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Adiamento da LGPD nesse momento é precipitado

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Atualizado às 08:53

O adiamento da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi uma das medidas aprovadas, na sexta-feira 3/4, pelo Senado Federal, fazendo parte do projeto de lei 1.179/2020, que estabelece o regime jurídico emergencial e transitório das relações de direito privado, diploma criado para o enfrentamento de questões jurídicas entre particulares que venham a surgir durante e após o período de pandemia do covid-19.

Após aprovação no Senado, o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, onde agora tramita1. Fruto de uma iniciativa conjunta, foi apresentado inicialmente pelo senador Antonio Anastasia (PSD/MG) e a versão que seguiu à Câmara foi o substitutivo da senadora Simone Tebet (MDB/MS). Na sua elaboração, contou com a participação de um grupo de conhecidos professores de Direito capitaneado pelo professor Otavio Luiz Rodrigues Junior, da Faculdade de Direito da USP e o apoio decisivo do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, bem como do ministro Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça.

No tema que toca a esta coluna, o artigo 21 do projeto traz uma única porém significativa alteração de redação à lei 13.709/2018 (LGPD), cujo preceito que dispõe sobre o período de vacatio legis - artigo 65 - passa a vigorar com a seguinte disposição:

Art. 65. Esta Lei entra em vigor:

I - dia 28 de dezembro de 2018, quanto aos arts. 55-A, 55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B;

II - 1º de agosto de 2021, quanto aos arts. 52 ao 54;

III - 1º de janeiro de 2021, quanto aos demais artigos.

Trocando em miúdos: já estão em vigor, desde dezembro de 2018, os artigos que disciplinam a criação e o funcionamento da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e do Conselho Nacional de Proteção de Dados e da Privacidade (inciso I); as sanções administrativas decorrentes da lei só entrarão em vigor em 1º de agosto de 2021 (inciso II), aumentando, assim, o prazo de vacância inicialmente previsto de 18 para quase 36 meses; todo o restante da lei entrará em vigor em 1º de janeiro de 2021 (inciso III).

Ou seja, deixando-se de lado os artigos que já se encontram vigentes, caso o projeto seja aprovado na Câmara da forma como proposto pelo Senado e, a seguir, seja sancionado pelo presidente da República, adia-se a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados em aproximadamente mais quatro meses após o prazo que até então estava previsto - 15/8/2020 - e, no que toca às punições decorrentes da lei, o prazo é alargado em praticamente mais um ano. A ideia foi balizar, de um lado, "a proteção dos dados pessoais em sua plenitude" e, de outro, o argumento de que, por conta da pandemia, inúmeras empresas estariam "impossibilitadas de, nesse momento, adotar as medidas necessárias para cumprir as obrigações" previstas na LGPD2.

Sem desconhecermos posicionamentos favoráveis ao adiamento - existia, antes mesmo do surgimento da pandemia, um projeto de lei que empurrava o início da vigência da LGPD para agosto de 2022, tendo por justificativa o alegado grande número de empresas que ainda não se encontrava pronta - a medida nos parece precipitada.

Em primeiro lugar, porque, apesar de tudo, ainda se está num momento inicial da crise, sem que seja possível, por enquanto, prever ou estimar sua duração e seus reais impactos à sociedade e aos diversos setores da economia. Como a previsão de entrada em vigor da lei é somente meados de agosto, seria mais prudente que o adiamento, caso se mostrasse realmente necessário, fosse decidido mais para frente, em junho ou julho, quando provavelmente já se terá um panorama mais concreto dos efeitos da pandemia decorrente do coronavírus.

Ademais, em nossa última coluna abordamos outras questões sensíveis relativas à proteção de dados e ao controle da privacidade durante a atual crise, destacando que diversos abusos podem ser cometidos sob o pretexto de proteção da saúde pública e combate à pandemia. Na última semana, a título de exemplo, o Fantástico abordou a vigilância severa e altamente tecnológica que o governo chinês vem exercendo sobre seus cidadãos e estrangeiros que se encontram naquele país3.

Na mesma linha do aqui defendido, o Ministério Público Federal (MPF) externou posicionamento contrário ao adiamento do início da vigência da lei. Em nota técnica conjunta4 elaborada pela Procuradoria dos Direitos do Cidadão e pela Câmara Criminal, o MPF frisou que a garantia da proteção dos dados pessoais é "necessária tanto em relação ao Estado, quanto em relação às grandes companhias", na medida em que atualmente não se conhece o uso que é dado aos dados pessoais dos cidadãos.

Ao contrário dos que entendem que o adiamento se faz necessário neste momento de crise, para o Parquet Federal a garantia da saúde pública e da aplicação de medidas sanitárias "não significa abrir mão de direitos de proteção de dados pessoais e de privacidade", além do que a manutenção da data prevista para entrada em vigor da lei demonstrará o comprometimento do Brasil em adequar nossa legislação aos diplomas mais modernos de proteção de dados, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR).

Mais relevante do que simplesmente transferir o problema para agosto de 2021 - uma vez que a entrada em vigor dos demais dispositivos da lei em janeiro do próximo ano, desprovidos de fiscalização e de sanções, terá efeito reduzidíssimo - seria a efetiva criação, instalação e efetivo início do funcionamento da ANPD.

Destaque-se: aplicar sanções não é a única atribuição da ANPD. Ao contrário, o órgão tem como funções, entre tantas outras, zelar pela proteção dos dados pessoais, elaborar as diretrizes de como será a política nacional de proteção de dados e da privacidade, fiscalizar a aplicação da lei por parte de empresas e dos órgãos governamentais e difundir o conhecimento das normas e das políticas públicas sobre proteção de dados pessoais e das medidas de segurança. Espera-se, ao menos nos primeiros meses de sua atuação, uma postura de caráter muito mais educativo do que punitivo por parte da Autoridade Nacional.

Num país com pouca tradição na proteção dos dados pessoais, a orientação clara por parte da ANPD é o porto seguro que as empresas encontrarão para definir e orientar os procedimentos que estão - ao menos para as empresas que não deixaram para a última hora - em fase final de implementação. Para tanto, é necessária vontade política por parte do governo Federal, já que a Autoridade Nacional foi criada como órgão da administração pública Federal diretamente ligado à presidência da República.

Nessa linha, enquanto sequer há sinalização da efetiva instalação da ANPD, qualquer discussão sobre adiamento da entrada em vigor da lei se mostra precipitada.

__________

1 Até a véspera da publicação desta coluna, em 16/04/2020, o projeto não havia recebido nenhum andamento na Câmara dos Deputados, onde ainda aguardava despacho de seu presidente para início de tramitação.

2 De acordo com o parecer final da relatora, senadora Simone Tebet, na versão aprovada no Senado.

3 Assista à reportagem.

4 Íntegra.