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Lei 14.010/2020 caduca quando a Europa enfrenta a segunda onda de covid-19

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Atualizado às 10:03

A bruxa está solta na Europa: a segunda onda de covid-19 é uma realidade. Depois de um verão ensolarado e esperançoso de ter debelado o coronavírus, outubro trouxe um outono difícil para os europeus. Cerca de três meses após o fim do lockdown decretado no primeiro semestre, vários países do continente tiveram que adotar novamente rígidas medidas de combate ao coronavírus.

A Irlanda foi a primeira a ordenar lockdown, ainda que parcial. Desde 22/10/2020 vigoram novamente no território irlandês regras de isolamento social e fechamento de estabelecimentos comerciais. A maioria das lojas de produtos não essenciais estão de portas fechadas.

As pessoas só podem sair de casa em casos excepcionais: para ir ao trabalho, ao médico ou se exercitar, sem ultrapassar, contudo, um raio de 5km de distância. Algumas atividades profissionais estão sendo exercidas presencialmente, principalmente na indústria, a fim de não causar danos ainda maiores à economia do país1.

Creches e escolas também estão abertas, principalmente depois que a UNESCO publicou estudo informando que mais de 1,5 bilhão de estudantes em todo o planeta foram afetados pelo fechamento das instituições de ensino durante a pandemia, uma interrupção educacional súbita e sem precedentes na história. A crise de saúde pública gerou uma crise educacional, ampliando as desigualdades de aprendizagem e prejudicando especialmente crianças e jovens mais vulneráveis2.

No Reino Unido, Boris Johnson ordenou o fechamento de estabelecimentos comerciais e o isolamento social até 2.12.2020, marcando uma mudança de 180 graus na postura inicial do governo em relação à pandemia3. Apenas escolas, universidades, fábricas e o comércio de produtos essenciais podem funcionar. Os britânicos também só podem sair de casa para ir ao trabalho, se exercitar, ir às compras ou auxiliar familiares.

O Primeiro Ministro justificou as rígidas medidas dizendo que a hora de agir é agora, pois não há alternativas para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde, que em um dia chegou a registrar 21.915 pessoas infectadas com covid-194.

A Itália dividiu o país em três zonas de riscos a fim de conter o aumento do contágio de covid-19. A principal medida tem sido o isolamento social, pois o Primeiro Ministro, Giuseppe Conte, se recusou a instituir o lockdown ao argumento de que isso seria insuportável para a economia italiana.

Na contramão da orientação da UNESCO e dos países vizinhos, ordenou o fechamento das escolas do país, exceto de ensino fundamental, colocando milhares de alunos em aulas online. Teatros, cinemas, museus e ginásios também foram fechados e os italianos devem obedecer toque de recolher noturno5.

França e Alemanha também instituíram novo lockdown: Emmanuel Macron e Angela Merkel anunciaram uma série de restrições de circulação e atividades por cerca de um mês. No discurso dos governantes, dentre várias convergências, uma merece destaque: o Estado não pode se omitir e permitir a imunização coletiva da população, o que significaria triagem de pacientes e aumento de mortes.

Macron foi categórico: "Não poderíamos não fazer nada e aceitar a imunidade coletiva"6. Merkel foi incisiva: "Nós temos que agir e agora". A Chanceler classificou o vírus como uma catástrofe natural, um evento especial e desafiador que só ocorre uma vez no século7.

A luz no fim do túnel ainda está distante, disse ela, deixando claro que teremos que conviver com o vírus. Fez um apelo aos alemães e disse confiar na "razão e responsabilidade da população".

O objetivo das medidas é modesto: ter um "dezembro suportável", com Natal em família. Mas réveillon, nem pensar. E não se sabe ainda o que vem pela frente. A Chanceler reconhece que as medidas são dramáticas, principalmente para a economia, mas reafirmou que "ninguém será deixado só"8.

As medidas na França

Na França,  as medidas foram anunciadas depois que o Ministério da Saúde registrou mais de 36 mil casos em 24h. O novo lockdown teve início dia 30.10.2020 e fica vigor, em princípio, até 1/12/2020.

Todo o comércio de serviços não essenciais foi fechado, o que inclui restaurantes, bares, hotéis, academias, etc., todos já extremamente prejudicados com o isolamento social desde o início da pandemia, em março desse ano.

Os franceses só podem sair de casa para comprar produtos essenciais, ir ao médico ou fazer exercícios ao ar livre. Quase 2/3 da população, aproximadamente 46 milhões de pessoas, estão atualmente sob toque de recolher noturno, não podendo sair de casa entre 21h e 6h, exceto em caso de emergência.

As viagens também estão proibidas dentro do país. Além dos serviços essenciais, estão funcionando escolas e creches, mas as universidades irão adotar ensino remoto para evitar contágio durante as aulas9.

O lockdown na Alemanha

Na Alemanha, as medidas de isolamento social e paralisação parcial das atividades entraram em vigor ontem, dia 2/11/2020, aprofundando ainda mais a crise econômica amargada principalmente por setores da gastronomia, hotelaria, cultura, esporte, turismo e aéreo.

A palavra de ordem é isolamento social. As pessoas devem restringir o contato ao mínimo absolutamente necessário. Fora de casa, as aglomerações estão limitadas a dez pessoas de, no máximo, duas famílias distintas e o descumprimento gera multa.

Festas e comemorações foram classificadas como "inaceitáveis"10, um recado direcionado principalmente aos jovens, que, após o fim do primeiro lockdown em julho, reuniram-se frequentemente, criando focos de contaminação em diversas regiões do país, levando a Chanceler a dirigir-lhes um apelo especial em meados de outubro11.

Há recomendação para as pessoas não viajarem, até porque várias cidades do país já haviam proibido hospedagens em hotéis e pensões, exceto viagens de negócio. Agora, só comprovando extrema necessidade.

Bares, restaurantes, cafés, clubes, boates e assemelhados estão fechados, embora seja permitido a entrega e retirada de alimentação. Da mesma forma, estão suspensas todas as atividades de entretenimento, como teatros, óperas, cinemas, feiras, academias, jogos e bordeis, atividade legalizada no país.

Celebrações religiosas podem ser realizadas, desde que obedecendo as regras de higiene e distanciamento mínimo. Da mesma forma que na França, creches e escolas permanecerão funcionando, sendo competência de cada ente federativo definir as medidas de proteção necessárias para evitar o contágio.

Clínicas de tratamento médico, salões de beleza, fábricas e oficinas podem permanecer abertos, mas o governo fez um apelo para que os trabalhadores fossem colocados em home office, sempre que possível.

O governo anunciou um pacote de ajuda financeira no valor de 10 bilhões de euros para as empresas e profissionais liberais mais duramente afetados pelas novas regras. Eles serão ressarcidos parcialmente pela perda de suas rendas. Segundo as regras, empresas de até cinquenta funcionários serão ressarcidas em até 75% das perdas, enquanto as maiores receberão ajuda financeira da União Europeia. 

As repercussões das medidas na Alemanha

Apesar do auxílio financeiro, as críticas às novas medidas foram imediatas, principalmente dos setores mais afetados. A Associação do Comércio da Alemanha - Handesverband Deutschland (HDE) - alegou que as medidas equivalem na prática a outro lockdown, pois o comércio ficará aberto, mas sem clientes12.

Representantes da gastronomia consideram as medidas totalmente desproporcionais e veem aí uma sentença de morte para inúmeros estabelecimentos de médio porte, com a consequente perda de milhares de postos de trabalho.

Donos de restaurantes e hotéis alegam que seus estabelecimentos não são focos de disseminação da doença, o que tornaria a ordem de fechamento inadequada e desproporcional, levantando discussões acerca de sua (in)constitucionalidade.

O governo, porém, afirma que a pandemia chegou a tal ponto que tornou impossível identificar a fonte do contágio em 75% dos casos13, dificultando o rastreamento seguro da cadeia de contágio.

Indignados estão ainda as associações de teatros e cinemas, que investiram pesado em novos conceitos de higiene e segurança, ampliando salas e instalando caros sistemas de ventilação e, agora, precisam fechar as portas novamente.

Em suma, há gritaria de todos os lados. E a razão é uma só: o profundo impacto econômico das medidas. Se a economia já havia sentido o duro golpe com a primeira onda, a segunda altera totalmente o cenário de recuperação econômica, desenhado desde o fim do lockdown, frustrando a expectativa de retorno à "normalidade" de várias atividades14.

A nova onda de covid-19 jogou um balde de agua fria na crença de que o coronavírus seria debelado em quatro ou seis meses, como muitos apostaram no início da pandemia, apesar dos alertas da Organização Mundial de Saúde.

O temor agora é que os governos tenham que adotar daqui para frente medidas ainda mais rigorosas de contenção do vírus, provocando um double dip na economia, ou seja, uma nova quebra abrupta das atividades. É justamente o risco oriundo desse cenário mais negativo que derruba os mercados hoje, dizem os especialistas15.

Brasil e o coronavírus

Aqui no Brasil, a sensação é de "novo normal"16. Mas a postura diante da pandemia foi bem pior que na Europa: muitos subestimaram o vírus. A falta de uma política nacional de combate ao coronavírus e o número de mortos (mais de 160 mil em oito meses) o comprovam17.

Parece que nem o legislador emergencial soube dimensionar o tamanho do monstro. Sintomático nesse sentido foi a lei 14.010/2020, que estabeleceu um regime jurídico emergencial de direito privado para o período de pandemia, ter fixado o fim de sua vigência em 30/10/2020, justamente quando a Europa entra novamente em lockdown.

A lei, que buscou inspiração no modelo inglês da primeira fase do vírus, melhor teria andado se tivesse seguido o exemplo de leis emergenciais de países com a mesma tradição jurídica que a nossa, com a alemã, que, intuindo a gravidade da situação, jogou o fim de sua vigência para 30/9/2022.

A lei emergencial parece ter cometido outro equívoco ao tentar separar a crise de saúde pública da crise econômica que veio a reboque. Isso fica claro quando o art. 7º da lei 14.010/2020 tenta impedir a revisão judicial dos contratos em razão de alterações na economia, como desvalorização monetária, alta inflacionária, variação cambial e até a substituição do padrão monetário.

Como esses eventos seriam absolutamente previsíveis em países de instabilidade econômica, como o Brasil, não caberia revisão ao argumento de que a pandemia fora a causa "imprevista" dessas flutuações. Ao contrário: seria oportunismo pleitear a revisão nesses casos, conduta a ser coibida pelo Judiciário.

A doutrina civilista reafirmou a necessidade de cumprimento dos pactos, só admitindo revisão em casos de onerosidade excessiva da prestação (art. 478 CC), i.e., em caso de elevação do custo da prestação, até porque a aplicação do art. 317 CC (variação no valor da prestação por eventos imprevisíveis) fora drasticamente restringida pelo art. 7º da lei 14.010/2020.

Afirmou-se ainda que a revisão - em admitida - só seria possível para os contratos celebrados antes da pandemia, pois quem contrata durante a crise tem que arcar com os riscos da pandemia, afinal, os contratantes podem regular os riscos de forma racional e adequada.

Diante da reviravolta provocada pela segunda onda de covid-19 na Europa, com nova disrupção nas cadeias de produção e fornecimento, fica a dúvida: os agentes econômicos conseguem atualmente planejar e alocar, com segurança e de forma otimizada, os riscos contratuais? A resposta só pode ser, em muitos casos, negativa, diante desse cenário de incerteza econômica e pandêmica. 

Quando nem os economistas são capazes de prever a extensão do impacto do vírus na economia mundial, nem os médicos sanitaristas conseguem ainda apontar uma luz no fim do túnel, o direito não pode razoavelmente exigir que os contratantes o façam. 

A necessidade de revisão contratual

Dessa forma, os contratos celebrados durante a pandemia não podem ficar imunes - a priori e in abstracto - à revisão contratual pelo juiz ou árbitro sob o mero argumento formal da data de sua celebração. Eles estão sujeitos, em princípio, tal como os negócios celebrados antes da crise sanitária, ao impactos das consequências imprevisíveis da pandemia.

Se, no caso concreto, o cumprimento do contrato, tal como inicialmente acordado, se tornar excessivamente difícil em razão das consequências graves e imprevisíveis da pandemia, cabe ao julgador intervir, readaptando o negócio de forma equilibrada, se a parte prejudicada não assumiu o risco da ocorrência daquele evento, análise a ser feita de forma concreta e não abstratamente.

A ocorrência de profundas alterações nas circunstâncias iniciais do contrato, que formam a base do negócio, é um problema de interpretação contratual que se põe na fase da execução do contrato18. E o Código Civil dispõe de regras claras à respeito: o art. 422 CC impõe às partes o dever de executar os contratos de boa-fé, enquanto o art. 113 CC diz que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes.

A boa-fé objetiva, regra de ouro da interpretação contratual, reconhecida no plano internacional19, exige que o julgador revise os contratos diante desse quadro de instabilidade mundial provocado pelo coronavírus. Para tanto, importante verificar se no momento da alocação dos riscos os contratantes previram - ou podiam razoavelmente prever - a dimensão dos efeitos provocados pelo evento anormal (pandemia) e se o risco que se materializou foi de fato assumido pela parte prejudicada ou se lhe pode ser imputado.

Em caso positivo, descabe revisão. Mas caso o risco não seja imputável à esfera de risco e responsabilidade do contratante prejudicado, como na fase pré-pandemia, a revisão contratual se impõe em respeito à boa-fé objetiva, ao equilíbrio contratual e à autonomia privada, pois o contrato desequilibrado difere totalmente do contrato inicialmente celebrado e, por isso, não mais se deixa fundamentar na vontade das partes20.

Angela Merkel é física de formação, mas deu importante lição aos juristas ao afirmar que a pandemia de covid-19 não é um evento qualquer, mas uma catástrofe natural, um evento excepcional e desafiador, daqueles que só acontecem uma vez no século. E quando ocorrem eventos dessa magnitude, os manuais de direito já ensinam que os contratos precisam ser revisados. Parece que aquele raro exemplo de evento imprevisível se materializou.

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1 Strenge Corona-Maßnahmen: Irland geht in den Lockdown. Tagesschau, 20.10.2020.

2 Informacoes disponíveis no site: www.pt.unesco.org. Acesso: 2.11.2020.

3 Veja artigo do cientista Miguel Nicolelis: A Europa olha para o Brasil e diz: eu sou você amanhã. El País Brasil, 2.11.2020.

4 Boris Johnson verkündet Teil-Lockdown für England. Zeit, 31.10.2020. Veja também: Reino Unido decreta lockdown por um mês após alta em novos casos de coronavírus. CNN Brasil, 31.10.2020.

5 Corona in Italien: Drei Risikozonen gegen die zweite Welle. Tagesschau, 2.11.2020. Confira ainda: Primeiro-ministro da Itália anuncia novas restrições, mas evita lockdown. CNN Brasil, 2.11.2020.

6 Alemanha e França anunciam novo "lockdown" de 1 mês. Valor Econômico, 28.10.2020.

7 Merkel zur Corona-Lage: "So etwas wie eine Naturkatastrophe". Tagesschau, 2.11.2020.

8 Merkel zur Corona-Lage: "So etwas wie eine Naturkatastrophe". Tagesschau, 2.11.2020.

9 Frankreich geht in den Lockdown. Tagesschau, 28.10.2020. Veja ainda: Alemanha e França anunciam novo "lockdown" de 1 mês. Valor Econômico, 28.10.2020.

10 Das sind die Corona-Regeln im November. Tagesschau, 28.10.2020.

11 Merkel an Jugend: Lieber auf ein paar Feten und Partys verzichten. BZ-Berlin, 14.10.2020.

12 Reaktionen auf neue Beschränkungen - Kritik am "faktischen Lockdown". Tagesschau, 28.10.2020.

13 "Wir müssen handeln, und zwar jetzt". Tagesschau, 28.10.2020 e Reaktionen auf neue Beschränkungen: Kritik am "faktischen Lockdown". Tagesschau, 28.10.2020.

14 Riscos à recuperação econômica e o BCE. Valor Econômico, 28.10.2020,

15 Europa age rápido para conter a 2ª onda, mas volatilidade está controlada, diz analista. Valor Econômico, 28.10.2020.

16 Miguel Nicolelis chama alerta que o Brasil pode sofrer os efeitos da segunda onda de covid-19 em 2021. Confira: A Europa olha para o Brasil e diz: eu sou você amanhã. El País Brasil, 2.11.2020

17 Miguel Nicolelis. A Europa olha para o Brasil e diz: eu sou você amanhã. El País Brasil, 2.11.2020.

18 Confira-se no direito alemão: FINKENAUER, Thomas. Münchener Kommentar zum BGB. Bd. 2, Franz Jürgen Säcker et al (coord.). München: Beck, 2016, § 313, Rn. 41, p. 1894.

19 Até os instrumentos de soft law (ex: Princípios do Unidroit, Draft Common Frame of Reference, etc.) já consagraram a boa-fé objetiva como cânone máximo de interpretação e integração do negócio jurídico.

20 Nesse sentido são as lições de Nils Jansen, em entrevista ao German Report (Migalhas), em 19.5.2020.