controles fronteiriços através do alargamento do "sistema PNR" aos voos internos e a outros meios de transporte dentro do bloco. Por fim, a organização acusa a lei belga de permitir um tratamento automatizado e sistematizado dos dados sem finalidade clara, já que persegue objetivos outros além do combate ao terrorismo e à criminalidade grave, com o que a lei padeceria da falta de proporcionalidade. Diante disso, em outubro de 2019, o Tribunal Constitucional belga submeteu um questionamento ao TJE que, em suma, afirmou que as regras belgas violam o direito comunitário ao permitir a coleta de dados sem motivo concreto, vale dizer, sem uma ameaça terrorista atual ou iminente a justificar a coleta, o tratamento e o intercâmbio de dados. Trata-se do processo C-817/19, julgado em 21/6/22. Alemanha também pode ser afetada pela decisão do TJE Não apenas a Bélgica tem tido dor de cabeça com a transposição da Diretiva 2016/681. O mesmo problema se põe ainda em países como a Alemanha, que também ampliou as regras sobre coleta de dados a todos os passageiros de voos dentro do bloco, faculdade prevista no art. 2º, inc. 1 da própria Diretiva. Por isso, o Tribunal Administrativo (Verwaltungsgericht) de Wiesbaden e o Tribunal de primeira instância (Amtsgericht) de Colônia submeteram, em 2020, questionamentos sobre a interpretação da Diretiva-PNR ao Tribunal de Luxemburgo. Também aqui, a Corte Europeia deve esclarecer, dentre outras coisas, se a Diretiva é compatível com os direitos jusfundamentais à privacidade e proteção dos dados pessoais[1]. Tratamento de dados apenas em caso de ameaça terrorista Em relação ao caso belga, o Tribunal de Justiça Europeu afirmou - em detalhada e extensa decisão, que aqui pretende-se salientar apenas os pontos principais - que a Diretiva Passenger Name Record, embora represente grave interferência nos direitos fundamentais à privacidade e proteção dos dados pessoais, está, em princípio, em conformidade com a Carta Europeia de Direitos Fundamentais. O TJE afirmou que, de fato, a jurisprudência da Corte é pacífica ao entender que a transferência de dados pessoais a terceiros (ex: autoridade pública) configura grave interferência nos direitos fundamentais à privacidade e proteção dos dados pessoais, consagrados nos arts. 7º e 8º da Carta, independentemente da efetiva utilização das informações transmitidas. O mesmo se diga em relação ao armazenamento e acesso aos dados para fins de utilização por autoridades públicas. E aqui a interferência se dá mesmo quando disso não resulte uma desvantagem para a pessoa afetada. Mas, conquanto implique grave interferência aos mencionados direitos fundamentais, vez que estabelece um sistema de vigilância contínuo e sistemático que envolve o exame automatizado dos dados pessoais de todas as pessoas que utilizam os serviços de transporte aéreo, essa interferência não restringe o conteúdo essencial daqueles direitos, disse a Corte de Luxemburgo. O Tribunal salientou que o sistema de coleta de dados, estabelecido pela Diretiva PNR, tem por fim tutelar o interesse público, vale dizer, a segurança interna dentro da União Europeia através da coleta, tratamento e transferência de informações que permitam a identificação de pessoas suspeitas de envolvimento em infrações terroristas ou alguma forma de criminalidade grave, o que justifica a gravosa intervenção nos direitos fundamentais dos passageiros de transporte aéreo. A despeito de falhas, o sistema tem permitido a identificação de passageiros envolvidos com as práticas terroristas ou as graves criminalidades definidas no Anexo II da Diretiva, contribuindo efetivamente para a segurança no continente, sem descurar, contudo, da salvaguarda dos mencionados direitos fundamentais da pessoa envolvida. Após analisar em pormenor o rol dos dados coletados, a Corte concluiu que o mesmo, em seu conjunto, é suficientemente claro e preciso, da mesma forma que os crimes visados estão bem definidos, delimitando, assim, o alcance da interferência nos direitos fundamentais consagrados nos arts. 7º e 8º da Carta. Dessa forma, a Cour de Justice de L'Union Européene concluiu pela necessidade, adequação e proporcionalidade da medida (tratamento dos dados dos passageiros de voos externos) para o combate a atos terroristas e criminalidade grave, o que justificaria a intervenção nos direitos fundamentais dos passageiros. Porém, os poderes e competências concedidos pela Diretiva devem ser interpretados restritivamente, disse a Corte. Isso significa que a coleta e transmissão dos dados dos passageiros devem se limitar - para atender ao princípio da proporcionalidade - ao absolutamente necessário na luta contra o terrorismo e a criminalidade grave. Assim, devido à forte interferência nos direitos fundamentais dos usuários de transporte aéreo, só podem ser coletadas as informações expressamente indicadas na Diretiva 2016/681. E, além disso, essas informações só podem ser utilizadas para o combate de atos terroristas e as modalidades indicadas de crimes de grave delituosidade (ex: tráfico de pessoas, órgãos e tecidos humanos, de entorpecentes e armas, pedofilia, sequestros, etc.), que estejam em conexão - direta ou indireta - com o transporte de passageiros. Em relação à ampliação, pelos Estados-Membros, do campo de aplicação da Diretiva PNR para abarcar voos internos dentro da União Europeia, como previsto na legislação belga, o TJE reafirmou que a coleta de dados deve se limitar ao "absolutamente necessário" e ser controlável judicialmente. E uma situação absolutamente necessária configura-se apenas diante de uma ameaça terrorista real e atual ou previsível, dizeram os juízes de Luxemburgo. A Corte não ignora, diz a sentença, que as atividades terroristas são capazes de desestabilizar as estruturas constitucionais, políticas, econômicas ou sociais fundamentais de um país e, em particular, ameaçar diretamente a sociedade, a população ou o Estado enquanto tal e que, por isso, os Estados-Membros têm interesse em proteger as funções estatais essenciais e os interesses fundamentais da sociedade através da prevenção e repressão dessas atividades criminosas. Porém, a coleta de dados de passageiros de voos internos no bloco não pode ser feita automaticamente, sem que haja uma ameaça terrorista real, atual ou provável. Em outras palavras: sem uma ameaça atual ou provável da prática de atos de terrorismo, os Estados-Membros não podem coletar os dados de passageiros de voos internos, dentro do bloco. Logo, o sistema (coleta de informações) estabelecido pela Diretiva PNR não pode ser empregado para combater infrações penais comuns, nem para o combate à imigração irregular ou para controle de fronteiras, como previa a lei belga, a qual, portanto, está em desacordo com a Diretiva 2016/681. Por fim, a Corte ressaltou que os dados dos passageiros, sobre os quais não pairam indícios de prática de terrorismo ou grave criminalidade, não podem ficar armazenados por cinco anos, nos termos do art. 12, inc. 1 da Diretiva 2016/681, mas devem ficar salvos apenas pelo prazo de seis meses (art. 12, inc. 2 da citada Diretiva), findo o qual devem ser apagados. Do contrário, considerando a frequência do transporte aéreo e a repetitiva coleta e armazenamento de dados dos viajantes, os agentes públicos teriam à disposição um rico e detalhado banco de dados sobre boa parte da população europeia, que poderia ser objeto de consultas e análises permanentes. Por isso, a Corte afirmou que o armazenamento por um período maior de tempo só se justifica quando houver indícios de risco terrorista ou grave criminalidade. Inteligência artificial não pode decidir sozinha Por fim, a Cour de Justice de L'Union Européene ressaltou a importância de se estabelecer obstáculos mais rígidos para a análise prévia dos "dados PNR", que, como visto, servem para identificar pessoas suspeitas que devem de ser checadas mais de perto antes de sua chegada ou partida em solo europeu. O art. 6º, inc. 2 a) da Diretiva 2016/681 prevê a hipótese de checagem prévia dos passageiros pela autoridade competente (Unidade de Informações de Passageiros) do respectivo Estado-Membro. Essa avaliação se dá em duas fases. Primeiro, é feita uma avaliação de forma automatizada por um programa de inteligência artificial, que compara os dados do passageiro com certos critérios pré-estabelecidos ou com os dados constantes em bases de dados relevantes para a prevenção e repressão de atos terroristas e criminalidade grave, a exemplo de bases de dados relativas a pessoas e/ou objetos procurados ou alvo de alertas. Em seguida, caso haja um resultado positivo (suspeita de envolvimento em ato terrorista ou grave criminalidade), a UIP faz uma verificação individual dos dados do passageiro, por meios não automatizados, para aferir se é necessário ou não a adoção de alguma medida. O TJE foi enfático ao afirmar que, em hipótese alguma, a autoridade competente pode tomar qualquer decisão com base exclusivamente no tratamento automatizado dos dados dos passageiros, pois, devido à falibilidade desse processo, isso pode trazer graves desvantagens à pessoa afetada. A Corte entendeu que não pode haver uma avaliação automatizada dos passageiros por meio de inteligência artificial ("machine learning"), pois, sem intervenção ou controle humano, essas tecnologias podem alterar o processo de avaliação, os critérios de avaliação e a ponderação dos critérios, tornando praticamente impossível identificar a razão pela qual o programa chegou ao resultado obtido, dificultando, assim, a defesa da pessoa suspeita, garantida no art. 47 da Carta Europeia de Direitos Humanos. Ao contrário, ressaltaram os juízes de Luxemburgo: deve-se assegurar que todas as circunstâncias do caso concreto possam ser avaliadas através de controle humano do procedimento a fim de evitar discriminações e violações a direitos fundamentais. Por isso, os Estados-Membros devem prever regras claras e precisas a fim de que os funcionários encarregados possam fazer a checagem dos passageiros de forma correta e adequada, sem discriminações. Por fim, o Tribunal estabeleceu exigências mais rígidas para o manuseio posterior dos dados regularmente coletados. Segundo o julgado, depois da chegada ou partida da pessoa suspeita, seus dados PNR só podem ser acessados e analisados com base em novas circunstâncias e indícios objetivos que indiquem uma ameaça a outros passageiros ou que possam contribuir para o combate ao terrorismo. Essa utilização (tratamento) posterior dos dados deve ser objeto de controle por um tribunal ou órgão equivalente independente. Resumo da ópera A coleta e armazenamento de dados pessoais de passageiros representa uma grave interferência nos direitos fundamentais à privacidade e proteção de dados pessoais. Por isso, só pode ser feita para combate ao terrorismo ou grave criminalidade, limitando-se ao estritamente necessário. Com a decisão do TJE, os países da União Europeia não poderão mais coletar e armazenar - automaticamente, sem qualquer motivo - os dados pessoais das pessoas que transitam pelo continente. A coleta, o tratamento e a transferência para as autoridades locais dos dados de passageiros, feitos até então na Bélgica com fins diversos do permitido na Diretiva 2016/681 (combate ao terrorismo e à criminalidade grave), contraria o direito comunitário, sendo, portanto, inadmissível. _____ 1 EuGH schränkt Befugnisse der EU-Staaten ein: Fluggastdaten dürfen nur bei Terrorgefahr verarbeitet werden. LTO, 21/6/22.
Reacendeu recentemente na Alemanha a discussão em torno da necessária compostura de agentes públicos que ocupam - ou ocuparam - cargo público. Uma das polêmicas envolve Gerhard Schröder, Chanceler da Alemanha no período de 1998 a 2005, que perdeu benefícios decorrentes do cargo devido à amizade pessoal com Wladimir Putin e à atuação lobista em favor de empresas estatais russas. A outra envolve a postura de soldada trans na rede de relacionamento Tinder. Os dois casos distinguem-se em substrato e fundamento, mas têm em comum a discussão acerca da (com)postura exigida pelo cargo a certos agentes do estado, bem como o fato de que ambos os imbróglios devem provavelmente parar no Bundesverfassungsgericht, o Tribunal Constitucional alemão, devido às controvérsias constitucionais que envolvem. O caso Gerhard Schröder Não é de hoje que a proximidade de Gerhard Schröder com o Kremlin vem causando desconforto e sendo objeto de duras críticas na Alemanha1. Pouco depois de deixar a chancelaria em 2005, Schröder passou a ocupar cargos na petrolífera estatal russa Rosneft, na estatal energética Gazprom e no comitê de acionistas da empresa Nord Stream AG, responsável pelo gasoduto submarino Nord Stream 2, que levaria gás da Rússia para a Alemanha através do Mar Báltico se o processo de aprovação da obra não tivesse sido suspenso em fevereiro deste ano. As críticas escalaram com a tensões provocadas pela Guerra na Ucrânia. A resistência do ex-Chanceler em criticar a invasão imperialista e os crimes de guerra praticados sob o comando de Putin2, revela a incompatibilidade das atividades privadas de Schröder com a honorabilidade inerente ao alto cargo público ocupado no passado. Por essa perniciosa relação com o Kremlin, o Parlamento alemão (Bundestag) decidiu, no último dia 19 de maio, cortar alguns privilégios do político de 78 anos3. O requerimento fora protocolado pelos partidos de coalisão (SPD, Grünen e FDP), base de sustentação do governo do atual Kanzler, Olaf Scholz, dentre os quais o Partido Social-Democrata (SPD), do qual fazem parte Schröder e Scholz. Foram cortadas as verbas destinadas à manutenção do escritório, funcionários e demais gastos relacionados ao gabinete, como motoristas e viagens, dispêndios que alcançaram a significativa quantia de 419.000 euros ano passado4. Segundo o jornal alemão Deutsche Welle, a decisão ocorreu no mesmo dia em que o Parlamento Europeu encaminhou resolução pedindo que Schröder seja alvo de sanções caso não rompa seus laços com a Rússia. Outros partidos, porém, exigem ainda a suspensão do pagamento da aposentadoria e de benefícios assistenciais. Mas, no momento, esses direitos continuam mantidos, bem como a proteção pessoal ao antigo chefe de governo, feita pela polícia federal alemã (Bundeskriminalamt). Na justificativa, o Parlamento afirmou que Schröder não exerce mais deveres ou atividades decorrentes do cargo, como a defesa dos interesses do país. Mas não foi mencionada a ligação do ex-Chanceler com Putin e o estado russo, motivo pela qual alguns receiam que a justificativa adotada possa dar margem a que se discuta a constitucionalidade e a real razão da medida5. Há, porém, consenso no Bundestag sobre a necessidade de se reformular os privilégios concedidos a antigos chanceleres e presidentes. É relativamente unânime, da mesma forma, a ideia de que a concessão de tais benefícios deve estar condicionada à continuidade do exercício de deveres decorrentes do cargo e não vinculada ao mero status de antigo dirigente da nação. Em regra, pela lei alemã, chanceler e presidente têm direito a pensão vitalícia, benefícios assistenciais e proteção pessoal, mas é o Parlamento que define as verbas destinadas à manutenção do escritório, funcionários e demais despesas, custeadas com os impostos pagos pelos contribuintes. Por isso, apenas as verbas referentes ao gabinete foram suspensas.  A decisão do Parlamento foi facilitada pelo fato de que o Schröder não conta no momento com nenhum funcionário em seu escritório, vez que todos os assessores pediram demissão após a escalada dos conflitos na Ucrânia. Segundo os jornais, depois de perder parte de seus privilégios, Schröder abriu mão do cargo no conselho da Rosnef e contratou um constitucionalista para examinar a legalidade da decisão do Parlamento6. Mas seus problemas estão longe de acabar, pois ele ainda ocupa postos em estatais russas, a cúpula de seu partido pede sua expulsão e o Parlamento Europeu quer a inclusão de seu nome na lista de sanções aos amigos de Putin. Como sintetizou ironicamente Moritz Körner, membro do diretório nacional do SPD, Schröder não pertence mais ao crème de la crème da política interna alemã, mas ao "crème de la Kremlin"7. Diante disso, se não houver nenhuma reviravolta política, o caso tem grande chance de ser submetido à apreciação do Bundesverfassungsgericht em Karlsruhe, da mesma forma que o caso da soldada trans Anastasia Biefang. O caso Anastasia Biefang O caso envolve uma alta oficial trans do Exército, Anastasia Biefang, conhecida por seu engajamento em prol da diversidade sexual. O imbróglio começou, porque a soldada apresentava-se no Tinder com seu verdadeiro nome e com uma foto sentada, na qual era possível reconhecer perfeitamente seu rosto. Abaixo da imagem do perfil constava: "Espontâneo, prazeroso, trans*, relação aberta à procura de sexo. Todos os gêneros bem-vindos". O perfil não fazia, porém, qualquer referência às Forças Armadas (Bundeswehr). O fato, contudo, chegou ao conhecimento de seu superior hierárquico, que lhe impôs a mais branda medida disciplinar: simples advertência. Inconformada, a oficial de 47 anos acionou a jurisdição administrativa, que em primeira instância entendeu que ela, com seu perfil no Tinder, violara o chamado außerdienstliche Wohlverhaltenspflicht, um dever de boa conduta fora do serviço, imposto pelo § 17, inc. 2 da Lei dos Soldados (Soldatengesetz). Além disso, ela abalava consideravelmente a reputação das Forças Armadas ao despertar a impressão de que reduzia a si própria - e seus parceiros - a mero objeto sexual, afirmou o Truppendienstgericht, tribunal militar de primeira instância. O Tribunal afirmou que, segundo o mencionado § 17 II da lei de regência, um soldado(a) não pode, através de sua conduta fora do serviço, ou seja, nos períodos de folga, manchar a imagem das Forças Armadas e/ou o respeito e confiança exigidos de sua posição. Em sua esfera privada, tutelada jusfundamentalmente, a comandante pode até levar uma vida sexual promíscua, disse o Truppendienstgericht, mas a formulação de seu perfil lança sérias dúvidas quanto à sua integridade moral e gera efeitos negativos sobre a instituição. Em grau de recurso, o caso subiu à câmara militar do Tribunal Federal Administrativo - Bundesverwaltungsgericht (BVerwG). Trata-se do processo BVerwG 2 WRB 2.21, julgado semana passada, em 25.5.20228. Em apertada síntese, o BVerwG considerou a decisão acertada, mas questionável em seus fundamentos. A Corte divergiu, inicialmente, da alegação de dano à reputação institucional, pois as manifestações privadas da comandante, emitidas em seu perfil na rede de relacionamento, não seriam imputadas pela opinião pública ao Exército, enquanto instituição. Além disso, o Truppengericht não teria valorado suficientemente o significado dos direitos fundamentais da oficial trans. Segundo o BVerwG, o direito geral de personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht), consagrado no art. 1, inc. 1 c/c art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental alemã, abrange o direito à autodeterminação sexual que, por sua vez, confere ao indivíduo o poder de determinar livremente suas relações sexuais e, inclusive, decidir-se por um comportamento sexual promíscuo. E a tutela desse direito fundamental estende-se não apenas à esfera íntima e privada, mas inclui também o direito de procurar na esfera social, inclusive na internet, contatos com pessoas que partilhem os mesmos anseios. Nada obstante, disse o Tribunal, a decisão a quo mostra-se correta em seu resultado, pois o dever de comportamento exige que uma soldada, que ocupa a posição particularmente proeminente de comandante de batalhão, com responsabilidade pessoal por cerca de 1.000 subordinados, leve em conta sua posição profissional na escolha das palavras e imagens utilizadas na internet. Ela deve, portanto, evitar formulações que despertem a falsa impressão de uma vida sexual desregrada e/ou de uma falta de integridade de carácter, afirmou a Corte. As expressões constantes do perfil, especialmente a formulação "relação aberta em busca de sexo. Todos os gêneros bem-vindos", levantam dúvidas - mesmo sob o ponto de vista de um observador razoável - quanto à sua integridade moral, razão pela qual tal menção pode ser punível com advertência, concluiu o Bundesverwaltungsgericht.  As críticas à decisão foram imediatas. A envolvida, indignada com o resultado, lamentou que agora todo soldado(a) deva submeter seus perfis em redes sociais à aprovação do superior hierárquico9. O administrativista Patrick Heinemann acha curioso que, conquanto a decisão se aplique a todos, justo uma oficial trans, conhecida por seu engajamento na causa, tenha recebido medida disciplinar por procurar aventuras sexuais em portal fechado, acessível apenas por usuários cadastrados, já que não se tem notícia de que soldados e soldadas com orientação cis-heteronormativa tenham sido apenados por motivos semelhantes10. Segundo ele, o suporte fático da infração disciplinar decorrente da violação culposa dos deveres do ofício ou de conduta adotados fora do serviço, é muito aberto e, no caso concreto, fora preenchido com ideias de moralidade em desuso. Além disso, a decisão não se deixa harmonizar com a atual orientação das Forças Armadas de tratar os soldados de forma mais humanizada ao considera-los como "cidadãos de uniforme" (Staatsbürger in Uniform), integrados na sociedade e para quem os direitos fundamentais valem, em principio, da mesma forma que para os demais.   Em última análise, concluiu, a decisão do Tribunal Federal Administrativo proíbe que soldados e soldadas, em pleno século 21, possam procurar contatos sexuais nas plataformas, mesmo que em seus perfis falte qualquer referência às Forças Armadas11. E o efeito inibidor (chilling effect) do julgado, segundo Heinemann, foi imediato: inúmeros soldados e soldadas começaram a anonimizar seus perfis, apagando postagens e quaisquer referências à instituição por temor do denuncismo e de punições disciplinares12. Cenas dos próximos capítulos Como se percebe, os casos de Gerhard Schröder e de Anastasia Biefang trazem à tona a antiga discussão em torno da hombridade que os cargos públicos exigem e impõem a seus ocupantes. A situação da comandante trans revela-se mais delicada, pois envolve a restrição de um direito fundamental nuclear do indivíduo, qual seja, o direito à autodeterminação sexual, sendo difícil, no caso concreto, perante um direito de personalidade tão relevante, delimitar de até onde vai o dever de portar-se com hombridade fora do serviço, em sua esfera privada. Já o caso de Gerhard Schröder, conquanto igualmente espinhoso, traz, pelo menos, uma certeza: chefes de governo e de estado precisam se portar com integridade dentro e fora do cargo, lógica que se aplica, evidentemente, aos demais poderes. É o preço que se paga por ocupar os postos mais altos da nação. O resultado de ambos aguarda o desenrolar dos acontecimentos, as cenas dos próximos capítulos. Ótima novela a ser seguida, com atenção, em terras tupiniquins, onde, infelizmente, constata-se a falta compostura e moralidade dentro e fora do cargo. O próprio conceito de moralidade, imposto aos agentes públicos pelo art. 37 CF1988, carece até hoje de densidade jurídica13, tamanha a dificuldade em lhe dar concretude prática, principalmente em casos envolvendo o alto escalão do estado. Motivos suficientes para acompanhar de perto a discussão no direito alemão. __________ 1 Schluss mit den Privilegien: Bundestag will Ex-Kanzler Gerhard Schröder den Geldhahn zudrehen. Businnes Insider Deutschland, 18/5/2022. 2 O primeiro processo envolvendo crime de guerra na invasão da Ucrânia foi sentenciado dia 23/5/2022, em Kiev, com a condenação de um soldado russo a prisão perpétua por ter disparado de um tanque contra um civil desarmado, de 62 anos de idade, que veio a óbito. Veja-se: Russe im ersten Kriegsverbrecherprozess verurteilt. LTO, 23/5/2022. 3 Schröder verliert Privilegien. Tagesschau, 19/5/2022. 4 Schröder verliert Privilegien. Tagesschau, 19/5/2022. 5 Haushaltsausschuss beschließt Abwicklung des Büros: Bundestag entzieht Schröder Sonderrechte. LTO, 19/5/2022. 6 Confira-se: Gerhard Schröder vai deixar o cargo em petrolífera russa. DW, 20/5/2002 e Schröder lässt offenbar Streichung seiner Privilegien prüfen. Zeit Online, 20/5/2022. 7 "Auf Sanktionsliste der Putin-Profiteure". Tagesschau, 27/4/2022. 8 Pressemitteilung Nr. 34/2022 vom 25.5.2022. 9 Soldatin muss zurückhaltender tindern. LTO, 25.5.2022. 10 BVwerG verlangt von Kommandeurin Zurückhaltung beim Tindern: Prüde und gefährlich. LTO, 26/5/2022, p. 2. 11 HEINEMANN, Patrick. BVwerG verlangt von Kommandeurin Zurückhaltung beim Tindern: Prüde und gefährlich. LTO, 26/5/2022, p. 3. 12 BVwerG verlangt von Kommandeurin Zurückhaltung beim Tindern: Prüde und gefährlich. LTO, 26/5/2022, p. 2. 13 Acerca da dificuldade de concretização do princípio da moralidade, confira-se, dentre outros: FERREIRA MENDES, Gilmar; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 860.
Em tempos de profundas e rápidas transformações como o nosso, em que a vida social - e profissional - tem se passado cada vez mais no mundo virtual, tem ganhado crescente relevância a questão do bloqueio ou cancelamento de contas de usuários em redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram. Estima-se que cerca de 5 bilhões de pessoas em todo o mundo usam regularmente a internet, o que corresponde a 63% da população mundial, segundo o estudo Digital 2022: Global Overview Report, publicado pelo site Datareportal1. No Brasil, são mais de 150 milhões de usuários, representando mais de 70% da população2 e na Alemanha, a porcentagem sobe para 94%, segundo dados estatísticos do governo3. As grandes plataformas digitais são os principais meios de comunicação da sociedade atualmente. Elas são o locus público por excelência, o grande fórum global onde se dá o intercâmbio e o embate de ideias, e onde formam-se opiniões. O apagamento de postagens e, pior, o bloqueio definitivo de perfis representam um silenciamento e um banimento social. Mesmo o bloqueio temporário, quando indevido, implica não apenas perda de seguidores e contatos, mas, por vezes, perdas de contratos e oportunidades de negócio.  Dessa forma, uma das grandes discussões que se coloca é saber em que medida as grandes plataformas podem suspender ou banir usuários legitimamente desse grande fórum social de comunicação, restringindo diretamente seu direito fundamental de comunicação e liberdade de expressão, garantido tanto no art. 5º IV CF/1988 quanto no art. 5 da Lei Fundamental alemã (Grundgesetz). Sob o ponto de estrutural, surge entre os usuários e as empresas gestoras de plataformas de comunicação um contrato de uso (Nutzungsvertrag) por meio do qual a empresa disponibiliza o acesso e uso da plataforma ao usuário, recebendo, como contraprestação pelo serviço prestado, uma autorização para utilizar gratuitamente os dados pessoais do usuário, isto é, uma licença gratuita para o uso dos mencionados dados. Trata-se de contrato atípico, semelhante à prestação de serviços, razão pela qual no direito comparado muitos autores falam em "serviço em troca de dados" (Dienst gegen Daten) para ressaltar o caráter sinalagmático desse contrato bilateral e oneroso estabelecido entre as partes. Afinal, o usuário só acessa a plataforma se permitir a coleta, o armazenamento, processamento e, sobretudo, a comercialização de seus dados pessoais4. Além da cessão gratuita de seus dados pessoais, o usuário é obrigado ainda a observar os termos de uso (rectius: condições gerais do contrato) e as diretrizes da comunidade, que estabelecem os padrões de comportamento a serem por todos observados, como, por exemplo, a proibição de postagens de conteúdos discriminatórios, intimidatórios, violentos, ilícitos, falsos (fake news), odiosos (hate speech), etc. Em caso de desrespeito a essas regras, plataformas como o Facebook, controladora do Instagram e WhatsApp, reservam-se o direito de bloquear ou banir a conta do usuário transgressor, o que pode significar a "morte digital" do individuo.  A jurisprudência alemã sobre bloqueio e exclusão de contas Na Alemanha, a jurisprudência dos tribunais inferiores tem se posicionado no sentido de que as empresas de tecnologia podem apagar postagens, suspender ou até excluir a conta de usuários que violam o termos de uso e/ou os standards de comportamento da comunidade. Mas, para isso, é necessário um motivo justo e que se conceda oportunidade de defesa ao usuário, prévia ou a posteriori. Quando a plataforma apaga postagens ou bloqueia o perfil indevidamente, o usuário tem o direito (rectius: a pretensão) de reativar o post ou a conta, sem prejuízo do ressarcimento de eventuais perdas e danos. O Tribunal de Justiça - Oberlandesgericht (OLG) - da comarca de Rostock, no processo Az. 2 U 19/20, julgado em 18/3/2021, afirmou que o Instagram pode bloquear a conta para evitar um "abuso do perfil" (Missbrauch des Profils) pelo usuário, o que ocorre quando este viola os termos de uso ou as diretrizes da comunidade, por exemplo, com postagens ofensivas ou injuriosas a outro usuário. Nesse caso, a postagem pode ser apagada e o perfil do ofensor bloqueado pela plataforma em razão da violação do direito geral de personalidade da vítima, disse a Corte. No mesmo sentido foi a decisão de primeiro grau do Landgericht (LG) Koblenz, de 21/4/2020, no processo Az. 9 O 239/18, na qual o juíz reconheceu o direito das redes sociais de apagar conteúdo ou bloquear conta de quem faz postagens desnecessariamente provocativas ou ameaçadoras a outros usuários, pois isso tem um efeito negativo sobre o intercâmbio de ideias e sobre o modelo de negócio como um todo. A rede social deve, porém, observar o mandamento da proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitsgebot) e adotar medidas sancionatórias condizentes com a gravidade da violação praticada pelo usuário, as quais podem variar desde o apagamento (total ou parcial) do conteúdo compartilhado até o bloqueio, temporário ou definitivo, do perfil. Em caso de ofensas leves aos padrões de conduta da plataforma, sobretudo quando não reincidentes, alguns julgados têm entendido que a empresa gestora da plataforma deve primeiro alertar o titular do perfil a fim de que ele corrija seu comportamento e passe a utilizar sua conta de acordo com o standard imposto pela rede social5. Em caso de reincidência e/ou infração grave, pode a plataforma bloquear o perfil e, como última medida, excluir definitivamente a conta, banindo o infrator da rede. Vários julgados têm permitido a bloqueio imediato em casos excepcionalmente graves, como a publicação de manifesto discurso de ódio ou o envio de material pornográfico de crianças e adolescente. Caso semelhante foi apreciado recentemente, em 2/2/2022, pelo Landgericht (LG) München I no processo Az. 42 O 4307/19, no qual um usuário enviou a um amigo, através do Messenger, nove fotos identificadas pelo software do Facebook (PhotoDNA) como pornografia infantil, razão pela qual seu perfil foi imediatamente bloqueado. Ele entrou com ação judicial pedindo a liberação da conta ao argumento de não ter sido ouvido previamente pelo Facebook e de estar sendo impedido de se comunicar com familiares e amigos ao arrepio de seu direito fundamental à liberdade de expressão. O tribunal de primeira instância concluiu pela legitimidade do bloqueio sem prévia ouvida do usuário. A sentença salientou que o Facebook não tem apenas o direito, mas o dever de apagar ou bloquear postagens com conteúdos ilegais, puníveis criminalmente e que o mero (re)envio de pornografia infantil, mesmo quando recebida de terceiro, não está protegido pelo âmbito normativo da liberdade de expressão. Nesse caso, frisou o LG München I, restou demonstrada a existência de um motivo extraordinário (außerordentlicher Grund) a legitimar o bloqueio imediato da conta e a consequente resolução contratual. Em outro julgado, o Oberlandsgericht (OLG) de Dresden também entendeu que o discurso de ódio claro e manifesto e/ou a formação de "organizações de ódio" (Hassorganisationen) na plataforma configuram justa causa para o bloqueio extraordinário do perfil. Trata-se do processo Az. 4 U 2890/19, julgado em 16/6/2020. No caso, a Corte de Apelação afirmou que as redes sociais são livres, em princípio, para prever em seus termos de uso a exclusão de comunidades disseminadoras de discursos de ódio e seus apoiadores, embora seja, em princípio, necessário ponderar no caso concreto o direito fundamental à liberdade de expressão do usuário e os efeitos de sua permanente exclusão.  O Judiciário alemão também já se manifestou acerca dos limites temporais do bloqueio da conta, ou seja, por quanto tempo o usuário pode ficar legitimamente impedido de acessar seu perfil. Em caso de suspeita de ofensa aos termos de uso ou aos padrões da comunidade, alguns julgados entendem que a plataforma pode bloquear o acesso à conta até que os fatos sejam esclarecidos. Foi o que decidiu o juiz de primeiro grau da comarca de Frankenthal no processo LG Frankenthalt Az. 6 O 23/20, julgado em 8/9/2020, em caso envolvendo o Facebook. Esclarecidos, porém, os fatos e a legitimidade da postagem, a plataforma deve liberar imediatamente o acesso do titular à conta. Sem justo motivo, as plataformas de comunicação não podem, por óbvio, excluir conteúdos ou perfis, ainda quando a empresa se reserve tal direito nas condições gerais do contrato de uso, afirmou o juízo de primeira instância - Amtsgericht (AG)6 - de Saarlouis em decisão proferida em 1/4/2020 no processo Az. 25 C 1233/19. Nesse caso, tais disposições são nulas, pois colocam os usuários em situação de extrema desvantagem. O bloqueio injustificado configura descumprimento contratual por parte da plataforma, surgindo para o prejudicado uma pretensão à liberação imediata da conta, afirmou o Tribunal de Justiça de Colônia no julgado OLG Köln Az. 15 W 70/18, de 9/5/2019. A próxima coluna comentará a paradigmática decisão da Corte infraconstituicional alemã, o Bundesgerichtshof (BGH), proferida em caso envolvendo discurso de ódio na plataforma do Facebook, no qual foi fixada a tese de que a empresa deve ouvir o usuário antes de bloquear o perfil. Spoiler: essa foi só a primeira, não a última decisão fundamental (Grundsatzurteil) acerca da legitimidade das sanções privadas impostas pelas grandes plataformas de comunicação. Muitas questões ainda estão em aberto.  Resumo (parcial) da ópera O tema do bloqueio de conteúdo e/ou perfil tem aparente simplicidade, mas, em essência, toca questões nucleares do Direito Privado e do Direito Constitucional7. Basta ter em mente que, a despeito da relação contratual eminentemente privada estabelecida entre as partes, o contrato toca bens de status jusfundamentais: de um lado, a liberdade de expressão e os dados pessoais do usuário, objeto da contraprestação devida à plataforma, e, de outro, a liberdade de empresa (livre iniciativa) da plataforma de estabelecer as diretrizes gerais a serem observadas por todos os usuários. Isso significa que nessa relação há de se ponderar, no caso concreto, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais eventualmente em colisão.  Além disso, a discussão acerca das sanções impostas nas redes sociais ainda levanta outro problema sensível, qual seja, o de legitimidade, pois muitos questionam se - e até que ponto - deve-se conceder tamanho poder às big techs para controlar e restringir a liberdade de expressão no fórum público global do debate de ideias. O receio é que as grandes plataformas, que ocupam posições monopolísticas e são movidas por interesses econômicos e/ou políticos, acabem abusando desse poder de censura privada e silenciando discursos contrários a seus interesses, como os relacionados à regulação de conteúdos, controle dos termos de uso, instituição de tributação de serviços digitais, etc.8 Ainda quando se confira às big techs o dever de controlar e combater determinados conteúdos postados em suas plataformas, não se pode deixar de avaliar a legalidade das regras por elas impostas, verificando principalmente se tais regras não colocam os usuários em desvantagem exagerada e/ou não restringem demasiadamente direitos fundamentais caros à sociedade democrática. O ideal é que o Legislador intervenha fixando uma estrutura normativa, sujeita à apreciação do Poder Judiciário, que, na Alemanha, deve-se dizer, não tem se intimidado em controlar a legalidade das regras ditadas pelos grandes conglomerados digitais que, não raras vezes, tentam substituir o direito posto pelo direito imposto em prol de seus exclusivos interesses. __________ 1 Disponível aqui. Acesso: 1/3/2022. 2 Veja matéria no jornal Estado de Minas, de 28/9/2021. Disponível aqui. Acesso: 15/5/2022. 3 Confira no site Destatis. Acesso: 15/5/2022. 4 Confira-se a respeito o excelente artigo: METZGER, Axel. Dienst gegen Daten: Ein synallagmatischer Vertrag. AcP 216 (2016), p. 817-865. 5 HOFMANN, Ruben A. Gesperrte Social-Media-Accounts: Nicht ohne Grund. Legal Tribune Online, 20(7/2021. 6 Segundo a lei processual alemã, Amtsgericht e Landgericht são juízos de primeira instância, os quais se diferenciam em relação à competência quanto à matéria e ao valor da causa. 7 Confira-se a respeito o instigante artigo de Marcelo Schenk Duque e Graziela Harff, no qual os autores analisam o banimento de Donald Trump do Twitter em 2021 após a invasão do Capitólio. Os autores chamam atenção para o eventual caráter institucional (e não mais eminentemente privado) da conta do ex-Presidente norte-americano, que utilizava o canal para divulgar informações governamentais, peculiaridade que não se põem nos casos analisados no presente artigo, os quais envolvem apenas pessoas privadas. Confira-se: Bloqueio permanente do Twitter, a pena capital no mundo digital. Conjur, 17/1/2021. 8 SCHENK DUQUE, Marcelo; HARFF, Graziela. Op. cit., p. 4.
No dia 25/4/2022, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) realizou um Webinar para debater o espinhoso tema da responsabilidade civil do árbitro. O evento foi organizado pelo Fórum Permanente de Direito Comparado, que esta articulista tem o prazer de coordenar juntamente com o Des. Eduardo Gusmão com o objetivo de fomentar o diálogo comparado acerca de temas importantes e atuais. O evento contou com a ilustre participação da Profa. Dra. Mafalda Miranda Barbosa, Professora Auxiliar da milenar Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, da arbitralista Ana Carolina Weber e do Prof. Dr. Thiago Rodovalho (PUC-Campinas), que lançou instigantes provocações no debate. O ponto alto do evento foi a visão técnica apresentada pela conceituada Professora portuguesa acerca da relação de base existente entre os árbitros e as partes, da qual surgem deveres, cuja violação dá ensejo, a seu ver, à responsabilidade contratual do árbitro, leitura que destoa do entendimento majoritário na doutrina arbitralista nacional, que prega a imunidade (quase) absoluta do árbitro. Mafalda Miranda Barbosa explicou que o debate acerca da eventual responsabilidade civil do árbitro é marcado por duas posições extremadas: a absoluta imunidade e a absoluta responsabilidade, embora não se trate aqui de uma responsabilidade de cunho objetivo, mas de uma responsabilidade contratual especial1. Dentre os principais argumentos a favor da imunidade dos árbitros, tem papel central a comparação funcional com os juízes e suas garantias de independência, essenciais ao desempenho da função jurisdicional. Segundo essa corrente, o interesse público na realização da justiça seria incompatível com eventuais pressões que as partes possam exercer durante a arbitragem com base na ameaça de responsabilização2. Autores há, como António Menezes Cordeiro, que entendem que o árbitro, "sabendo-se responsabilizável", poderia tender a proferir decisões mais neutras ou pender para a parte mais litigante, temendo responsabilizações3. Por outro lado, há outros que rejeitam a total equiparação do árbitro ao juiz4, sustentando - não sem boa dose de razão - que a imunidade encorajaria a "falta de cuidado" e geraria uma situação de total imunidade, criando uma casta privilegiada de atores (rectius: contratantes) irresponsáveis, i.e., insuscetíveis de responsabilização. A tese legalista Como explicou a renomada jurista, a tese legalista assenta na ideia de que o árbitro, tal como o juiz, exerce uma função jurisdicional e, por isso, só poderia, quando muito, ser responsabilizado em casos de dolo ou culpa grave. Atente-se que no Brasil, parte considerável da doutrina só admite responsabilização em caso de dolo, i.e., diante da prova cabal da intenção do árbitro agir conscientemente no intuito de prejudicar uma das partes, embora a dogmática civilista há muito equipare a culpa grave ao dolo.  Essa tese busca amparo legal no art. 9º/4 da lei de arbitragem portuguesa - lei 63/2011, Lei de Arbitragem Voluntária (LVA) - segundo o qual "os árbitros não podem ser responsabilizados por danos decorrentes das decisões por eles proferidas, salvo nos casos em que os magistrados judiciais o possam ser". O dispositivo trata da específica hipótese da responsabilidade por decisões errôneas, mas, como explicou a palestrante, existem diversas outras situações de responsabilidade civil do árbitro, algumas delas elencadas na própria lei, como a responsabilidade do árbitro que, tendo aceito o encargo, se escusar injustificadamente ao exercício da função (art. 12/3) ou que não se desincumbir, em tempo razoável, de suas funções (art. 15/2) ou que obstar injustificadamente que a decisão seja proferida dentro do prazo fixado (art. 43/4). Segundo Mafalda Miranda Barbosa, a tese legalista dá ênfase à dimensão funcional (jurisdicional) dos árbitros, deixando em segundo plano o ato de autonomia privada das partes da escolha dos árbitros, que, ao aceitar o encargo, celebram com as partes um contrato de árbitro, que toma a forma de um contrato oneroso de prestação de serviço. A contratualidade da situação jurídica subjacente à arbitragem impede, por si só, que se enquadre a responsabilidade do árbitro como uma espécie de responsabilidade extracontratual, fundada entre nós no ato ilícito, vale dizer, na violação de direitos absolutos, válidos erga omnes (art. 186 CC2002), em contraposição à responsabilidade contratual, cuja causa reside na violação culposa de deveres obrigacionais, eminentemente relativos, como os deveres de prestação (obrigações) e os deveres laterais de conduta, impostos pelo princípio da boa-fé objetiva, como recentemente sintetizou didaticamente o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 1.303.374/ES, julgado em 30/11/2021 sob a relatoria do e. Min. Luis Felipe Salomão. Não apenas os contratos que envolvem a arbitragem depõem a favor da responsabilidade contratual do árbitro, mas ainda o fato de que não se poder afirmar que os árbitros - sobretudo nas arbitragens voluntárias - desempenham uma função jurisdicional absolutamente equivalente à dos juízes estatais, disse a Professora de Coimbra. A tese contratualista A tese contratualista parte do fato de que a espinha dorsal do fenômeno arbitral é a autonomia privada das partes que, de comum acordo, decidem afastar o Poder Judiciário e se submeter a um tribunal arbitral por elas constituído. Para tanto, as partes celebram um negócio jurídico (convenção de arbitragem) submetendo um litígio - presente (compromisso arbitral) ou futuro (cláusula compromissória) - à decisão de árbitros que, por sua vez, aceitam a incumbência de solucionar o conflito. Surge, então, entre as partes e os árbitros um contrato de árbitro ou Schiedsrichtervertrag, no vernáculo alemão. Dessa forma, a autonomia privada das partes é a fonte de legitimação direta do poder dos árbitros. Em outras palavras: é o contrato que legitima a arbitragem, sobretudo a voluntária. Mesmo a arbitragem institucionalizada funda-se no contrato, pois requer a celebração de um contrato de colaboração arbitral, concluído entre o árbitro e o centro de arbitragem, e de um contrato de organização de arbitragem, celebrado entre as partes e a instituição, explica Mafalda Miranda Barbosa. E conquanto na arbitragem institucionalizada não haja um contrato entre o árbitro e as partes, a pujante dogmática obrigacional continental justifica a responsabilidade contratual do árbitro em face das partes com base na eficácia protetora a terceiros irradiante do contrato de colaboração arbitral5. A figura do contrato com eficácia de proteção em favor de terceiros (Vertrag mit Schutzwirkung zugunsten Dritter), vale recordar, surgiu no direito alemão à partir da ideia de que o contrato - rectius: a relação obrigacional (Schuldverhältnis) - pode gerar uma eficácia protetora a terceiros que se encontram especialmente próximos ao campo normativo do negócio jurídico e podem ser afetados pelo cumprimento da prestação, o que justifica a concessão de uma pretensão ressarcitória ao lesado face ao devedor, mesmo quando aquele não tenha contra este nenhuma pretensão contratual direta. De qualquer forma, para o que aqui interessa, deve-se reter que a vontade das partes desempenha papel fulcral na medida em que fundamenta e justifica o próprio instituto da arbitragem enquanto instrumento alternativo de resolução de conflitos. Estruturando-se a relação dos árbitros com as partes sobre um contrato, a responsabilidade civil do árbitro se põe necessariamente no quadro da responsabilidade contratual, afirmou a brilhante jurista portuguesa.  Os contratos celebrados na arbitragem A painelista explicou que surgem na arbitragem diversos contratos. De início, destaca-se a convenção de arbitragem, negócio jurídico por meio do qual as partes submetem aos árbitros a decisão de um litígio. Essa convenção, porém, não basta, sendo imprescindível para a constituição de um tribunal arbitral que sejam escolhidos árbitros e que estes aceitem a incumbência. A doutrina fala, então, em contrato de investidura ou, como prefere a Professora de Coimbra, contrato de árbitro, no qual se definem diversos elementos, como a missão, a retribuição, etc. E mesmo a arbitragem institucionalizada, a qual funciona em centros com tribunais permanentes e árbitros predeterminados, estrutura-se, segundo a autora, com base na figura do negócio jurídico (seja o contrato de colaboração arbitral, seja o contrato de organização de arbitragem), de modo que, a despeito das particularidades desses contratos, não pairam dúvidas: a arbitragem é marcada pela contratualidade. A responsabilidade contratual do árbitro A partir do momento em que se considera que entre os árbitros e as partes existe um contrato de prestação de serviços de arbitragem, conclui-se, necessariamente, que o descumprimento de deveres reconduzíveis ao contrato gera a responsabilidade contratual do árbitro. Segundo Mafalda Miranda Barbosa, reina relativo consenso no direito comparado de que o árbitro assume como obrigação principal o dever de proferir uma decisão justa ao caso que lhe foi submetido. Ele não se obriga a decidir o caso em um determinado sentido, nem conforme aos interesses da parte que o indicou, menos ainda de defender tais interesses, pois não assume uma relação de mandato ou de representação, própria dos advogados. Há também consenso de que o árbitro só responde pelas decisões errôneas que profira em caso de dolo ou culpa grave, pois em relação à responsabilização pelo conteúdo das decisões deve-se aplicar o mesmo regime jurídico dos juízes. Segundo a expositora, no ordenamento jurídico português o árbitro só é responsável pelos danos decorrentes de decisões manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou, ainda, injustificadas por erro grosseiro de fato ou de direito. Ou seja: não basta qualquer erro, é necessário a presença de um erro qualificado. Da mesma forma, não basta que a decisão seja desconforme com a Constituição ou com o texto da lei, nem que apresente uma interpretação divergente, mas plausível do direito positivo. É necessário que a inconstitucionalidade ou a ilegalidade da decisão seja manifesta e o erro, grosseiro. A doutrina lusitana diverge, porém, em relação à natureza jurídica da responsabilidade pelo (mau) conteúdo da decisão, pois alguns autores entendem que a responsabilidade do árbitro, enquanto julgador, tem natureza extracontratual, à semelhança da responsabilidade dos juízes, embora ele responda, enquanto prestador de serviços de arbitragem, segundo o regime da responsabilidade contratual6. A responsabilidade civil do árbitro se submeteria, segundo essa corrente, a uma duplicidade de regimes de responsabilidade, entendimento do qual a autora discorda por entender que a responsabilidade do árbitro tem sempre natureza contratual. Mas o árbitro não responde apenas pelo conteúdo de sua decisão. No quadro da relação contratual que entabula, ele assume uma prestação de serviço e, portanto, uma gama de deveres relacionados à arbitragem. Ele não pode, por exemplo, escusar-se de cumprir a função que aceitou, salvo causa superveniente que o impossibilite de realizar a arbitragem ou se, não tendo sido fixados os honorários na convenção de arbitragem, não for concluído acordo escrito acerca da remuneração antes da designação. O art. 12/3 da LAV prevê a hipótese de responsabilidade do árbitro que, após aceitar a designação, se escusa injustificadamente de exercer o encargo, responsabilidade que tem clara natureza contratual, como bem pontua Mafalda Miranda Barbosa, vez que o que está em jogo é o descumprimento da prestação a que se obrigou. O mesmo diga-se em relação à responsabilidade do árbitro pela demora injustificada em jugar o litígio. Ao assumir uma arbitragem, diz a painelista, o árbitro se compromete a exercer a função com elevada diligência, o que implica não só na qualidade do serviço, mas também na temporização adequada. Essa hipótese está prevista no art. 15/2 da lei portuguesa, mas, na falta de previsão legal, poderia ser exigida com base no princípio da boa-fé objetiva, afirmou a Professora da Universidade de Coimbra. Grande relevância prática possui ainda o dever de revelação dos árbitros, consagrado tanto no art. 13 da lei portuguesa, como no art. 14 § 1º da lei brasileira de arbitragem7. O mencionado art. 13/1 diz que quem for convidado a exercer funções de árbitro deve revelar todas as circunstâncias que suscitar fundadas dúvidas sobre sua imparcialidade e independência. E o inciso 2 da norma complementa estabelecendo o dever do árbitro de, durante todo o processo arbitral, revelar sem demora às partes e aos demais árbitros circunstâncias supervenientes que possam suscitar fundadas dúvidas ou das quais só tenha tomado conhecimento depois de aceitar o encargo. A ofensa ao dever de revelação é um problema sensível, porque, como afirma-se no direito comparado, a qualidade da arbitragem depende da qualidade de seus árbitros, já que nesse sistema de resolução de litígios não existem os mecanismos de controle que caracterizam o sistema judicial. É imprescindível, pois, que os árbitros sejam independentes, imparciais e neutros para bem pacificar o litígio. Mas não só: a comunidade internacional tem exigido cada vez mais uma conduta ética dos árbitros, pois comportamentos moral e eticamente reprováveis têm efeitos devastadores para a arbitragem e para o sistema arbitral como um todo. Cabe abrir um parêntese para lembrar que, no Brasil, alguns questionamentos acerca do comportamento enviesado de alguns árbitros têm chegado ao Judiciário e provocado muita polêmica, de modo que a discussão acerca da responsabilidade civil do árbitro não é um problema afeto exclusivamente à comunidade arbitral, mas tema de interesse da comunidade científica, da sociedade e do Judiciário, onde - ao fim e ao cabo - esses problemas acabam desaguando. Retornando à questão da responsabilidade contratual do árbitro, há de se ter em mente que, a rigor, a gama - e o conteúdo - dos deveres assumidos pelos árbitros só podem ser concretizados no caso concreto com base nas regras de interpretação do negócio jurídico, sendo certo que, além dos deveres expressamente previstos no contrato, na lei ou nos regulamentos dos centros de arbitragem, surgem frequentemente, de acordo com as peculiaridades do caso, deveres de consideração (Rücksichtspflichten) decorrentes do mandamento da boa-fé objetiva, que a autora denomina, com base na doutrina alemã mais antiga, deveres de proteção (Schutzpflichten). "Na verdade, a boa-fé, enquanto regra ordenadora de condutas que impõe a honestidade, a correção e a lealdade aos contraentes, inspira deveres de proteção no quadro contratual. Não basta que se cumpra o dever principal de prestação que assumiu. Imperioso é, também, o modo e o tempo de cumprimento", salientou Mafalda Miranda Barbosa8. Dessa forma, concluiu a renomada Professora, a imparcialidade e independência a que alguns autores fazem referência para justificar a irresponsabilidade dos árbitros não se justifica perante o negócio jurídico (contrato atípico, bilateral e oneroso) celebrado entre as partes e, cabe acrescentar, nem perante o ordenamento jurídico, que não imuniza a priori nenhum contratante de responsabilidade. Ao contrário, como regra, todo agente que atua no comércio jurídico responde por seus atos.  Conclusões Da riquíssima e técnica fala de Mafalda Miranda Barbosa, conclui-se, em suma, que a ideia de uma irresponsabilidade, i.e., uma imunidade absoluta dos árbitros não se justifica tecnicamente, considerando a regra geral de responsabilidade imposta aos partícipes do comércio jurídico e a natureza eminentemente contratual da relação de base que une os árbitros às partes. Conclui-se ainda que os árbitros não podem, em regra, ser responsabilizados pelos danos decorrentes de suas decisões, salvo dolo ou culpa grave materializado em erro grosseiro de fato ou de direito, como ocorre em caso de decisões manifestamente ilegais ou inconstitucionais. No mais, em relação à violação dos demais deveres obrigacionais impostos no contrato, na lei, nos regulamentos dos centros de arbitragem ou pelo mandamento da boa-fé (deveres laterais de conduta), os árbitros respondem segundo o regime jurídico contratual, calcado na presunção de culpa. Concorde-se ou não com a visão de Mafalda Miranda Barbosa, uma coisa é certa: a leitura obrigacional da responsabilidade civil do árbitro com base no contrato subjacente abre um horizonte imenso de reflexões aqui no Brasil, onde ainda se fala amplamente na imunidade dos árbitros, dando margem às críticas que alertam para a necessidade de abrir a "caixa preta" da arbitragem. __________ 1 Confira-se o Webinar "Responsabilidade civil do árbitro", realizado na EMERJ, disponível aqui. Acesso: 1/5/2022. Para aprofundamento do tema, confira-se: MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Responsabilidade civil do árbitro. In: Actas - Colóquio "Resolução alternativa de litígios de consumo". Centro de Direito do Consumo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016, p. 115-154. 2 A presente coluna tem por base a exposição de Mafalda Miranda Barbosa no Webinar, bem como o artigo homônimo, mencionado na nota de rodapé anterior. 3 António Menezes Cordeiro. Tratado da arbitragem. Coimbra: Almedina, 2015, p. 137. No mesmo sentido: MULLERAT, Ramón. The liability of arbitrators: a survey of current practice. In: International Bar Association - Commission on Arbitration. Chicago, 21 September 2006, p. 10, informando que esse é o entendimento dominante nos Estados Unidos. 4 BARBOSA MIRANDA, Mafalda. Op. cit., p. 120. 5 MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Op. cit., p. 129. 6 Nesse sentido, MENEZES CORDEIRO, António. Op. cit., p. 137. 7 Art. 14, § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.  8 No mesmo sentido: MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Op. cit., p. 134.
A Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - afirmou recente que o transexual masculino que deu à luz a uma criança deve constar no registro de nascimento como mãe. A decisão envolvia o caso de transexual masculino, nascido biologicamente do sexo feminino e registrado com prenome de mulher (V. N.). Como ele não se identificava com seu gênero biológico, adotou um nome masculino, alterando o registro civil em 2007. Em 2015, o transexual se casou e dessa união nasceu, em 2016, a criança, que fora registrada no cartório de registro civil (Standesamt), tendo o transexual como mãe e seu marido, como pai. O cartório, porém, inseriu o antigo nome feminino do transexual na certidão, o que o levou a mover ação judicial pleiteando que o juiz ordenasse o cartório a trocar, na certidão de nascimento, seu nome feminino pelo atual nome masculino ou, alternativamente, que a certidão fosse emitida sem que as partes fossem designadas como "mãe" e "pai", mas simplesmente como "genitores" da criança. A ação foi julgada improcedente em primeira e segunda instâncias. O Tribunal de segunda instância de Berlim - Kammergericht (KG) - entendeu que o pedido de retificação do nome inserido na certidão era improcedente, porque o registro fora feito corretamente. O caso subiu para Karlsruhe como o processo BGH XII ZB 127/19, julgado em 26/1/2022.  A decisão do Bundesgerichtshof Para entender o caso, deve-se ter em vista, inicialmente, que o § 21 inc. 1 n. 4 da Lei do Estado Pessoal (Personenstandsgesetz - PStG), que disciplina o registro das pessoas naturais na Alemanha, exige expressamente que da certidão de nascimento conste o nome completo do pai e da mãe, bem como o nome, sexo, local, dia e hora exata do nascimento da criança. Diante disso, as situações de filiação de pessoas trans têm suscitado controvérsias, pois elas querem, em regra, registrar seus filhos com seus dados (prenome e/ou gênero) registrais atuais, surgindo, então, um conflito entre a realidade biológica e a realidade registral na medida em que pessoas biologicamente femininas, mas que se consideram pertencentes ao gênero masculino (transexuais masculinos), dão à luz a um filho e querem figurar como pai na certidão de nascimento. O contrário também ocorre com frequência cada vez maior: pessoas biologicamente masculinas, que se reconhecem como pertencentes ao gênero feminino (transexuais femininos), contribuem com material genético masculino (espermatozoides) para a formação do novo ser, mas pretendem figurar como mãe no registro de nascimento do filho.  A lei que permite a mudança de nome de pessoas trans na Alemanha é antiga, datada de 10/9/1980 e concebida sob algumas concepções hoje superadas, como dão prova os diversos dispositivos do diploma declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht) ao longo do tempo. A lei veio na sequência de uma paradigmática decisão do Bundesverfassungsgericht que, em 1978, reconheceu que o direito da pessoa trans alterar seu gênero no registro de nascimento decorre do livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no art. 2 inc. 1 c/c art. 1 inc. 1 da Lei Fundamental (Grundgesetz)1. Em apertada síntese, a lei permite a mudança do prenome e/ou gênero sempre que a pessoa não se identifique com o sexo registral, atribuído em sua certidão de nascimento, e haja grande probabilidade de que essa sensação de pertencimento a outro gênero seja definitiva. A lei protege a pessoa trans com uma garantia de sigilo de que seu nome e/ou gênero antigo não serão divulgados sem seu consentimento. Há, a rigor, uma proibição de revelação (Offenbarungsverbot) à partir do momento em que a mudança de nome e/ou gênero é realizada. Essa proteção não é, porém, absoluta. O § 5 TSG, que estabele a proibição de divulgação do antigo nome da pessoa trans, prevê duas exceções à regra em seu inc. 1: quando houver interesse público ou interesse jurídico substancial que justifique a revelação e/ou indicação do nome anterior2. A fim de tutelar o interesse dos filhos à verdade biológica, o inc. 3 do § 5 TSG prevê que no registo de nascimento do filho natural ou de uma criança adoptada antes da mudança de nome, deve ser indicado o prenome original do transexual, que ele usava antes da decisão modificativa do nome. Dessa forma, a mudança de nome não tem qualquer impacto na certidão de nascimento da prole, o que mostra que a pretensão do transexual de não revelar seu antigo nome não é tutelada de forma absoluta, ficando em segundo plano face ao interesse dos filhos de que seu registro reflita a verdade biológica e mantenha em segredo a transexualidade de um dos pais, disse a Corte de Karlsruhe. O BGH reconheceu a existência nesses casos de uma colisão de direitos fundamentais: de um lado, o direito geral da personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht) e da autodeterminação informacional (informationelle Selbstbestimmung) do genitor transexual de não ter seu antigo nome revelado sem seu consentimento, o que ocorre com a indicação na certidão de nascimento do filho, e, de outro lado, o direito do filho à verdade biológica. Mas, para o BGH, o legislador solucionou adequadamente a colisão ao priorizar a tutela da prole de preservar a clareza e a veracidade do registro de nascimento. A Corte também rejeitou o pedido dos autores de que fosse adotado na certidão de nascimento uma linguagem de gênero neutra para a designação dos pais, substituindo a tradicional indicação de "pai" e "mãe" pelo termo "genitores", como determinou no Brasil o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3 em provimento contrário à disposição expressa do art. 54, inc. 7 da Lei 6.015/1973 (Lei de Registro Público), que exigia a indicação do nome e prenome dos pais, com indicação inclusive da idade da genitora, dentre outros dados identificadores do pai e da mãe. O Tribunal alemão denegou o pedido com fundamento no § 21 inc. 1 n. 4 da Lei do Estado Pessoal, que, como dito, é expresso no sentido de que deve constar da certidão de nascimento do filho o nome completo do pai e da mãe. Dessa forma, conclui o BGH, quando uma pessoa do sexo feminino dá à luz, ela deve ser indicada como mãe na certidão de nascimento, ainda quando tenha mudado de nome e/ou gênero em razão de sua transexualidade e, portanto, deve constar seu antigo nome registral feminino, já que a mudança de nome não tem eficácia face aos descendentes, nos termos do mencionado § 5 inc. 3 da TSG. Isso vale, por maior razão, sublinhou a Corte de Karlsruhe, nos casos, como o dos autos, em que o transexual não realizou uma mudança de gênero, mas tão só uma alteração no prenome. Segundo o BGH, o § 5 inc. 3 da lei dos transexuais (TSG) não padece do vício da inconstitucionalidade por violação do direito à autodeterminação informacional, pois há um interesse superior, digno de tutela, que justifica a restrição do direito fundamental e compensa o risco de divulgação da transexualidade do genitor, qual seja, a proteção da veracidade e completude das anotações no registro civil, que desempenham uma especial função probatória. Nesse sentido, o 12º Senado do BGH foi expresso ao afirmar que:   "O Senado não compartilha da visão defendida pelo reclamante de que o § 5 inc. 3 da TSG é inconstitucional. Ele já se manifestou sobre a questão no sentido de que um genitor transexual não é violado em seus direitos fundamentais, em particular em seu direito à autodeterminação informacional (...), pois, a isso se sobrepõe os interesses, dignos de proteção, à completude e correção das inscrições do registo do estado civil, que têm uma função probatória especial e que compensam o risco de divulgação da transexualidade..."4. Por fim, a Corte rebateu o argumento de que a lei alemã, ao exigir a indicação do nome anterior do genitor trans, violaria o art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que assegura a cada pessoa o respeito à vida privada e familiar. Segundo o BGH, a Alemanha não ultrapassou o âmbito de discricionariedade que lhe é assegurado na regulação do problema quando o legislador optou por vincular a situação jurídica de pai e/ou mãe à função reprodutiva dos genitores e não ao nome e/ou gênero modificado do genitor transexual, que, eventualmente, pode ser novamente alterado. O § 6 da TSG prevê que a decisão que alterou o nome do requerente (transexual) poderá ser revogada pelo tribunal se ele sentir novamente que pertence ao sexo indicado em seu registo de nascimento.  Resumo da ópera Em síntese, pode-se afirmar que, de acordo com o entendimento até então majoritário em solo alemão, a pessoa trans não tem o direito absoluto de apagar o passado, riscando de seus registros as indicações de nome e/ou gênero anterior, quando confrontadas com o direito dos filhos à identidade biológica e à completude, exatidão e, em certa medida, à estabilidade de seu registro pessoal. Não é a primeira vez que o BGH se posiciona à respeito. No processo BGH XII ZB 660/14, julgado em 6/9/2017, a Corte afirmou que mãe é quem pare a criança e, com base no critério biológico, entendeu que o transexual masculino que dá à luz deve ser considerado como genitora na certidão de nascimento do filho, porque contribuiu com material genético feminino para a constituição de um novo ser5. Pelas mesmas razões, a Corte afirmou, no mesmo ano, que um homem, transexual feminino, não poderia figurar como mãe na certidão de nascimento, porque contribuiu com gametas masculinos para a concepção do filho. Aqui, novamente, o direito de personalidade e da autodeterminação informacional foram colocados em segundo plano face ao direito hierarquicamente superior do filho de conhecimento da própria origem biológica6. O tema é controvertido e aguarda-se, com expectativa, para que a sensível questão seja resolvida pelo Tribunal Constitucional ou pelo Parlamento. Enquanto isso, nos trópicos, a origem biológica tem ficado cada vez mais nebulosa. Pelo menos, nos registros públicos. __________ 1 BVerfG 1 BvR 16/72, julgado em 11/10/1978.. 2 § 5, inc. 1 TSG: Ist die Entscheidung, durch welche die Vornamen des Antragstellers geändert werden, rechtskräftig, so du¨rfen die zur Zeit der Entscheidung gefu¨hrten Vornamen ohne Zustimmung des Antragstellers nicht offenbart oder ausgeforscht werden, es sei denn, daß besondere Gru¨nde des öffentlichen Interesses dies erfordern oder ein rechtliches Interesse glaubhaft gemacht wird. 3 O art. 1º § 2º do Provimento 52, de 14/3/2016, já dispunha que, nas hipóteses de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem haver qualquer distinção quanto à ascendência paterna ou materna. O Provimento 63, de 14/11/2017, que, dentre outras providências, instituiu modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, determinou a inclusão do campo "filiação", sem qualquer referência, como de praxe, à indicação do pai e da mãe. 4 "Die von der Rechtsbeschwerde vertretene Ansicht, § 5 Abs. 3 TSG sei verfassungswidrig, teilt der Senat nicht. Er hat zu der Frage bereits dahingehend Stellung genommen, dass der transsexuelle Elternteil durch den Inhalt der vom Gesetz angeordneten Registereintragung nicht in seinen Grundrechten, insbesondere nicht in seinem Recht auf informationelle Selbstbestimmung (...) verletzt wird. Denn es überwiegen insoweit die schützenswerten Interessen an der Vollständigkeit und Richtigkeit der mit besonderer Beweisfunktion versehenen Eintragungen in die Personenstandsregister das Interesse, sich der Gefahr einer Aufdeckung der Transsexualität auszusetzen..." 5 Confira o caso em: NUNES FRITZ, Karina. Jurisprudência comentada dos tribunais alemães. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 52ss. 6 Acerca da decisão, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Op. cit., p. 57ss.
Os tribunais alemães foram inundados por ações envolvendo o escabroso escândalo de manipulação dos veículos a diesel pela montadora Volkswagen. Relembrando o caso: em 2015 veio à tona, nos Estados Unidos, o chamado Dieselgate, um escândalo envolvendo o grupo Volkswagen por manipulação dos resultados de emissões de poluentes em motores a diesel. Após o governo norte-americano ter endurecido, entre 2005 e 2007, os padrões de emissão de óxido de nitrogênio (NOx), um dos principais poluentes resultantes da combustão do óleo diesel, a Volkswagen lançou no mercado modelos de carros a diesel supostamente menos poluentes. Os estudos, porém, mostravam considerável diferença entre o nível de emissão de NOx observado no estudo nas ruas e nos testes oficiais, feitos em laboratório, levando pesquisadores a alertar o governo e os órgãos responsáveis, dentre os quais a Agência de Proteção Ambiental (Environmental Protection Agency), que procuraram encontrar o motivo da discrepância dos dados. Em 2015, a EPA descobriu que um software instalado na central eletrônica dos carros da Volkswagen alterava as emissões de poluentes quando submetidos a vistorias. Em condições normais de rodagem, contudo, o dispositivo era desligado e os carros poluíam mais que o permitido. A montadora foi acusada criminalmente pelo governo dos Estados Unidos por burlar os índices de emissão de gases poluentes para atender à regulamentação do país, adulterando quase 500 mil veículos dos modelos Jetta, Beetle (Fusca), Gol, Passat e Audi A3, fabricados entre 2009 e 2015. Em 22/9/15, a Volkswagen acabou reconhecendo a fraude em nota oficial, bem como que aproximadamente 11 milhões de veículos adulterados foram vendidos em todo o mundo, inclusive no Brasil1. No mês seguinte, a empresa criou uma plataforma na internet a fim de que os consumidores pudessem descobrir se seu automóvel havia sido afetado pelo problema. Ainda em outubro daquele ano, o órgão federal de transportes motorizados (Kraftfahrt-Bundesamt) na Alemanha divulgou parecer confirmando que os motores da série EA189 estavam indevidamente equipados com o dispositivo fraudulento e ordenando a empresa a, através de recall, remover o dispositivo e adotar as medidas adequadas para restabelecer a conformidade dos veículos com as disposições legais pertinentes. A montadora, então, comunicou ao público - por meio de anúncios à imprensa divulgados no final de 2015 - que seria realizado o reparo nos veículos atingidos a partir de janeiro de 2016 e que os proprietários afetados pelo problema seriam notificados e informados acerca dos próximos passos, notícia repercutida intensamente na imprensa. Em vários países, a empresa viu-se à volta com processos diversos, astronômicos acordos, prisões de executivos, recalls e multas bilionárias. Na Alemanha, o legislador resolveu intervir e criar uma ação específica de tutela coletiva a fim de facilitar o processamento da enxurrada de ações indenizatórias que se avizinhava no horizonte. Novo procedimento: Musterfeststellungsverfahren Em novembro de 2018, entrou em vigor a lei que criou uma ação específica de tutela coletiva, chamada Musterfeststellungsklage, uma espécie de ação declaratória modelo2 ou, ao pé da letra, uma ação de determinação de amostra, pois visa apenas constatar a existência ou não dos pressupostos fáticos e jurídicos de pretensões ou relações jurídicas entre consumidores e uma empresa para que, na sequência, cada consumidor possa deduzir individualmente, com base em sentença declaratória, sua pretensão em juízo contra o fornecedor3. Ou seja, por meio do processo principal (amostra) esclarecem-se os fatos, o dano coletivo e a imputabilidade, permitindo, na sequência, caso a ação modelo seja julgada procedente, que cada lesado deduza sua pretensão indenizatória em juízo individualmente. O procedimento não é novo. O legislador buscou inspiração na ação modelo existente para a proteção dos investidores no direito do mercado de capital, no qual há o processo Kapitalanleger-Musterverfahren4. Não se trata da class action do direito norte-americano, mas de ação única, movida por associação de classe, com eficácia para todas a situações semelhantes. No caso Volkswagen, a sentença proferida produziu eficácia para todos os casos envolvendo a aquisição dos veículos equipados com o motor diesel tipo EA 189, nos quais foram instalados o software fraudulento. Os §§ 606 a 614 da ZPO, a lei processual civil, elenca os requisitos específicos para a propositura da ação modelo, que é processada diretamente perante os tribunais de segundo grau a fim de encurtar o caminho até o Bundesgerichtshof em Karlsruhe. No caso Volkswagen, o objetivo da demanda era resolver no processo geral toda as complexas e controvertidas questões de prova e culpa da montadora, algo extremamente caro para ser suportado por cada autor individualmente. Adicionalmente, a ação modelo visava impedir a prescrição das pretensões ressarcitórias que estavam na iminência de ser fulminadas em 2018 caso se contasse o prazo prescricional ordinário de três anos, fixado no § 195 BGB, a partir de 2015, data em que o escândalo veio à tona. Até onde se tem conhecimento, a primeira ação contra a VW foi proposta pela Associação Federal da Organizações de Consumidores (Verbraucherzentrale Bundesverband) perante o Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht - OLG) de Braunschweig, onde fica a sede de montagem mais antiga da empresa5. Para ter seu pleito submetido à eficácia da sentença proferida na Musterfeststellungsklage, o lesado deve inscrever-se no registro de ações (Klageregister) e, ao final do processo, diante da comprovação da responsabilidade da empresa, mover ação indenizatória contra a empresa. O caso concreto levado à apreciação do Bundesgerichtshof No caso em comento, o autor adquiriu, em setembro de 2013, um veículo usado da marca VW Tiguan pelo preço de 22.490,00 euros, que tinha um motor diesel da série EA189 e o mencionado software destinado a camuflar os índices de emissão de poluentes. O veículo fora alienado, em 17/9/2019, pelo preço de dez mil euros. Segundo o autor, ele se inscreveu, em dezembro de 2018, no registro da ação modelo movida contra a Volkswagen pela associação de defesa dos consumidores, mas cancelou a inscrição em junho de 2019, entrando no mês seguinte com a ação indenizatória individual. Na ação, ele pleiteou a devolução do preço pago mais juros e perdas e danos. Mas, ao invés de devolver o veículo, ele pretendia pagar um valor máximo de 10 mil euros. A empresa, em contestação, pediu a improcedência do pedido e alegou prescrição. O autor perdeu em primeira e segunda instância. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Naumburg julgou improcedente a apelação interposta ao argumento de que a pretensão do autor havia prescrito no fim do ano de 2018, nos termos dos §§ 195 e 199 I BGB. De acordo com o § 199 I BGB, o prazo prescricional ordinário de três anos começa a correr no final do ano em que surge a pretensão e o credor lesado tome - ou devesse ter tomado, sem grave negligência - conhecimento das circunstâncias constitutivas da pretensão e da pessoa do devedor6. O autor, porém, alegou não ter tomado conhecimento dos fatos em 2015. O OLG Naumburg entendeu, contudo, que ele tinha condições de ter tido ciência do escândalo de manipulação dos veículos ainda em 2015 e que, se desconheceu a fraude, fora por negligência grosseira de sua parte, pois no último quartel daquele ano todas as circunstâncias do Dieselgate estavam amplamente divulgadas na imprensa. Diante da divulgação do caso, o autor poderia facilmente ter empreendido medidas para se informar e verificar se seu veículo também estava adulterado, disse o OLG Naumburg. Não o fazendo, agiu com grosseira negligência, o que não impede o início da contagem do prazo prescricional. O Tribunal rejeitou ainda o argumento de que a prescrição teria sido suspensa com a inscrição do autor no registro da ação modelo. Contudo, a Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof (BGH), deu provimento ao recurso de Revision interposto pelo consumidor, afastando a prescrição e ordenando a devolução dos autos para novo julgamento. Trata-se do processo BGH VI ZR 1118/20, julgado em 29/7/2021 pelo 6º Senado do Tribunal de Karlsruhe. A decisão do Bundesgerichtshof Em suma, o BGH deu razão ao consumidor lesado por entender que: (a) o prazo prescricional não começara a correr no final de 2015, pois não restou demonstrado nos autos que o autor teve conhecimento de todas as circunstâncias fundamentadoras da pretensão; (b) a inscrição do autor no registro da ação modelo suspendeu o curso da prescrição, nos termos do § 204 inc. 1 n. 1a BGB. a) Inocorrência de prescrição Para melhor entender o caso, é necessário ter em mente, à partida, que, no direito alemão, o prazo prescricional não começa a correr do momento da ocorrência da lesão, isto é, da violação do direito subjetivo, como consta expressamente no art. 189 do Código Civil brasileiro: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206." A norma consagra a teoria da actio nata com um sistema objetivo de prazo prescricional, segundo o qual esse começa a fluir a partir do momento em que nasce a pretensão em decorrência da violação do direito, pois a partir daí a pretensão passa a ser exigível em juízo. Diferentemente, na Alemanha, salvo disposição legal em contrário, o termo prescricional tem início no final do ano em que a pretensão surgiu e o credor lesado teve ciência (ou ignorou com grave negligência) da autoria e das circunstâncias fundamentadoras da pretensão (§ 199 I BGB). Duas são as consequências práticas da nova regra, introduzida com a Reforma de Modernização do BGB (2001-2002): primeiro, o prazo prescricional só tem início com a ocorrência cumulativa dos pressupostos indicados e, segundo, todas as pretensões ficam consumadas no dia 31 de dezembro do respectivo ano. Trata-se de um sistema subjetivo, que substituiu o sistema objetivo anterior, mostrando, segundo António Menezes Cordeiro, que é possível um direito civil personalizado, mais centrado na justiça7. O § 199 I BGB equipara ao conhecimento das circunstâncias o desconhecimento grosseiro, fruto de grave negligência lesado. A negligência grosseira (grobe Fahrlässigkeit), explicou o BGH no caso sub judice, pressupõe uma infração objetivamente grave e subjetivamente indesculpável da diligência exigida no comércio jurídico. Em apertada síntese, a ignorância grosseiramente negligente (grob fahrlässige Unkenntnis) configura-se quando o credor desconhece uma situação em decorrência da inobservância grosseira da diligência exigida no tráfego, que não lhe deixa levar em conta aquilo que era evidente para os demais. A Corte explicou que o desconhecimento grosseiro, da mesma forma que o conhecimento, recai sobre os fatos, as características da base fundamentadora da pretensão e a culpabilidade do devedor, nos casos de responsabilidade subjetiva (Verschuldenshaftung). O lesado, porém, não tem, segundo o BGH, um dever de se informar ou mesmo um encargo (Obliegenheit) de esclarecer as circunstâncias do dano ou da pessoa do lesado, dando início ao decurso do prazo prescricional, que transcorre - atente-se - no interesse do devedor lesante, pois que lhe confere o direito de recusar o cumprimento da prestação (obrigação de indenizar), como afirma, com precisão, o § 214 I BGB: "Após consumada a prescrição, o devedor está legitimado a recusar a prestação"8. Segundo o Tribunal, recai sobre o devedor o ônus de alegar e provar o início e o fim do prazo prescricional, e, logo, o conhecimento - ou desconhecimento grosseiro - do credor lesado, nos termos do § 199 I BGB, pois é de seu interesse que o prazo prescricional comece a fluir o mais cedo possível. O lesado, porém, deve atuar para o esclarecimento dos fatos e circunstâncias provenientes de sua esfera jurídica e, caso necessário, demonstrar quais medidas foram empreendidas para esclarecer os pressupostos de sua pretensão, ressaltou o BGH. Assentes tais linhas gerais, o BGH concluiu que o Tribunal a quo não poderia ter presumido o desconhecimento grosseiro do lesado simplesmente pelo fato do escândalo da manipulação dos veículos ter sido amplamente divulgado na imprensa. Era necessário que fosse feita a prova de que o lesado teve efetivo conhecimento das matérias publicadas na mídia, sem o quê ele restaria censurado, em última instância, por não acompanhar com regularidade as notícias e, evidentemente, frisou o BGH, ninguém pode ser obrigado pelo direito a acompanhar a imprensa no interesse de outrem, nesse caso, no interesse do agente lesivo em logo iniciar o transcurso do prazo prescricional. O fato de ser provável que o lesado tenha tomado conhecimento do escândalo, ainda que de forma geral, não desonera o juiz de apurar, no caso concreto, se houve a efetiva ciência ou o desconhecimento grosseiro da autoria e das circunstâncias constitutivas da pretensão, tarefa da qual não se desincumbiu o magistrado. Em suma: não se podendo imputar desconhecimento grosseiro por parte do lesado, o termo prescricional não começou a fluir no final de 2015, quando veio à tona o Dieselgate e, logo, não findou em 31/12/2018, como entenderam as instâncias inferiores. b) A suspensão do prazo prescricional pela ação modelo Além disso, houve - segundo o BGH - a suspensão do prazo prescricional, de modo que a ação indenizatória fora interposta a tempo pelo lesado. A controvérsia central aqui girava em torno de saber se a suspensão da prescrição ocorria com a propositura da ação declaratória modelo ou apenas com a inscrição do autor (rectius: anotação de sua pretensão) no registro de ação. Na versão anterior do § 204 inc. 1 Nr. 6a BGB, referente ao procedimento das ações modelo dos investidores, era a inscrição do investidor lesado no registro que suspendia a prescrição. Desse modo, a suspensão ocorria na data da inscrição, independente de quando foi protocolada a ação declaratória modelo. Diferente, porém, é a formulação do § 204 inc. 1 n. 1a BGB, que coloca como marco temporal da suspensão do prazo prescricional a data do ajuizamento da ação modelo e não a data da ação individual movida pelo credor, potencial beneficiário do procedimento modelo. Segundo o dispositivo, o prazo prescricional será suspenso com o ajuizamento de ação declaratória modelo para o esclarecimento de uma pretensão que o credor tenha validamente anotado no registo de ações, desde que a pretensão registrada se baseie nos mesmos fatos discutidos na ação declaratória modelo9. Embora o texto legal deixe margem de dúvida sobre se a anotação no registro deve ocorrer antes de findo o prazo prescricional ou se pode ser protocolada depois10, o BGH afirmou que para a suspensão da prescrição é necessário apenas que a ação modelo tenha sido ajuizada dentro do prazo prescricional, ainda quando a inscrição do lesado no registro de ações ocorra posteriormente. Esse entendimento corresponde, segundo a Corte, à vontade objetiva do legislador, considerando-se a literalidade, a sistemática, a origem histórica e o escopo da norma do § 204 I n. 1a BGB. O Tribunal lembrou que a finalidade política da introdução da ação modelo foi justamente evitar a prescrição, no final de 2018, das pretensões indenizatórias dos adquirentes de veículos manipulados, enganados pela Volkswagen. Interessante, por fim, anotar que o BGH também afastou a alegação - aduzida pela montadora e aceita pelo Tribunal de segunda instância - de que o autor havia agido deslealmente ao inscrever-se no registro apenas para se beneficiar da suspensão da prescrição e, em seguida, cancelar sua anotação, movendo ação individual. Os juízes de Karlsruhe rebateram a alegação aduzindo que o legislador não condicionou a suspensão do prazo prescricional à permanência do lesado no registro de ações. Pelo contrário: previu a possibilidade do lesado optar pela persecução individual de sua pretensão e cancelar sua inscrição no registro até a data da primeira audiência no processo individual (§ 608 inc. 3 ZPO). Nesse caso, a suspensão do prazo prescricional finda 06 meses após o cancelamento do registro, segundo o § 204 inc. 2, 2ª parte do BGB11. Ou seja: cancelado o registro, o lesado dispõe ainda desse prazo para decidir entrar com ação individual. Permanecendo inerte, sua pretensão restará fulminada. Epílogo De todo o exposto, é interessante notar que no direito alemão o termo prescricional não começa a correr, como no direito brasileiro, a partir do momento da lesão ao direito, independente do titular ter conhecimento pleno do ocorrido ou da extensão do dano, o que dá ensejo, obviamente, a situações de grave injustiça. Por isso, doutrina e jurisprudência têm aplacado a rigidez do art. 189 CC/02 permitindo que, em casos excepcionais, a contagem do prazo prescricional inicie a partir da ciência da lesão pelo titular do direito12. Trata-se de um viés subjetivo da teoria da actio nata, que parte de um argumento lógico e justo: não se pode exigir uma atuação positiva do sujeito que ignora a violação de seu direito. E mais: se a prescrição sanciona a inércia e a falta de diligência do titular do direito violado, esse não pode ser sancionado se desconhecia a lesão e/ou sua autoria. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona ao afirmar que o prazo prescricional conta-se, em regra, a partir do momento em que configurada a lesão ao direito subjetivo, independente do titular ter pleno conhecimento do ocorrido ou da extensão dos danos sofridos. Mas admite, em situações excepcionais, que o termo inicial passe a fluir a partir do conhecimento da lesão, em casos de ilícito extracontratual13. Essa criação judicial de um sistema subjetivo de prescrição, paralelo ao sistema legal objetivo do art. 189 CC/02, deve ser feita, contudo, com máxima cautela a fim de que não se permita o acionamento ad eternum do devedor por um credor inerte, pervertendo a ratio e a função do instituto. Para evitar o excesso de subjetivismo - e o caos jurídico - o conhecimento do fato não pode, por óbvio, ser apurado com base em critérios puramente subjetivos, isto é, com base na mera afirmação de desconhecimento do titular do direito. Torna-se premente a necessidade de apurar se o lesado teve - ou poderia ter tido - ciência das circunstâncias fundamentadoras da pretensão para deflagrar o início do prazo prescricional. _____ 1 Veja o histórico do imbróglio em: 'Dieselgate`: veja como escândalo da Volkswagen começou e as consequências. 5/2/2919. Disponível aqui.  2 LEAL, Adisson. Dieselgate e o despertar alemão para a tutela coletiva dos direitos do consumidor. Consultor Jurídico, 12/11/2018. 3 KERN/DIEHM. ZPO Kommentar. 2. ed., Erich Schmidt Verlag, 2020, § 606 Rn. 2. 4 KERN/DIEHM. Op. cit., § 606 Rn. 1. 5 Was ist eine Musterfestellungsklage? DW, 1/11/2018. Disponível aqui.  6 "§ 199. Beginn der regelmäßigen Verjährungsfrist und Verjährungshöchstfristen. (1) Die regelmäßige Verjährungsfrist beginnt, soweit nicht ein anderer Verjährungsbeginn bestimmt ist, mit dem Schluss des Jahres, in dem1. der Anspruch entstanden ist und2. der Gläubiger von den den Anspruch begründenden Umständen und der Person des Schuldners Kenntnis erlangt oder ohne grobe Fahrlässigkeit erlangen müsste." 7 Tratado de direito civil - Parte Geral. t. V. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2018, p. 184s. 8 "§ 214. Wirkung der Verjährung. (1) Nach Eintritt der Verjährung ist der Schuldner berechtigt, die Leistung zu verweigern." 9 "§ 204. (1) Die Verjährung wird gehemmt durch: (...) 1a. die Erhebung einer Musterfeststellungsklage für einen Anspruch, den ein Gläubiger zu dem zu der Klage geführten Klageregister wirksam angemeldet hat, wenn dem angemeldeten Anspruch derselbe Lebenssachverhalt zugrunde liegt wie den Feststellungszielen der Musterfeststellungsklage, (...)" 10 SCHMIDT-KESSEL, Martin. Stellungnahme zum Gesetzentwurf. BT-Ausschuss für Recht und Verbraucherschutz, Protokol Nr. 19/15, p. 107, 129. 11 A 2ª parte do inc. 2 do § 204 do BGB reza: "A suspensão, segundo o inc. 1 número 1a, termina igualmente em seis meses após o cancelamento do pedido de inscrição no registo de ações.". No original: "Die Hemmung nach Absatz 1 Nummer 1a endet auch sechs Monate nach der Rücknahme der Anmeldung zum Klageregister." 12 Na doutrina, confira-se: BODIN DE MORAES, Maria Celina e SAMPAIO GUEDES, Gisela. A prescrição e a efetividade dos direitos. In: A juízo do tempo - estudos sobre prescrição. Maria Celina Bodin de Moraes, Gisela Sampaio Guedes e Eduardo Nunes de Souza (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2019, p. 24s. 13 Confira-se, dentre outros julgados: REsp. 1.736.091/PE, T3, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14/5/2021 e REsp. 1.605.604/MG, T3, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 20/4/21.
A coluna German Report desta semana recebe o contributo de Graziela Harff, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), abordando a espinhosa problemática da liberdade de expressão e seus contornos. O tema não é novo, mas atualíssimo tendo em vista o fenômeno da desinformação na era digital. Se em outros tempos, antes da difusão da internet e do desenvolvimento das novas tecnologias de informação, o problema era a falta ou dificuldade de acesso à informação, hoje o grande desafio é lidar com o excesso de informação e, pior, com a desinformação. A crença de que fake news e discursos de ódio se deixam aplacar no livre mercado de ideias através do contradiscurso mostrou-se insustentável face ao uso deturpado das inovações tecnológicas. Maria Ressa, jornalista filipina vencedora do Nobel da Paz em 2021, em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, fez severas críticas à forma como os algoritmos e as redes sociais vêm sendo manipulados para impulsionar a difusão de informações falsas1. No SXSW, o maior evento sobre inovação digital nos Estados Unidos, ela denunciou que as redes sociais e os algoritmos têm sido utilizados como meios de divulgação massiva de informações falsas, tornando-se perigosa ameaça às democracias ao redor do mundo. Segundo Ressa, eles deixaram de ser mecanismos de liberdade de expressão e se tornaram mecanismos de distribuição de fake news e de ideias antidemocráticas e hostis a grupos minoritários, que se propagam em velocidade assustadora impulsionadas por contas-robôs e disparos em massa que alcançam milhões de usuários, tudo sob a confortável condescendência das plataformas digitais de comunicação, que comodamente faturam cifras astronômicas com a economia da desinformação. A realidade tem mostrado que o mau uso das inovações e parafernálias tecnológicas não fomentam o bom combate, nem propiciam a paridade de armas necessárias para o embate de ideias idealizado por Stuart Mill para o free marketplace of ideas.  Dessa forma, o contradiscurso tem se mostrado insuficiente para derrotar a desinformação, as fake news e os discursos de ódio, porque ele não é propagado da mesma forma e velocidade que o mau discurso, nem atinge a mesma parcela do público. Gaziela Harff debruçou-se sobre esses problemas da era digital em sua dissertação de Mestrado, defendida perante a prestigiosa UFRGS com o tema: Discurso de ódio no direito comparado: um enfoque jurídico nos Estados Unidos, Alemanha e Brasil. O trabalho foi aprovado com nota máxima e recomendação de publicação, em agosto de 2021, em banca composta pelos Professores Marcelo Schenk Duque, Eugênio Facchini Neto e Fabiano Menke, da qual tive o prazer de participar como avaliadora externa. Agora, ela brinda o leitor do Migalhas com um texto que nos convida à reflexão sobre o conteúdo e os limites do direito à liberdade de expressão. Tema fundamental em uma quadra da histórica na qual presenciamos uma onda de intolerância, preconceitos, discriminações e ataques às instituições democráticas, proferidos sob o escudo da liberdade de expressão e potencializados pela internet. Confira abaixo. * * * Graziela Harff A liberdade de expressão, certamente, é um dos direitos que mais têm sido debatidos pela comunidade jurídica e sociedade em geral, tendo em vista os recentes fatos envolvendo conflitos entre liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana e direitos como igualdade e honra. O extremismo e a defesa de políticas totalitárias têm ocupado as manchetes dos jornais, trazendo à tona os limites que devem ser traçados à liberdade de expressão, haja vista a inexistência de direito ilimitado. Nesta equação devem ser considerados elementos diversos, sendo um dos mais importantes o contexto e o tratamento jurídico dispensado a determinadas liberdades e direitos, o que poderá ter como resultado a proscrição ou não de determinados recursos. Na Alemanha, a negação do holocausto é crime previsto no Código Penal (§ 130), no que se incluem toda manifestação que aprove, negue ou minimize algum ato cometido sob o regime nacional-socialista. Do mesmo modo, é punido criminalmente aquele que aprova, glorifica ou justifica a tirania e o governo arbitrário do nacional-socialismo. Em 2018, uma cidadã alemã teve seu recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional Federal (TCF) não admitido para julgamento em um caso que envolvia negação do holocausto.[2] A reclamante, que já havia sido condenada diversas vezes por incitar ódio e violência contra segmentos da população (Volksverhetzung), ajuizou reclamação constitucional em face da condenação a dois anos de prisão pela negação da perseguição dos judeus pelos nazistas, segundo o § 130 (3) do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch). Os fatos consistiam em diversos artigos nos quais a reclamante afirmava que o assassinato de judeus sob o regime nazista e as mortes nas câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau não haviam acontecido. Haveria, segundo ela, uma violação a seu direito fundamental à liberdade de expressão, de pesquisa e de ensino, bem como ao devido processo legal. Ainda, a interpretação de fatos históricos contrários à visão majoritária estariam protegidos igualmente pela liberdade de expressão. Em sua decisão, o TCF afirma que o objeto da proteção do artigo 5 (1) são opiniões, que são caracterizadas pela tomada de posição e avaliação de determinada pessoa. Além disso, o escopo da proteção inclui fatos, na medida em que são pré-requisitos para a formação de opiniões. Entretanto, manifestações sobre fatos comprovadamente falsos são excluídos do âmbito de proteção da liberdade de expressão, uma vez que não contribuem para o processo de formação de opinião. O fato de afirmações fáticas serem feitas em conexão com manifestações de opinião não levam a diferente resultado. Outra conclusão a que chegou a Corte é de que a aprovação dos atos cometidos ou a sua negação podem causar distúrbios da ordem pública. Prossegue o TCF assentando que as negações são baseadas em conclusões de ordem subjetiva, para as quais a reclamante sustenta estar amparada pela liberdade de expressão, não havendo que se falar, no entanto, em violação a seus direitos fundamentais. Em relação à aprovação dos atos cometidos pelo nacional socialismo, trata-se da aprovação do reino da violência e da tirania. Por sua vez, a negação somente pode ser entendida como a trivialização de tais crimes, o que leva à sua legitimação e aprovação. Tal exaltação ou negação dos atos nazistas carregam em si a ameaça de um discurso hostil e violento, servindo como um código para instigar ações hostis contra certos grupos de pessoas. A Corte ainda recorda que, em seus artigos, a reclamante dirige requerimentos aos membros do Conselho Central de Judeus na Alemanha (Zentralrat der Juden), solicitando a retificação dos eventos que ocorreram em Auschwitz. Assim, o julgamento conclui que a negação do genocídio cometido contra os judeus é usado como meio para, de modo intencional e deliberado, formar uma opinião pública contra os judeus e seus representantes. Este caso é demonstrativo da valorização da dignidade da pessoa humana e da não admissão de qualquer afirmação fática, mesmo que revestida de opinião pessoal, que leve à negação dos atos praticados sob o regime nazista. Para evitar o retorno do partido nazista e dos atos cometidos durante seu governo, a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana está inscrita no primeiro artigo da Lei Fundamental. Ainda, o direito constitucional alemão não permite que manifestações a favor de um regime que revelou todo seu desprezo pela pessoa humana e seus direitos fundamentais sejam defendidas. Segundo o parâmetro construído pelo TCF, as expressões protegidas são aquelas que contribuem para o processo de formação da opinião pública. Embora, à primeira vista, possa parecer árdua tarefa classificar quais seriam essas manifestações, o TCF rechaça aquelas que deliberadamente falsas, assim também já comprovadas. O debate ocorrido na Alemanha, ressalte-se, é comum a muitos países, especialmente com o advento da internet e das redes sociais, que têm o poder de veicular e propagar ideias que se revelam incompatíveis com o regime democrático e constitucional. Sob o manto da liberdade de expressão, não se pode defender o desprezo e rechaço a outros direitos, ao próprio valor da dignidade da pessoa humana ou manifestações em prol de ideias totalitárias. Mesmo que não mencionada no acórdão, essa discussão atrai o tema da democracia militante. Desenvolvido por Karl Loewenstein, defende que algumas pessoas se valem da democracia para destruí-la, de modo que o regime democrático deve prever instrumentos para sua defesa. Nessa esteira, na Alemanha é prevista a declaração de inconstitucionalidade pelo TCF dos partidos que atuarem contra a ordem constitucional e seus valores. No Brasil, é previsto expressamente na Constituição Federal, em seu art. 17, que os partidos políticos devem observância aos direitos fundamentais, do que não se cogita qualquer possibilidade de um partido que tenha ideias nazistas. As iniciativas no âmbito internacional também têm aumentado. Em mais um movimento para combater o antissemitismo, em 20/1/2022, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução que condena a negação do holocausto3, a minimização de seu número de vítimas, as tentativas dirigidas a tentar culpar os judeus pelo genocídio, afirmações que enxergam no holocausto um evento positivo e a tentativa de culpar outros países ou grupos étnicos pelo genocídio operado pela Alemanha nazista. Esta resolução foi adotada em um momento em que o antissemitismo tem se agravado e se espalhado pelo mundo, sendo necessárias ações para lembrar a importância de rejeitar qualquer ideia que remeta ao nazismo e sua política, o que tem se dado por meio de notícias falsas e graves distorções históricas, que possuem o objetivo de minimizar as atrocidades levadas a cabo, além de criar hostilidade contra suas vítimas. Destaca-se ainda a Recomendação 97/20 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, que recomenda que os países implementem mecanismos em sua legislação para combater o discurso de ódio, no que se inclui o hate speech. 4 Feitas estas considerações, impende tecer algumas considerações acerca dos Estados Unidos, país com muitas diferenças em seu sistema jurídico em relação à liberdade de expressão. Em primeiro lugar, deve ser lembrado que o sistema norte-americano é marcado pelo seu excepcionalismo, sendo um país em que referida liberdade assume contornos quase absolutos, o que o torna um modelo a ser contraposto ao alemão. Se é verdade que não se pode chegar ao ponto de afirmar que o direito de expressão é absoluto, também deve ser mencionado que a definição dos seus limites tem sido construída pela Suprema Corte, do que é exemplo a categoria das fighting words (palavras belicosas). Mesmo assim, tais limitações possuem muito mais o escopo de preservação da paz e ordem públicas do que proteção de direitos fundamentais das vítimas de discursos odiosos. Ilustrativo dessa afirmação é a previsão da liberdade de expressão na Constituição norte-americana, elencada logo na Primeira Emenda do Bill of Rights, prevendo que o legislador não deve legislar no sentido de limitá-la. Nesse sentido, prevalece o entendimento de que deve haver um livre mercado de ideias (free marketplace of ideas), para que estas circulem livremente, sem intervenções governamentais. Sendo assim, as más ideias devem ser combatidas com mais discurso, ou seja, com o contradiscurso (counterspeech). Um caso que ilustra esse tratamento é o da queima de cruzes. Em R.A.V. v. City of Saint Paul5, adolescentes haviam incendiado uma cruz em frente à residência de uma família afrodescendente. A cruz em chamas, lembre-se, é um símbolo da Ku Klux Klan que remete ao preconceito e discriminação. Os adolescentes foram processados com base na Bias-motivated crime Ordinance, a qual previa que aquele que colocasse cruzes em chamas com base em raça, cor, credo, religião ou gênero cometeria um ilícito penal. Contudo, a Suprema Corte entendeu ser a lei inconstitucional e invalidou a condenação, uma vez que a lei discriminava em razão do ponto de vista (viewpoint based) e era baseada em conteúdos específicos (content-based), ou seja, fora violada a necessária neutralidade em relação ao conteúdo do discurso. Esse caso, que trata do discurso de ódio através especificamente de um ato - a colocação de cruzes, é significativo da abrangência da liberdade de expressão, protegendo discursos odiosos que não seriam admitidos em outras democracias. No Brasil, essa discussão sobre discurso de ódio encontrou sede no HC 82.4246, caso Ellwanger, em que um editor de livros veiculava afirmações antissemitas, seja através das obras que publicava ou através de seus escritos, pelo que foi condenado pelo crime de racismo (art. 20, lei 7.716/89). O julgado certamente figura entre os mais importantes sobre direitos humanos julgados pelo STF, ao expressar o repúdio do sistema jurídico-constitucional brasileiro ao antissemitismo, que constitui uma forma de discurso de ódio. Por maioria, então, o STF denegou a ordem. A negação do holocausto é uma das formas de discurso de ódio que devem ser combatidas por toda a sociedade. Admitir tal forma de manifestação sob a alegação de estar inserida no âmbito da liberdade de expressão traz o risco de sérios danos à democracia, causando, então, uma erosão democrática. É dizer, deve-se atuar na defesa conjunta dos valores democráticos, nos quais se incluem os direitos fundamentais. _____________ 1 "As eleições são críticas para o Brasil", diz vencedora do Nobel da Paz sobre onda crescente de desinformação. Valor Econômico, 15/3/2022. 2 Processo BVerfG 1 BvR 673/18. 3 Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/01/1110202 4 Disponível em: https://go.coe.int/URzjs 5 R. A. V. v. St. Paul, 505 U.S. 377 (1992). 6 STF, HC 82.424/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa. Paciente: Siegfried Ellwanger. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Data do julgamento: 17/09/2003, DJU 19/03/2004.
A coluna German Report chega à sua centésima publicação trazendo uma decisão histórica da Corte infraconstitucional alemã, o Bundesgerichtshof (BGH), envolvendo a quebra da base de contratos de fornecimento de bebidas alcoólicas em decorrência da Revolução Iraniana, ocorrida em 1979, que transformou o país, então uma monarquia autocrática pró-Ocidente, em uma república islâmica teocrática comandada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. O momento não poderia ser mais propício, tendo em vista a lamentável guerra iniciada pela Rússia contra a Ucrânia e, em certa medida, contra o Ocidente. Além de retrocesso civilizatório e democrático, o sonho neoimperialista do neoczar Wladimir Putin trás de volta o temor de uma terceira guerra mundial. É curioso - e, por vezes, assombroso - como a história humana pode ser cíclica. Um lançar de olhos no passado permite estabelecer alguns paralelos entre os tempos atuais e aqueles loucos anos 20 do início de 1900. No apagar das luzes do século 19 para o 20, a sociedade estava deslumbrada com as inovações tecnológicas da época, como o telefone, telégrafo sem fio, cinema, automóvel e o avião, invenções que provocaram profundas transformações no quotidiano e no modo de vida das pessoas, dando espaço a um novo modo de pensar e ver o mundo. A Europa vivia uma efervescência cultural: cafés, cabarés, óperas, teatros e o cinema extasiavam uma sociedade sedenta por diversão e cultura. Irromperam novas formas de arte como o Impressionismo e a Art Nouveau e, pela primeira vez na história, a sociedade experimentava a cultura urbana do divertimento, tendo Paris como o centro cultural do mundo. Era a chamada Belle Époque, período compreendido entre 1890 e 1914 que inaugurou uma fase de expansão e progresso científico, econômico, intelectual, cultural e artístico da humanidade. Mas, infelizmente, em 1914 eclodiu a 1ª. Guerra Mundial (1914-1918), pondo fim à Belle Époque, momento em que o mundo se deu conta de que as notáveis invenções da poderiam ser usadas para fins não tão benéficos, como a militarização das nações, estimulando disputas imperialistas e sentimentos nacionalistas. Mal a guerra chegara ao fim e surgia a gripe espanhola, uma pandemia resultante da mutação do vírus Influenza (H1N1) que atingiu os quatro continentes entre 1918 e 1919, deixando um saldo de milhões de mortos. O mundo ainda não se recuperara das dramáticas consequências sociais e econômicas do conflito bélico quando veio o crash da bolsa de Nova Iorque e a catástrofe humanitária da 2ª. Guerra Mundial. A passagem do século 20 para o 21 guarda, lamentavelmente, algumas semelhanças. Vivemos a Belle Époche digital, com a sociedade fascinada e entorpecida pelos desenvolvimentos tecnológicos de nossa era. Internet, smart phones, computadores, robótica, drones, inteligência artificial e aparelhos dotados de infinitas funcionalidades prometem melhorar nossa qualidade de vida e embriagam a todos, nos levando a abrir mão de bens valiosos, como privacidade, intimidade e tempo, em troca de diversão. O objetivo das grandes empresas de tecnologia é criar um mundo cada vez mais virtual, com o metaverso e a reproduzir condições de vida em outros planetas, embora não tenhamos resolvidos problemas básicos no planeta terra, como educação, saúde, respeito e vida digna para todos. Mas nesse início de século, tal como outrora, a Belle Époche digital tem sido perturbada por acontecimentos extraordinários e inesperados, que nos relembram a fragilidade de nossa natureza humana: a pandemia de Covid-19, provocada pela mutação do coronavírus (SARS-Cov-2) e a Guerra na Ucrânia, que tende a agravar ainda mais o difícil quadro socioeconômico deixado pela pandemia. Sem dúvida, é hora de olhar o passado para aprender com os erros e acertos a fim de se posicionar quanto ao futuro. No campo jurídico não é diferente. Os recentes e dramáticos acontecimentos servem de lição à onda jurídica neoconservadora que se faz sentir em várias áreas, principalmente no direito privado, que visa não corrigir os excessos, mas podar todo um desenvolvimento anterior experimento desde o final dos anos 80. Exemplo disso é a onda antirevisionista que, embalada pelo direito anglo-saxão, pretende tolher a intervenção estabilizadora do juiz nos contratos. Essa tendência teve seu ápice com a promulgação da Lei de Liberdade Econômica que, a despeito de outras boas intenções, tentou barrar a revisão contratual, se refletindo na lei 14.010/2020, a lei emergencial de direito privado da pandemia, que em seu art. 7º pretendia impedir a revisão dos contratos desequilibrados pelas consequências econômicas da pandemia. Mas, numa espécie de revolta dos fatos contra a norma, a realidade pandêmica se impôs de forma implacável levando o Judiciário - e o Legislador - em todo o mundo a intervir nos contratos buscando um reequilíbrio. Agora, com a Guerra na Ucrânia, presenciamos mais um evento extraordinário, de consequências ainda imprevisíveis, a impactar a economia global e a base estrutural de inúmeros contratos, nos mais diversos segmentos da economia. A guerra, não custa lembrar, é um dos clássicos exemplos autorizadores da revisão judicial dos contratos devido às suas dramáticas consequências socioeconômicas em escala mundial, principalmente forte alta inflacionária e desvalorização monetária. Historicamente, foram os gravosos efeitos econômicos da 1ª Guerra Mundial que destruíram a estabilidade formal e fictícia dos contratos, levando a França a editar a falada Loi Faillot (1918) para permitiu ao juiz extinguir os contratos comerciais desequilibrados em decorrência do conflito e a jurisprudência alemã a revisar os pactos com base na teoria da quebra da base do negócio, à época ainda embrionária. O Judiciário brasileiro enfrentou a crise pandêmica sem se intimidar com as correntes conservadoras. Espera-se que a mesma postura seja adotada diante dos impactos da Guerra na Ucrânia, que pode trazer de volta os fantasmas da forte alta inflacionária e da desvalorização monetária, ponto sensível na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que costuma afirmar que tais fenômenos econômicos são comuns entre nós. O início dos anos 20 da era digital não tem deixado espaço para posturas antirevisionistas. Afinal, dois exemplos (guerra e pandemia) saíram dos manuais para a realidade a fim de mostrar a necessidade de readaptar os contratos desequilibrados por acontecimentos de efeitos extraordinários e imprevisíveis. Esse julgado histórico do BGH dá um bom exemplo disso. O caso do fornecimento de cerveja para o Irã Em 1977, uma empresa iraniana importadora de cervejas encomendou doze mil caixas de cerveja na Alemanha para revender no Irã. A mercadoria foi despachada da cidade de Bremen para um porto persa, mas, lá chegando, o importador constatou que parte do produto estava avariado e inutilizável. Ele comunicou o fato ao exportador, apresentando laudo pericial que comprovava que 40% da mercadoria estava danificada e requerendo o pagamento de cerca de 96 mil marcos alemães (Deutsche Mark - DM) referentes à mercadoria e demais prejuízos incorridos, como perícia e taxas alfandegárias. Após negociações, as partes celebraram, em novembro de 1978, um acordo extrajudicial (außergeritlicher Ausgleich) de compensação dos danos, segundo o qual o importador seria indenizado com um pagamento em dinheiro de DM 20 mil e o restante do valor seria compensado com descontos no preço das bebidas que seriam adquiridas até a data de 31/5/1980. Além disso, após o primeiro, o vendedor deveria pagar mais DM 20 mil quando recebesse carta de crédito referente à mencionada compra. A fabricante alemã, porém, só efetuou o primeiro pagamento (DM 20 mil). O restante ficou em aberto, porque o aiatolá Khomeini tomou o poder no Irã em janeiro de 1979 e instaurou uma ditadura islâmica, proibindo a importação e comercialização de bebidas alcoólicas no país. Como o fornecedor alemão se recusou a renegociar os termos do acordo de indenização celebrado, o importador moveu ação de perdas e danos, julgada procedente em primeiro grau pelo Landgericht Hannover. Em grau de recurso, porém, o Tribunal (Oberlandesgericht) de Celle reduziu o valor a ser ressarcido. A decisão do OLG Celle O OLG entendeu que a base do acordo extrajudicial de compensação dos danos, celebrado em 1978, fora abalada com a revolução iraniana, pois a prestação acordada (fornecimento de cerveja por preço reduzido durante certo período) pressupunha a possibilidade de comercialização de bebida entre as partes. Porém, as expectativas - rectius: a representação comum das partes - de continuidade do comércio conjunto não se concretizaram, pois a venda de álcool no Irã fora proibida, impedindo a importação das cervejas fabricadas pela empresa alemã (ré), o que tornava necessária a readaptação do negócio.  Segundo o OLG, era irrelevante para a solução da lide o fato da autora eventualmente poder distribuir as bebidas fora das fronteiras do território iraniano, pois o acordo extrajudicial de compensação dos danos pressupunha a continuidade da importação de cervejas para o país. O Tribunal de Celle ressaltou que as falsas representações das partes sobre a possibilidade de seguidas importações não era caso de invalidade do contrato, como o previsto no § 779 BGB. Segundo o dispositivo, um contrato, pelo qual se elimina a disputa ou incerteza das partes sobre uma relação jurídica através de concessões mútuas (acordo), é ineficaz quando os fatos, presumidos como existentes, de acordo com o conteúdo do contrato, não corresponderem à realidade e a disputa ou incerteza não teria surgido se as partes tivessem tido conhecimento da situação fática. A norma, segundo o OLG Celle, pressupõe um equívoco sobre uma situação fática atual, conduzindo à invalidade do negócio. Porém, no caso concreto, as partes não tinham se equivocado sobre uma situação fática atual, mas sim sobre o desenrolar de acontecimentos futuros, no caso, o desenvolvimento político no Irã e seus efeitos sobre a relação contratual. O que, de fato, ocorreu foi uma alteração posterior das circunstâncias que provocou a quebra da base do acordo de compensação dos danos. Embora a (re)venda de produtos livres de vícios pertença, em princípio, à esfera de risco do importador, seria extremamente injusto, diante de circunstâncias tão extraordinárias como a revolução politico-religiosa e as inúmeras restrições comerciais impostas, deixar todo o risco da exequibilidade do acordo nas costas do autor, disse a Corte. Isso, aliás, iria de encontro ao próprio escopo do acordo, que visava justamente ressarcir o autor dos prejuízos sofridos com o fornecimento de cerveja. Portanto, a parte ainda não cumprida do acordo precisava ser readaptada à nova realidade factual de modo a atender ao fim último do negócio (indenizar o importador). O OLG Celle afirmou que a pretensão ressarcitória do autor deveria levar em conta o valor do proveito que ele obteria com a execução do acordo, ou seja, deveria ser calculada com base no interesse positivo, parâmetro padrão utilizado no cálculo do dano contratual segundo o qual o contratante lesado deve ser colocado na situação que estaria se o contrato tivesse sido regularmente cumprido. A Corte dividiu meio a meio o risco da execução do negócio, de forma que o autor - além dos DM 20 mil já recebidos - deveria ser recompensado em metade da segunda parcela de DM 20 mil e pela metade dos lucros que provavelmente auferiria com a execução do negócio, a ser arbitrado por estimativa (Schätzung), nos termos do § 287 I do ZPO, o diploma processual civil alemão. Segundo o OLG Celle, resultava dos termos do acordo que a ré teria fornecido, no mínimo, 60 mil caixas de cervejas. Considerando-se o preço por caixa - abatido do valor de DM 0,90, desconto fixado por estimativa pelo juiz de primeiro grau - o importador obteria um proveito de aproximadamente 54 mil marcos alemães, metade do qual deveria ser pago segundo a fórmula fifty-fifty estabelecida para a revisão contratual. Dessa forma, o autor receberia uma indenização total no valor de 37 mil marcos alemães (DM 27 mil mais DM 10 mil). A decisão do BGB O BGH julgou improcedente os recursos interpostos pelas partes, mantendo a decisão do OLG Celle em todos os seus fundamentos. Trata-se do processo BGH VIII ZR 254/82, julgado em 8/2/1984. A Corte, seguindo o entendimento do Tribunal a quo, negou tratar-se de impossibilidade da prestação ao argumento de que a proibição de importar cerveja para o Iran não liberou o devedor (vendedor) do dever de indenizar os prejuízos decorrentes do primeiro contrato de fornecimento. Aqui vale atentar que o objeto do acordo extrajudicial não era a importação em si, mas o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo importador durante o primeiro fornecimento. A encomenda (pedido de compra) de cerveja e a carta de crédito não constituíam obrigações assumidas pelo comprador, mas tão só pressupostos para os novos fornecimentos que seriam feitos conforme a conveniência do importador. O Tribunal de Karlsruhe também afirmou que não se tratava de caso de invalidade do negócio, nos termos do § 779 BGB/1900, porque as partes se equivocaram sobre o desenrolar (ocorrência ou inocorrência) de acontecimentos futuros, no caso, o desenvolvimento político no Irã e seus efeitos, e o fato dos acontecimentos terem se desenvolvido de forma contrária às expectativas dos contratantes não conduz à nulidade do acordo extrajudicial. Para o BGH não pairam dúvidas: a base do acordo extrajudicial de compensação dos danos foi quebrada com a Revolução Iraniana. A base subjetiva do negócio são aquelas representações de ambas ou de uma das partes (nesse caso, perceptíveis e não contestadas pela outra), presentes no momento da conclusão do contrato, acerca da existência ou da ocorrência futura de certas circunstâncias, as quais dão sustentação à vontade negocial, i.e., à decisão de contratar. De fato, a possibilidade de continuação da relação comercial fez parte da base do negócio de compensação dos danos, pois este pressupunha a continuidade da parceria comercial no fornecimento de bebidas. Só assim faz sentido a concessão de desconto no preço das bebidas em futuras aquisições. Em outras palavras: o escopo econômico visado com o acordo só seria alcançado se o importador pudesse encomendar e revender a mercadoria. Para a configuração da quebra da base do negócio é necessário ainda que a alteração das circunstâncias produza efeitos gravosos, "inconciliáveis com o direito e a justiça", e, portanto, insuportáveis para a parte prejudicada, como ocorre, por exemplo, quando surge grave desproporção entre prestação e contraprestação. Um credor que, por meio de acordo, deixa de fazer valer suas pretensões decorrentes do fornecimento defeituoso de mercadorias para receber, como contrapartida, determinada prestação, não precisa se dar por satisfeito com o cumprimento parcial, afirmou o BGH. Interessante registrar, ainda, que a Corte rejeitou o argumento do fabricante alemão de que o importador não poderia alegar quebra da base do negócio, pois o desenvolvimento politico no Irã era previsível. Segundo o BGH, esses acontecimentos - e, principalmente, seus efeitos - não eram tão certos a ponto da parte prejudicada (importador) tê-los considerado em sua esfera de riscos, o que vedaria o recurso à figura da quebra da base do negócio. Assim, o BGH chancelou a readaptação contratual feita pelo OLG Celle salientando que a repartição equânime dos riscos é a solução mais adequada sempre quando no caso concreto não houver base para onerar uma parte mais que a outra. Em suma: esse julgado histórico, frequentemente mencionado na literatura alemã sobre quebra da base do negócio, mostra o rigor científico e a maturidade dogmática do Bundesgerichtshof ao reconhecer a extraordinariedade e imprevisibilidade dos efeitos da Revolução no Irã sobre o contrato de fornecimento de cerveja, a justificar a revisão do acordo extrajudicial de indenização celebrado entre as partes. Como a Guerra da Ucrânia, a Revolução Iraniana talvez fosse na época um evento possível, mas suas consequências eram gravosas e imprevisíveis para o comércio jurídico, autorizando a readaptação dos pactos. Ótimo caso histórico para ser discutido e refletido.