COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. German Report >
  4. Entrevista: Judith Martins Costa

Entrevista: Judith Martins Costa

terça-feira, 2 de junho de 2020

Atualizado às 09:24

A coluna German Report tem a honra de entrevistar a Profa. Dra. Judith Martins-Costa, uma das mais brilhantes civilistas brasileira da atualidade. Autora da mais completa obra sobre a boa-fé no Direito Privado, Judith Martins Costa é livre-docente e doutora pela Universidade de São Paulo, onde defendeu a tese: Sistema e cláusula geral: a boa-fé no processo obrigacional.

Discípula de Clóvis do Couto e Silva, de quem foi orientanda até o falecimento do festejado autor, Judith Martins Costa aprofunda e dá continuidade à ideia de obrigação como processo, enfrentando, com verticalidade, as complexas funções da boa-fé no nosso sistema jurídico. A obra A boa-fé no direito privado, publicada recentemente pela editora Saraiva, virou um clássico da literatura jurídica nacional e leitura obrigatória para todos que se ocupam do tema, principalmente da boa-fé nas obrigações e nos contratos.

A vasta produção científica da autora estende-se por todos os ramos do Direito Civil e da Metodologia Jurídica, merecendo destaque o famoso Comentários ao novo código civil, da editora Forense, no qual aborda, em dois volumes, o adimplemento, inadimplemento e a extinção das obrigações, bem como a atualização do primeiro tomo do Tratado de Direito Privado de Pontes de Miranda, juntamente com Jorge Cesa Ferreira da Sliva e Gustavo Haical, coleção publicada em 2012 pela editora Revista dos Tribunais.

Judith Martins Costa é uma das mais renomadas pareceristas brasileiras, atuando como advogada e árbitra em câmaras nacionais e internacionais, além de requisitada conferencista em universidades nacionais e estrangeiras. Ao German Report ela concedeu entrevista exclusiva, refletindo sobre esse dramático período de crise de saúde pública no qual o mundo está mergulhado e que tem afetado profundamente a sociedade e a economia. Ela fala, com absoluta propriedade, sobre os mecanismos postos à disposição do intérprete para tentar debelar os efeitos nocivos do coronavírus nos contratos, apontando os méritos e deficiências do Código Civil, sem perder de vista as recentes alterações legislativas provocadas pela Lei de Liberdade Econômica e pelo PL 1.179/2020.

Confira a entrevista:

GR: O coronavírus afetou profundamente a economia mundial. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o mundo está entrando em uma recessão só equiparável à grande depressão de 1929. Como o coronavírus pode afetar os contratos, mecanismo fundamental de circulação da riqueza?

Como você bem observa, o contrato é o instrumento, por excelência, da circulação da riqueza. Estamos atravessando uma pandemia que já empobreceu e empobrecerá ainda mais a economia mundial, atingindo a capacidade produtiva, o crédito, o consumo. Já por isso haveria um impacto nos contratos. Mas há mais, há impacto direto. Uma relação contratual pode ser diretamente afetada pela pandemia quando, por relação causal, o fato da pandemia, ou fato diretamente por ela causado - por exemplo, desabastecimento, como a falta de determinado insumo; decretos impedindo ou restringindo a circulação em espaços comerciais; o desemprego, a insolvência - implicar riscos extraordinários aos contraentes, ou excessiva onerosidade, ou impossibilidade do cumprimento. Num mundo globalizado, os contratos são as fibras do tecido conectivo da economia mundial. Isto significa que as perturbações no curso normal da relação contratual acabam tendo um duplo reflexo: no cenário micro-econômico e no cenário macro-econômico.

Nós, juristas do Direito Privado, trabalhamos com relações micro-econômicas (assim, o contrato entre A e B, a sociedade entre C, D e F). Mas não podemos simplesmente eclipsar o fato de - em razão da configuração do sistema econômico mundial - os particulares contratos atingidos pelo extraordinário e pelo imprevisível fato da pandemia não serem unidades isoladas, não serem átomos. Teremos que lidar com esse paradoxo: como fato jurídico - que também é cada contrato - não diz respeito apenas aos interesses dos dois polos que se alocam em sua estrutura como parte credora e parte devedora.

GR: O nosso Código Civil não disciplina expressamente a hipótese de impossibilidade temporária da prestação, que tem se apresentado em várias situações contratuais atualmente. Como construir esse regime no direito brasileiro?

A Impossibilidade será temporária e não definitiva quando for possível prever que a situação de impossibilidade, física ou jurídica, pode passar e a prestação ainda for útil ao credor, pois o adjetivo "definitivo" que qualifica a impossibilidade não traduz um critério naturalístico, mas um critério jurídico. Assim, na impossibilidade temporária a extinção da dívida não ocorre, desde que ainda possa ser atingida a finalidade da prestação, com utilidade para o credor. A impossibilidade temporária, então, apenas retarda o cumprimento. O devedor não incorre em mora e nem se extingue a dívida.

É verdade que o Código Civil não tem disciplina expressa de ordem geral para a hipótese de impossibilidade temporária, salvo no que diz com (i) o afastamento dos efeitos da mora e da própria responsabilidade civil (arts. 393 e 396) no caso de força maior ou caso fortuito, que é espécie de impossibilidade superveniente não imputável e (ii) salvo a possibilidade de opor as exceções sinalagmáticas (arts. 476 e 477). Mas se lermos o Código Civil com atenção, veremos que há disciplina para hipóteses topicamente situadas e há outras eficácias que dessa hipótese derivam.

A primeira é a suspensão da exigibilidade da prestação enquanto perdurar a situação de impossibilidade, ou, mesmo, a suspensão parcial da exigibilidade. Embora não haja regra geral, há regras previstas, por exemplo, para o contrato de empreitada (art. 625, inc. I); e o contrato de transporte (arts. 741 e 753). No art. 567, pode-se, analogicamente, em relação de locação, pretender a redução proporcional do aluguel enquanto durar a situação de impossibilidade de plena fruição do imóvel. A própria noção de prestação que se extrai do Código Civil é a de uma atividade voltada a proporcionar uma utilidade para o credor, isto é, um resultado útil. Embora escondido no parágrafo único do art. 395, o topos da utilidade da prestação para o credor é da maior relevância em todo o sistema das perturbações da relação obrigacional.

Pois bem: a partir dessas indicações tópicas, como construir uma solução para a hipótese de impossibilidade temporária que tenha amparo sistemático? Penso que se for possível prever que a situação de impossibilidade pode ser temporária, (i) a extinção da dívida não ocorre, desde que ainda possa ser alcançada a finalidade da prestação, é dizer: o resultado prometido ao credor. A impossibilidade temporária, então, apenas retarda o cumprimento, sem que possam ser atribuídos ao devedor os efeitos da mora (Código Civil, art. 396). Mas outras distinções devem ser feitas: (ii) se a impossibilidade temporária incide sobre negócio jurídico fixo, assim considerado aquele cujo cumprimento não pode (por sua natureza ou pela vontade das partes) ser realizado noutro dia, ela se transformará em impossibilidade definitiva; (iii) embora passageira a impossibilidade, e mesmo quando não se tratar de um negócio jurídico fixo, o fato da prestação não atingir a finalidade a que fora predisposta poderá dar ensejo à resolução, transmutando-se, então, em impossibilidade definitiva, a depender de ter sido ou não atingido o interesse do credor à prestação; e igualmente, (iv) é a prestação considerada extinta se, em vista do tipo de obrigação, ou a natureza do objeto a ser prestado, o devedor não pode ser considerado obrigado a executá-la, como é o exemplo de uma pianista não poder comparecer ao recital marcado para certa data se naquele dia faleceu seu filho (casos de "impossibilidade moral").

GR: Pode-se dizer que o Código Civil possui um regime uniforme de adaptação do contrato diante de profundas alterações posteriores nas circunstâncias, como as causadas pelo coronavírus?

Há um regime, mas não é nem uniforme, nem, na minha opinião, plenamente satisfatório no que diz com o regramento das alterações das circunstâncias, especialmente quando causadas por excessiva onerosidade superveniente. É certo que, em razão do princípio da atipicidade (art. 425) as partes têm ampla margem para regrar, no contrato, fórmulas de adaptação do contrato às circunstâncias supervenientes. Serão, então, soluções contratuais. Quanto às soluções legais, há um cardápio variado no Código Civil: temos as cláusulas gerais dos arts. 187 e 422 (a primeira vedando condutas negociais disfuncionais; a segunda, direcionando a um comportamento contratual probo, correto); temos as exceções sinalagmáticas nos arts. 476 e 477 (a primeira, exceção de contrato não cumprido; a segunda, exceção de inseguridade). E temos, ainda, as regras acerca da excessiva onerosidade superveniente.

Especificamente quanto à essa hipótese, há o art. 317, cujo enunciado, de redação defeituosa, foi feito para regrar a correção monetária nas obrigações pecuniárias. Porém, no curso da tramitação do Projeto de Código Civil - com a superveniência das regras sobre correção monetária - o enunciado perdeu seu sentido original. O que ali se determina é, caso haja "desproporção manifesta", oriunda de motivos imprevisíveis, entre o valor que a prestação tinha quando da conclusão do contrato e o momento de sua execução, pode-se pedir ao juiz que determine o "valor real" da prestação, o que por si só é fonte de muitos questionamentos, a começar por determinar o que é o "valor real" de uma prestação; há o art. 478, cuja redação é também defeituosa ao exigir o requisito da "extrema vantagem" para a outra parte, o que afasta a incidência da regra (tornando-a, pois, inservível) quando há um jogo de "perde/perde", como agora se verifica em tantas situações causadas pela pandemia; há a possibilidade de revisão equitativa, mas nos limites traçados pelo art. 479, isto é: por iniciativa da parte a quem foi dirigida a pretensão resolutória, nos termos do art. 478; há uma ampla possibilidade revisional no art. 480, mas para um campo contratual mais restrito, qual seja, o dos contratos unilaterais. E, ainda, uma ou outra regra topicamente situada, como a do art. 625, incisos I e II que leva a diversa solução: o empreiteiro pode suspender a obra, se caracterizada força maior ou se, por dificuldades imprevisíveis de execução, decorrer excessiva onerosidade.

GR: Quando, afinal, um contrato pode ser adaptado segundo o Código Civil?

Além das adaptações por via da autonomia privada - da maior importância, embora às vezes minimizadas - há, como regras gerais, aquelas que já referi, isto é: as derivadas do art. 317, para as obrigações pecuniárias e do art. 479, para os contratos bilaterais, quando o réu (isto é, a parte contra quem foi dirigido o pedido resolutório, nos termos do art. 478) oferecer a modificação equitativa. Não há nenhuma cláusula geral de adaptação às circunstâncias, como, por exemplo, o art. 437 do Código Civil português. E não podemos esquecer que o parágrafo único do art. 421, incluído pela lei 13.974/19 - "Lei da Liberdade Econômica" -, ainda determina a incidência, nos contratos paritários, do que chama de "princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual".

Em suma: penso ser muito estrito esse regime. Nos contratos regidos pelo Código Civil, a possibilidade de adaptação em razão de fonte legal é demasiadamente reduzida, embora seja muito ampla quando derivada de fonte contratual. Em contrapartida, no âmbito das relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), as possibilidades de adaptação são amplíssimas em razão do art. 6º, inc. V.

GR: O Projeto de Lei 1.179/2020, que institui um regime jurídico transitório para relações jurídicas privadas, diz no art. 7o que não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins do art. 317, 478, 479 e 489 do Código Civil, o aumento de inflação, variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário. Como a Senhora analisa esse dispositivo diante das consequências econômicas imprevisíveis da crise de saúde pública?

Penso que a regra do art. 7 não é das mais felizes, embora sempre ressalve o alto espírito público dos seus autores. A razão está em que, no meu modo de ver, não se pode - tecnicamente - congelar em texto de lei, abstrato e geral, o que é imprevisível e extraordinário. A imprevisibilidade e a extraordinariedade têm relevância no que concerne ao seu impacto no sinalagma contratual, e, portanto, na prestação em concreto. Um mesmo fato extraordinário - vamos pensar num fato da natureza, uma enchente avassaladora - pode provocar ou nenhum efeito num contrato; ou o efeito de aumentar os custos do devedor, apenas; ou o de causar excessiva onerosidade para ambas as partes, de modo a incidir o art. 478; ou mesmo de ser causa de impossibilidade superveniente não imputável ao obrigado, com efeito liberatório, conforme o art. 234, se for obrigação de dar, por exemplo.

E ainda há uma razão de ordem prática: se o art. 7 foi projetado com a intenção de brecar a enxurrada de ações revisionais com fundamento na imprevisibilidade e extraordinariedade, talvez tenha sido fechada a porta errada. Quantitativamente, ao menos, os pedidos de revisão tendem a se enquadrar em situações regidas pelo CDC, e não pelo Código Civil, cujas duas hipóteses gerais de revisão ou resolução por excessiva onerosidade superveniente - arts. 317 e 478 a 480 - são, como acabo de referir, estritíssimas. E o CDC simplesmente não prevê a imprevisibilidade e extraordinariedade como elemento do suporte fático de sua principal regra revisional - art. 6º, inc. V, 2ª parte - que é, como também já referi, amplíssima: bastam a superveniência do fato e a sua excessiva onerosidade, não se cogitando imprevisibilidade.

GR: Alguns instrumentos internacionais de soft law, bem como os códigos da República Tcheca e da Romênia falam em um dever das partes de renegociar o contrato diante de modificações posteriores nas circunstâncias. O Código Civil alemão e francês, contudo, que sofreram significativas reformas, respectivamente, em 2002 e 2016, não instituíram tal dever material. A Senhora acha que seria possível deduzir a partir da cláusula geral da boa-fé objetiva um dever de renegociar?

Com todo o imenso respeito que tenho aos colegas que sustentam diferentemente, penso não ser possível deduzir do art. 422 do Código Civil um dever geral de renegociar. Há duas ordens de razão para o meu pensamento.

A primeira é que o princípio da boa-fé, tal qual posto no art. 422, é fonte de um dever de colaborar para com o adimplemento do contrato e não para refazer o contrato. Há um caráter finalístico e imediato da ligação entre o princípio e o adimplemento satisfativo do contrato como pactuado. É claro que, sem afastar esse dever legal, as partes podem pactuar a mútua colaboração para o atingimento de fins específicos, por exemplo, para atuarem em vista do "completamento" de um contrato incompleto, mas, neste caso, não estaremos falando de um dever legal, mas de um dever contratual. As partes podem considerar mais conveniente aos seus mútuos interesses não minudenciar ex ante todas as particularidades da conduta devida, então estabelecendo obrigações genéricas (como um dever de melhores esforços ou um dever de agir segundo a boa-fé para o alcance de tal ou qual ato), e detalhando a conduta no curso da execução contratual. Estas hipóteses não se confundem com um dever legal de renegociar as bases contratuais, mas configuram um dever contratual de ajustamento, ou completamento, conforme o caso.

A segunda razão, é que lidar com o Direito implica a arte de fazer distinções. Há contratos em que o estabelecimento de um dever de renegociar poderia, eventualmente, ser oportuno e desejável, desde que a regra legal impositiva desse dever também trouxesse critérios e requisitos tecnicamente bem definidos e os tipos de contrato em que esse dever incidiria. Penso em contratos duradouros, que estabelecem um intenso vínculo de pessoalidade entre as partes; ou em contratos de organização, para-associativos ou mesmo nos chamados "contratos existenciais", atinentes a necessidades essenciais da pessoa humana, como a moradia. Em outros contratos, diferentemente, em que a contraposição de interesses é evidente, como na compra e venda, a imposição por lei de um tal dever poderia ser até mesmo disfuncional ao tipo. Igualmente, penso num contrato de mandato com um advogado, fundado em um vínculo tão intensamente fiduciário: caberia obrigar as partes, ex vi legis, a uma renegociação?

Além do mais, se estabelecido na lei um dever de renegociar, deveriam vir igualmente previstos os critérios, os requisitos e as consequências, para minimizar o oportunismo (a parte em situação mais favorável poderá vir a praticar moral hazard) e para evitar o abuso do julgador na fixação das consequências do seu descumprimento. Por exemplo: o incumprimento gera pretensão à indenização? Se assim for, como quantificá-la? Ou gera pretensão a uma multa? Qual seria o seu fundamento legal? Ou a imposição de astreintes? Novamente, qual a base legal? Deve-se prever a possibilidade de o próprio julgador revisar o negócio se as partes não renegociarem? A renegociação se dá com um credor, aleatoriamente escolhido pelo devedor, ou com os eventualmente vários credores de um mesmo devedor? Nesse caso, como proceder? Seria extensível a essa hipótese o mecanismo da par conditio creditorum? Quem estabeleceria a preferência?

Além do mais, creio ser correto estruturar a intensidade da incidência do princípio da boa-fé conforme (dentre outros critérios) o tipo do interesse envolvido: mea res agitur; tua res agitur; nostra res agitur, como propus em outra sede. Logo, mesmo se perspectivado esse dever legal de renegociar como uma possibilidade teórica, em face ao nosso ordenamento, ocorrem-me essas dúvidas e perplexidades no que diz com a sua concreta implementação.

GR: A paralisação das atividades econômicas, em decorrência do combate à propagação do coronavírus, tem comprometido a renda de milhares de pessoas em todo o mundo. Como a Senhora analisa o problema provocado pelo coronavírus no âmbito da locação residencial nas hipóteses em que o locatário tem sua fonte de renda comprometida pela suspensão do exercício de atividade profissional ou econômica e não tem condições de continuar pagando o aluguel sem comprometer sua subsistência?

A locação residencial é o setor que mais dificuldades apresenta em razão dos aspectos extrapatrimoniais envolvidos, tanto para o locatário - que se vê ameaçado de ficar sem sua moradia - quanto para o locador. Não é raro encontrar, na parte locadora, uma pessoa que vive exclusivamente daquela renda de um ou de poucos imóveis nos quais investiu ao longo da vida como uma espécie de poupança para o período de sua aposentadoria. Penso que nessas circunstâncias, além do caminho da negociação - para acordar, por exemplo, uma redução temporária do valor do aluguel - poderia ter havido uma previsão legislativa para estabelecer casos de redução e de suspensão temporária do valor, desde que em sua redação estivessem bem marcados os requisitos exigíveis de ambas as partes.

GR: Como solucionar esse problema na locação comercial, especialmente em estabelecimentos comerciais em shopping centers?

No meu modo de ver, a locação comercial comum é bastante distinta da locação em shopping center. Neste, há um caráter de "contrato de organização" que implica deveres suprapessoais. Além do mais, há de distinguir: de que "problema" estamos tratando: da dificuldade de prestar? De uma excessiva onerosidade superveniente, pois nem toda dificuldade de prestar se caracteriza como excessiva onerosidade, no sentido jurídico? De uma impossibilidade de prestar, ainda que temporária? E essa impossibilidade temporária é parcial ou é total? O primeiro passo para dar uma resposta precisa seria a delimitação de que tipo de locação se trata e de que tipo de efeito o fato da pandemia gerou para o contrato.

Uma possível solução, no caso de impossibilidade temporária, seria a de invocar, para o aluguel fixo, analogicamente, o art. 567 do Código Civil como já muito bem proposto pela Profa. Aline Valverde Miranda Terra e como está também na doutrina de Pontes de Miranda. Assim, na hipótese de haver causa para a impossibilidade temporária e parcial, não imputável nem ao locador nem ao locatário, de vir a ser fruída, totalmente ou em parte, a coisa locada, o locatário poderia pedir a "redução proporcional" do aluguel mínimo, pelo período em que a plena fruição da locação está impedida, desde que sejam observados certos condicionamentos, por exemplo: que haja nexo causal entre a comprovada diminuição do rendimento e o fato do fechamento do shopping e, quanto a outras despesas geradas pelo contrato, que seja garantida a proporcionalidade entre a redução as despesas havidas pelo empreendimento em prol do interesse comum.

GR: A determinação de fechamento temporário das escolas tem suscitados intensos debates acerca da legitimidade - ou não - da redução das mensalidades escolares, mesmo naqueles colégios que têm oferecido aulas online para seus alunos. Como a Senhora analisa o problema do coronavírus nos contratos de prestações desses serviços no ensino básico?

Essa é outra questão complexa, que não admite respostas simplistas. Em linha de princípio, não penso haver razão jurídica para alterar esses contratos se a prestação de serviços continua a ser oferecida. A disciplina legal da prestação de serviços é silente a este respeito. Os colégios têm despesas permanentes, inclusive com a remuneração dos professores que, aliás, muitas vezes estão tendo um trabalho adicional, pois estão se esforçando para se adaptar e ministrar as aulas online. Pode haver dificuldades, mas onde estaria a impossibilidade (razão de ordem fática ou jurídica pela qual a prestação se torna irrealizável?) ou a excessiva onerosidade (não houve aumento, muito menos aumento excessivo, no valor da mensalidade)? Talvez se possa pensar em impossibilidade para o credor da prestação de serviços - o aluno - quando, pela carência financeira de sua família, não puder adquirir os equipamentos necessários para seguir as aulas online nem esses lhes forem oferecidos pela instituição de ensino. Teria que se examinar, então, se o fim a que direcionada a prestação foi atingido (hipótese de impossibilidade pelo desaparecimento do fim). Nesse caso específico, caberia a liberação da prestação de pagar a mensalidade, pela incidência do art. 248.

GR: A Lei de Liberdade Econômica guiou-se, dentre outros, pelo princípio da intervenção mínima do Estado no exercício das atividades econômicas, orientação estendida até à interpretação dos contratos, como deixa claro o parágrafo único introduzido ao art. 421 do Código Civil. Por outro lado, a crise de covid-19 está exigindo, em todo o mundo, uma intervenção maior do Estado na economia e na Europa tem-se falado em um momento de concretização do Estado Social. Em que medida a LLE vai na contramão dessa nova onda intervencionista, na qual o Estado tem sido chamado a proteger os cidadãos e a ajudar na estabilização da economia?

R. Além dos muitos e graves problemas técnicos da LLE, já de antemão percebidos pela doutrina não áulica que apontou a dificuldades de ordem lógica e sistemática daquela Lei (sublinhando inclusive a sua muito confusa redação), a pandemia mostrou-nos agora o grande equívoco dos seus fundamentos axiológicos. É uma lei que anda na contramão da História e, no meu modo de ver, natimorta.