COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
O direto das empresas em dificuldade tem por objetivo solucionar a crise da empresa e, para tanto, as regras jurídicas buscam tal desiderato no tratamento dos créditos e débitos do empresário e sociedade empresária em crise. Os interesses dos credores e dos devedores, reunidos no mesmo ambiente, buscam uma solução de reerguimento, concretizada no plano de recuperação judicial. A lei 11.101/2005 inaugurou novo sistema no tratamento da empresa em crise, dando início a um movimento de reequilíbrio do eixo devedor/credores, o que foi aprimorado com a reforma de 2020 (lei 14.112), tendo como um dos seus pilares a possibilidade de apresentação do plano de recuperação judicial pelos credores (PRJC). O PRJC existe para não ser utilizado, ao contrário do que se pode imaginar. É um instrumento de (re)equilíbrio de forças. O devedor, na lei brasileira, tem a legitimidade exclusiva em decidir se, e quando, vai ingressar em juízo com uma medida para enfrentar a crise da empresa vivenciada (recuperação judicial, extrajudicial ou medidas de prevenção). Em países mais avançados e experimentados no tema, o equilíbrio é algo bem consolidado. Nos EUA, qualquer credor pode postular a recuperação judicial do devedor (involuntary petition), nos termos do parágrafo 1.121 (c) do Chapter 11 do US Bankruptcy Code. Na França, não só qualquer credor pode fazê-lo, como também o Ministério Público e os empregados (Art. 631-19, I, al. 2 do Código Comercial francês). A previsão do PRJC foi objeto de artigo publicado na presente coluna Insolvência em Foco, no idos de 2021, de autoria de Alberto Camiña Moreira1. Passados três anos de vigência da reforma de 2020, nos permitimos revisitar o tema e amadurecer um pouco mais a sua relevância, como instrumento de negociação das dívidas.  Hipóteses de apresentação do PRJC A inovação trazida pela lei nº 14.112/2020, somente é aplicável aos processos de recuperação judicial iniciados após o início de vigência da reforma2, a qual introduziu na legislação recuperacional duas hipóteses em que será facultado aos credores apresentar um plano de recuperação judicial: (a) após o decurso do prazo do stay period, sem que tenha havido deliberação sobre o plano de recuperação judicial do devedor e (b) após a rejeição do plano em assembleia geral de credores. A primeira hipótese (art. 6º, §4º-A3) evidencia o intuito do legislador de privilegiar a possibilidade de apresentação do plano pelo próprio devedor, isto é, garantir que caberá ao próprio empresário (pessoa natural ou jurídica) propor a forma pela qual pretende se reestruturar. Não nos parece, no entanto, ter sido a melhor opção legislativa. Os credores são tão importantes quanto o devedor na sistemática econômica do direito das empresas em dificuldade, devendo ter sido concedido a esses o direito de também darem início a um processo de recuperação judicial, equilibrando as forças entre tais agentes, em benefício do mercado, tendo como consequência a antecipação da crise em razão de um controle recíproco, como se dá nos sistemas francês4 e norte americano5. A própria redação do dispositivo em comento indica que, em se tratando de mera faculdade, ao não ser apresentada qualquer proposta de plano pelos credores, na hipótese de inércia do devedor, após o stay period, o processo de recuperação judicial seguirá normalmente seu rumo, sendo possível a convocação de assembleia geral de credores para deliberação do plano apresentado posteriormente pelo próprio devedor. Assim fica bem identificado o eixo de equilíbrio devedor/credores, não sendo peremptória qualquer ação/omissão dos credores nesse sentido. Ademais, mesmo apresentado o plano alternativo pelos credores, o devedor pode, ainda que fora do prazo inicialmente previsto, juntar sua proposta de reestruturação, abrindo-se, em consequência, um caminho de diálogo e negociação entre as partes, o que é absolutamente compatível com o objetivo do instituto recuperacional6. A segunda possibilidade de apresentação do plano pelos credores se verifica no caso de rejeição da proposta elaborada pelo devedor, por ocasião da realização da assembleia geral de credores (art. 56, §§4º a 7º7). O §4º que antes previa a falência como consequência da rejeição do plano8 foi reformado para determinar ao Administrador Judicial que, no mesmo ato da assembleia, havendo reprovação do plano, submeta à votação dos próprios credores a concessão de prazo para elaboração de um alternativo (art. 56, §4º). Trata-se de norma cogente que obriga o auxiliar do juízo a assim proceder quando verificada a rejeição do plano apresentado pelo devedor.  Análise Paralela (negocial) Como já é possível perceber da análise feita acima, o aspecto negocial que se abre a partir da possibilidade de apresentação de um plano de recuperação judicial pelos credores é, a nosso ver, a principal novidade que iremos experimentar da novel legislação. O exame das condições impostas no já mencionado art. 56, 6º permite-nos refletir mais sobre a perspectiva de maior diálogo que o PRJC inaugura. De início, além do exame dos requisitos autorizadores do cram down (art. 56, §6º, inciso I), faz-se necessário cumprir as exigências constantes do art. 53 (art. 56, §6º, inciso II), sendo preciso que o PRJC apresente: (i) discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados e seu resumo; (ii) demonstração de sua viabilidade econômica; e (iii) laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor. Referido requisito é questionável na medida que impõe um ônus considerável aos credores diante do déficit informacional existente para que obtenham dados próprios do devedor. Sobre o tema, assevera Marcelo Sacramone que "o requisito não se justifica. Para além do fato de que os credores não terão acesso aos bens do devedor e às condições para a realização de laudo, o qual tampouco poderia ser produzido em lapso temporal tão curto, referidos laudos já constarão no processo diante de sua apresentação obrigatória pelo próprio devedor. Esses laudos não exigem qualquer alteração, pois a circunstância econômica do devedor, ou seus ativos, não sofreu alterações substanciais do período de rejeição do plano originário até a apresentação do plano alternativo, de modo que não precisam ser substituídos ou reapresentados."9 Ademais, nesse ponto, é possível questionarmos a viabilidade da apresentação de um plano factível pelos credores, considerando a existência de tal assimetria informacional quanto aos dados necessários para tanto. É realmente difícil imaginar como um único credor ou um grupo deles poderá ter acesso substancial a informações relevantes sobre o real estado econômico-financeiro do devedor sem contar com mínima cooperação deste último. Para tanto, tem o devedor o dever de cooperar, o administrador judicial deverá atender as demandas informacionais dos credores, podendo, inclusive, o próprio juízo recuperacional ser instado para concessão de medidas necessárias à supressão do natural déficit de informação dos credores. Comentando sobre a exigência feita em relação aos laudo econômico-financeiro, Paulo Penalva Santos assinala que o "laudo deve conter informações sobre a estruturação das operações sugeridas pelos credores e consequentes impactos tributários, regulatórios, necessidade de eventual obtenção de financiamentos adicionais, novos recursos, etc., que devem ser fornecidas pelo devedor"10. Desta feita, parece-nos essencial que, para a construção de uma proposta de reestruturação séria e exequível, os credores precisam ter mesmo acesso amplo a esse conteúdo. A terceira condição imposta pela lei diz respeito ao apoio substancial da proposta por parte dos demais credores (art. 56, §6º, inciso III). Ao exigir, alternativamente, o apoio prévio, por escrito, de um quarto (25%) da totalidade dos créditos sujeitos à recuperação judicial ou 35% dos créditos dos credores que compareceram na AGC em que rejeitado o plano do devedor, a lei almejou ter um mínimo de apoio para que a proposta seja levada à votação, dispensando-se planos que não apresentem adesão relevante e que, portanto, não têm a mínima representatividade. A quarta e quinta condições inseridas pelo legislador impõem que o plano não impute obrigações novas aos sócios do devedor, que não sejam derivadas da lei ou de contratos anteriormente celebrados (art. 56, §6º, inciso IV) e obrigam a renúncia, pelos credores apoiadores do plano e por todos aqueles que o aprovarem, das garantias pessoais prestadas por pessoas naturais em relação aos créditos novados (art. 56, §6º, inciso V). Esta última imposição é questionável. Isto porque o próprio artigo 49, §1º11 determina que a novação decorrente da aprovação do plano não atingirá coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, exceto se expressamente houver concordância dos credores. Sendo assim, é certo que a condição impõe um ônus muito alto aos credores, inexistente no âmbito de um plano proposto pelo devedor. Não é mesmo compreensível o ônus ora imposto pelo legislador ao credor a fim de lhe facultar a propositura de um plano. Em alguns casos, acaba-se por anular o próprio direito conferido ao credor de elaborar um plano alternativo, tendo em conta que o sacrifício decorrente para tanto pode não ser suficientemente atrativo12. Veja-se que, ao renunciar a garantia, o credor passará a figurar como quirografário. O fundamento para a inclusão da indigitada condição, explica Sacramone, seria a "impossibilidade de os garantidores serem prejudicados por uma deterioração das condições da recuperanda em virtude do plano alternativo apresentado pelos credores, o que exigiria que os referidos credores satisfizessem em maior parte o crédito que garantiram"13. No entanto, tal premissa se baseia em uma presunção precipitada de que, como o plano alternativo é apresentado pelos credores, necessariamente as condições para o devedor seriam piores, o que não necessariamente será verificado. Além de encerrar um pensamento consideravelmente pessimista das perspectivas do plano alternativo, ainda que reconheçamos a probabilidade de que naturalmente os credores escolham privilegiar seus créditos, não se coaduna com a própria ratio da norma de permitir uma solução mais ajustada aos interesses de todas as partes em alternativa à quebra, situação, na maioria dos casos, pior para todos. Manoel Justino Bezerra Filho observa que o rigor de tal exigência pode vir a desanimar fortemente os credores a apresentar um PRJC, sobretudo considerando a possibilidade de serem posteriormente responsabilizados pelo insucesso da aprovação de um plano que cause prejuízos ao devedor14. Com todas as vênias ao ilustre professor, não concordamos com tal hipótese, eis que os credores teriam agido em exercício regular de direito, com fundamento na lei, salvo se identificada fraude ou ato ilícito, sob os cânones do instituto da responsabilidade civil; por evidente, também aplicável ao próprio devedor, ao apresentar seu plano. A sexta condição inserta faz menção ao comparativo da falência, ao impor uma avaliação de que o sacrifício determinado ao devedor e aos seus sócios não seja maior do que aquele decorrente de uma eventual quebra (art. 56, §6º, inciso VI). O fundamento de tal regra está no direito norte americano, no denominado best interest of creditors test, hipótese em que uma fórmula de cálculo indica qual deve ser o melhor caminho - aprovação do plano de recuperação judicial ou falência15. Trata-se de um modelo reconhecido e costumeiramente utilizado nos Estados Unidos, com parâmetros bem definidos16, o que não ocorre no Brasil. Assim, o legislador almejou coibir o exercício abusivo do direito por ele conferido aos credores, impondo-lhes um ônus de difícil satisfação - regra extremamente abstrata a ser averiguada na prática. E nesse ponto a reforma de 2020 gerou desequilíbrio na fórmula devedor/credores. Por fim, a possibilidade aventada pelo §7º do art. 56 permite que o plano inclua a previsão de nova hipótese de direito de retirada do sócio do devedor em recuperação em caso de alteração do controle da sociedade por ocasião da capitalização do crédito17. Trata-se de nova hipótese legal, não prevista na Lei nº 6.404/1976 ou no Código Civil sendo, pois, potestativo e podendo ser exercido pelo sócio independentemente de comprovação de prejuízo ou justificativa. Diante de todas as condições dispostas na reforma para que se possa apresentar um PRJC, vemos a construção de um de quadro de grande incentivo à negociação dos credores com o devedor, buscando uma solução conjunta à reestruturação da empresa em crise, assim minorando os custos de todas as partes, da forma em que já ocorre em países mais avançados no tratamento da matéria, como o sistema francês18. Para tanto, é ainda fortemente recomendável o uso do mecanismo de solução consensual previsto no artigo 20-A e seguintes da lei 11.101/2005, também fruto da reforma de 2020.  Conclusão Temos a convicção de que o intento da nova lei foi mitigar a tradicional monopolização da atuação da empresa devedora na seara recuperacional, conferindo ao procedimento um maior equilíbrio de forças, sobretudo, estimulando que a negociação aconteça de forma mais célere ao encorajar também a proatividade do devedor em apresentar uma proposta viável e em tempo razoável, sabedor de que se não o fizer, os credores podem agir em seu lugar. A recém faculdade oferecida de apresentação de um plano de recuperação judicial pelos credores desponta como a abertura de uma janela maior de comunicação entre as partes envolvidas e poderá contribuir para que as discussões se tornem mais exitosas no âmbito do procedimento recuperacional, como já ocorre em diversos países mais avançados no tratamento da matéria, como a França e os Estados Unidos. Ao estimular maiores debates e negociações, parece-nos que a possibilidade de conciliação e a solução consensual dos litígios porventura existentes é mesmo o maior benefício trazido pelo novel instituto, fazendo com que a previsão do plano de credores seja, na prática, algo raro, apesar de importante instrumento de negociação antes, durante e após a assembleia de credores, em prol de todo interesse econômico e social do direito das empresas em dificuldade. __________ 1 MOREIRA, Alberto Camiña. Plano de Recuperação apresentado pelo Credor. Coluna Insolvência em Foco. Disponível aqui. Acesso em 08/03/2023.   2 Art. 5º, §1º, inciso I da lei 14.112/2005. Art. 5º Observado o disposto no art. 14 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes. § 1º Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência desta Lei: I - a proposição do plano de recuperação judicial pelos credores, conforme disposto no art. 56 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ; 3 Art. 6º § 4º-A. O decurso do prazo previsto no § 4º deste artigo sem a deliberação a respeito do plano de recuperação judicial proposto pelo devedor faculta aos credores a propositura de plano alternativo, na forma dos §§ 4º, 5º, 6º e 7º do art. 56 desta Lei, observado o seguinte: I - as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo não serão aplicáveis caso os credores não apresentem plano alternativo no prazo de 30 (trinta) dias, contado do final do prazo referido no § 4º deste artigo ou no § 4º do art. 56 desta Lei; II - as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão por 180 (cento e oitenta) dias contados do final do prazo referido no § 4º deste artigo, ou da realização da assembleia-geral de credores referida no § 4º do art. 56 desta Lei, caso os credores apresentem plano alternativo no prazo referido no inciso I deste parágrafo ou no prazo referido no § 4º do art. 56 desta Lei. 4 Art. 631-19, I,  al. 2 do Código Comercial francês: Toute partie affectée peut soumettre un projet de plan qui fera l'objet d'un rapport de l'administrateur et sera soumis, ainsi que celui proposé par le débiteur, au vote des classes conformément aux conditions de délai et aux modalités fixées par décret en Conseil d'Etat. (tradução livre: Todas as partes interessadas podem apresentar um projeto de plano, o qual será objeto de um relatório do administrador e será submetido, da mesma forma que aquele proposto pelo devedor, ao voto das classes conforme as condições de prazo e modalidades fixadas em decreto). 5 Parágrafo 1.121 (c) do Chapter 11 do US Bankruptcy Code: Any party in interest, including the debtor, the trustee, a creditors' committee, an equity security holders' committee, a creditor, an equity security holder, or any indenture trustee, may file a plan if and only if - (tradução livre: Qualquer parte interessada, incluindo o devedor, o administrador judicial, o comitê de credores securitizados, o comitê de credores, o credor securitizado ou qualquer agente fiduciário, pode apresentar um plano, sob as seguintes condições: ) 6 Sobre o tema, João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea apresentam três aspectos fundamentais: "O primeiro deles é que a legitimação para apresentar plano alternativo parece ser uma decorrência do simples decurso do prazo do período de proteção. Dessa forma, ainda que o stay period seja prorrogado (...), os credores estão legitimados a apresentar o plano alternativo. De qualquer maneira, considerando as importantes repercussões decorrentes da apresentação de um plano concorrente na recuperação judicial, não se pode descartar a possibilidade de o magistrado, a depender das particularidades das circunstâncias do caso concreto, avaliar as razões da demora na tramitação do processo e se a apresentação de um plano dos credores não pode ser um fator a contribuir ainda mais para o retardo da marcha processual. Em segundo lugar, como o plano do devedor não chegou a ser rejeitado pela assembleia geral de credores, apenas não foi submetido à deliberação, haverá planos concorrentes (devedor e credores). Sendo assim, ao menos teoricamente, continua possível a aprovação do plano do devedor - o qual pode, ainda, ser aprimorado, conforme as dinâmicas de negociação. Em terceiro lugar, caso os credores não manifestem interesse em apresentar plano alternativo na hipótese de vencimento do stay period, não se justifica a convolação da recuperação judicial em falência, dado que as hipóteses do art. 73 constituem rol taxativo. Nesse caso, o plano do devedor apresentado pelo devedor permanecerá sendo o único disponível para deliberação dos credores" SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falências. São Paulo: Almedina, 2023. p. 138. p. 786-787. 7 Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará a assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação. § 4º Rejeitado o plano de recuperação judicial, o administrador judicial submeterá, no ato, à votação da assembleia-geral de credores a concessão de prazo de 30 (trinta) dias para que seja apresentado plano de recuperação judicial pelos credores § 5º A concessão do prazo a que se refere o § 4º deste artigo deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade dos créditos presentes à assembleia-geral de credores § 6º O plano de recuperação judicial proposto pelos credores somente será posto em votação caso satisfeitas, cumulativamente, as seguintes condições:        I - não preenchimento dos requisitos previstos no § 1º do art. 58 desta Lei;       II - preenchimento dos requisitos previstos nos incisos I, II e III do caput do art. 53 desta Lei;       III - apoio por escrito de credores que representem, alternativamente:      a) mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos totais sujeitos à recuperação judicial; b) mais de 35% (trinta e cinco por cento) dos créditos dos credores presentes à assembleia-geral a que se refere o § 4º deste artigo;     IV - não imputação de obrigações novas, não previstas em lei ou em contratos anteriormente celebrados, aos sócios do devedor;       V - previsão de isenção das garantias pessoais prestadas por pessoas naturais em relação aos créditos a serem novados e que sejam de titularidade dos credores mencionados no inciso III deste parágrafo ou daqueles que votarem favoravelmente ao plano de recuperação judicial apresentado pelos credores, não permitidas ressalvas de voto; e    VI - não imposição ao devedor ou aos seus sócios de sacrifício maior do que aquele que decorreria da liquidação na falência.       § 7º O plano de recuperação judicial apresentado pelos credores poderá prever a capitalização dos créditos, inclusive com a consequente alteração do controle da sociedade devedora, permitido o exercício do direito de retirada pelo sócio do devedor.     8 O art. 73, inciso III da lei falimentar previa como efeito imediato da rejeição do plano de recuperação a decretação de quebra do devedor. A Lei nº 14.112/2020 reformou o indigitado dispositivo para prever que, apenas quando não aplicado o disposto nos §§ 4º, 5º e 6º do art. 56, ou rejeitado o plano de recuperação judicial proposto pelos credores, nos termos do § 7º do art. 56 e do art. 58-A, será convolada a recuperação judicial em falência. 9 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 326.  10 E ainda acrescenta que a obrigação referente ao laudo sequer se justifica por ser um documento que o devedor precisaria apresentar para convencer os seus credores quanto à viabilidade do plano por ele elaborado. Em se tratando de proposta de reestruturação dos próprios credores, não haveria razão para apresentação do documento a demonstrar a viabilidade que já estaria implicitamente aceita. SANTOS, Paulo Penalva. Plano Alternativo Apresentado pelos Credores. Revista do Advogado. 2021. Ano XLI, nº 150. Disponível aqui. Acesso em 09/03/2024. 11 Art. 49. § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. No mesmo sentido, o art. 59, caput expressamente determina a novação dos créditos diante da homologação do plano, ressalvando-se as garantias: Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1º do art. 50 desta Lei. 12 Nesse sentido, observa Sheila C. Neder Cerezetti em obra de coordenação de Paulo Toledo: "É de se imaginar que o conteúdo dessa regra terá o condão de impedir a viabilidade de plano de credores em alguns casos. A renúncia à garantia de terceiros imposta pelo dispositivo, sem possibilidade de ressalvas, pode contribuir para que o importante mecanismo do plano alternativo se torne muito menos frequente do que seria ideal." CEREZETTI, Sheila C. Neder. Comentários aos artigos 55 a 59. In DE TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 369. 13 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Op. Cit. p. 327. 14 "Aliás, outro aspecto que, certamente, fará com que credores não se sintam animados à apresentação de plano alternativo deflui do fato de, eventualmente, poder vir a ser estabelecida responsabilidade pelo fracasso do plano. Em tal caso, em tese, aqueles que apresentaram o plano alternativo poderão vir a ser responsabilizados pelo insucesso e deverão responder pelos prejuízos causados. Essa possibilidade de responsabilização do apresentante do plano e, eventualmente, daqueles que votaram favoravelmente, torna-se ainda mais presente no caso de ter havido oposição do devedor ao novo plano. Camila Serrano (pg. 60) ressalta que a LREF não prevê especificamente tal tipo de responsabilização, mas entende que essa ausência de previsão 'não poderá ser motivo para não responsabilizar tais credores que assumem o poder de credores controladores, assim como é a figura do acionista controlador na Lei das Sociedades Anônimas, de modo a punir as condutas lesivas, abusivas e contrárias aos princípios norteadores do processo de recuperação judicial das empresas'." (FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Recuperação de Empresas e Falência - Lei 11.101/2005. 16ª edição. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p. RL-1.11. Disponível aqui) 15 Tal disposição está prevista no §1129 (a) (7) do Chapter 11 Bankruptcy Code, indicando que cada credor "with respect to each impaired class of claims or interests, (i) has accepted the plan or (ii) will receive or retain under the plan on account of such claim or interest property of a value, as of the effective date of the plan, that is not less than the amount that such holder would receive or retain if the debtor were liquidated under chapter 7 of this title on such date.". 16 A Simplified Approach to the Best-interests Test in Complex Bankruptcies. Tom Morrow, Tim Kreatschman and Mark Hojnakci. American Bankruptcy Institute. Journal Issue: Apr 2003 Column Name: Turnaround Topics, acesso em 30.11.2023. 17 Fábio Ulhoa Coelho, asserta que o plano poderá prever, como forma de satisfação do passivo, "o aumento do capital social da sociedade devedora, com a emissão de novas ações integralizáveis por lançamentos contábeis, a débito de rubrica do passivo e a crédito da rubrica do capital social", convertendo-se, portanto, crédito em participação societária (conversão da dívida em equity). COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 232. Ainda que seja um meio de recuperação atrativo por permitir o abatimento da dívida sem dispêndio direto de recurso da devedora, certo é que para os sócios da sociedade a solução pode vir a provocar a diluição de sua participação social. De todo modo, afigura-se uma boa alternativa à falência em que, irremediavelmente, já seria verificada uma liquidação forçada da participação dos sócios. Sobre o tema, Alberto Camiña Moreira anota que "A efetivação cogente de obrigações é um modo de tutela de direitos quando há previsão legal. No âmbito do processo de recuperação o devedor tem a primazia de liderar tanto a apresentação do plano de recuperação como as próprias negociações. Sendo infrutífera a sua iniciativa, e diante da alternativa da falência, a lei consagra aos credores a possibilidade de uma solução melhor, que consiste no prosseguimento da atividade empresarial nas mãos de outras pessoas, ainda que contra a vontade do devedor. Essa opção da lei, entre a execução forçada do patrimônio da sociedade na falência e a execução forçada da participação do sócio na sociedade que teria a falência decretada, é legítima e não ofende o direito de propriedade." MOREIRA, Alberto Camiña. Plano de Recuperação apresentado pelo Credor. Coluna Insolvência em Foco. Disponível aqui. Acesso em 08/03/2023. 18 Em recente mesa redonda de renomados especialistas na matéria, verificou-se um debate intenso sobre os custos financeiros dos processos de insolvência, incluindo os extrajudiciais. Difficulté des entreprises - Les coûts du traitement des difficultés des entreprises - Entretien. Revue des procédures collectives n° 1, Janvier-février 2024.
Introdução O direito das empresas em dificuldade tem por objetivo dar o tratamento ideal à crise da empresa, proporcionando a reestruturação ou o encerramento do empresário ou sociedade empresária, e, para tanto, identifica o devedor e seus credores como métrica econômica do melhor instrumento aplicável. As possibilidades de soerguimento/liquidação são pautadas em diversos fatores, dentre eles, um dos mais relevantes, é o passivo do devedor em cotejo com seus créditos e capacidade de geração de riqueza. Nesse contexto, não raro o agente econômico em crise possui diversos recebíveis decorrentes de relações jurídicas estabelecidas, nos termos do art. 2º, XIII, "g", da Resolução CVM nº 175, "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas", que foram cedidos a fundos de investimento creditório não-padronizados (FDIC-NP). Diante da efetiva crise da empresa, o questionamento que se põe é a análise do tratamento jurídico dos FDIC-NP, e sua eventual subordinação ao rol de credores sujeitos ao sistema de direito das empresas em dificuldade disposto na lei 11.101/2005, objeto do ensaio a seguir desenvolvido. I. O alcance da crise da empresa A. Reestruturação econômica A lei 11.101/2005 criou um sistema de insolvência empresarial fundado na premissa de que a empresa, por se tratar de atividade indispensável ao bem-estar coletivo e essencial para o desenvolvimento econômico do país, deve contar com especial proteção jurídica. É o denominado princípio da preservação da empresa, previsto no art. 170, III da Constituição da República1 e reproduzido no art. 47 da lei 11.101/20052, que orienta todo o sistema de insolvência empresarial brasileiro. O referido diploma põe à disposição dos agentes empresários (ou seja, aqueles que exercem atividade de natureza empresarial3) os seguintes institutos destinados ao tratamento da crise: (i) as conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de insolvência (pré-insolvência); (ii) as recuperações judicial e extrajudicial e (iii) a falência. Frustrados os esforços por soluções consensuais e identificada a crise como passageira, o sistema da lei 11.101/2005 prioriza a superação da crise econômico-financeira por meio da recuperação (judicial ou extrajudicial). Reúne-se, assim, todos os agentes interessados (devedor e credores) em um único centro de decisões (o juízo recuperacional), criando-se um ambiente favorável de negociação coletiva das obrigações para que, mediante concessões mútuas4, viabilize-se a continuação das atividades empresariais - e, consequentemente, a manutenção da fonte produtiva, geradora de riquezas, tributos e empregos. A falência, por outro lado, exsurge como instrumento legal apto a eliminar do mercado a sociedade empresária que não mais se sustenta, medida extrema que se impõe nas hipóteses em que já não há mais qualquer possibilidade de continuação das atividades5. Quaisquer que sejam os instrumentos utilizados, o enquadramento jurídico dos créditos do devedor em crise, cedidos aos FDIC-NP, a fim de computar seu ativo/passivo, é de relevância crucial para se aferir a capacidade de satisfação dos credores. B. Créditos anteriores à crise da empresa Nos casos em que a crise seja identificada como meramente temporária, o devedor poderá contar com o auxílio estatal para buscar sua superação mediante a criação de um ambiente propício à negociação coletiva entre o devedor e seus credores, ou seja, os maiores interessados na continuação das atividades e na busca por uma solução conjunta. Nesse sentido, o equilíbrio dos interesses dos agentes envolvidos nesse processo é primordial para o alcance do êxito na repactuação das dívidas. A lei 11.101/2005 demonstra essa preocupação em diversas oportunidades, garantindo previsibilidade e segurança às obrigações repactuadas, como na regra inserta em seu art. 496. A aferição da existência do crédito na data do pedido de recuperação judicial leva em conta a data do seu fato gerador, ou seja, a data da fonte da obrigação - e não a data de seu reconhecimento judicial ou mesmo de sua quantificação, como chancelado pelo Superior Tribunal de Justiça7. O marco temporal estabelecido no dispositivo reproduzido acima assemelha-se a uma foto do estado econômico-financeiro do devedor no exato momento do requerimento do processamento de sua recuperação judicial, permitindo uma precisa demarcação do passivo sujeito à negociação coletiva. Permite, assim, não apenas a definição das partes do acordo coletivo, mas também uma decisão fundamentada, por parte do devedor e de seus credores, sobre os mecanismos mais apropriados para reestruturação das atividades. No mesmo sentido, Marlon Tomazette8: A possibilidade de realização da assembleia de credores e de instituição do comitê de credores, tanto na falência como na recuperação judicial, demonstra a necessidade de identificação dos credores do devedor falido ou em recuperação judicial. (...) Na recuperação judicial, a identificação é fundamental para identificar quem fará parte do acordo e, consequentemente, para saber quem poderá se manifestar sobre o plano de recuperação judicial. O disposto no art. 49 da lei 11.101/2005, além de conferir segurança jurídica às partes ao assegurar simetria de informações e transparência, concretiza o próprio espírito que norteia a referida lei no sentido de viabilizar a continuidade da empresa.  Com efeito, durante o trâmite da recuperação, o devedor empresário deve continuar exercendo suas atividades normalmente e, assim, manter regular negociação com bancos, fornecedores, clientes e demais interessados. Se os créditos originados após o pedido da recuperação judicial fossem a esta submetidos, não haveria quem aceitasse negociar com a sociedade empresária em crise, o que inviabilizaria o acesso ao crédito e a continuação da própria atividade empresarial, contrariando a principal diretriz da lei (preservação da empresa). Os parágrafos 1º e 3º do artigo 49 em comento, no entanto, abarcam opções legislativas de exceção à regra geral do caput, as quais, desde já ressaltamos não englobar os créditos cedidos aos FDIC-NP. O parágrafo primeiro9 prevê que, não obstante sujeitos à recuperação judicial, créditos assegurados por garantias cambiais, reais ou fidejussórias podem ser executados em face dos coobrigados, fiadores ou obrigados em regresso. A regra veio a ser confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de julgamento de recurso repetitivo, consolidada no Tema Repetitivo nº 88510 e que originou o enunciado da súmula 58111 da Corte. Já o parágrafo terceiro12 traz a exclusão dos créditos de titulares de propriedade fiduciária em garantia. Nesse caso, não há dúvidas de que se trata de credores que, em apertada síntese, detêm a propriedade resolúvel da coisa para garantia de uma obrigação principal, de modo que satisfeita a dívida, o bem alienado ou cedido fiduciariamente retorna à propriedade do devedor. A exclusão operada pelo dispositivo em comento se dá exatamente para proteger o direito de propriedade do credor fiduciário que pode liquidar o bem a fim de satisfazer (ou amortizar) o seu crédito, o que é confirmado pela jurisprudência iterativa do Superior Tribunal de Justiça. Em diversas ocasiões, aquele Tribunal Superior solidificou a não submissão desse tipo de crédito à recuperação judicial, diante da constatação de que a propriedade (resolúvel) do bem que garante a obrigação é do credor, e não do devedor em recuperação, sendo ainda indiferente o momento em que é performado, se antes ou depois do processamento13. Diversa, no entanto, é a situação dos FDIC-NP, caso em que, como será visto a seguir, o próprio objeto do contrato firmado - ou seja, a obrigação principal contraída - é a transferência da propriedade definitiva (e não resolúvel) dos direitos creditórios. Na pré-insolvência, recuperação extrajudicial e falência o mesmo raciocínio se aplica, por não se tratar o recebível de ativo do devedor em crise. II. Fundos de investimento creditório não-padronizados (FDIC-NP) A. Natureza dos fundos de recebíveis Sabe-se que os fundos de investimento são uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinados à aplicação em ativos financeiros14. Em outras palavras, consistem em veículos de investimento coletivo, cujo objetivo é agrupar recursos de diversas fontes para viabilizar não apenas o acesso a ativos financeiros de maior valor, mas também a repartição dos riscos inerentes aos investimentos de alta monta - que dificilmente seriam suportados por investidores individuais.  Sua operação no mercado se dá, em resumo, da seguinte maneira: a fim de arrecadar recursos para viabilizar a consecução de seu objeto, os fundos de investimento emitem cotas, ou seja, frações representativas de seu patrimônio, que são disponibilizadas para negociação no mercado de valores mobiliários. Os investidores interessados adquirem (rectius: subscrevem15) essas cotas e assim passam a ser cotistas, titulares de uma parcela do patrimônio do fundo. Os recursos obtidos com a subscrição das cotas, por sua vez, são destinados às aplicações financeiras objeto dos fundos de investimento, que pode se afigurar em diversas modalidades: fundo imobiliário, fundo de ações, fundo multimercado, fundo em dívida pública, dentre outros. Para fins deste estudo, interessa-nos especificamente o caso dos FIDC-NP. Atualmente, a definição dos FIDC-NP pode ser identificada na recente Resolução CVM nº 175, de 23 de dezembro de 2022, que constitui o novo marco regulatório dos fundos de investimento em geral, consolidando a matéria em um único ato normativo ao revogar as antigas Instruções Normativas nº 444 (que dispunha sobre os fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados) e nº 356 (que dispunha sobre os fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em cotas de fundos de investimento em direitos creditórios). De acordo com o art. 2º do Anexo Normativo II da Resolução CVM nº 175, entende-se por direitos creditórios não-padronizados aqueles direitos creditórios que possuam ao menos uma das características listadas em seus incisos16. Além disso, o §1º estipula casos em que, ainda que detentores de alguns dos atributos listados nos incisos do art. 2º, os direitos creditórios não serão considerados não-padronizados17-18. Exemplo de um direito creditório não-padronizado pôde ser verificado no recente processo de recuperação judicial do Grupo Light, com a presença do Fundo de Direitos Creditórios Light ("FIDC Light")19. Este último tinha como objeto o investimento em direitos creditórios (recebíveis) inicialmente detidos pelo primeiro. Isto é, o FIDC Light foi constituído para adquirir, na qualidade de cessionário, recebíveis de titularidade do Grupo Light, na qualidade de cedente, oriundos dos serviços de fornecimento de energia elétrica para a população. Assim, o pagamento mensal da "conta de luz" (crédito da empresa devedora) é destinado ao FDIC Light cessionário, sendo que este último, em contrapartida, já adiantou o valor do recebível ao Grupo Light. Note-se desde já que o caso exemplificado se amolda à hipótese prevista no art. 2º, XIII, alínea 'g' do Anexo Normativo II da Resolução CVM nº 175: os créditos adquiridos pelo FIDC Light são "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas" - quais sejam, aquelas estabelecidas entre o Grupo Light e seus usuários/consumidores. A aquisição dos direitos recebíveis pelo FIDC Light é caso clássico do que se denomina true sale, negócio jurídico por meio do qual o cedente/vendedor - no caso, o Grupo Light - transfere a propriedade definitiva de determinados direitos creditórios (recebíveis) anteriormente por eles detidos20. Trata-se, portanto, de operação completamente distinta de um empréstimo ou financiamento em que os recebíveis são dados como garantia fiduciária ao cumprimento da obrigação principal, constituindo-se assim uma cessão fiduciária de créditos - que, como cediço, é modalidade de propriedade resolúvel, ou seja, passível de extinção caso verificada a implementação de uma condição ou termo. Com efeito, o que ocorre frequentemente no mercado é a contratação de mútuos (obrigação principal) garantidos por créditos vincendos (obrigação acessória de garantia), de modo que o originador dos recebíveis os utiliza como garantia do empréstimo contratado. Na hipótese descrita, não há cessão definitiva do crédito: como mencionado, a propriedade do credor fiduciário é resolvida, ou seja, retorna ao titular original, o devedor, quando há a quitação integral da dívida contratada. No caso da true sale, diversamente, o próprio objeto do contrato firmado - ou seja, a obrigação principal contraída - é a transferência da propriedade definitiva dos direitos creditórios (recebíveis), que, portanto, deixam de integrar o ativo do cedente/alienante. O objeto principal do contrato firmado é a compra da carteira de recebíveis. Por este motivo, a situação da true sale, que pôde ser constatada no contrato firmado entre o FIDC Light e o Grupo Light em recuperação judicial, não se confunde com aquelas previstas nas alíneas 'e' ("o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial") e 'f' ("o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial") do art. 2º, XIII do Anexo II da Resolução CVM nº 175. Pelo contrário, amolda-se perfeitamente à definição da alínea 'g', por se tratar "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas". Ainda assim, no caso concreto, houve intensa discussão judicial sobre a inclusão do FIDC Light no rol de credores submetidos à recuperação judicial do Grupo Light, em uma aparente confusão sobre a natureza dos fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados e de seu objeto, conforme será adiante explicitado.         B. Não submissão dos fundos de recebíveis à crise da empresa Conforme anteriormente exposto, em se tratando de recuperação judicial o rol de credores submetido é estipulado no art. 49 da lei 11.101/2005, alcançando todos aqueles detentores de créditos existentes na data do pedido de reestruturação, ainda que não vencidos, e desde que não se enquadrem nas exceções dos parágrafos 1º e 3º do referido dispositivo. No já mencionado caso da true sale, negócio jurídico extremamente comum no mercado de valores mobiliários (e realizado especificamente por fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados para fins de aquisição de recebíveis), o que se verifica é a transferência da propriedade definitiva dos direitos creditórios, constituindo-se hipótese de verdadeira compra da carteira de recebíveis. O objetivo de operações desta natureza é a securitização de crédito: por meio dela, o investidor-cessionário - FDIC-NP paga uma quantia ao titular de recebíveis futuros (no exemplo do caso Light, a própria companhia em recuperação judicial), assumindo os riscos a eles associados - principalmente o risco de inadimplência. O cedente, por outro lado, recebe o preço da cessão imediatamente, desvencilhando-se dos já mencionados riscos inerentes aos direitos creditórios, devendo responder apenas pela sua existência (e não pelo seu adimplemento). A true sale é, portanto, uma cessão perfeita e acabada, em que o cedente efetivamente transfere a propriedade dos títulos e os riscos a eles inerentes ao cessionário. O que pode ser diferido é o fluxo financeiro do recebível cedido, momento em que haverá a transferência da sua posse. Isso porque em operações desta natureza, o recebimento dos direitos creditórios é comumente convergido em um Agente Centralizado, responsável por, posteriormente, realizar a mera transferência da posse dos recursos recebidos para o FIDC-NP- repita-se, o efetivo titular da propriedade destes créditos. Diante do raciocínio desenvolvido até então, por se tratar a true sale de uma operação de transferência definitiva da propriedade de direitos recebíveis, os créditos objetos de negociação não integram o patrimônio do devedor empresário (ou sociedade empresária) que se submeta a um processo de recuperação judicial ou de falência. Foi também neste sentido o entendimento adotado no caso do Grupo Light. Naquele caso, conforme mencionado, o FIDC havia firmado contrato de cessão de recebíveis com a companhia Light em momento anterior à recuperação judicial. A entrega da posse destes direitos creditórios, todavia, havia sido diferida no tempo - ou seja, ainda que o FIDC fosse seu proprietário desde a assinatura do contrato entre as partes, o Grupo Light ainda permaneceria na posse destes recebíveis durante algum tempo. Inicialmente, ao ajuizar medida cautelar antecedente à recuperação judicial, o Grupo Light incluiu o FIDC Light no polo passivo, demonstrando seu entendimento de que este se enquadraria como credor em eventual recuperação judicial ajuizada. Iniciou-se assim uma discussão entre as partes sobre a possibilidade de submissão do FIDC Light, titular da propriedade de recebíveis do Grupo Light cujo fluxo financeiro havia sido diferido (ou seja, cuja posse seria transferida em data futura, posterior à recuperação judicial), no rol de credores. A matéria chegou a ser discutida nos autos da tutela cautelar antecedente à recuperação judicial e em agravo de instrumento21. Todavia, antes mesmo de proferida uma decisão judicial sobre o tema nos referidos autos, o Grupo Light ajuizou pedido de recuperação judicial e deixou de incluir o FIDC Light em seu rol de credores, perfilhando o entendimento correto de que este não era um credor enquadrado no disposto no art. 49 da lei 11.101/2005, reconhecendo sua inequívoca condição de proprietário dos direitos creditórios, e consequentemente, sua ilegitimidade para figurar no polo passivo de uma demanda que pretenda rediscutir as dívidas financeiras do Grupo Light.                 Assim sendo, ao adquirir a titularidade/propriedade definitiva de direitos creditórios em momento anterior ao pedido de recuperação judicial do cedente, os FIDC-NPs, na qualidade de cessionários, não se submetem à crise da empresa. Repita-se que o mesmo raciocínio se aplica à pré-insolvência, recuperação extrajudicial e falência, uma vez que tais ativos (de titularidade do FDIC-NP) não integram o patrimônio do devedor. Conclusão Dentre os institutos disponibilizados na lei 11.101/2005 para viabilizar a preservação da empresa, o agente empresário pode se beneficiar da recuperação judicial, por meio da qual busca promover uma negociação coletiva com seus credores, perante e com o auxílio do Estado. O art. 49 da lei 11.101/2005 delimita quais credores serão parte da negociação coletiva ao estipular que apenas os créditos existentes na data do pedido se submetem à recuperação judicial, permitindo assim, não apenas a definição das partes do acordo coletivo, mas também uma decisão fundamentada por parte dos interessados sobre os mecanismos mais apropriados para reestruturação das atividades. No caso dos FIDC-NP, estes frequentemente realizam seus investimentos mediante a estipulação de contratos denominados true sale, por meio dos quais adquirem a propriedade definitiva de recebíveis. A hipótese não se confunde com outra comumente verificada no mercado, em que recebíveis são entregues em garantia fiduciária do cumprimento de determinada obrigação principal; no caso da true sale, a própria transferência da propriedade dos recebíveis é a obrigação principal. Assim sendo, caso o cedente de recebíveis a um FDIC-NP enfrente uma crise econômico-financeira e se valha de qualquer instrumento do direito das empresas em dificuldade (pré-insolvência, recuperação extrajudicial ou judicial ou falência), ainda que o contrato de true sale tenha sido realizado em momento anterior ao pedido, o cessionário não figurará no rol de credores, por se tratar de proprietário definitivo dos direitos creditórios, cuja posse será transferida futuramente pelo devedor - e não um credor submetido à lei 11.101/2005. __________ 1 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)  III - função social da propriedade; 2 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 3 Sobre o tema: GUIMARÃES, Márcio Souza. A Ultrapassada Teoria da Empresa e o Direito das Empresas em Dificuldades. in WAISBERG, Ivo e RIBEIRO, J. Horácio H. Rezende (coord.) Temas de Direito da Insolvência - Estudos em homenagem ao Professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: IASP, 2017, pp. 682 a 708. 4 As interações entre o devedor e seus credores no âmbito da recuperação judicial podem ser analisadas à luz da teoria dos jogos Trata-se de hipótese em que os interesses dos jogadores (devedor e credores) estão em conflito, e cada um deles tomará decisões estratégicas visando sempre potencializar suas vantagens, orientados, em todo caso, pelo princípio da função social da empresa (GUIMARÃES, Márcio Souza. Direito das empresas em dificuldades in: PINHEIRO, Armando Castellar; PORTO, Antônio J. Maristrello; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro (coord.). Direito e economia: diálogos. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019, p. 369). No mesmo sentido Mario Engler Pinto: "O modelo introduzido pela Lei 11.101, de 09.02.2005, para superação da crise financeira da empresa, pode ser considerado um jogo oficial de interação estratégica, na medida em que pressupõe o consenso mínimo entre o devedor e seus credores, sobre o plano de recuperação judicial ou extrajudicial. No lugar de negociações individuais e bilaterais entre o devedor e seus credores, surge a necessidade de interação coletiva e organizada. A celebração do acordo pode significar um ganho para as partes envolvidas, pois evita o mal maior da decretação da quebra". (grifamos) JUNIOR, Mario Engler Pinto. A Teoria dos Jogos e o Processo de Recuperação de Empresas in: WALD, Arnoldo (org.). Doutrinas Essenciais: Direito Empresarial - Vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 454. 5 Como bem pontua Raquel Sztajn: "(...) sendo inviável a recomposição da organização, melhor tratar de desfazê-la o mais rapidamente possível evitando a propagação dos danos e enviando claros sinais de que não serão feitas concessões a empresários ou empresas cuja continuidade não se justi?que no plano econômico." SZTAJN, Rachel. In SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio de A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 221. 6 Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. 7 Em decorrência de inúmeros recursos, a matéria foi examinada em sede de recurso repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça que consolidou a jurisprudência no Tema nº 1.051: Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador. 8 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 192. 9 Art. 49. § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. 10 Tema nº 885: A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005 11 A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória. (Súmula n.  581, Segunda Seção, julgado em 14/9/2016, DJe de 19/9/2016). 12 Art. 49. § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. 13 Nesse sentido, destacam-se, dentre outros, os precedentes: AgInt no REsp n. 2.032.341/SP, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 16/10/2023; AgInt no REsp n. 2.041.801/MG, Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 11/10/2023; AgInt no AREsp n. 2.090.386/SP, Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 23/3/2023. 14 Art. 1.368-C do Código Civil: O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. 15 A subscrição é o ato por meio do qual o investidor passa a ser o titular das cotas emitidas pelo fundo de investimento, bem como assume a obrigação de integralizar (ou seja, efetivar o pagamento total correspondente) o valor das cotas adquiridas. 16 a) estejam vencidos e pendentes de pagamento quando da cessão; b) decorrentes de receitas públicas originárias ou derivadas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de suas autarquias e fundações; c) resultem de ações judiciais ou procedimentos arbitrais em curso, constituam seu objeto de litígio, tenham sido judicialmente penhorados ou dados em garantia; d) a constituição ou validade jurídica da cessão para a classe de cotas seja considerada um fator preponderante de risco; e) o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial; f) sejam cedidos por sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial, ressalvado o disposto no inciso I do § 1º; g) sejam de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas; h) derivativos de crédito, quando não utilizados para proteção ou mitigação de risco de direitos creditórios; ou i) cotas de FIDC que invistam nos direitos creditórios referidos nas alíneas "a" a "h". 17 § 1º Não são considerados direitos creditórios não-padronizados: I - direitos creditórios cedidos por sociedade empresária em processo de recuperação judicial ou extrajudicial, desde que cumulativamente atendam aos seguintes requisitos: a) não sejam originados por contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias e serviços para entrega ou prestação futura; e b) a sociedade esteja sujeita a plano de recuperação homologado em juízo, independentemente do trânsito em julgado da homologação do plano de recuperação judicial ou extrajudicial; e II - os precatórios federais, desde que cumulativamente atendam aos seguintes requisitos: a) não apresentem nenhuma impugnação, judicial ou não; e b) já tenham sido expedidos e remetidos ao Tribunal Regional Federal competente. 18 Em apertada síntese, a diferença entre direitos creditórios padronizados e não-padronizados diz respeito ao nível de riscos inerentes aos ativos. Os primeiros são ativos considerados de baixo risco, que conferem mais segurança ao investidor. Os direitos creditórios não-padronizados, por outro lado, são ativos considerados mais arriscados, como valores de natureza futura e incerta, como objeto de litígio em curso ou recebíveis futuros. 19 Processo nº 0843430-58.2023.8.19.0001 em trâmite perante a 3ª Vara Empresarial da Capital do Estado do Rio de Janeiro - RJ. 20 Didaticamente, leciona Luiza Rangel de Moraes: "A cessão desses direitos creditórios consiste na transferência pelo cedente, credor originário ou não, de seus direitos creditórios para o cessionário, que, no caso, é um FIDC. É uma operação de securitização destinada à formação de FIDC, dando origem aos valores mobiliários com lastro nos créditos que a companhia tem a receber. A operação básica é a seguinte: - uma empresa transfere o direito de recebimento de seus créditos para um FIDC, através de um contrato de cessão de direitos creditórios; - esses direitos creditórios passam a constituir patrimônio do FIDC, através de um contrato de cessão de direitos creditórios; - esses direitos creditórios passam a constituir patrimônio do FIDC, que é gerido por uma instituição financeira; e - as cotas desse fundo são subscritas" (MORAES, Luiza Rangel de. O papel dos fundos de investimento na recuperação judicial de empresas. In: Revista de direito bancário e do mercado de capitais. Vol. 37, 2007. Jul-Set, 2007. p. 15-29) 21 Agravo de Instrumento nº 0027567-98.2023.8.19.0000, que teve curso perante a 12ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Introdução Recentemente, em 31 de outubro de 2023, entrou em vigor a Lei nº 14.711/2023, resultante da sanção parcial do PL 4.188/21, que ficou conhecida no seio do mercado e na comunidade jurídica como o "Marco Legal das Garantias". Tal dispositivo legal, dentre outros assuntos, traz alterações importantes nas regras aplicáveis às principais garantias praticadas por instituições financeiras e, também, por credores não financeiros - inclusive, e principalmente, a alienação fiduciária em garantia e a hipoteca sobre bens imóveis. O objetivo do Marco Legal das Garantias, segundo o Governo e o Congresso, foi o de conferir maior segurança jurídica, efetividade e facilidade de execução a todas as formas de garantia, além de estimular a utilização de institutos até então subutilizados (caso, por exemplo, da hipoteca). Tudo isso contribuiria para reduzir os juros praticados em operações de crédito e tornar o próprio crédito mais barato e acessível, estimulando o consumo e o investimento em geral - o que é crucial num momento em que a economia nacional segue flertando com um cenário de recessão. Este breve artigo pretende, de um modo geral, avaliar os impactos do Marco Legal das Garantias nos procedimentos destinados ao tratamento da insolvência e da crise empresarial, principalmente a recuperação judicial e a falência, conforme previstas pela lei 11.101/2005 (a "Lei de Recuperação e Falência"). Mas não apenas isso: avaliaremos, também, alguns aspectos do próprio direito da crise empresarial que podem impactar a eficácia das normas e, principalmente, dos objetivos do Marco Legal das Garantias, especialmente no que diz respeito ao estímulo ao uso das garantias reais, tradicionalmente preteridas em favor das garantias fiduciárias desde a introdução destas últimas no direito brasileiro.  O Marco Legal das Garantias: principais medidas No que diz respeito à alteração da disciplina das garantias, podemos dividir as medidas tomadas pelo Marco Legal das Garantias em duas frentes distintas: uma dedicada ao tratamento das garantias fiduciárias, e outra dedicada ao tratamento das garantias reais. Há, ainda, medidas gerais aplicáveis a todas as modalidades de garantia, que serão também mencionadas. Alienação fiduciária em garantia Quanto à alienação fiduciária de bens imóveis, o Marco Legal das Garantias tem por objetivo modernizá-la e torná-la mais versátil. Nesse sentido, o Marco Legal das Garantias passa a autorizar expressamente a constituição de alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente, que consiste em que um mesmo imóvel já alienado fiduciariamente possa ser objeto de nova alienação fiduciária mediante registro imobiliário, ainda que mantendo-se as preferências às alienações anteriores sobre as posteriores. O registro deve ocorrer desde a data da celebração do instrumento de alienação fiduciária, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anterior. Importante ressaltar que alguns cartórios já aceitavam um tipo de garantia similar por meio do registro de instrumentos de alienação fiduciária com condição suspensiva consistente na extinção da alienação fiduciária anterior, de modo que a alienação fiduciária mais recente se tornaria imediatamente eficaz tão logo houvesse a indicação de extinção da alienação fiduciária anterior. De todo modo, esse procedimento nunca foi padronizado, e a admissão legal expressa da alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente certamente traz mais segurança jurídica aos credores e mais opções ao mercado como um todo. Ainda em relação à alienação fiduciária de bens imóveis, o Marco Legal das Garantias passa a exigir um maior detalhamento nos próprios instrumentos de garantia, que devem conter previsões de valor máximo ou estimado da dívida, permissão de uso do imóvel pelo devedor fiduciante (conforme o caso), e detalhes relativos aos procedimentos de excussão, inclusive extrajudicial, da própria garantia fiduciária. Há, ainda, a possibilidade de o credor declarar antecipadamente vencidas todas as demais obrigações garantidas pelo mesmo imóvel que garante a obrigação inadimplida, contanto que isso esteja previsto nos respectivos instrumentos de alienação fiduciária. O Marco Legal das Garantias também acrescenta o art. 27-A à lei 9.514/97, dispondo que, nas operações de crédito garantidas por alienação fiduciária de dois ou mais imóveis, na hipótese de não ser convencionada a vinculação de cada imóvel a uma parcela específica da dívida, o credor poderá promover a excussão das diferentes garantias fiduciárias em ato simultâneo, por meio da consolidação de propriedade e leilão de todos os imóveis em conjunto, ou em atos sucessivos, por meio de consolidação e leilão de cada imóvel em sequência. Sob o ponto de vista das regras da Lei de Recuperação e Falência, em princípio nada muda. A alienação e a cessão fiduciária em garantia seguem sendo tratadas como garantias extraconcursais, nos termos do artigo 49, §3º, da Lei de Recuperação e Falência, o que significa que os credores detentores de tais garantias não se sujeitam ao plano de recuperação judicial ou à falência da empresa devedora, e podem excutir livremente suas garantias, inclusive pela via extrajudicial (quando disponível). É fato que tanto a lei quanto a jurisprudência criaram instrumentos para mitigar de certa forma a liberdade de excussão de garantias por tais credores fiduciários, especialmente quando os bens sobre os quais a garantia recai possam ser considerados essenciais ao desempenho das atividades das empresas devedoras em recuperação judicial. O próprio artigo 49, §3º, da Lei de Recuperação e Falência impede, durante o período de suspensão das ações e execuções contra a recuperanda (stay period), a excussão das garantias fiduciárias que recaiam sobre bens de capital considerados essenciais, mas há precedentes jurisprudenciais que, ou alargam o conceito tradicionalmente vigente de "bens de capital" para abranger os ativos sob discussão específica, ou dispensam a qualificação dos bens como sendo "de capital" como requisito para a incidência da proteção legal, que, nesses casos, acaba recaindo sobre quaisquer bens considerados essenciais pelo juízo da recuperação judicial. De todo modo, por mais que haja instrumentos legais e jurisprudenciais que visam evitar que a excussão de garantias fiduciárias acabe impedindo o soerguimento efetivo de empresas em recuperação judicial, é fato que, conceitualmente, os credores fiduciários seguem "imunes" aos efeitos da recuperação judicial e da falência, conservando seu direito de manter e excutir suas garantias independentemente (ao menos em tese) do destino da empresa devedora e de sua relação com os demais credores. A omissão do Marco Legal das Garantias em relação à disciplina da Lei de Recuperação e Falência criou, no entanto, grave insegurança no que diz respeito à nova possibilidade de instituição de alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente. Nesses casos, vale reforçar, pode haver o estabelecimento de duas ou mais alienações fiduciárias distintas de forma concomitante e sobre um mesmo imóvel, ainda que as mais antigas tenham preferência sobre as mais novas em caso de excussão. A pergunta que se faz é: como fica, em tais hipóteses, a não sujeição dos créditos garantidos aos procedimentos de recuperação judicial e falência - especialmente levando-se em conta que, conforme entendimento já cristalizado na jurisprudência, a extraconcursalidade dos créditos garantidos fiduciariamente vai até o limite do valor do próprio bem dado em garantia? Apenas o credor fiduciário mais antigo deve ser considerado extraconcursal? Ou também os credores fiduciários mais novos? Deve-se manter todos os credores com garantia fiduciária como concursais, aguardando-se a excussão efetiva da garantia para abater os montantes eventualmente recebidos com sua excussão? Ou deve-se manter todos os credores fiduciários como extraconcursais, aguardando-se a excussão da garantia para que sejam habilitados como concursais apenas por eventual saldo, mesmo sabendo-se de antemão que o valor do bem não é suficiente para cobrir todos os créditos garantidos? Nem o Marco Legal das Garantias e nem a Lei de Recuperação e Falência são hoje capazes de responder a tais perguntas, cabendo à jurisprudência, uma vez mais, a tarefa de pacificar tal entendimento de acordo com a finalidade da lei. Hipoteca Se o objetivo do Marco Legal das Garantias quanto à alienação fiduciária foi torná-la mais segura e versátil (por meio, por exemplo, da possibilidade de alienação fiduciária da propriedade superveniente), quanto à hipoteca imobiliária o objetivo foi o de estimular o seu uso e resolver os problemas inerentes à sua excussão - e que, até então, motivavam sua substituição pela alienação fiduciária, cuja excussão sempre foi muito facilitada em relação à hipoteca. Nesse sentido, uma das alterações mais importantes trazidas pelo Marco Legal diz respeito à previsão de um procedimento de excussão extrajudicial da hipoteca, similar ao já aplicável à alienação fiduciária de bens imóveis. Vale observar que, assim como ocorre na alienação fiduciária, também se exige na hipoteca, inclusive como requisito de validade, a previsão expressa desse procedimento de excussão extrajudicial no próprio instrumento de garantia - o que reforça a necessidade de que esses instrumentos sejam redigidos com maior atenção e detalhamento. Do mesmo modo, também foi prevista para a hipoteca a possibilidade de o credor vencer antecipadamente todas as demais obrigações garantidas pelo mesmo imóvel que garante a obrigação inadimplida. Novamente sob o ponto de vista das regras da Lei de Recuperação e Falência, não houve alterações no que diz respeito ao tratamento dos créditos garantidos por garantias reais em geral (hipoteca ou penhor). Ao contrário do que ocorre com as garantias fiduciárias, que permanecem válidas, eficazes e exequíveis (ainda que com algumas limitações já referidas), as garantias reais não tornam o crédito garantido imune aos efeitos da recuperação judicial ou da falência. O credor com garantia real, assim como qualquer outro credor sujeito à recuperação judicial ou falência do devedor, não pode tentar receber o seu crédito de forma independente dos demais credores, ficando sujeito aos termos do plano (no caso da recuperação judicial) ou à ordem legal de preferências (no caso da falência). Importante ressaltar que, em ambos os casos, o credor não necessariamente perde o seu direito real de garantia - apesar de não poder excutir a sua garantia real, que, no entanto, permanece válida e eficaz. A perda do direito de excutir a garantia real é, em ambos os casos, compensada pela atribuição de outros direitos e privilégios aos credores, que diferenciam os credores com garantia real dos demais credores que não possuem garantias (quirografários). Na falência, o bem dado em garantia real será vendido juntamente com todos os demais bens do devedor. O valor arrecadado será utilizado para pagar os credores em geral na ordem de preferência legal, sendo que os credores com garantia real são pagos logo após os créditos concursais trabalhistas limitados a 150 salários-mínimos. Os demais credores sem garantia apenas podem receber qualquer coisa depois que os credores com garantia real tiverem recebido todo o seu crédito, e ainda assim após uma longa fila de espera, que inclui créditos tributários e créditos com determinados privilégios definidos em lei. Já na recuperação judicial, por sua vez, não há ordem de pagamento legal, o que significa que o devedor não está necessariamente obrigado a garantir que os credores com garantia real recebam antes ou em melhores condições do que os demais credores sem garantia. A forma e o tempo em que cada classe será paga serão determinados pelo que constar no plano de recuperação judicial que venha a ser aprovado pelos credores. Nesse sentido, o benefício concedido aos credores com garantia real consiste em seu posicionamento em uma classe de credores específica, que deverá aprovar o plano de recuperação de forma independente das demais classes. Isso resulta na concessão aos credores com garantia real, via de regra, de um maior poder de barganha na negociação das condições do plano e do pagamento de seus créditos, o que em geral resulta em condições de pagamento mais benéficas do que aquelas praticadas em relação aos demais credores sem garantia. Nada disso, repita-se, foi alterado pelo Marco Legal das Garantias. E é exatamente esse um dos pontos que pareceu escapar ao legislador, que aparentemente supôs que a mera simplificação do procedimento de excussão da hipoteca (com a criação da possibilidade de excussão extrajudicial), por si só, seria suficiente para estimular o seu uso e "destronar" a alienação fiduciária como mecanismo primário de garantias imobiliárias. Há, com efeito, vários fatores que contribuem para que credores (especialmente instituições financeiras) optem pela utilização da alienação fiduciária em detrimento da hipoteca. Um deles é, sim, a maior facilidade na excussão das respectivas garantias - o que pode ter sido suprido pela introdução da possibilidade de excussão extrajudicial da hipoteca. O outro, que nos parece absolutamente decisivo, é o tratamento de ambas as modalidades de garantia no âmbito da eventual insolvência do devedor - o que não foi alterado pelo Marco Legal das Garantias. Sob esse viés, enquanto se mantiver a enorme disparidade de tratamento existente entre a alienação fiduciária de bem imóvel e a hipoteca imobiliária no âmbito da insolvência do devedor, a ponto de a alienação fiduciária se manter plenamente eficaz e exequível ao passo que a hipoteca imobiliária segue sendo afetada pela recuperação judicial ou falência do devedor, haverá poucos estímulos às instituições financeiras em geral para que passem a adotar a hipoteca em detrimento da alienação fiduciária. Não se propõe, por óbvio, que a questão seja resolvida pela simples "equalização" do tratamento de ambas as garantias, nem para um lado (tornando, por exemplo, concursal a alienação fiduciária), e nem para outro (tornando, por exemplo, extraconcursal a hipoteca). Ambas as modalidades de garantia têm suas peculiaridades sob o ponto de vista dos direitos que transferem aos credores, e há justificativas técnicas para tal tratamento díspar. Trata-se, tão somente, de uma constatação de fato: enquanto esse quadro se mantiver, não parece haver vantagens em utilizar a hipoteca como mecanismo de garantia, mesmo que sua excussão tenha sido simplificada e, hoje, equivalha à da alienação fiduciária. Medidas gerais No que diz respeito às garantias em geral, o Marco Legal das Garantias também estabelece que qualquer garantia pode ser constituída, levada a registro, gerida e excutida (inclusive por via extrajudicial, quando possível) por um agente de garantia a ser designado pelos credores. Tal agente atuará em nome próprio e em benefício dos credores (tratando-se de dever fiduciário), inclusive em ações judiciais que envolvam discussões sobre existência, validade ou eficácia da garantia. Em caso de execução da garantia levada a efeito pelo agente, o produto da excussão constituirá patrimônio separado do patrimônio geral do próprio agente pelo período de até 180 dias, e deverá ser distribuído aos credores num prazo de até 10 dias úteis após o recebimento dos valores pelo agente de garantia. É fato que, dada a natureza das funções exercidas pelo agente de garantia, caberá aos credores um monitoramento rigoroso dos procedimentos adotados para excussão das garantias, recebimento e, principalmente, distribuição dos valores obtidos. Também deve ser devidamente prevista e acompanhada a atuação do agente de garantia em procedimentos de insolvência, já que, agindo em nome próprio, ele passará a ter legitimidade processual para atuar nesse tipo de procedimento - o que poderá eventualmente conflitar com os interesses individuais dos próprios credores, que podem ser divergentes entre si. Em relação aos títulos registrados com cláusulas resolutivas, o Marco Legal trouxe para os Tabelionatos de Notas a competência de certificar o implemento ou a frustração de tais condições por meio da ata notarial, já utilizada para outros fins na dinâmica dos negócios imobiliários. Houve, também, a instituição de um procedimento de concurso para organizar a excussão extrajudicial de garantias quando houver multiplicidade de credores. Por fim, o Marco Legal das Garantias foi objeto de vetos parciais pelo Presidente da República, relacionados, em linhas gerais, à previsão de autorização de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis dados em alienação fiduciária. Tais vetos ainda pendem de análise pelo Congresso Nacional, que poderá derrubá-los.  Conclusão Como se pôde observar, apesar de ter trazido mudanças relevantes na disciplina das principais garantias utilizadas pelo mercado (principalmente imobiliárias), o Marco Legal das Garantias não pareceu se preocupar a contento com algumas questões importantes inerentes ao âmbito da Lei de Recuperação e Falência. Menciona-se, em especial, a insegurança jurídica quanto ao tratamento da extraconcursalidade (ou concursalidade) de créditos garantidos por alienações fiduciárias supervenientes, bem como a manutenção da enorme discrepância existente entre o tratamento das garantias reais e fiduciárias em procedimentos de insolvência - o que, a nosso ver, contribui para que as garantias reais sigam sendo preteridas em face das garantias fiduciárias. Espera-se que tais questões sejam levadas em conta futuramente, não apenas pelo legislador, mas também pela jurisprudência, que precisará se ocupar de resolver tais problemas de forma mais imediata, sempre em respeito à finalidade da Lei de Recuperação e Falência.
Um dos pontos altos do sistema da lei 11.101/05 fora a abertura do leque de medidas destinadas à reestruturação da empresa em crise, rompendo com o sistema anterior, pelo qual ao comerciante permitia-se tão somente o parcelamento de suas dívidas em limitado prazo previsto na lei. No contexto atual, embora predominem planos de reestruturação baseados em deságios, períodos de carência e prazo alongado para o pagamento de dívidas, também não são raras as propostas para a superação da crise enfrentada apoiadas em medidas previstas nos demais incisos do artigo 50 da LRE, cujo rol não é taxativo. Aqui e em outros países1, a realidade tem mostrado que os devedores pretendem vender parte de seus ativos durante a recuperação, para pagar suas dívidas ou exercer atividades mais lucrativas, além da transferência de controle e, como não poderia deixar de ser, também outras formas de reorganização societária, das quais se destacam a transformação, a fusão, a cisão e a incorporação2. A flexibilidade da lei com relação às medidas de soerguimento é fator que favorece a reestruturação de empresas, permitindo que sejam enfrentados problemas mais graves na estrutura empresarial, trazendo alternativas de soluções que podem ser eficientes na concatenação dos elementos que compõe a sua estrutura. Na recuperação judicial, essas medidas devem ter um norte em comum e não podem representar a liquidação da empresa, justamente porque o fundamento que lhe emprestou o legislador fora a preservação da atividade empresarial e não sua extinção. Em outros sistemas, como o norte-americano, é possível o liquidation plan, mas, ainda assim, deverá ser demonstrado que a medida é mais vantajosa aos credores do que a liquidação regular prevista no Chapter 73. Em regra, o devedor e seus administradores são mantidos na condução da atividade empresarial, o que se faz para conservar as relações comerciais, maximizar a eficiência da direção por quem já conhece o negócio e até mesmo para incentivar a utilização da recuperação judicial4. É evidente, porém, que a vida societária é afetada pela recuperação, impondo-lhes efeitos das mais variadas espécies, colocando nas mãos de sujeitos externos à sociedade o poder de deliberar sobre a atividade da empresa e até mesmo sobre seu patrimônio, o que de certa forma "ofusca o poder do acionista controlador", fazendo com que, em muitos momentos de tensão, sejam compartilhados a direção e o controle da sociedade5, pondo em conflito regras e princípios da LRE e da legislação societária. Se por um lado as possibilidades de reestruturação podem parecer infinitas, por outro, há que se ponderar quanto ao comprometimento do patrimônio do devedor com os negócios que serão realizados, o que, em última análise, constitui a garantia dos credores, tornando evidente a dificuldade para se alcançar o equilíbrio dessas relações. Vejam-se, a exemplo, a fusão ou a incorporação de sociedades. A fusão une duas ou mais empresas, que serão extintas para formar uma nova sociedade, enquanto na incorporação, as empresas incorporadas serão extintas e seus patrimônios serão absorvidos pela sociedade incorporadora. Através dessas operações haverá a união de empresas com seus patrimônios. A incorporação e a fusão revelam sua utilidade para a concentração empresarial, tornando possível ganhos em escala, redução de custos administrativos e economia de estruturas e de produção, ampliação de mercados, etc e essas vantagens podem constituir fatores que convergem para a reorganização de empresas em crise. Contudo, os patrimônios das sociedades a serem unidas não são homogêneos, pelo contrário, são compostos por diferentes elementos ativos e passivos, que mostram ao final diferentes coeficientes de solvência, níveis de endividamento e até mesmo aptidões diversas para produzir lucros e se recuperar. A disparidade entre as situações patrimoniais de cada uma das sociedades exige análise abrangente a ser feita pelo credor, principalmente, para aferir se a união alcançada com a operação societária é necessária, se traz economia de recursos às devedoras, se potencializa a produção e, especialmente, se lhe é vantajosa para o objetivo primordial de recebimento de seu crédito. A análise de conveniência da operação é econômica e não cabe ao Judiciário; mas, no processo de recuperação, cabe a cautela de separar os grupos de votação dos credores de cada sociedade que será objeto de fusão ou incorporação, para que não sejam atingidos os direitos dos credores das sociedades menos endividadas dentre aquelas envolvidas. Veja-se que os credores destas sociedades em melhores condições, por serem em menor número e representarem dívidas de menor valor, podem eventualmente ter seu poder de voto diluído frente aos credores das demais sociedades e, consequentemente, ser-lhes impostas medidas que normalmente não aprovariam. Se ao invés de unir, o objetivo for o de separar duas ou mais partes do patrimônio da empresa, a cisão (art. 229 da lei 6.404/76) pode permitir a transferência integral ou parcial do patrimônio de uma ou mais sociedades para outra com a diminuição do capital social da empresa cindida (cisão parcial), ou mesmo sua extinção, no caso da cisão total. Aqui, interesses que não convivem harmonicamente podem ser segregados, separando-se as atividades econômicas em tantas quanto sejam necessárias à solução de problemas vivenciados pela empresa. A alteração societária será proposta aos credores e a análise de conveniência econômica de tal medida também cabe exclusivamente a eles; não obstante, eventualmente pode ser submetida à apreciação judicial a questão da responsabilidade solidária entre as sociedades pelas obrigações anteriores à cisão, nos termos do artigo 233, caput, da lei 6.404/76. No caso de cisão parcial, ainda, caso estipulada a responsabilidade apenas pelas obrigações que forem transferidas às sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida (art.233, §1º da Lei 6.404/76), a proporcionalidade dessas transferências pode constituir questão jurídica a ser resolvida. Em tese, deve ser transferida a mesma proporção de ativos e passivos da sociedade cindida, eis que, do contrário, estar-se-ia transferindo diferentes parcelas do patrimônio da empresa, alterando-se o coeficiente de solvência das sociedades, o que certamente interferiria no equilíbrio da relação entre devedores e credores. Excluídos os casos em que as operações societárias se dão dentro do contexto de normalidade, inclusive quanto aos seus meios e objetivos, a constituição de nova sociedade ou a extinção de outras, não deve fracionar entidade que continuará substancialmente unitária ou esconder intuito não previsto na lei. Nessas situações, a unidade econômica deve corresponder à unidade jurídica, assim como a diversidade deve refletir-se na pluralidade de sociedades. No caso da transformação de uma sociedade durante a recuperação judicial, a justificativa pode ter o propósito de alcançar recursos financeiros, por meio de oferta pública de ações, quando a alteração do tipo societário transforma a limitada em sociedade anônima. Note-se, contudo, que a solução não pode ser aplicada se a alteração de tipo societário ocorre em prejuízo de credores, pois, nos termos do art. 1.115 do Código Civil, "a transformação não modificará nem prejudicará, em qualquer caso, os direitos dos credores."6 Não se pode qualificar como abusiva a modificação societária, por exemplo, de uma sociedade simples para sociedade empresária, para postular a recuperação judicial, justamente por não haver restrição na LRE, caso sejam atendidos os pressupostos que a legitimariam nos termos da lei7. Por se tratar de norma aberta, o artigo 50 da lei 11.101/05, permite ainda outras espécies de operações, como o Drop Down, também chamado trespasse para subsidiária, pelo qual haverá o acréscimo de elementos do ativo (inclusive intangíveis) e do passivo da sociedade conferente em favor de outra8. Pela operação de trespasse para a subsidiária, que se realiza com base no disposto no art. 50, II, da lei 11.101/05, como a constituição de subsidiária integral9, a sociedade conferente recebe em contraprestação ações ou quotas da sociedade beneficiada, o que tem sido admitido para empresas em recuperação10, especialmente, se o resultado da exploração das atividades e com a venda da unidade for revertido ao pagamento dos créditos11. Outras medidas de reorganização podem ainda interferir de modo sensível na vida societária da empresa, como no caso da conversão de dívida em capital. Por essa operação, parcela da dívida exigível da empresa em crise passa a ser convertida em capital social, promovendo o seu aumento e a respectiva diminuição no montante de suas dívidas. Há verdadeiro saneamento das contas da empresa sem o ingresso de dinheiro novo, representando para o credor aposta no futuro, garantindo a lei que não haverá sucessão ou responsabilidade por dívidas de qualquer natureza ao terceiro credor (§ 3º ao art. 50 da lei 11.101/2005). Normalmente, as propostas12 de medidas de reorganização partem do devedor; mas, com a reforma trazida pela Lei 14.112/2020, podem partir também dos credores em situações específicas e, nesse contexto, se por eles for proposta a conversão de dívida em capital e disso resultar a alteração do controle societário da empresa, poderá haver a chamada "aquisição hostil da sociedade em recuperação judicial". Com efeito, nos termos das disposições do inciso XVII do artigo 50 da lei 11.101/2005, possível a capitalização da dívida da sociedade devedora que pode alterar o seu controle societário E, apesar da possibilidade de conflito entre normas societárias e as disposições da LRE, a solução não fere o direito de livre associação previsto em sede constitucional13, diante do possível direito de retirada do sócio com base na disposição do artigo 56, inciso VII, da LRE ou mesmo pela possibilidade de venda das ações ou quotas da empresa pelos credores dissidentes, conforme já se decidiu14. Cabem aos credores, ao administrador judicial e ao membro do Ministério Público, como também eventualmente aos sócios e acionistas da empresa em recuperação, quando se tratam de minoritários ou de proposta dos credores, apontar as ilegalidades constantes das medidas do plano de recuperação e, para isso, a lei prevê meios pelos quais podem se opor à proposta, como é o caso da objeção prevista no artigo 55 da LRE, a qual, além da insatisfação com relação ao plano proposto, pode ter objeto possíveis ilegalidades das medidas; ou mesmo por meio de oposição, trazida pela Lei 14.112/2020, quando já tenha havido deliberação (§3º, do artigo 56-A, da lei 11.101/05). As operações societárias podem alterar sensivelmente o equilíbrio da relação entre devedores e credores, pelo que devem ser justificadas pela utilidade que possam representar para a reorganização da empresa em crise, não somente para convencer os destinatários das propostas de que estas proporcionarão a recuperação da empresa, como também devem ser objeto de controle judicial15, quando têm o potencial de atingir as esferas jurídicas dos credores sujeitos e não sujeitos à recuperação judicial e até mesmo de integrantes da sociedade. A crise da empresa traz inegáveis restrições aos direitos dos sócios e à vida societária, como também certas operações previstas no plano de reerguimento podem provocar o desequilíbrio das relações entre devedores e credores e, mesmo não havendo subordinação formal entre a Lei de Recuperação de Empresas, a Lei das Sociedades Anônimas e as disposições societárias da Lei Civil, ganham destaque não somente o princípio majoritário como também o princípio da preservação de empresas viáveis para a interpretação dessas normas. __________ 1 Consoante a doutrina norte-americana, muitas empresas se valem do capítulo 11 apenas para vender seus bens e dividir o produto com a segurança necessária (Cf. BAIRD, Douglas G., RASMUNSSEN, Robert K. "The end of Bankruptcy", in Stanford LAW Review 55 (2002-2003). 2 Cf. MUNHOZ, Eduardo Secchi. "Financiamento e investimento na recuperação judicial", in CEREZETTI, Sheila Christina Neder e MAFFIOLETTI, Emanuelle Urbano (Coordenadoras). Dez anos da Lei nº11.101/2005. 1ª edição. São Paulo: Almedina. 2015, pp.270-272. 3 Nos Estados Unidos, é comum o processo de reorganização para a venda rápida e eficaz de ativos ao abrigo da lei e a repartição do produto entre os credores (Cf. BAIRD, Douglas G., RASMUNSSEN, Robert K. "The end of Bankruptcy", in Stanford LAW Review 55 (2002-2003), pp. 37. 4 Cf. BROLLO, Gustavo Deucher e CHAVES, João Leandro Pereira. "A governança na sociedade em recuperação judicial: uma análise empírica da implementação de rearranjos como meio de recuperação", in EBOOK DIREITO SOCIETARIO ESTUDOS DE JURIMETRIA. indb 143. 5 Cf. PIVA, Fernanda Neves e SETOGUTIA. "Governança corporativa das companhias em recuperação judicial", in Revista Brasileira da Advocacia 2016 RBA VOL.2 (JULHO - SETEMBRO 2016). 6 Nesse sentido: (TJSP; Agravo de Instrumento 2286126-40.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 18/03/2021; Data de Registro: 18/03/2021. 7 Nesse sentido: TJMG, Agravo de Instrumento 1.0000.17.026108-5/001 Relator: Des.(a) Alberto Vilas Boas. 1ª Câmara Cível. Data do Julgamento: 14/11/2017 Data da Publicação: 17/11/2017 8 Cf. VERÇOSA, Haroldo M. D.; BARROS, Zanon de Paula. A recepção do "drop down" no direito brasileiro. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, v. 125, a. XLI, p. 41 - 47, jan/mar. 2002, p. 41. Conforme os autores: "O drop down é realizado por meio de aumento de capital que uma sociedade faz em outra. conferindo a esta "bens" de natureza diversa, tais como estabelecimentos comerciais e industriais. carteiras de clientes, "atividades", contratos, atestados, tecnologia, acervo técnico "direitos e obrigações "etc"..." Muitas vezes é transferida a totalidade do objeto social da sociedade subscritora do aumento de capital, do que deveria decorrer a sua extinção, o que não tem acontecido na prática - reconhecendo-se a dificuldade de sua permanência no mundo do Direito, uma vez desaparecida a razão de sua existência"...Quanto aos seus efeitos jurídicos: 1º) atividades iniciadas e concluídas antes da realização da operação: neste caso, por elas responderia exclusivamente a sociedade conferente dos bens; 2º) atividades iniciadas e concluídas após a realização da operação: neste caso, por elas responderia expressamente a sociedado receptora; e 3º) as atividades iniciadas antes da operação e concluídas depois dela: as sociedades conferente e receptora responderiam proporcionalmente ao montante das obrigações, pelo tempo decorrido da operação" (pp.41/47). 9 Cf. TEPEDINO, Ricardo. O Trespasse para a Subsidiária (drop down). In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coords.). Direito Societário e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 63/64. 10 Cf. GUIMARÃES, Raquel Santos Batista e PAULA, Dídimo Inocêncio de. "Drop down como meio de soerguimento de empresas em recuperação judicial", in Migalhas n. 5.699, 31 de agosto de 2023. 11 Nesse sentido: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Ag.Inst. n. 2290263-65.2020.8.26.0000, rel. Des. J. B. Franco de Godoi, julg. 28/10/2021; TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Ag.Inst. n. 2159288-57.2017.8.26.0000, rel. Des. Hamid Bdine, julg. 13/12/20217. 12 Cf. QUADRANTE, Rodrigo. Validade da aquisição hostil da sociedade em recuperação judicial, in Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2023. 13 Em sentido contrário: SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 284. 14 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2133842-23.2015.8.26.0000; Relator (a): Enio Zuliani; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 30/09/2015; Data de Registro: 14/10/2015. 15 Nesse sentido: "...Recuperação judicial. Reorganização societária que, se não especificada no plano, deverá ser submetida ao crivo do juiz e dos credores". (TJSP; Agravo de Instrumento 2296445-67.2020.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Limeira - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/10/2021; Data de Registro: 25/10/2021).
A legislação brasileira é dinâmica e está em constante evolução para se adaptar às mudanças na sociedade e no mercado. Nesse contexto, a lei14.711/231 trouxe inovações ao Código Civil2 ao incluir o artigo 853-A, que estabelece o Contrato de Administração Fiduciária de Garantias como uma nova modalidade contratual. Esta inclusão no Código Civil visa aprimorar o sistema de garantias, proporcionando maior segurança e eficiência na gestão dos ativos garantidores. Trata-se de novíssima modalidade contratual típica incluída pela lei 14.711/23 no Código Civil, de forma que inexistem precedentes suficientes para se embasar um estudo prático sobre o tema. Estas são, portanto, as primeiras impressões sobre o instituto que ainda será colocado à prova pelos operadores do direito nos desafios cotidianos. O cerne do contrato está expresso no caput do artigo 853-A, que dispõe que qualquer garantia pode ser constituída, registrada, gerida e executada por um agente de garantia designado pelos credores da obrigação garantida. Este agente atuará em nome próprio, mas em benefício dos credores, inclusive em litígios relacionados à validade da garantia. É ressaltado que qualquer cláusula que contrarie essa disposição em desfavor do devedor ou do terceiro prestador da garantia é vedada. A introdução do Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, por meio da lei 14.711/23, representa uma significativa inovação no âmbito das relações contratuais ao permitir a criação de um concurso de garantias preexistente, sob a gestão do agente de garantia. Essa modalidade possibilita a inclusão e exclusão de operações com diversos credores, conferindo flexibilidade e dinamismo ao sistema. O agente de garantia, ao atuar como administrador desse concurso, não apenas gerencia as garantias existentes, mas também facilita a entrada de novos credores ou a retirada de antigos, proporcionando uma estrutura adaptável e eficiente que atende às demandas mutáveis do mercado. Essa flexibilidade no gerenciamento do concurso de garantias amplia as opções disponíveis para os participantes, ao mesmo tempo em que fortalece a segurança jurídica das relações creditícias. Esse dispositivo confere agilidade ao processo, alinhando-se com a busca por eficiência no sistema jurídico. Com a previsão do caput de que o agende de garantias tem a possibilidade de pleitear a execução da garantia, verifica-se que essa situação configuraria uma espécie de outorga de poderes, em que o credor autoriza, expressamente o agente a requerer em seu nome a execução. Também existe a previsão de que o agente fará a atuação em nome próprio. Nesse caso o instituto se assemelharia a uma substituição processual, um conceito que envolve a capacidade de uma pessoa ou entidade em atuar em juízo em nome de outra, defendendo direitos alheios como se fossem seus próprios. A substituição processual pode ocorrer quando há previsão legal para tal, permitindo que o substituto exerça as prerrogativas processuais em lugar do substituído. Parte superior do formulário Parte inferior do formulário No parágrafo 1º, o legislador prevê também a possibilidade de execução extrajudicial da garantia pelo agente, desde que haja previsão na legislação especial aplicável. Um bom exemplo dessa aplicação ocorrerá na alienação fiduciária de imóveis. O agente de garantia, conforme estabelecido no parágrafo 2º, assume um dever fiduciário em relação aos credores da obrigação garantida. Essa responsabilidade é reforçada pelo parágrafo 3º, que autoriza a substituição do agente, por decisão do credor único ou da maioria simples dos titulares dos créditos garantidos. A substituição, no entanto, só produz efeitos após a devida publicidade, assegurando a transparência no processo. As assembleias dos titulares dos créditos garantidos, previstas no parágrafo 4º, terão seus requisitos de convocação e instalação estipulados no ato de designação ou contratação do agente de garantia. Essa previsão confere maior flexibilidade às partes envolvidas, permitindo a adaptação do procedimento conforme a necessidade. O parágrafo 5º estabelece que o produto da realização da garantia constitui um patrimônio separado do agente de garantia, inatingível por suas obrigações por até 180 dias. Essa medida visa resguardar a integridade dos recursos até sua transferência aos credores garantidos.  A nova Lei, ao estabelecer nesse dispositivo que o produto da realização da garantia constitui um patrimônio separado do agente de garantia por até 180 dias, traz um conceito que se assemelha ao do "patrimônio de afetação". Verifica-se que ambos visam proteger recursos específicos, no entanto, enquanto o primeiro é temporário e vinculado à realização da garantia, o segundo é uma figura mais permanente, aplicada especialmente em empreendimentos imobiliários, segregando ativos e passivos específicos do empreendimento. Ambas as abordagens buscam assegurar a integridade financeira e a efetiva destinação dos recursos para os fins previstos. O parágrafo 6º estabelece um prazo crucial no Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, determinando que o agente de garantia dispõe de dez dias úteis após a realização da garantia para efetuar o pagamento aos credores. Essa disposição enfatiza a necessidade de celeridade na distribuição dos recursos, contribuindo para a eficácia do processo e garantindo que os titulares dos créditos se beneficiem rapidamente da realização da garantia. Essa medida reforça o compromisso do legislador em proporcionar um ambiente contratual eficiente e ágil. Além disso, o legislador, no parágrafo 7º, permite que o agente de garantia mantenha contratos paralelos com o devedor para diversos serviços, como pesquisa de ofertas de crédito, auxílio na formalização de contratos e intermediação em questões contratuais. Contudo, o agente deve agir com estrita boa-fé perante o devedor, conforme estabelecido no parágrafo 8º. Embora a lei 14.711/23 não preveja expressamente a remuneração do agente de garantia no Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, é razoável inferir que tal ônus será suportado pelos contratantes do serviço, os quais se beneficiam da gestão especializada dos ativos garantidores. A lógica contratual sugere que a remuneração do agente seja objeto de livre estipulação, alinhando-se com o princípio da autonomia da vontade das partes envolvidas. Dessa forma, a ausência de uma definição específica na lei oferece espaço para a negociação e estabelecimento de condições remuneratórias que atendam às necessidades e expectativas dos contratantes, promovendo, assim, uma relação contratual mais flexível e adaptável às peculiaridades de cada transação. Em síntese, o Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, introduzido pela lei 14.711/23, representa um avanço no ordenamento jurídico ao oferecer uma alternativa eficiente e segura para a gestão de garantias, promovendo a celeridade e a transparência nas relações contratuais. Essa inovação reflete a constante busca por aprimoramento e modernização do direito civil brasileiro e promove potencial diminuição dos custos de crédito. Ao permitir a gestão eficiente e especializada dos ativos garantidores por parte do agente de garantia, essa modalidade contratual contribui para a redução de riscos e, consequentemente, para a mitigação dos custos associados à concessão de crédito. ---------------- BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2003. Dentre outros assuntos, altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União de 31 de outubro de 2023 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139
terça-feira, 10 de outubro de 2023

Fresh start e o crédito tributário

Introdução                O presente artigo trata da extinção das obrigações do falido, com as alterações promovidas pela lei 14.112/2020, que permite o devedor recomeçar sua atividade econômica, livre das restrições que a falência lhe havia imposto. De fato, a lei 14.112/2020 abrandou o excessivo rigor dos requisitos para a extinção das obrigações, adotando um sistema semelhante ao denominado fresh start, que tem por objetivo facilitar a retomada das atividades empresariais do devedor.   Porém, em relação ao crédito tributário, as reformas realizadas pela lei 14.112/2020 não resolvem a questão, porque o art. 146, III da Constituição da República prevê que compete à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria tributária, não cabendo à lei ordinária dispor sobre a extinção das obrigações tributárias. Assim, o desafio aqui será encontrar a solução do problema aplicando-se o Código Tributário Nacional, que trata especificamente da matéria. Os novos critérios para extinção das obrigações do falido Antes de analisar a questão do crédito tributário, cumpre destacar as modificações trazidas pela lei 14.112/2020 que simplificaram substancialmente o procedimento de extinção das obrigações do falido, permitindo o denominado fresh start. Nos mesmos moldes do art. 138 do decreto-lei 7.661/1945 ("DL 7.661/1945"), a lei atual só autoriza o devedor falido a exercer novamente a atividade empresarial após a declaração de extinção de suas obrigações, matéria essa atualmente regida pelo art. 158 da lei 11.101/2005. Na redação original do art. 158 da lei 11.101/2005, encerrada a falência, o devedor poderia requerer a extinção das suas obrigações, nas seguintes hipóteses: i) pagamento de todos os créditos; ii) o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% dos créditos quirografários; iii) o decurso do prazo de cinco anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por crime falimentar; e iv) o decurso do prazo de dez anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por crime falimentar. Vale notar que o termo inicial dos prazos de cinco ou dez anos era o encerramento da falência. A lei 14.112/2020 representou um enorme avanço, ao simplificar e reduzir os requisitos para a extinção das obrigações. Além de revogar as exigências previstas nos incisos III e IV, que, respectivamente tratavam do decurso do prazo de cinco anos, sem condenação por crime falimentar, e de dez anos se o falido fosse condenado por crime falimentar, em ambos os casos contado o prazo do enceramento da falência, a lei deu nova redação ao inciso II e introduziu os incisos V e VI do art. 158, nos seguintes termos: "II - o pagamento, após realizado todo o ativo, de mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos quirografários, facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir a referida porcentagem se para isso não tiver sido suficiente a integral liquidação do ativo; [...] V - o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado; VI - o encerramento da falência nos termos dos arts. 114-A ou 156 desta lei." Ou seja, o termo inicial do prazo para extinção das obrigações do falido não é mais o encerramento da falência, mas sim sua decretação. Por sua vez, o encerramento da falência, que antes era o termo inicial dos prazos de cinco ou dez anos, passa a ser, por si só, fundamento suficiente para extinção das obrigações do falido. Importante destacar que há diferença sobre a aplicação dos incisos V e VI do art. 158, aos processos em curso. Nos termos do art. 5º, § 1º, inc. IV, da lei 14.112/2020, o inciso V aplica-se somente às falências decretadas após o início da vigência da mesma lei 14.112/2020, ou seja, não se aplica aos processos anteriores. Ao contrário, o art. 5º, § 4º, da lei 14.112/2020 estabelece que o inc. VI tem aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo DL 7.661/1945. Também o art. 159 foi alterado, reduzindo o prazo de trinta para cinco dias, para que os credores possam se opor ao pedido de extinção das obrigações formulado pelo falido. Note-se que o legislador reduziu a matéria a ser alegada pelos credores, Ministério Público e o administrador judicial, que só podem se manifestar sobre inconsistências formais e objetivas. Dentre os credores legitimados a contestar o pedido de declaração de extinção das obrigações do falido estão as Fazendas Públicas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que nos termos do inciso XIII do art. 99, acrescentado pela lei 14.112/2020, são intimadas eletronicamente da decretação da quebra. A intenção do legislador em viabilizar o retorno do agente econômico às suas atividades empresariais encontra-se ainda em outros dispositivos da lei 14.112/2020. De um lado, o art. 75 dispõe que a falência visa "fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à sua atividade econômica". Da mesma forma, a nova lei fixou prazo de 180 dias para a realização de todo o ativo, contado da data da lavratura do auto de arrecadação. Salvo por impossibilidade justificada, o descumprimento dessa obrigação acarretará a destituição do administrador judicial (art. 22, alínea j). Ressalta a preocupação do legislador em fixar uma sanção severa para o administrador judicial que descumprir, injustificadamente, essa obrigação de encerrar a liquidação do ativo com celeridade. A extinção das obrigações do falido e o crédito tributário  A finalidade específica desse instituto é a extinção de todas as obrigações na falência, como prevê expressamente o §3º do art. 159, com a nova redação dada pela lei 14.112/2020. Porém, em relação ao crédito tributário, a extinção das obrigações tem uma peculiaridade própria, pois o art. 191 da lei 5.172/1966 ("CTN") é expresso no sentido de exigir a prova da quitação de todos os tributos. O curioso é que essa redação do art. 191 foi introduzida pela LC 118/2005, a mesma que alterou o art. 186 para sujeitar o crédito tributário à falência. Assim, o legislador apresenta sinais trocados, uma vez que ao mesmo tempo em que avança e reconhece a realidade, sujeitando o crédito fiscal à quebra, também retroage, impedindo que a declaração de extinção das obrigações abranja os tributos. Há evidente conflito entre a norma do art. 186, que submete o crédito tributário ao sistema falimentar, e a regra do art. 191. No momento em que o CTN reconhece a sujeição do crédito da Fazenda Pública ao sistema falimentar, o qual tem normas específicas sobre a extinção das obrigações, não faz sentido a regra do art. 191. Esse dispositivo do art. 191 era coerente quando o crédito tributário não se sujeitava ao concurso falimentar - hipótese em que poderia ser declarada a extinção das obrigações na falência, sem abranger o crédito tributário, o qual não se sujeitava ao concurso de credores. O Superior Tribunal de Justiça analisou, em duas oportunidades, a aplicação do art. 191 do CTN na vigência do DL 7.661/1945, em acórdãos da lavra do Ministro Raul Araújo e da Ministra Nancy Andrighi. Como à época o crédito tributário não se sujeitava ao concurso de credores, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que a extinção das obrigações poderia ser declarada, mas o que, obviamente, não abrangeria os tributos.1-2 A interpretação isolada do art. 191 do CTN levaria à conclusão de que o falido estaria impedido de exercer os direitos que a falência restringiu até a liquidação total do passivo tributário, o que de fato seria impossível de ocorrer, ainda mais quando a falência for extinta após a realização de todo o ativo (art. 154 da lei 11.101/2005). Uma alternativa seria adotar a orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na vigência do DL 7.661/1945, no sentido de que a extinção das obrigações poderia ser declarada, mas não abrangeria as obrigações relativas a tributos, cuja cobrança, à época não se sujeitavam à falência, de modo que, juridicamente, o falido poderia de voltar a exercer a atividade empresária, mas não ficaria livre das obrigações tributárias. Contudo, tais interpretações devem ser repelidas, por incompatíveis com o escopo da extinção das obrigações, de modo a estimular a retomada da atividade produtiva. Por certo, a solução sobre a extinção do crédito tributário na falência deve estar no CTN, e não na lei ordinária. Isso porque cabe à lei complementar - no caso, o CTN - estabelecer normas gerais referentes a obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários, nos termos do art. 146 da Constituição da República. Cumpre frisar que a solução sobre a extinção do crédito tributário na falência é apresentada pelo próprio CTN, o qual no art. 156 inclui entre as hipóteses de extinção do crédito tributário a decisão judicial passada em julgado (inciso X). No caso das obrigações do falido, nos termos do 159 da lei 11.101/2005, a extinção se dá com o trânsito em julgado da sentença que declarar extintas as suas obrigações. Na hipótese, a sentença tem natureza constitutiva e não declaratória. O § 3º do art. 159 da lei 11.101/2005 dispõe que o juiz proferirá sentença que "declare extintas todas as obrigações do falido, inclusive as de natureza trabalhista", sem fazer referência expressa ao crédito tributário. Mas a referência apenas ao crédito trabalhista não é suficiente para concluir que a declaração de extinção das obrigações do falido não abrangeria as de natureza tributária, pois o fundamento para a extinção do crédito tributário estaria caracterizado pela sentença de extinção das obrigações passada em julgado, como prevê o art. 156 inciso X do CTN. Conclusão  A lei 14.112/2020 simplificou significativamente o instituto da extinção das obrigações do falido, não se podendo deixar de reconhecer que o novo regramento tem a mesma preocupação do sistema denominado fresh start, no sentido de facilitar um recomeço para o devedor, que se liberta das restrições impostas pela falência, livre para voltar a empreender. O grande desafio seria a extinção das obrigações tributárias, cuja solução deve passar necessariamente pelos dispositivos do CTN, uma vez que cabe à lei complementar, e não à lei ordinária, dispor sobre normas gerais de direito tributário. Nessa linha de raciocínio, é razoável concluir que a aplicação do art. 156, X, do CTN ao encerramento da falência é a interpretação que melhor harmoniza a lei ordinária à lei complementar. Assim interpretadas sistematicamente as normas do § 3º do art. 159 da lei 11.101/2005, com a redação dada pela lei 14.112/2020 e do art. 156, X, do CTN, conclui-se que a sentença, ao declarar extintas as obrigações do falido, extinguirá todas as suas obrigações, inclusive as de natureza tributária. __________ 1 "RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. FALÊNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO FALIDO (DL 7.661/45, ART. 135, III). DECURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL DE CINCO ANOS. TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE ENCERRAMENTO DA FALÊNCIA. AUSÊNCIA DE PRÁTICA DE CRIME FALIMENTAR. PROVA DE QUITAÇÃO DOS TRIBUTOS FISCAIS (CTN, ARTS. 187 E 191). RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A declaração de extinção das obrigações do falido poderá referir-se somente às obrigações que foram habilitadas ou consideradas no processo falimentar, não tendo, nessa hipótese, o falido a necessidade de apresentar a quitação dos créditos fiscais para conseguir o reconhecimento da extinção daquelas suas obrigações, em menor extensão, sem repercussão no campo tributário. 2. Sendo o art. 187 do Código Tributário Nacional - CTN taxativo ao dispor que a cobrança judicial do crédito tributário não está sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento, e não prevendo o CTN ser a falência uma das causas de suspensão da prescrição do crédito tributário (art. 151), não há como se deixar de inferir que o crédito fiscal não se sujeita aos efeitos da falência. 3. Desse modo, o pedido de extinção das obrigações do falido poderá ser deferido: I) em maior abrangência, quando satisfeitos os requisitos da Lei Falimentar e também os do art. 191 do CTN, mediante a "prova de quitação de todos os tributos"; ou II) em menor extensão, quando atendidos apenas os requisitos da Lei Falimentar, mas sem a prova de quitação de todos os tributos, caso em que as obrigações tributárias não serão alcançadas pelo deferimento do pedido de extinção. 4. Recurso especial parcialmente provido para julgar procedente o pedido de extinção das obrigações do falido, em menor extensão, sem repercussão no campo tributário. (STJ - REsp: 834932 MG 2006/0053594-4, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 25/08/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/10/2015)" e "RECURSO ESPECIAL. FALÊNCIA. DL 7.661/1945. EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO FALIDO. DECURSO DO PRAZO DE CINCO ANOS. PROVA DA QUITAÇÃO DE TRIBUTOS. DESNECESSIDADE. 1- Extinção das obrigações do falido requerida em 16/8/2012. Recurso especial interposto em 19/8/2016 e atribuído à Relatora em 26/8/2016. 2- Controvérsia que se cinge em definir se a decretação da extinção das obrigações do falido prescinde da apresentação de prova da quitação de tributos. 3- No regime do DL 7.661/1945, os créditos tributários não se sujeitam ao concurso de credores instaurado por ocasião da decretação da quebra do devedor (art. 187), de modo que, por decorrência lógica, não apresentam qualquer relevância na fase final do encerramento da falência, na medida em que as obrigações do falido que serão extintas cingem-se unicamente àquelas submetidas ao juízo falimentar. 4- Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1426422 RJ 2013/0414746-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/03/2017). Também nesse sentido é a lição de João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea aos examinarem essa questão do crédito tributário e o encerramento da falência (Recuperação de Empresas e Falência. 3ª ed. São Paulo: Almedina, 2018, pp. 996/997). 2 A regra do art. 191 do CTN aplica-se somente aos tributos, e não às multas tributárias, que são obrigações acessórias excluídas do conceito de tributo, conforme dispõe o art. 3º. do CTN: "Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada". (grifo nosso). Aliás, o CTN (art. 186, III) e a Lei nº 11.101/2005 (art. 83, VII), também fazem essa distinção entre tributo e sanção de ato ilícito (multas e penalidades), que têm classificações distintas na falência.
O moderno sistema de insolvência empresarial brasileiro, baseado na negociação entre credores e devedores, com o objetivo de encontrar uma solução de mercado para a superação da crise da empresa, foi inaugurado pela lei 11.101/05, num momento histórico em que a economia brasileira experimentava um período de crescimento. Nesse sentido, as novidades desse novo modelo não foram efetivamente testadas por quase uma década, época em que as empresas, como regra geral, enfrentavam um momento favorável ao desenvolvimento de suas atividades. Entretanto, a partir de 2015, o cenário econômico começou a mudar radicalmente. O Brasil passou a enfrentar a pior crise de sua história recente. O PIB caiu praticamente 7% nos anos de 2015 e 2016, demonstrando uma retração na atividade econômica comparável à década de 1930 com a quebra da Bolsa de Nova Iorque e a grande depressão. A partir de então, o sistema de insolvência brasileiro foi efetivamente colocado sob um teste de estresse, com os índices de distribuição de pedidos de recuperação de empresas e falências atingindo suas máximas históricas. Percebeu-se, então, a necessidade de aprimoramentos no nosso sistema diante da constatação de que faltavam algumas ferramentas necessárias ao enfrentamento eficaz da crise da empresa, bem como de que outras ferramentas mereciam modificações e aprimoramentos para que pudessem gerar melhores resultados. A reforma do sistema de insolvência empresarial se tornou, portanto, uma preocupação do Estado brasileiro, como pressuposto para que o País pudesse se recuperar da crise de 15/16. Nesse contexto, o MF, sob o comando do Ministro Henrique Meirelles, criou no final do ano de 2016 um grupo de trabalho para a elaboração de um anteprojeto de nova lei de recuperação de empresas e falências (portaria MF 467/16). Os trabalhos desse grupo - que contaram com a participação de diversos profissionais, inclusive deste autor - resultaram na apresentação do PL 10.220/18. Entretanto, essa primeira tentativa de reforma da lei não encontrou espaço favorável para desenvolvimento, diante do conturbado momento político. Mas não só em razão disso. O texto do anteprojeto não refletia em grande parte as necessidades de mudanças necessárias para a busca da eficiência do sistema de insolvência, razão pela qual perdeu o apoio de importantes setores da sociedade brasileira. Em 2019, o ME, já sob o comando do Ministro Paulo Guedes, retomou a ideia de prosseguir com a reforma do sistema de insolvência brasileiro. A estratégia utilizada foi a criação de um grupo reduzido de juristas para auxiliar o Deputado Hugo Leal na elaboração de um substitutivo ao PL 10.220/18. O trabalho político do Deputado Hugo Leal, auxiliado tecnicamente pelo grupo de juristas formado por Ivo Waisberg, Pedro Teixeira, Márcio Guimarães e Daniel Carnio Costa, resultou na coleta de sugestões de diversos segmentos da sociedade civil organizada, de Tribunais de Justiça, do STJ e de entidades representativas dos interesses envolvidos nos processos de insolvência. Foi elaborado o texto do substitutivo - que substituiria todos os projetos em andamento na Câmara dos Deputados e que tivessem objetivo de alterar a lei de recuperação de empresas e falências - que tramitou sob o número 6.229/05 (identificação do projeto de lei mais antigo que pretendia alterar a lei 11.101/05). O projeto substitutivo foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado, por onde tramitou sob relatoria do Senador Rodrigo Pacheco sob o número 4558/20. O projeto foi aprovado no Senado - com algumas alterações de redação - e foi sancionado pelo Presidente da República em 24 de dezembro de 2020, com alguns vetos que foram, posteriormente, superados pelo CN. Nasceu, então, o novo marco legal do sistema de insolvência brasileiro, a lei 14.112/20, que deu nova redação à lei 11.01/05. A reforma da lei de recuperação de empresas e falências aprimorou algumas das ferramentas já existentes e criou outras ferramentas novas. Nesse sentido, a título de exemplo, foram aprimorados o processo de falência, a reabilitação do falido e a recuperação extrajudicial. Por outro lado, foram criados o sistema de pré-insolvência empresarial (mediação e conciliação antecedentes), a constatação prévia, o financiamento DIP, a regulação da consolidação substancial e processual e o sistema de insolvência transnacional. Mas a reforma do sistema de insolvência não se faz apenas com a reforma do marco legal. Evidentemente, é importante que se tenha uma lei boa e completa para o bom enfrentamento da crise da empresa. Mas para que o sistema seja eficiente, é necessário criar condições para que essa lei seja efetivamente aplicada na prática, podendo-se extrair da regulação legal todo o seu potencial. Nesse sentido, se faz necessário também a realização de uma reforma de aprimoramento do ambiente institucional. Importante destacar que o Brasil realizou - e continua realizando - uma profunda reforma para aprimoramento do ambiente institucional a fim de propiciar uma adequada aplicação do novo marco legal de recuperação de empresas e falência. Paralelamente ao movimento de reforma da lei, ainda em 2018, o CNJ, sob a presidência do Ministro Dias Toffoli, criou o Grupo de Trabalho de Falências e Recuperação de Empresas (portaria CNJ 162, de 19 de dezembro de 2018). Esse grupo foi responsável pela apresentação de diversos atos normativos aprovados pelo Plenário do CNJ com o propósito de melhorar a atuação dos magistrados na condução de processos de insolvência, a estrutura do Poder Judiciário para o tratamento dessas causas e a atuação dos administradores judiciais. A título de exemplo, foram resultados desse GT do CNJ a recomendação 56/19, que estimulou a criação de Varas Especializadas em recuperação judicial, falências e direito empresarial de competência regional; a recomendação 58/19, que estimulou o uso da mediação e conciliação em processos de insolvência; a recomendação 63/20, que orientou os magistrados na condução de processos de insolvência durante a pandemia; a recomendação n. 71/20, que orientou a criação de CEJUSCs empresariais pelos Tribunais de Justiça; a recomendação n. 72/20, que orientou a melhor atuação dos administradores judiciais; e a recomendação 10/21, que padronizou e organizou os trâmites para a realização de AGCs virtuais e híbridas. Esse mesmo GT editou a resolução 393/21, que determinou a criação do cadastro de administradores judiciais pelos Tribunais de Justiça, e a resolução 393/21, que estabeleceu regras para a comunicação direta e cooperação entre juízos brasileiros e estrangeiros em processos de insolvência transnacional (adotando as boas práticas estabelecidas pelo Judicial Insolvency Network - JIN). Em 2022, esse GT foi transformado em fórum permanente do CNJ. A resolução CNJ 466/22 instituiu o FONAREF - Fórum Nacional de Recuperação de Empresas e Falências no âmbito do Conselho Nacional de Justiça com o propósito de aprimorar o ambiente institucional de aplicação do sistema de insolvência empresarial brasileiro. O FONAREF editou, por exemplo, a recomendação 141/23, que orienta os magistrados ao atendimento das melhores práticas na fixação dos honorários do administrador judicial. Em maio de 2023, o FONAREF publicou diversos enunciados doutrinários para orientar os Tribunais na aplicação do novo sistema de pré-insolvência empresarial (mediação e conciliação antecedentes). No âmbito do MP, o CNMP criou um grupo de trabalho para estudar as melhores práticas de atuação dos promotores e procuradores de justiça em processos de recuperação de empresas e falências. Os trabalhos desse GT resultaram na aprovação da recomendação 102/23 do CNMP, que orienta a atuação do MP em processos de insolvência empresarial. Percebe-se, portanto, que o movimento de reforma do sistema de insolvência no Brasil preocupou-se não só com o aprimoramento da lei (marco legal), mas também com a melhoria do ambiente institucional de aplicação da lei. A eficiência do sistema de insolvência pressupõe que os Tribunais tenham estrutura adequada para aplicação da lei, com varas especializadas e juízes bem treinados e orientados à melhor condução dos processos de insolvência; da mesma forma, há necessidade de que os administradores judiciais sejam eficientes e bem orientados para atuação nos processos de insolvência; também o MP deve ser capacitado para atuar nesse tipo de demanda, com promotores e procuradores bem treinados e com estrutura especializada. Esse movimento de aprimoramento institucional, que acontece de maneira simultânea à reforma da lei, tem sido fundamental para o sucesso que o Brasil tem conseguido na gestão mais eficiente dos processos de falência e recuperação de empresas.
terça-feira, 19 de setembro de 2023

Deixe falir...

O advento da lei 11.101/05 (Lei de Recuperações e de Falências - LRF) trouxe consigo não apenas um novo princípio, mas uma nova mentalidade no mundo jurídico-falimentar: a preservação da empresa. Ele encontrou campo fértil de acolhimento, sobretudo entre operadores que se habituaram a sobrepor princípios a regras específicas, angariando especial simpatia entre aqueles que entendem que o norte absoluto do Direito é a realização da justiça social, a qual deveria prevalecer sobre questões econômicas de caráter individualista. Arriscaríamos dizer a esse respeito que quase dez entre dez obras doutrinárias receberam com grande felicidade o art. 47 da LRF, que traz os princípios e objetivos gerais da recuperação judicial, consistentes em viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, manter a fonte produtora, o emprego dos trabalhadores, promovendo, assim, a preservação da empresa e sua função social.1 A recepção do art. 47 pela jurisprudência não foi diferente:  imbuídas de excelentes intenções e nobres propósitos, decisões esposaram teses e interpretações inovadoras para preservar a empresa (facilitando a recuperação e dificultando a falência), dentre as quais citamos algumas tendências: (1) prorrogação de prazo de recuperação judicial, ainda que contrariamente ao texto inicial da lei; (2) dispensa de certidões tributárias; (3) criação, praeter legem, sem critérios objetivos e previsíveis, de hipóteses de superação de voto de credores em oposição à recuperação em assembleia; (4) utilização, ainda que em alguns casos, de teorias de (in)adimplemento substancial para impedir ou suspender a convolação de recuperação em falência. Importante notar que, tanto a lição doutrinária quanto as decisões jurisprudenciais aludidas têm um alicerce comum, no sentido de que a preservação da atividade empresarial não é um fim em si mesmo. Preserva-se a empresa não por seus fundamentos econômicos, mas para manter vivos seus efeitos sociais. A essência do pensamento jurídico nessa matéria segue quase um brocardo aplicável ao direito administrativo: preservar empresa visa a sobrepor os efeitos inerentes ao interesse público (representados precipuamente pela continuidade do emprego e da tributação) sobre o interesse privado (pretensões dos credores e questões puramente econômicas). A revelação do raciocínio anteriormente citado não parece, em primeira análise, trazer nada de novo ou injustificável. Mas é justamente aí que repousa o grande risco: ao facilitar sobremaneira a interpretação normativa favorável à concessão/manutenção da recuperação (em detrimento da falência) lastreando-se prioritariamente em aspectos sociais outros que não a análise rigorosa de viabilidade econômica do empreendimento, cria-se um conjunto importante de incentivos (ou desincentivos) e de consequências, dentre as quais as discutidas no tópico seguinte. Incentivos e consequências importam Economistas ressaltam reiteradamente que incentivos importam, no sentido de que comportamentos humanos são encorajados ou desencorajados em virtude de estímulos (considerados aqui os de natureza econômica). Por sua vez, o ordenamento jurídico, sobretudo na visão da Análise Econômica do Direito, constitui-se, mais do que em meras normas derivadas da ciência moral ou filosófica, em um conjunto de incentivos. Como bem ressalta Bullard, que citamos no original:2 El derecho, más allá de disquisiciones filosóficas, es un sistema de regulación de conducta humana. Toda regla jurídica tiene un supuesto de hecho y una consecuencia jurídica: «el que causa un daño a otro con culpa debe indemnizarlo». Causar un daño con culpa es el supuesto de hecho. Pagar la indemnización es la consecuencia jurídica. Pero si usted mira con cuidado las cosas, pagar la indemnización es un precio, el costo de hacer algo. Por ello si se obliga a pagar a los culpables, habrá menos actos culposos. En otras palabras, la lógica del sistema de precios puede ser aplicada, como veremos, a virtualmente toda norma jurídica. Finalmente, las normas tratan de crear incentivos de conducta del tipo que los economistas estudian. Cabe agora indagar: quais consequências decorrem do raciocínio jurídico interpretativo do art. 47 da LRF, conforme citado no tópico anterior? Quando se considera que a atividade empresarial deve ser preservada mais em virtude de seus efeitos sociais (notadamente emprego e tributação), e menos em consideração de sua essência, acaba-se por relegar a segundo plano o requisito essencial da eficiência econômica como condição indispensável ao soerguimento empresarial. Nessa linha, decisões judiciais que, em interpretação benevolente do art. 47 da LRF, evitam ao extremo a decretação da falência e facilitam demasiadamente recuperações a devedores que não têm condições de operar de modo economicamente eficiente, acabam por gerar um resultado econômico pernicioso: mantêm em sobrevida atividades de alto custo e de baixo valor agregado, jogando o ônus econômico daí decorrente sobre toda a sociedade. Note-se que a proteção trabalhista derivada de tais situações é bastante ilusória: usualmente, protege-se um grupo restrito de empregados, supondo sua vulnerabilidade econômica, obtendo como contrapartida a manutenção de empregos caros e ineficientes, cuja conta, repita-se, é paga por toda a sociedade. Esses escassos recursos sociais, diga-se, poderiam ser mais bem utilizados na criação de empregos de eficiência superior, beneficiando toda a coletividade. Por outras palavras, poderíamos assim resumir: o que se preserva de empregos ineficientes com tais recuperações, corresponde à perda de outros empregos eficientes no mesmo setor ou em setores distintos da economia. Tal situação é deveras semelhante ao que ocorre quando se adotam políticas públicas que preconizam reservas de mercado, cerceamento de comércio exterior ou exigências de conteúdo nacional mínimo em mercadorias. Nesses casos, de modo similar, os empregos preservados em território nacional são mantidos à custa de recursos econômicos que poderiam ser utilizados na criação de outros empregos de maior grau de eficiência. Note-se também que se trata de uma ilusão de preservação trabalhista feita por meio de uma troca intertemporal de recursos desvantajosa para a sociedade: subsidiam-se hoje empregos ineficientes, usando recursos que criariam atividades de maior valor econômico e social em futuro próximo. Podem-se até entender as causas dessa linha de pensamento, conhecido economicamente como desconto hiperbólico: as demandas presentes acabam por ter prioridade em relação às futuras, é dizer, preferimos, muitas vezes, preservar empregos hoje (ainda que ineficientes) a usar recursos de forma mais eficiente no futuro, criando então empregos de melhor qualidade e produtividade. Sobre esse assunto, ensina Gianetti com grande maestria:3 Como entender essa aparente anomalia? O que explicaria essa tendência a subestimar na prática o futuro, ainda que reconhecendo a desejabilidade prática de não fazê-lo? [...] A fórmula que melhor descreve e elucida esse tipo de comportamento é o desconto hiperbólico. A ação resulta de uma combinação instável entre preferências inconsistentes. De um lado, a preferência pela gratificação imediata no presente (desfrute) e, de outro, a preferência pela espera paciente e a conduta calculada de longo prazo (previdência) [...]. A lonjura no tempo favorece a prudência e o cálculo frio; a proximidade subverte. Na sóbria serenidade da distância, a perspectiva neutra prevalece: a formiga pré-frontal dá o tom e rege o ensaio da orquestra cerebral. Mas, quando o momento e a oportunidade de agir se avizinham, a relação de forças se altera. A cantoria da cigarra límbica embala a mente com o antegozo de iminentes delícias e as boas intenções perdem temporariamente sua força motivadora [...]. A resultante disso é que a propensão a descontar o futuro - "viver agora, pagar depois" - aumenta de forma acentuada conforme a oportunidade concreta de agir se aproxima [...]. Daí que nossa capacidade de espera, como uma pomba caprichosa, tende a ser dócil e domesticável no conforto das escolhas pensadas à distância, mas arisca e traiçoeira no calor da hora. Enquanto a tentação (ou ameaça) anda longe, não há dificuldade em lidar com ela. É simples como escolher musse ou quindim de sobremesa: cada um prefere o que é melhor para si. Basta acertar o despertador, ao deitar-se, para acordar bem cedo na manhã seguinte; ou pensar na dieta com o estômago cheio; ou abraçar a temperança sob o efeito da última ressaca; ou parar de fumar e começar a ginástica no mês que vem; ou comprar camisinhas a caminho do motel; ou jurar fidelidade eterna no primeiro mês de casado; ou dispensar os anestésicos meses antes do parto; ou se imaginar capaz de feitos heroicos na falta de oportunidades; ou rejeitar o pecado e sentir-se um santo logo após a comunhão; ou ser contra os excessos da UTI no trato de doentes terminais quando se tem ótima saúde; ou desprezar a morte enquanto se é jovem ou não há perigo. Os exemplos pululam - cada um sabe de si. A tentação revela melhor o autocontrole; o perigo revela melhor a bravura e firmeza de caráter. Semelhante ilusão protetiva ocorre no campo tributário: quando se preservam empresas ineficientes, o resultado econômico por elas gerado remanesce necessariamente aquém do que se poderia obter caso os mesmos fatores de produção (capital, mão-de-obra etc.) fossem utilizados em outras atividades eficientes. Logo, a tributação (incidente sobre faturamento ou sobre o lucro) também permanece aquém do potencial que poderia atingir se os recursos fossem transferidos por efeito da decretação da falência. Mais uma vez, a sociedade paga a conta na forma de baixa arrecadação. Resumindo, temos que, embora imbuído de nobres propósitos, o efeito econômico da preservação de empresas ineficientes é justamente o contrário do que se imagina no meio jurídico: (1) preservam-se poucos empregos ineficientes à custa de recursos econômicos escassos de toda a sociedade, em detrimento da criação de outros empregos eficientes, no mesmo ou em outros setores da economia; (2) preserva-se (quando muito) baixa arrecadação, em prejuízo de potencial de arrecadação maior advindo do uso eficiente dos mesmos recursos em outras atividades. Poder-se-ia questionar se o Poder Judiciário deve buscar eficiência ou se outros valores, como "justiça social", equidade e congêneres deveriam prevalecer ao decidir sobre a preservação ou não de uma atividade empresarial. O pensamento subjacente a esse questionamento é que existiria uma contradição entre valores sociais (justiça social, equidade etc.) e individuais (fundamentos econômicos), devendo o juiz dar prioridade aos primeiros sobre os segundos. Pelo que já se viu até aqui, porém, a resposta é razoavelmente simples: não há contradição entre valores de eficiência e outros como "justiça social" e equidade. Diga-se, inicialmente, que, diante de uma realidade de recursos econômicos escassos, não há como fazer "justiça social" ou preservar equidade se houver desperdício de recursos, ou seja, a sociedade não é tratada de modo justo quando, mediante decisão judicial, permite-se a continuidade de atividades ineficientes e dispendiosas, à custa de alocação ineficiente de fatores de produção. Nesse sentido, mais uma vez, cabe citar Bullard:4 En todos los cursos de derecho los profesores se centran en qué es la justicia y qué es equitativo. Buena parte de la discusión es qué es justo y qué no lo es. Pero la verdad, al menos en mi experiencia, es que la mayoría de abogados no puede definir qué es realmente la justicia y qué es equitativo. Más allá de repetir la definición griega («la justicia es dar a cada quien lo suyo») lo cierto es que no es sencillo encontrar una fórmula que nos arroje respuestas sobre qué es justo y qué no. Dar a cada quien lo suyo puede tener interpretaciones muy diferentes, dependiendo de qué es «suyo» y de qué es «dar». Tan diversas que todos los abogados dicen que defienden la justicia de los dos lados de la misma controversia. En cambio, los economistas han sido bastante más precisos (y técnicos) en definir qué es la eficiencia y cómo esta nos guía hacia soluciones correctas. El AED ha intentado aprovechar ello para construir un derecho más eficiente, pero, como era de esperarse (y lo veremos más adelante) ello ha despertado críticas y reacciones de todo tipo. Muchas personas no entienden bien ni los postulados ni la utilidad del AED. Como el AED se basa en un análisis costo-beneficio, se tiende mucho a pensar que es un análisis deshumanizante: qué tendría que ver con la justicia, con la conducta humana y con los valores convertir en números el derecho. Pero eso no es lo que persigue el AED. No se busca sustituir la justicia por la eficiencia. Uno puede (y debe) bajo el AED, buscar las soluciones justas a los problemas jurídicos. Pero si uno quiere ser responsable, parte de la solución justa es saber cuánto cuesta alcanzarla. Como bien dice Calabresi, en una sociedad donde los recursos son escasos, desperdiciar es injusto (Calabresi, 1992). La eficiencia tiene que ver con evitar el desperdicio y así mejorar el bienestar de las personas. Lo que se busca es, por tanto, un derecho que, sin olvidar otros aspectos o valores a los cuales se deba, sea un derecho eficiente, es decir un derecho que evite el desperdicio creando incentivos de conducta adecuados para lograr sus fines. Lo que se persigue es evitar que los sistemas jurídicos generen desperdicios. A eficiência econômica, portanto, embora seja frequentemente vista no meio jurídico como fruto de pensamento individualista, é um valor social tão relevante quanto os demais supracitados (justiça social, equidade, dignidade etc.) e somente por meio dela que se obtém a justa alocação de recursos escassos da sociedade como um todo (e sobretudo das parcelas menos favorecidas da população). Essa contradição (aparente), aliás, não é privativa das recuperações e das falências, fazendo-se presente nas decisões de alocação de recursos públicos orçamentários (estatais): equivale, mutatis mutandis, à mesma situação em que governos, ao pretenderem proteger camadas mais pobres da população, incorrem em desequilíbrios orçamentários geradores de déficits permanentes e inflação, os quais prejudicam principalmente as classes populares a que os programas governamentais visavam a beneficiar.  Em breve conclusão Do que aqui se disse, podemos concluir claramente que é impossível ao Poder Judiciário realizar "justiça social" ou outros valores de equidade ou de dignidade da pessoa humana, preservando atividades empresariais em detrimento da verificação do requisito da viabilidade/eficiência econômica, sob pena de criar ilusória proteção social, com sacrifício de recursos econômicos escassos, sobretudo no longo prazo. É preciso, portanto, ter a coragem de enfrentar o tema e analisar, caso a caso, a eficiência econômica ao decidir. Em não estando presente essa condição, é preciso deixar o empreendimento falir, pois somente dessa forma os recursos econômicos terão alocação mais eficiente em outras atividades, em benefício de toda a sociedade. Sobre quais fundamentos econômico-financeiros utilizar para tomar esse tipo de decisão, deixaremos a discussão do tema para um próximo artigo. __________ 1 É verdade que o artigo citado também traz como princípio a manutenção do interesse dos credores. Mas esse ponto, podemos dizer, é o menos invocado pela doutrina e pela jurisprudência para justificar a preservação da empresa, uma vez que costuma soar como algo de caráter mais individualista. 2 Bullard, Alfredo. Análisis económico del derecho (Colección Lo Esencial del Derecho nº 35) (Spanish Edition) (p. 11). Fondo Editorial de la PUCP. Edição do Kindle. 3 Gianetti, Eduardo. 2005. O valor do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 177-178. 4 Op. cit. p. 23.
Em outra oportunidade nesta coluna, já tive a oportunidade de tratar acerca do papel do Ministério Público nos processos de insolvência. Naquela oportunidade ressaltei a importância da instituição como função essencial à justiça, ao lhe ser atribuída a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127 de nossa Carta Magna, o que lhe permitiu o alcance da prelazia de autonomia funcional e administrativa, além de conferir aos seus membros predicamentos dos membros do Poder Judiciário, para garantir a independência na atuação funcional. Especificamente em relação aos institutos da lei 11.101/05, mencionei o veto ao art. 4º do aludido diploma legal que assim dispunha: "Art. 4º O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência. Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta." e que muitas eram as razões (e teses) do veto, mas todas buscavam explicar que isso não seria uma proposta para diminuir a importância do Ministério Público no sistema de insolvência brasileiro. Ao contrário, ao lado das atribuições legais expressas (exemplificativamente - arts. 52, V; art. 99, VIII; 142, § 7º; 154, § 3º), defendi que a atuação do Ministério Público no âmbito do processo civil e de microssistemas como o do sistema de insolvência deveria ser pautada pela defesa de interesses públicos que atinjam ou influenciem a esfera pessoal e patrimonial de uma coletividade de indivíduos. Isso está em harmonia com o que preceitua o Código de Processo Civil, nos seus arts. 176 a 178, especialmente, nos temas de insolvência, quando se vislumbrar interesse público ou social. Ainda assim, não havia uma uniformidade de atuação dos mais diversos órgãos ministeriais em processos de insolvência, sobretudo em comarcas nas quais não haviam órgãos com atribuições específicas voltadas à lei 11.101/05. Em 2022, sob a liderança do Conselheiro Daniel Carnio Costa, o Conselho Nacional do Ministério Público criou um grupo de trabalho voltado a otimizar a atuação dos órgãos ministeriais que atuam com processos da lei 11.101/05. Tal grupo foi composto por diversos integrantes de diversos Ministérios Públicos existentes além de desembargadores, juízes, advogados, acadêmicos e administradores judiciais. Durante os debates sobre enunciados que poderiam ser criados para auxiliar na uniformização e orientação da atuação de promotores em processos de insolvência, ficou evidente a existência de uma corrente mais institucional, que defendia uma participação ampla do Ministério Público em todos os pontos da lei 11.101/05 e outra corrente que buscava temperar o âmbito dessa atuação, uma vez que as questões que envolvem o direito das empresas em crise, sem embargo à importância socioeconômica do tema, são compostos por direitos e litígios que abrangem direitos disponíveis e pessoas maiores e capazes. A síntese desse trabalho foi a criação da Recomendação 102, de 8 de agosto de 2023, que dispõe sobre o aprimoramento da atuação do Ministério Público nos casos de recuperação judicial e falência de empresas e dá outras providências. Em tal recomendação foram previstas orientações nas quais o Ministério Público, ao oficiar em processos da lei 11.101/05, deve se atentar aos objetivos elencados nos considerandos do texto normativo. Uma observação deve ser feita ao leitor: a recomendação, embora reflita a síntese de discussões entre os membros do grupo de trabalho, deve ser vista como um texto de consenso, ou seja, nem todas as suas proposições são unanimidade entre os componentes, mas resultado de uma votação que exprimiu a vontade de uma maioria. Isso em nada desmerece o trabalho e sua importância, mas serve como informação para evitar eventuais incorretas interpretações ou atribuições que de sua utilização possam recair sobre os membros do grupo. Reputo que o trabalho realizado tenha sido um avanço para o aprimoramento da atuação do Ministério Público em processos de insolvência. A uma, para buscar, sem prejuízo da independência funcional de seus órgãos e membros, uma homogeneidade de atuação que proporcionará segurança jurídica na aplicação da lei 11.101/05. A duas, porque servirá como valiosa orientação para promotores que não possuam especialização na matéria, mas, por circunstâncias comuns da carreira, devam oficiar em processos de falência, recuperação judicial e extrajudicial. Mesmo diante dessa conquista para a comunidade jurídica e, ao final, para o jurisdicionado, não podemos cair na armadilha de se utilizar o texto da recomendação para conferir uma atuação universal do Ministério Público, desvirtuando sua própria essência, em desprezo a limites legais existentes. Digo isso porque há um argumento sedutor, de caráter puramente deontológico (e, por isso mesmo, insuficiente para funcionar como exclusivo critério hermenêutico), em se associar a necessária intervenção do Ministério Público em processos de insolvência, diante da repercussão econômica e social destes na sociedade. Mas será mesmo que o interesse social dos institutos da lei 11.101/05 sempre justificariam a intervenção do Ministério Público? Temos outros critérios que nos permitiriam depurar e otimizar a atuação ministerial nos processos de insolvência? A reflexão é importante porque além do Ministério Público não possuir infraestrutura para atuar em todas as situações previstas na lei 11.101/05, em processos de caráter econômico como os de recuperação judicial, extrajudicial e falência, qualquer intervenção estatal deve ser proporcional e equilibrada, para permitir maior eficiência na solução de problemas. O fato é que nem sempre há interesse público direto e imediato decorrente da função social da empresa que demande a intervenção do Ministério Público nos processos da lei 11.101/05. É obrigação do órgão ministerial, quando sua atribuição não estiver expressamente prevista em lei, demonstrar a pertinência concreta de sua intervenção, numa exposição que transcenda a retórica deontológica de que o interesse social está contido na função social da empresa. Para tanto, como bem acentua Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, Malheiros, 2016, páginas 881 e 882): O interesse público que essa Instituição tem o dever de resguardar não é o puro e simples interesse da sociedade no correto exercício da jurisdição como tal - que também é uma função pública -, porque dessa atenção estão encarregados os juízes, também agentes estatais eles próprios. O Ministério Público tem o encargo de cuidar para que, mediante o processo e o exercício da jurisdição pelos juízes, recebam o tratamento adequado certos conflitos e valores a eles inerentes, particularmente mediante o zelo por direitos e interesses indisponíveis, como está na Constituição Federal. Indo além, temos os preceitos da lei 13.655, de 25/4/18, a qual promoveu a inserção de diversos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para buscar garantir o alcance de maior segurança jurídica por poderes e órgãos estatais, quando da aplicação da lei ao caso concreto, de modo que a atuação ministerial deve ter acuidade na compatibilização de sua visão instituição com a situação do caso concreto, num juízo de subsunção que explicite sua necessária atuação em prol do interesse público, sem se valer de argumentos genéricos ou de construções que não tenham estofo nos elementos dos autos. De acordo com a exposição de motivos do PL 7.448, DE 2017, que resultou na lei 13.655/18: A proposta pretende tornar expressos alguns princípios e regras de interpretação e decisão que, segundo a doutrina atual, devem ser observados pelas autoridades administrativas ao aplicar a lei. Vale dizer que algumas destas iniciativas já foram incorporadas ao novo código de processo civil. Assim, a proposta sugere parâmetros a serem observados quando autoridades administrativas tomam decisões fundadas em cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados. Busca também conferir aos administrados o direito a normas de transição proporcionais e adequadas, bem como estabelece um regime para que negociações entre autoridades públicas e particulares ocorram de forma transparente e eficiente. Sobre o âmbito de alcance das introduções trazidas pela lei 13.655/18, Odete Medauar (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - Anotada - Volume II, Quartier Latin, 2019, páginas 63/64) assim leciona: A ementa da referida Lei identifica o âmbito material específico de aplicação dos seus preceitos: criação e aplicação do direito público, visando à eficiência e segurança jurídica nessas situações. Em tese, incide nas decisões relativas a assuntos tratados em disciplinas do direito público, por exemplo: direito constitucional, direito administrativo, direito tributário, direito financeiro, direito processual, direito urbanístico, direito ambiental. Quanto às autoridades públicas que decidem, o art. 20 utiliza a expressão "esferas administrativa, controladora e judicial". Esfera administrativa mostra-se de sentido largo, para abranger todos agentes que decidem nos órgãos e entes da Administração direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Esfera controladora diz respeito aos órgãos ou entes que exercem controle interno e externo sobre atuações da Administração Pública direta e indireta. Podem ser exemplificados, no controle interno, os órgãos contábeis e financeiros do próprio órgão ou ente público, as controladorias, as ouvidorias, as corregedorias; no controle externo, os tribunais de contas, o ministério público. Esfera judicial abarca os juízes e os membros dos tribunais do Poder Judiciário. Embora o Poder Judiciário se enquadre na condição de "esfera controladora" da Administração Pública, o dispositivo indicou explicitamente tal esfera, talvez por clareza. Como se pode observar, é obrigatória a observância dos preceitos da lei 13.655/18 pelo Ministério Público quando de sua atuação nos processos de insolvência. Isso porque o sistema de insolvência é de evidente interesse público, na medida em que sua eficiência proporcionará maior atração de investidores e, consequentemente, proporcionará o fortalecimento da economia brasileira. A própria lei reconhece o seu caráter de interesse público na medida em que determina a intervenção do Ministério Público, segundo suas próprias atribuições constitucionais. Logo, a aplicação da Recomendação 102 ao Ministério Público não afasta a obrigatoriedade da aplicação das regras constantes da LINDB, para que em suas manifestações sempre demonstre e comprove as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB) Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB). Outro diploma normativo de observância obrigatória ao Ministério Público (bem como aos demais participantes dos processos da Lei 11.101/2005), é a lei 13.874/19, que trata da Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica. Aqui, merece destaque a previsão do art. 2º, I, do aludido diploma legal (Art. 2º  São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;), que traz em seu bojo o princípio do in dubio, pro libertatem, segundo o qual devemos abandonar uma posição restritiva e formalista em demasia, sob a falsa premissa de respeito a valor de ordem pública, muitas vezes interpretado subjetivamente pelo sujeito aplicador da lei, para que se passe a entender que a liberdade de iniciativa envolve o prestígio à escolha de objetivos particulares, de modo a tornar o direito privado cada vez mais privado, com prestígio à boa-fé, à função social da propriedade e à liberdade de contratar e empreender. Tomemos como exemplo o art. 14 da recomendação 102 que assim está disposto: Art. 14. O Ministério Público avaliará a idoneidade e a eficiência do administrador judicial durante todo o processo, na forma do art. 22 da lei 11.101/05, pleiteando a sua substituição quando necessário. Claramente o âmbito de atuação aqui deve respeitar a observância das obrigações legais previstas no art. 22 da lei 11.101/05, não podendo o órgão ministerial querer se substituir ao juiz na avaliação sobre o ato de nomeação, bem como deve apontar as situações do caso concreto que evidenciem, de maneira objetiva, a ineficiência do auxiliar do Juízo, segundo os critérios legais de desempenho de tal função. Outra situação é a impossibilidade do Ministério Público se imiscuir em questões econômicas do plano de recuperação judicial (art. 28 da Recomendação), não sendo sua atribuição buscar a modificação de cláusulas que envolvam direitos disponíveis de pessoas maiores e capazes. Como exemplo, eventual deságio proposto não comportaria questionamento, porque inserido na esfera de transação das partes, além de possuir razão econômica voltada à composição do caixa para suportar as obrigações ordinárias da operação empresarial e da capacidade de pagamento da devedora, que não poderia assumir estipêndios em patamar superior à sua condição financeira. Sem a apresentação de elementos concretos que evidenciassem abuso por parte da devedora, não haveria espaço para que o Ministério Público questionasse cláusulas do plano, colocando em risco a preservação da atividade e as finalidades previstas no art. 47 da lei 11.101/05. Concluindo, deve ser louvado o trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público na edição da Recomendação 102, conferindo uma maior homogeneidade na atuação ministerial e auxiliando na orientação de promotores que não possuem conhecimento especializado na matéria. Acrescento que a aplicação do texto da Recomendação deve observar o critério estrito de legalidade, sobretudo os arts. 20 e 21 da LINDB, bem como a Lei de Liberdade Econômica, a fim de que o Ministério Público demonstre, com elementos do caso concreto e avaliando as consequências de suas manifestações, a necessidade de sua intervenção para a defesa real de interesse público nas demandas que envolvam a aplicação da lei 11.101/05.
Introdução  Desde o advento do decreto-lei 7.661/1945, a matéria atinente aos então denominados crimes falimentares é tratada integralmente nos diplomas da legislação pertinente, isto é, os tipos penais e suas respectivas penas são definidos na própria lei de insolvência. Abandonou-se, desde então, a anterior tendência legislativa que se limitava a prever determinadas condutas, as quais, praticadas no âmbito de uma falência tida como culposa ou fraudulenta1, configurariam crimes, cujas penas, no entanto, eram dispostas em legislação criminal comum. A edição da lei 11.101/2005 reafirmou a lógica da legislação revogada ao prever os tipos penais relacionados com a insolvência e as sanções cominadas para essas condutas2, e por outro lado, inovou ao estabelecer a aplicação das regras de prescrição contidas no Código Penal3 e prever novas condutas relacionadas com a recuperação judicial ou extrajudicial, o que nos conduz à necessária mudança de nomenclatura: crimes de insolvência4. De fato, na vigência da legislação em vigor, foram tipificadas ações delituosas que podem ser praticadas antes ou depois da falência, da sentença de concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial, portanto, entendemos que essa nova denominação é mais adequada ao cenário atual.  Evidentemente, a substituição da legislação de 1945 pela lei 11.101/2005 trouxe outros desafios relacionados à incidência das demais regras do Código Penal. Nesse sentido, devemos destacar o tema relativo ao concurso de crimes que está disciplinado nos artigos 69 a 71 do Código Penal, cujas disposições tratam dos concursos, material e formal (perfeito e imperfeito)5, e do crime continuado. Essa questão é bastante relevante, principalmente se considerarmos que a legislação vigente não reproduziu a regra contida no art. 192 do decreto-lei 7.661/1945, cujo teor determinava, em caso de concurso de crimes falimentares, a incidência dos efeitos do concurso formal, aplicando-se, por consequência, a pena do crime de maior gravidade, aumentando-a, em qualquer caso, de um sexto até metade. No contexto da legislação de 1945, como veremos adiante, essa hipótese de política criminal ficou conhecida como a unicidade (ou unidade) dos crimes falimentares. É conveniente recordar, ainda, que já naquela época havia uma interessante discussão sobre a abrangência desse princípio, em particular, quando identificado o concurso de crimes falimentares praticados antes e depois da sentença falimentar e, ainda, na hipótese de existência de crimes tipificados no Código Penal ou em outra lei extravagante.  Diante desse cenário, este texto irá realizar um exame crítico sobre a pertinência de ser aplicado o princípio da unicidade no contexto da lei 11.101/2005, considerando o silêncio da norma vigente sobre qual espécie de regra de concurso de crimes deverá ser aplicada, caso o agente realize uma pluralidade de condutas que estejam subsumidas aos tipos penais da legislação de insolvência e também em outras normas de direito penal.    Princípio da Unicidade  O princípio da unicidade, unidade ou unitariedade6 do crime falimentar corresponde a uma construção de parte da doutrina à época que antecede a vigência da lei 11.101/2005, com fundamento na tese de que tais delitos possuem uma estrutura complexa e, portanto, ainda que sejam constatadas a pluralidade de infrações penais que antecedem a decretação da falência, o que se pune é a violação do direito dos credores pela superveniente insolvência do devedor7. Dessa forma, esses atos delituosos contra tal direito dos credores deveriam ser considerados como um todo único8. Ademais, essa conclusão seria reforçada pela redação do art. 192 do decreto-lei 7.661/1945, cujo teor nos remete ao concurso formal9 de crimes, ensejando, assim, a aplicação pelo juiz da pena cominada a essas infrações que seja considerada mais gravosa10. Diante desse cenário identificado à luz da legislação de 1945, é necessário refletir se esse entendimento doutrinário majoritário, devidamente referendado pela jurisprudência daquela época, pode continuar sendo adotado na vigência da lei 11.101/2005, ou, em sentido contrário, diante da identificação de diversas infrações falimentares isoladas, o julgador deveria analisar as circunstâncias do caso concreto com a finalidade de aplicar a regra do concurso de crimes prevista nos artigos 69 a 71 do Código Penal, cujas especificidades serão abordadas em seguida. O concurso de crimes no Código Penal  Pela sistemática atualmente existente no Código Penal, tem-se três espécies de concurso de crimes: material, formal e continuidade delitiva. O concurso material será reconhecido quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, hipótese em que as penas são aplicadas cumulativamente (art. 69, caput, do Código Penal11). No primeiro caso, quando da ocorrência de crimes idênticos, diz-se que o concurso é homogêneo; no segundo, tem-se o caso de concurso heterogêneo, uma vez que diversos são os crimes12. No concurso formal, o agente, mediante uma única conduta (por ação ou omissão), acaba praticando dois ou mais crimes. Reconhecido o concurso formal, aplica-se a mais grave das penas cabíveis, ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até a metade (art. 70, caput, do Código Penal13 - primeira parte). Nesse caso, temos o que se conhece por concurso formal próprio. No entanto, excepcionalmente, aplica-se ao concurso formal a regra do material, quando os vários crimes praticados, embora decorrentes de uma única ação, resultam de desígnios autônomos, isto é, quando o agente quer praticar, mediante uma ação, os vários crimes, e não um só (art. 70, caput, do Código Penal - segunda parte). A doutrina classifica esta última hipótese de concurso formal impróprio14. Finalmente, tem-se a prática de continuidade delitiva15 quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, prática dois ou mais crimes da mesma espécie e, tendo-se em conta as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplicando-se a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços (art. 71, caput, do Código Penal16). Diante das previsões acima destacadas e, levando-se em consideração a aparente distinção entre os regimes jurídicos adotados pela legislação revogada e a lei 11.101/2005 sobre o concurso de crimes, o momento da aplicação do princípio ora em comento também deve ser analisado, para efeito de incidência dos benefícios penais existentes em nosso ordenamento jurídico: transação penal, acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo. Por essa razão, em continuação devemos analisar a possibilidade de ser considerada a unicidade dos crimes de insolvência antes da decretação da sentença penal condenatória, com vistas ao oferecimento de medidas despenalizadoras previstas em nosso ordenamento jurídico. Momento da aplicação do princípio da unicidade  É relevante saber se é admitida a incidência do princípio da unicidade no concurso de crimes de insolvência antes da decretação da sentença penal condenatória, com o propósito de serem oferecidos ao agente os benefícios penais da transação penal17, do ANPP18 e da suspensão condicional do processo19. Sobre esse tema, interessa observar que parte da doutrina e a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça rechaçam a possibilidade de utilização do princípio para deferimento das referidas benesses. Nesses casos, portanto, não se considera o crime único, para fins de concessão dos indigitados benefícios, antes da prolação de sentença penal condenatória, de modo que, se aplicadas as regras de concurso de crimes, a pena superar os limites impostos pelo legislador, não deverão ser concedidos essas medidas despenalizadoras ao agente20. Essa não é, todavia, a única restrição à aplicação do princípio da unicidade nos crimes de insolvência, pois também devemos verificar se tal unidade também seria aplicável diante do concurso de crimes de insolvência e os comuns, previstos no Código Penal ou em qualquer outra norma penal extravagante.  Inaplicabilidade da unicidade no concurso de crimes de insolvência e comuns O reconhecimento do princípio da unicidade, mesmo durante a vigência do decreto-lei 7.661/1945, encontrava algumas limitações apontadas pela doutrina quando, por exemplo, houvesse o concurso de crimes de insolvência anteriores e posteriores à decretação da falência21. Além disso, na hipótese de concurso de crime de insolvência com crime comum, não seria aplicável o princípio da unicidade. A observação é importante eis que pode ser verificada a ocorrência de concurso de crime falimentar com o crime de quadrilha (atual associação criminosa prevista no art. 288 do Código Penal), crimes de lavagem de dinheiro (da Lei 9.613/1998), estelionato, entre outros. Com efeito, o princípio da unicidade restringia-se aos casos específicos de pluralidade dos outrora denominados crimes falimentares, orientando-se nesse sentido, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: HABEAS CORPUS. PENAL. LEI DE FALÊNCIAS. CRIMES FALIMENTARES. PRESCRIÇÃO. ESTELIONATO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA UNICIDADE. DELITOS AUTÔNOMOS. 1. A jurisprudência consagrada no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal orienta que o prazo prescricional de 2 (dois) anos para os crimes falimentares deve correr a partir do trânsito em julgado da sentença que encerra a falência, ou da data em que esta deveria estar encerrada. Inteligência do art. 132, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 7.661/45, e da Súmula 147/STF. 2. Decretada a falência da empresa na data de 05.08.1999, a denúncia só foi oferecida em 21.03.2005, havendo o transcurso de mais de três anos e meio após a data em que deveria ter se encerrado a falência, razão pela qual torna-se imperioso o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva do Estado, no que tange ao crime falimentar imputado ao ora paciente. 3. O princípio da unicidade estabelece que, havendo o concurso de diversas condutas voltadas ao cometimento de fraudes aos credores da empresa em processo de falência, considera-se a prática de apenas um único tipo penal, para o qual deve ser aplicada a pena do mais grave deles. 4. Tal princípio não se aplica no caso de concurso de crimes falimentares e delitos comuns elencados no Código Penal brasileiro, que devem ser apurados e punidos separadamente, segundo as regras do concurso material de crimes, conforme previa expressamente o art. 192 do decreto-lei 7.661/45, revogado pela nova Lei de Falências. 5. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida, tão somente para declarar prescrita a pretensão punitiva do Estado com relação ao crime falimentar que se imputou ao ora paciente, devendo prosseguir a ação penal para a apuração dos outros delitos comuns pelos quais foi denunciado.22  Após a edição da lei 11.101/2005, o entendimento esposado pela Corte Superior mantém-se hígido no mesmo sentido da aplicação da regra do concurso de crimes na hipótese em que um dos fatos delituosos praticados configure crime comum. A equivocada aplicação do princípio da unicidade na vigência da lei 11.101/2005 Diante da dinâmica acima exposta, forçoso reconhecer que carece de análise mais detida dos Tribunais23, em especial, do Superior Tribunal de Justiça24, a continuidade da aplicação do princípio nos crimes cometidos após a promulgação da atual legislação da crise da empresa (lei 11.101/2005), a fim de uniformizar o tema e trazer mais clareza e correção na aplicação das regras acima mencionadas do concurso de crimes. A ratio da lei 11.101/2005 não abre mais espaço para o acolhimento do postulado, inclusive diante da adoção de um regime penal mais gravoso na vigente norma. O seu fundamento, desenvolvido na égide da legislação passada, é superado pelo texto legislativo atual, ao não dispor sobre a unidade dos crimes falimentares e, ademais, determinar a aplicação das regras constantes do Código Penal25. Assim, as condutas praticadas devem ser consideradas individualmente, com subsunção dos respectivos tipos delituosos existentes, sem que se considere todas as praticadas como um único evento delitivo. Fazendo coro à superação da incidência ao princípio da unicidade aos delitos de insolvência, Marlon Tomazette, citando ainda Arthur Migliari Junior, Alexandre Demetrius Pereira, Jane Silva e Nilo Batista como autores que compartilham do mesmo entendimento, sustenta que o novo regime falimentar não abraça mais o princípio antes aplicado, sendo imperiosa a incidência das regras dos concursos de crimes, previstas no Código Penal.  Nesse sentido, pontua que: "nada justifica a existência desse princípio. Em primeiro lugar, não se cogita mais da ideia da falência como crime, havendo a punição de crimes para a recuperação de empresas também. Em segundo lugar, não há qualquer dispositivo na legislação, do qual se possa inferir a inexistência de concurso entre crimes falimentares. Em terceiro lugar, não há mais um prazo prescricional unificado, o que reforça a ideia da ausência de unidade. Por fim, não há qualquer motivo que justifique um privilégio para o agente que cometeu esses crimes. Ele deverá ser punido por todas as suas condutas e não apenas por uma delas"26. A perpetuação do referido princípio na atual sistemática de direito das empresas em dificuldade autoriza inadvertidamente um benefício que já não encontra mais previsão em nosso ordenamento jurídico ao agente que, em um mesmo contexto, pratica diversas condutas, as quais, isoladamente, amoldam-se a crimes distintos. O raciocínio fazia sentido, em especial, na lei anterior, pela existência de tipos mistos alternativos, os quais caracterizam-se quando a lei estabelece diversos núcleos que, se praticados no mesmo contexto fático, importam o cometimento de apenas um delito27. No entanto, sob a perspectiva da legislação atualmente em vigor, a definição dos crimes de insolvência é completamente distinta, existindo tipos penais que compreendem condutas praticadas após a falência e mesmo aquelas praticadas no curso de uma recuperação judicial ou extrajudicial, sem que haja necessariamente um decreto de quebra28. Ademais, a pormenorização mais detalhada das condutas delituosas em tipos penais autônomos é resultado do maior rigor que a lei 11.101/2005 impôs à repreensão dos crimes nela previstos, afastando-se da ideia antes existente - e que dava respaldo à unicidade - no sentido de que todas as condutas poderiam ser reputadas como um único comportamento delitivo. A manutenção do princípio autorizada pela jurisprudência (atual) vai de encontro a tal objetivo, na medida em que a unicidade acaba por anular a chance de destrincharmos as ações individualmente praticadas e conferir punição estreita, correta e legal (isto é, de acordo com as regras vigentes sobre concurso de crimes), a cada conduta delituosa praticada no âmbito da fraude falimentar. Conclusão É nesse contexto que a aplicação da unicidade não mais se coaduna com o espírito da legislação em vigor, demandando necessária revisão dos precedentes que, no entanto, ainda são vastamente encontrados ao se pesquisar o tema. A partir da publicação da Recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público nº 102, de 08 de agosto de 2023, que dispõe sobre o aprimoramento da atuação do Ministério Público nos casos de recuperação judicial e falência de empresas, o membro do Ministério Público deverá observar a possibilidade de aplicação dos benefícios legais aos agentes que tenham praticado crimes de insolvência (art. 9º), sempre com a perspectiva da não incidência do princípio da unicidade29. De igual forma, deverá o membro do Ministério Público zelar pelo afastamento desse benefício na sentença penal condenatória e, sobretudo, quando estivermos diante do concurso de crimes de insolvência praticados antes e depois da sentença falimentar, de concessão da recuperação judicial e de homologação do plano de recuperação extrajudicial, assim como se houver concurso de crimes de insolvência e comuns e, por fim, nos casos em que os sujeitos passivos sejam distintos. No estudo em comento, conclui-se que a lei 11.101/2005 inaugura uma nova lógica normativa, na qual o postulado da unicidade dos crimes de insolvência não encontra mais amparo legal, demandando atenção imediata de revisão jurisprudencial para que não se perpetuem decisões desconexas com a lei e com os ensinamentos doutrinários mais relevantes sobre o tema. __________ 1 O art. 798 do Código Comercial previa que "a quebra ou falência pode ser casual, com a culpa ou fraudulenta". A falência era considerada casual quando a insolvência procedia "de acidentes de casos fortuitos ou força maior" (art. 799). Seria culposa quando ocorresse uma das hipóteses dos incisos do art. 800: (1) "Excesso de despesas no tratamento pessoal do falido, em relação ao seu cabedal e número de pessoas de sua família"; (2) "Perdas avultadas a jogos, ou especulação de aposta ou agiotagem"; (3) "Venda por menos do preço corrente de efeitos que falido comprara nos seis meses anteriores a quebra, e se ache ainda devendo"; e (4) "Acontecendo que os falido, entre a data do seu último balanço (art. 10 n. 4) e a da falência (art. 806), se achasse devendo por obrigações diretas o dobro do ser cabedal apurado nesse balanço". Por fim, o art. 802 previa as hipóteses em que a falência era considerada fraudulenta: (1) "Despesas ou perdas fictícias, ou falta de justificação do emprego de todas as receitas do falido"; (2) "Ocultação no balanço de qualquer soma de dinheiro, ou de quaisquer bens ou títulos (art. 805)"; (3) "Desvio ou aplicação de fundos ou valores de que o falido tivesse sido depositário ou mandatário"; (4) "Vendas, negociações e doações feitas, ou dívidas contraídas com simulação ou fingimento"; (5) "Compra de bens em nome de terceira pessoa; e (6) Não tendo o falido os livros que deve ter (art. 11), ou se os apresentar truncados ou falsificados". 2 Comentando o tema, Alexandre Demetrius Pereira pontua que "a matéria referente aos crimes falimentares esteve em princípio disciplinada parcialmente nos diplomas falenciais e penais, sendo transportada posteriormente em sua integralidade para a legislação falimentar - tendência esta mantida no Decreto-lei 7.661/1945 e na Lei 11.1011/2005." PEREIRA, Alexandre Demetrius. Crimes Falimentares: Teoria, Prática e Questões de Concurso Comentadas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Malheiros Editores Ltda., 2010, p. 60. 3 Com respeito ao início da contagem do prazo prescricional, o art. 182 da Lei 11.101/2005 apenas ressalvou que a prescrição começaria a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. Deve-se ter atenção para o fato de essa ressalva ser aplicável apenas para os crimes que sejam praticados antes desses marcos indicados no referido dispositivo. No caso de crimes cujas condutas sejam realizadas em momento posterior, aplica-se o Código Penal. Nesse sentido: SACRAMONE, Marcelo B. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627727. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553627727/. Acesso em: 16 ago. 2023.: "Se o crime for pós-falimentar ou recuperacional, o marco inicial da prescrição deverá respeitar as regras gerais do Código Penal. A prescrição da pretensão punitiva deve se iniciar do dia em que houve a consumação do delito ou, no caso de tentativa, do dia em que cessaram os atos de execução (art. 111 do CP)." 4 Há doutrina no sentido de que não é necessária essa mudança. Veja: SCALZILLI, João P.; SPINELLI, Luis F.; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência: Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Grupo Almedina (Portugal), 2023. E-book. ISBN 9786556277950. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 5 De acordo com a lição de Cleber Masson: "...Perfeito, ou próprio, é a espécie de concurso formal em que o agente realiza a conduta típica, que produz dois ou mais resultados, sem atuar com desígnios autônomos. Desígnio autônomo, ou pluralidade de desígnios, é o propósito de produzir, com uma única conduta, mais de um crime. É fácil concluir, portanto, que o concurso formal perfeito ou próprio ocorre entre os crimes culposos, ou então entre um crime doloso e um crime culposo. Imperfeito, ou impróprio, é a modalidade de concurso formal que se verifica quando a conduta dolosa do agente e os crimes concorrentes derivam de desígnios autônomos. Existem, portanto, dois crimes dolosos." (MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 7ª ed. São Paulo: Método, 2019. p. 426-427. 6 Oscar Stevenson, ao escrever sobre o tema, antes da vigência do Decreto Lei 7.661/1945, utilizava a denominação "princípio da unitariedade", em relação aos crimes ocorridos antes da sentença falimentar. STEVENSON, Oscar. Do crime falimentar. Editora Saraiva, São Paulo, número 8, 1939, página 154. 7 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. São Paulo, Editora Saraiva, Volume II, 14ª Edição, p. 160. 8 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro, Editora Forense, 4ª Edição, Volume VII, p. 219-221: "...assentou a doutrina no sentido de que 'em matéria de bancarrota, há unidade no crime, não obstante a multiplicidade de fatos que a caracterizem. O fato criminoso que., em última análise, se pune é a violação do direito dos credores pela superveniente insolvência do comerciante. Todos os atos, portanto, contra tal direito devem ser considerados como um todo único. Por esse evento lesivo, isto é, o prejuízo efetivo ou potencial, dos credores, é punido o devedor, e tão-somente por causa dele; assim, é lógico atingir com a pena somente aquilo que esse evento representa. Não cada um dos atos que contribuíram para ele, mas a totalidade deles, como uma unidade incindível. Não há razão para o cumulo material ou jurídico de penas... O evento lesivo é um só, uma só é a violação do interesse penal protegido" 9 SALVADOR FRONTINI, Paulo. Crime Falimentar. Revista de Direito Mercantil 1978, pp.27-55, 10 MIRANDA VALVERDE, Trajano de. Comentários à Lei de Falências. Editora Forense, Rio de Janeiro, 4ª Edição, 1999, página 69. 11 Art. 69. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. 12 NUCCI, Guilherme de S. Curso de Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º a 120. v.1. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646852. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 13 Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. 14 DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; JUNIOR, Roberto D.; et al. Código penal comentado. Saraiva: Editora Saraiva, 2021. E-book. ISBN 9786555593914. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 15 Em verdade, o crime continuado constitui uma forma de concurso material já que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, prática dois ou mais crimes, situação que, no entanto, por razões de conveniência político-criminal, é reputada como se todos constituíssem um só crime. Trata-se de uma ficção legal (unidade jurídica de ação). Nesse sentido: BITENCOURT, Cezar R. Código penal comentado. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. E-book. ISBN 9788553615704. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 16 Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, prática dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.   17 Art. 76, Lei 9.099/1995. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. 18 Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;   19 Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). 20 Alexandre Demetrius conclui que se "a unicidade do crime falimentar não é aplicável antes da sentença para viabilizar benefícios penais como a suspensão condicional do processo, pela mesma razão entendemos inaplicável referido instituto para possibilitar, também antes da sentença, a proposta de acordo de não persecução penal. Dessa forma, se o concurso de crimes falimentares resultar em pena mínima igual ou superior a quatro anos, incabível será a proposta de acordo de não persecução penal". Veja-se: PEREIRA, Alexandre Demetrius. O acordo de não persecução penal e os crimes falimentares: algumas particularidades. Migalhas, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 12 de agosto de 2023 "HABEAS CORPUS. CRIMES FALIMENTARES. CONCURSO MATERIAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA UNICIDADE. INAPLICABILIDADE ANTES DA SENTENÇA. APLICAÇÃO DA SÚMULA N.º 243 DO STJ. PRECEDENTES. 1. O concurso material de crimes falimentares (art. 186, inciso VI, e 187, do Decreto-lei n.º 7.661/1945) - cujas penas mínimas cominadas em abstrato são, respectivamente, de 06 (seis) meses e 01 (um) ano, perfazendo um somatório acima da restrição legal, que é de 1 (um) ano - constitui óbice à propositura ministerial da suspensão condicional do processo. Aplicação, in casu, do enunciado da Súmula n.º 243 do Superior Tribunal de Justiça. 2. A unidade dos crimes falimentares, ressalte-se, fictícia, de criação doutrinária, e altamente questionável, já caracterizaria uma benesse ao agente, aplicável somente ao final da instrução criminal, por ocasião da prolação da sentença. Não pode servir, também, para, contornando o comando legal (art. 89 da Lei n.º 9.099/95), vencer uma restrição objetiva à suspensão condicional do processo, outro benefício instituído pela lei. Precedentes do STJ. 3. Ordem denegada. (HC n. 23.922/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 23/11/2004)" No mesmo sentido: HC n. 26.126/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 18/11/2003; EDcl no AgRg no Ag n. 698.820/RJ, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 2/2/2006 21 De acordo com Ricardo Negrão: "No concurso de crimes antefalimentares, contudo, com pós­-falimentares, como, por exemplo, desvio de bens da massa (art. 189, I) e todos os previstos nos arts. 189 e 190 do Decreto­-Lei n. 7.661/45, Paulo Salvador Frontini (1980:109-111) atentava para o fato de existirem duas ou mais ações, com dois ou mais resultados, caracterizando, segundo seu entendimento, o concurso material, e, nesse caso, sujeitando­-se o agente à soma das penas incidentes, nos termos do art. 69 do Código Penal". Veja em: NEGRÃO, Ricardo. Curso de direito comercial e de empresa: recuperação de empresas, falência e procedimentos concursais administrativos. v.3. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627512. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553627512/. Acesso em: 16 ago. 2023. 22 HC n. 56.368/SP, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 24/10/2006, DJ de 20/11/2006, p. 347. No mesmo sentido, confira-se: RHC n. 11.918/SP, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 13/8/2002, DJ de 16/9/2002, p. 202; HC n. 85.148/SP, relatora Ministra Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), Quinta Turma, julgado em 6/9/2007, DJ de 1/10/2007, p. 351. 23 No âmbito do TJSP, destaca-se decisão que somente reconheceu a aplicação do princípio da unicidade quando o sujeito passivo do delito e insolvência é o mesmo (por exemplo, os credores). Veja-se: Brasil - TJSP - TJSP;  Apelação Criminal 1500018-85.2019.8.26.0549; Relator (a): Klaus Marouelli Arroyo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Santa Rosa de Viterbo - Vara Única; Data do Julgamento: 08/03/2023; Data de Registro: 08/03/2023: "Nulidade - Inépcia da denúncia - Não caracterizada - Qualificação dos acusados, descrição fática e individualização da conduta satisfatórias - Requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal observados - Preliminar rejeitada. Crime Falimentar - Absolvição - Materialidade e autorias devidamente comprovadas - Condenações mantidas. Princípio da Unicidade - Crimes falimentares - Ainda que com desígnios autônimos, mas contra credores, se reconhece como crime único, valendo-se da pena do maior ilícito - Reconhecida a unicidade quanto aos delitos previstos no artigo 168 e 173 da Lei de Falências, eis que sujeito passivo é o mesmo, isto é, o credor - Mantido o concurso material em relação ao delito previsto no artigo 171 da Lei em comento, eis que sujeito passivo distinto, no caso, o Juízo, a Administração Pública. Redução das penas-base - Circunstâncias judiciais desfavoráveis - Consequência e gravidade do delito que extrapolaram às inerentes ao tipo penal em apreço justificam a majoração da reprimenda. Regime semiaberto - Primariedade - Total das reprimendas - Circunstâncias judiciais desfavoráveis - Inteligência do artigo 33, § 2º, alínea "b" do Código Penal. Recursos parcialmente providos." 24 Como mencionado, a jurisprudência do STJ ainda aplica amplamente o princípio da unicidade no caso de concurso de crimes exclusivamente falimentares (v. REsp n. 1.644.237, Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 05/09/2017. REsp n. 1.617.129/RS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 21/11/2017; AgRg no AREsp n. 986.276/RS, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 7/8/2018, DJe de 17/8/2018). 25 Acerca da superação do princípio, abalizada doutrina estatui que "No regime anterior era pacífico que o crime falimentar deveria ser único, i.e., em ocorrendo mais de um crime falimentar, somente se puniria aquele dotado de pena mais grave, restando impuníveis os demais (princípio da unicidade ou unidade). (...). Na vigência da Lei 11.101/05, a definição dos crimes falimentares é completamente diferente daquela empregada na legislação anterior. A LREF não admite expressamente o princípio da unidade ou unicidade, razão pela qual se pode sustentar que a interpretação anterior não prevaleceria no atual regime. Além disso, seriam aplicáveis as normas do Código Penal, e aí estão incluídas as regras do concurso de crimes (CP, art. 69-71)" SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência - Teoria e prática na Lei 11.101/2005. 3ª edição. São Paulo: Almedina, 2018. p. 1010. Nota de Rodapé nº 3746 26 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 247. 27 CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal (Parte Geral) - Volume Único. 12ª Edição. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2023. p. 358-360. 28 MIGLIARI JÚNIOR, Arthur. Crimes de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Quartier Latin, pp. 106/107, 2006.  29 Disponível aqui. Veja, ainda, o Seminário realizado no âmbito do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre a Recomendação 102/2023 do CNMP.  
Introdução  Ninguém precisa ser jurista ou filósofo para compreender que direito e realidade social caminham em certo grau de harmonia e, ao mesmo tempo, de descompasso. E essa "harmonia descompassada" é, talvez, o maior fator justificante da existência e do modo de funcionamento do próprio direito enquanto mecanismo de influência de comportamentos sociais. Direito e sociedade, tais quais o bêbado e a equilibrista, caminham lado a lado, se passando e ultrapassando, se puxando e se empurrando, "pra noite do Brasil", como dizia a poeta. É da natureza da atividade jurídica, independentemente da forma pela qual é exercida, orquestrar a música e conduzir a valsa (ou, quiçá melhor, a bossa nova) dialética entre esses dois dançarinos inebriados. Advogados, juízes, estudantes, professores, acadêmicos ou operadores do direito em geral, consciente ou inconscientemente, contribuem com sua atividade para que o direito faça a sociedade avançar, ou para que "seja avançado" por ela, com o perdão do coloquialismo. E seja qual for a atividade sob referência, esse delicado equilíbrio entre normas e valores sociais vigentes apenas pode ser alcançado, como tudo na ciência, com reflexão. Saber onde estamos e para onde queremos ir, o que fazemos e porque fazemos, despidos de preconceitos e vícios de prática, é essencial tanto para a compreensão abstrata quanto para a orientação concreta das normas jurídicas. O que aqui tentamos propor é exatamente isso: um momento de reflexão sobre a consolidação substancial, um tema de suma importância para o tratamento da insolvência empresarial no Brasil. O que estamos a propor com este artigo não são respostas prontas, fórmulas ou formas de condução práticas e engessadas - mas, sim, elementos que podem (e, a nosso ver, devem) ser levados em consideração tanto por legisladores, ao criarem as normas, quanto por juízes e advogados, ao aplicá-las. Como não pretendemos oferecer respostas, podemos nos dar ao luxo de não pretender "estar certos". Trata-se, apenas, de uma tentativa de provocar reflexões mais profundas sobre o que fazemos, porque fazemos, e se deveríamos (ou como deveríamos) seguir fazendo. É nesse tom que teceremos, abaixo, algumas considerações sobre a consolidação substancial de grupos societários, da forma como atualmente prevista e aplicada no direito brasileiro dedicado ao tratamento da crise empresarial - mais especificamente, no âmbito da lei 11.101/2005, e após a reforma levada a efeito pela lei 14.112/2020. Clique aqui para conferir a coluna na íntegra.
Imaginemos a situação em que o credor não sujeito aos efeitos da recuperação judicial pleiteia em execução a penhora de determinados bens e valores pertencentes ao devedor ou, caso mais extremo, pleiteia o bloqueio dos recursos obtidos com a venda de determinado ativo da devedora, realizada em cumprimento às disposições do plano de recuperação, e que deveria servir para o pagamento de credores concursais. Esses casos são mais comuns do que se pode imaginar e corriqueiramente nossos tribunais são chamados a decidir se devem ou não prevalecer os interesses do credor não submetido à recuperação judicial da devedora sobre aqueles dos credores concursais ou ainda com mais frequência sobre os interesses do devedor. O que pode parecer claro ao se analisar essas situações, pode não ser tão evidente se considerarmos que não há na lei disposições sobre a prevalência de interesses (dos credores concursais e extraconcursais) e que há disputas frequentes sobre o patrimônio do devedor, levando o interprete muitas vezes à necessária solução do conflito entre as regras contidas na lei 11.101/05 com as disposições do Código de Processo Civil e também das leis especiais, como é o caso da tão combatida Lei de Execuções Fiscais, ou até mesmo possa ser necessária a ponderação entre princípios constitucionais, para que suas garantias sejam sacrificadas em menor medida possível ao se escolher entre uma ou outra solução. A análise sobre a essencialidade dos bens do devedor decorre justamente de um sistema que exclui muitos credores do processo concursal, o que parece representar um dos grandes problemas a serem enfrentados em favor da eficiência do processo de recuperação judicial, porque, quanto maior o número de excluídos, menor a abrangência da solução da crise do devedor pelo evidente motivo de serem enfrentados somente parte dos problemas com o equacionamento apenas dos créditos concursais. A exclusão de parte dos credores do processo traz assim a necessidade de se aferir quais bens são essenciais ao devedor, vale dizer, quais são indispensáveis à realização dos objetivos previstos na Lei de Recuperação de Empresas, especialmente, o de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora (art.47). Nesse sentido, fundamental para a solução desses problemas foi a especificação da competência do juízo da recuperação judicial para análise da questão da essencialidade de bens, já antes reconhecida em nossa doutrina1, na jurisprudência2 e posteriormente agregada à LRE pela reforma empreendida pela lei 14.112/2020 (art.6º, §§ 7º-A e 7º-B, da lei 11.101/05). Considere-se, todavia, que a competência do juízo da recuperação judicial para a análise dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial é limitada no tempo, restringindo-se ao chamado stay period, para os créditos mencionados nos §§ 3º e 4º do art. 49 da lei 11.101/05, e, para os créditos fiscais, até o encerramento da recuperação judicial, notando-se, ainda, que neste caso deve a competência ser exercida mediante a cooperação jurisdicional3, na forma do art. 69 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código, consoante dispõe o artigo 6º, §7º-B, da LRE. Passados esses períodos, ainda que sejam efetivamente essenciais à atividade do devedor, não haverá competência do juízo recuperacional para aferir se tais bens são ou não essenciais4 ou mesmo a proteção legal que possa impedir que determinado ativo será atingido por constrição e expropriação em virtude de dívidas, independentemente do fato de serem os créditos extraconcursais ou mesmo concursais, se estes não foram adimplidas nos termos do plano proposto5. Se há termo final para a proteção aos bens ditos essenciais e a necessária competência do juízo recuperacional para a aferição da essencialidade, há também termo inicial, que se dá com o deferimento do processamento da recuperação judicial, porque é neste momento em que se determina a suspensão das execuções individuais e se restringe a retirada de bens essenciais do estabelecimento do devedor. E essa conclusão leva à indagação se o juízo recuperacional exerceria controle sobre situação processual consolidada anteriormente. Em outros termos: poderiam ser atingidas aquelas constrições realizadas em favor de créditos concursais e extraconcursais antes do deferimento do processamento da recuperação judicial? Se o credor é concursal, não há sentido para a manutenção das constrições, porque este deverá se submeter à recuperação judicial do devedor e receber o seu crédito na forma prevista no plano. Em se tratando de credor extraconcursal, ainda que a constrição de bens represente situação transitória, porque se trata de ato processual que serve tão somente de meio para a satisfação do credor, deve-se reconhecer sua estabilidade6, remanescendo a penhora ou arresto, embora não possa ser expropriado ou desapossado o devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial durante o stay period (art. 49, §3º, da lei 11.101/05).  Veja-se que, até mesmo nessa situação, em se tratando de bem já anteriormente penhorado por credor extraconcursal antes do ajuizamento da recuperação judicial, eventual previsão do plano que venha posteriormente contemplar a venda desse ativo, deve respeitar a prioridade da penhora, para que seja esse credor satisfeito primeiramente, direcionando-se o remanescente para o pagamento de credores concursais, ou substituindo-se o bem penhorado sem que haja prejuízo ao credor individual, sob pena de ser ineficaz a transferência do domínio diante do credor não submetido à recuperação7. Nesse mesmo contexto, se o bem penhorado, por exemplo, em execução fiscal for vendido na recuperação, a alienação não será eficaz em relação aos créditos tributários8, a menos que seja indicada a substituição de bens suficientes para penhora na execução9. Ainda que limitada no tempo, como vimos, a proteção de determinados bens do devedor tidos como essenciais tem se mostrado fundamental, justamente porquanto se dá em momento crítico no qual é traçado o futuro da empresa em crise, em que se realizam as negociações sobre o seu passivo, destacando-se que a paralização das atividades pode trazer consequências irreversíveis ao devedor, podendo levá-lo inclusive à falência, ainda que viável a sua continuidade, o que certamente não seria um resultado desejável. Mas, o que são bens essenciais ao devedor sob recuperação judicial? Todos os bens essenciais estariam protegidos durante o stay period? A recuperação judicial tem lugar diante da crise econômico-financeira do devedor, que comumente vem atrelada à crise de liquidez, porque falta capital de giro ao empresário, isso quando não constitui situação mais crônica, representada pela escassez dos meios de produção empregados na atividade empresarial, o que faz compreender que não somente os recursos financeiros como também determinados bens se mostram essenciais ao soerguimento da empresa em crise. Contudo, mesmo que se considere que deve a análise ser feita no caso concreto10, parece ser mais restrita a ideia de essencialidade que se pode extrair da lei do que efetivamente realmente seria essencial ao devedor em crise. Em verdade, não há coincidência de terminologia entre bens de capital e elementos essenciais à empresa, posto que há bens de capital essenciais e não essenciais, ao passo que há elementos essenciais, como os recursos financeiros, que não se confundem com os bens de capital. O Superior Tribunal de Justiça, enfrentando a questão relativa à essencialidade de bens do devedor para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, tem adotado uma noção objetiva de bens essenciais, restringindo-a aos bens de capital que se encontrem em mãos do devedor e que sejam utilizados no processo produtivo da empresa, já que necessários ao exercício da atividade econômica exercida pelo empresário11. Assim, conforme entendimento do STJ, a proteção recairia tão somente sobre o bem de capital, ou seja, aquele "utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível"12. Dentro dessa estreita definição não se amoldam os direitos creditícios e nem mesmo os recursos financeiros13. Apesar desses recursos se mostrarem indispensáveis ao reerguimento da empresa, por constituírem bens incorpóreos e fungíveis, não se enquadram no conceito de bem de capital14-15. Alguns entendimentos, contudo, sensíveis à importância de determinados recursos para o enfretamento da crise, têm sido construídos pela jurisprudência e doutrina16, mirando o objetivo da lei quanto à preservação de empresas viáveis. Alguns casos, por exemplo, durante a Pandemia reconheceram excepcionalmente a essencialidade de ativos financeiros desde que necessários para custeio de despesas primordiais à manutenção da atividade empresária17. Nesse sentido, ainda, recebíveis de empresa em recuperação, que tenham sido objeto de cessão fiduciária e ainda não performados até a data do ajuizamento da recuperação, não podem ter seu produto apropriado pelo credor sob o entendimento de que, à luz do que dispõe o art. 49, § 3°, da lei 11.101/2005, a existência da propriedade fiduciária deve ser aferida na data do pedido de recuperação18. Em sua grande parte, as decisões tomam em consideração a situação concreta para verificar se determinado bem de capital é essencial ou não à atividade empresarial, consoante o objeto social desenvolvido pelo devedor, com base em análise que normalmente vem sendo realizada pelos administradores judiciais, dada a sua independência em relação à posição das partes e a posição de auxiliar do juízo, bem como acesso à contabilidade da empresa e o conhecimento dos negócios realizados19. Manuel Justino, adotando concepção mais ampla de bem essencial, deixa registrado que "qualquer bem objeto de alienação fiduciária, arrendamento mercantil ou de reserva de domínio deve ser entendido como essencial à atividade empresarial, até porque adquirido pela sociedade empresária somente pode ser destinado à atividade exercida pela empresa"20. A aferição da essencialidade, assim, deve ser feita com base no caso concreto, como, v. g., para a atividade de produtor rural, os bens de capital essenciais seriam aqueles que se voltem ao cultivo, colheita, armazenamento ou transporte da produção, como maquinários, silos, colheitadeiras, tratores, veículos etc. Mas, por outro lado, o resultado da produção, a safra, não constitui bem de capital e, portanto, dentro daquela apertada definição, não tem sua essencialidade reconhecida para a atividade empresarial rural, consoante entendimento jurisprudencial dominante21. Não obstante, alguns julgados já reconheceram que o diferimento da execução do penhor para safras futuras não se confunde com substituição ou supressão da garantia22. Como se pode ver, há ainda um grande descompasso entre os resultados das recuperações judiciais enquanto meio de reerguimento e reorganização da empresa em crise e os objetivos estabelecidos pela lei que rege a matéria e, em que pese a construção jurisprudencial e mesmo doutrinária, elementos essenciais à atividade do devedor, dentre eles os recebíveis, insumos e produtos finais nem sempre podem permanecer à disposição do empresário pelas determinações contidas na lei ou, sob aspecto de maior amplitude, pelo próprio sistema de reorganização, que exclui muitos credores da recuperação judicial23. Há certamente muito a ser feito para garantir a plenitude da busca pela superação da crise empresarial. __________ 1 Dentre outros, especialmente, refiro-me à tese de Renata Mota Maciel Madeira DEZEM: A universalidade do juízo da recuperação judicial. 1ª edição. São Paulo: Quartier Latin. 2017. 2 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2027014-22.2023.8.26.0000; Relator (a): Heraldo de Oliveira; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 13ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/06/2023; Data de Registro: 06/06/2023. 3 Sobre a cooperação judiciária, esclarece Fredie Didier: "a lei nova apenas impôs uma modalidade de resolução de conflito entre o juízo recuperatório e o juízo da execução fiscal. Basicamente, estabeleceu que a cooperação judiciária será o método por excelência para resolução do choque entre a pretensão executiva do fisco e a pretensão da recuperanda ao soerguimento quando envolver bens de capital essenciais à recuperação judicial. Mas sempre haverá necessidade de se acorrer ao juízo da recuperação, até para saber se aqueles bens são de capital e se são essenciais.29 É o juízo da recuperação quem tem o domínio sobre a essencialidade, ou não, dos bens para os destinos proveitosos dessa recuperação judicial; ele quem os qualificará assim. É dele também a capacidade de verificar se os bens são de capital ou não" (Cf. DIDIER JR., Fredie. Recuperação judicial, execução fiscal, stay period, cooperação judiciária e preservação da empresa: compreendendo o § 7º-b do art. 6º da Lei 11.101/2005, in Revista de Processo | vol. 323/2022 | p. 277 - 303 | Jan / 2022). 4 Nesse sentido: STJ - REsp 1991103 - 3ª Turma - j. 11/4/2023 - julgado por Marco Aurélio Bellizze Oliveira - DJe13/4/2023; AI. n. 2065351-51.2021.8.26.0000, TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Araldo Telles, julgado aos 26/10/2021, publicado aos 28/10/2021. 5 Nesse sentido: Enunciado III do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Escoado o prazo de suspensão de que trata o § 4º, do art. 6º da Lei nº 11.101/05 (stay period), as medidas de expropriação pelo credor titular de propriedade fiduciária de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor, poderão ser retomadas, ainda que os bens a serem excutidos sejam essenciais à atividade empresarial. 6 Nesse sentido: RECUPERAÇÃO JUDICIAL - ESSENCIALIDADE DOS BENS - Decisão judicial que deferiu o pleito das Recuperandas pela alienação de bens relacionados à sua atividade e onerados por decisão judicial, ressalvados aqueles atingidos pelo regime de afetação e os constritados em executivos fiscais - Pretensão de reforma que sob a alegação de que as penhoras anteriores não são atingidas pelo ajuizamento superveniente do pedido de recuperação judicial - Pertinência - Suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor que se limita processualmente aos casos em que a disponibilidade dos bens a favor do exequente ainda não foi alcançada (art. 6º, III, LREF) - Decurso do prazo do stay period e de sua prorrogação deferida na origem - Enunciado n. III do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP - Hipótese na qual, possível a retomada de atos de constrição sobre bens da devedora no curso da execução de título extrajudicial promovida pelos credores - Decisão reformada determinar a manutenção da penhora sobre bem imóvel efetivada nos autos do processo n. 1011287-31.2017.8.26.0071 e a vedação à alienação deste pelas Recuperandas - Agravo de instrumento provido. Dispositivo: Deram provimento ao recurso.  (TJSP; Agravo de Instrumento 2258845-41.2022.8.26.0000; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Bauru - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/06/2023; Data de Registro: 21/06/2023) 7 Nesse sentido: LOBO Jorge. In TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de ABRÃO, Carlos Henrique (coordenadores). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência, cit., 4ª ed., 2010, p. 234 8 Nesse sentido: AI. 0227587-33.2011.8.26.0000, Comarca de Boituva, TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Francisco Loureiro, v.u. j. 30.10.2012 9 Cf. MUNHOZ, Eduardo, in SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro e Antônio Sérgio Pitombo. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências - Lei 11.101/05, cit., 2ª ed., 2007, p. 301. Não é o caso de sucessão, mas tão somente de ineficácia da alienação, pois, do contrário, na insuficiência do bem penhorado, o credor fiscal poderia voltar-se à integralidade dos bens do adquirente (p.301) 10 Cf. SOUZA, Beatriz Faneca Leite de e SERAFIM, Tatiana Flores Gaspar Serafim. Recuperação de empresas e falência: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Daniel Carnio Costa, Flávio Tartuce, Luís Felipe Salomão (coordenadores). Barueri: Atlas, 2021. p. 138 11 Nesse sentido: "Para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, "bem de capital", ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period." (REsp 1.758.746/GO, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze). 12 (REsp 1.758.746/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018). Consta da ementa: "A conceituação de "bem de capital", referido na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, inclusive como pressuposto lógico ao subsequente juízo de essencialidade, há de ser objetiva... 3. A partir da própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a garantia fiduciária - bem incorpóreo e fungível, por excelência -, não há como compreendê-lo como bem de capital, utilizado materialmente no processo produtivo da empresa... 13 No dizer de Sacramone: "Recursos financeiros, como o crédito cedido fiduciariamente, ainda que importante para a manutenção da atividade, não podem ser considerados bem capital também, pois consumíveis com o desenvolvimento da atividade" (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 263) 14 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2003091-64.2023.8.26.0000; Relator (a): Natan Zelinschi de Arruda; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Itu - 1ª.Vara Cível; Data do Julgamento: 25/04/2023; Data de Registro: 26/04/2023. 15 Consoante observa a doutrina: "Os bens de capital essenciais para a atividade empresarial compreendem o maquinário, equipamentos, instalações e outros bens empregados na atividade produtiva e, sem os quais, se tornaria inviável o exercício da atividade empresarial. Apesar de não haver consenso doutrinário sobre o tema, parece correto entendimento de parte da doutrina de que "recursos financeiros, ainda que importantes para a manutenção da atividade, não podem ser considerados bem de capital" (Cf. SHIMURA, Sérgio S.. A constrição de bens do devedor em recuperação judicial para a satisfação de créditos extraconcursais, in Revista de Processo | vol. 304/2020 | p. 203 - 218 | Jun / 2020). 16 Observa Assione Santos: A agressão indiscriminada às garantias pode comprometer o cumprimento do plano de recuperação judicial. Algumas travas bancárias recaem sobre a totalidade do faturamento da devedora em crise, tornando praticamente inviável qualquer soerguimento. (cf. SANTOS, Assione e FLORENTIN, Luis Miguel Roa. Recuperação judicial e créditos garantidos por cessão fiduciária: uma interpretação sob à luz do art. 47 da lei 11.101/2005 e da jurisprudência do STJ, in Revista dos Tribunais | vol. 1019/2020 | p. 219 - 236 | Set / 2020). 17 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2159261-69.2020.8.26.0000; Relator (a):Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de José Bonifácio - 1ª. Vara; Datado Julgamento: 04/11/2020; Data de Registro:06/11/2020. 18 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2067927-80.2022.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 14/06/2022; Data de Registro: 01/07/2022. 19 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento2270806-76.2022.8.26.0000; Relator (a): Jane Franco Martins; Órgão Julgador: 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 3ª. Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento:28/03/2023; Data de Registro: 28/03/2023. 20 Cf. BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falências - Lei nº. 11.101/2005 - Comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 229. 21 Nesse sentido: STJ. STJ - REsp 1.991.989 - 3ª Turma - j. 3/5/2022 - julgado por Nancy Andrighi - DJe 5/5/2022. 22 Nesse sentido: REsp 1.388.948, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 1º.4.2014; TJ-SP - AGR: 20348708120168260000 SP 2034870- 81.2016.8.26.0000, Relator: Hamid Bdine, Data de Julgamento: 13/07/2016, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 14/07/2016. 23 Consoante tem argumentado a doutrina: "Daí a grande dificuldade que as empresas enfrentam para superar suas crises com utilização da recuperação judicial: alguns dos seus principais credores não se sentam à mesa para negociar, restando inviabilizada a reestruturação global de suas dívidas" (Cf. Daniel Carnio Costa.  Teoria da essencialidade de bens e as travas bancárias na recuperação judicial de empresas, in Migalhas 5.606 - publ. 18.12.2018).
terça-feira, 11 de julho de 2023

Recuperação judicial e fraude

A fraude é a eterna inimiga do direito. Superada a fase da execução sobre a pessoa do devedor (iniciada aproximadamente 326 anos antes de Cristo), passou o patrimônio a ser o responsável pelas dívidas. O ser humano, entretanto, logo caiu na tentação de subtrair elementos do patrimônio aptos a suportar a cobrança dos credores. O Digesto contém diversos relatos de comportamentos em que o devedor procura diminuir o seu patrimônio, como a renúncia a direitos, extinção de garantias, abandono de coisa, entre outros1. Naturalmente, o direito reage, como pode, à fraude, com a criação de tipos jurídicos para tanto. O mais conhecido, certamente, é a ação pauliana, a fraude contra credores; além da pauliana, temos a fraude à execução e a fraude à lei. A simulação envolve fraude, que pode ser praticada de muitas maneiras, mais ou menos engendradas, mas sempre com a audácia do fraudador. Nas pessoas jurídicas, o contrato pode ser e é o principal instrumento de fraude; a contabilidade pode auxiliar na formação de contratos, e, por isso, ela também pode ser objeto de fraude. Exposição de motivos do código comercial de 1850 lamentava que "a impossibilidade de extremar por uma maneira precisa o comerciante falido de boa-fé do falido fraudulento, faz a dificuldade desta matéria". Registro alguns casos antigos. Grosseira foi a fraude de uma empresa falida (Gallus) que havia criado demonstrações financeiras completamente destoantes dos documentos contábeis, sem registro no livro diário, e as publicou no extinto jornal Gazeta Mercantil. Essa empresa captava dinheiro junto ao público. E o sócio dessa empresa ainda foi considerado o empresário do ano por esse mesmo jornal. Outro empresário laureado pela mídia era sócio de empresa cujas demonstrações financeiras estavam recheadas de falsidades. Trata-se do caso Boi Gordo. Entre tantos outros problemas, a empresa falida emprestou dinheiro para a empresa coligada. O empréstimo foi pago por meio de dação em pagamento. Posteriormente, a falida comprou e pagou os mesmos imóveis que já eram de sua propriedade. Enquanto isso, o contrato de mútuo continuava no balanço, distorcendo os resultados da companhia. No caso do Banco Santos S/A. a fraude partiu do mercado financeiro. Vários mecanismos fraudulentos foram criados dentro da instituição financeira. Um deles dizia respeito a contabilização de despesas em nome de outras empresas (empresas de papel, diga-se), e, com isso, nas palavras da administração, "se essas despesas fossem lançadas no balanço do banco (...) teríamos, com certeza, um péssimo índice de eficiência". Embora de capital fechado, o banco captava dinheiro do público, a quem enganava, enganando também a autoridade monetária. Não há limites para a fraude a não ser a imaginação humana e o desejo de proceder de má-fé. A fraude acompanha a história do homem. Carvalho de Mendonça, no final do século XIX, já reclamava de "balanço rico em cifras e pobre de verdade". Warren Buffet, no último relatório de sua célebre companhia, afirmou sobre manipulação contábil:  "Essa atividade é nojenta. Não é necessário nenhum talento para manipular números: é preciso apenas um profundo desejo de enganar. A "contabilidade criativa ousada", como um CEO certa vez me descreveu, tornou-se uma das vergonhas do capitalismo"2. Não basta, é importante dizer, a mera alegação de fraude; não basta a mera suspeita de fraude. Suspeitar é conjecturar (Antonio de Moraes Silva), e esse ato unilateral não é suficiente para que se possa falar em fraude. O Código de Processo Penal exige a fundada suspeita para a prática de certos atos pela autoridade policial. Para o Supremo Tribunal Federal, a fundada suspeita do artigo 244 do CPP "não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos"3. O Superior Tribunal de Justiça, de igual modo, decide que: "Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) - baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto - de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência"4. Indícios são objetividades, e eles são necessários para que providências relativas à repressão à fraude sejam encetadas; a mera suspeita não satisfaz, minimamente, o padrão exigido pelo artigo 300 do CPC. Cabe ao juiz, a um só tempo, ser severo com as fraudes e prudente com a violência verbal de quem alega fraude, seja autor ou réu. Certa vez ouvi alguém dizer que "sinto cheiro de fraude", o que não quer dizer rigorosamente nada. É preciso sempre descer aos fatos; não basta gritar fraude em primeiro lugar, e gritar mais alto. A fraude é um problema técnico-jurídico, ainda que a moral seja também considerada por certo setor da teoria do direito. No campo da ética, diz-se que "quando a boa-fé não está presente, a promessa perde o seu papel de constituir relevantes obrigações morais. Se a intenção do promitente em comprometer-se não é manter a promessa, mas obter lucro unilateral pela quebra da promessa, o conceito que descreve o ato é fraude"5. O magistrado (que acessa o google e pela pesquisa se influencia) também deve ter cuidado com a mídia, pois os assessores de imprensa (importantes), a serviço do credor ou do devedor, trabalham, no Brasil e no exterior, e com muita habilidade e sutileza. A lei 11.101/05 reprime, no campo criminal, a fraude praticada pelos administradores da empresa cujo plano de recuperação foi aprovado, pois o artigo 168, que contém o tipo da fraude a credores, alcança a figura da recuperação judicial. Segundo o artigo 180, a decisão de concessão da recuperação judicial é condição objetiva de punibilidade. No campo penal, portanto, a responsabilidade é a posteriori ao debate entre os credores e o devedor, e posterior à aprovação do plano de recuperação, pois sem a concessão da recuperação judicial não nasce o direito de o Estado proceder ao devido processo penal. A responsabilidade penal é importante; porém, não é ela o centro da atenção desta breve coluna, que não tem a finalidade de proceder a uma sistematização do assunto nem de esgotar tema tão difícil. Enquanto, na falência, o tema esteja mais assentado, com os institutos da ineficácia objetiva e da ação revocatória, além da ação do artigo 82 da lei 11.101/05, na recuperação judicial o assunto ainda está em elaboração. A disciplina legal é escassa. Uma previsão relevante é a do artigo 64 da lei 11.101/056. Diz a lei que o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial. Quem conduz a atividade empresarial são os administradores, eleitos pelos sócios. A doutrina identifica na palavra devedor, contida no caput do artigo 64, o acionista controlador, que, portanto, ficaria compreendido na cláusula salvo se qualquer deles, contida no dispositivo, isto é, ele pode ter suspenso o seu poder sobre a companhia. Enquanto o parágrafo único do artigo 64 diz que o administrador será substituído na forma prevista nos atos constitutivos do devedor, ou do plano de recuperação judicial, o artigo 65 diz que o devedor (o acionista controlador, segundo certo setor da doutrina) será afastado pelo juiz, que convocará assembleia de credores para deliberar sobre o nome do gestor judicial. Essa interpretação doutrinária, que enxerga no devedor do artigo 64 a pessoa do acionista controlador, não é unânime, é importante enfatizar isso. Pois bem. Os administradores da sociedade empresária são mantidos à frente do negócio. A manutenção do administrador pode ser boa ou não. A vantagem da manutenção reside no conhecimento da operação. A substituição de todos os administradores poderia representar um grande custo de aprendizado. A manutenção, por outro lado, pode ter a desvantagem de manter pessoas com eventuais vícios que levaram à crise da empresa. Há previsão de afastamento dos administradores por fraude contra os interesses dos credores, conforme preceitua o inciso III do artigo 64 da lei 11.101/05. A fraude referida no dispositivo pode ter sido praticada antes da distribuição do processo de recuperação judicial ou na sua pendência. Essa fraude contra os interesses dos credores não é a mesma fraude contra credores prevista no Código Civil; ela diz respeito a qualquer espécie de fraude detrimentosa dos credores e da companhia, e não à ação pauliana, especificamente. Embora as hipóteses do artigo 64 não tenham caráter exemplificativo, cada hipótese nele arrolada por receber interpretação extensiva. Trata-se de repressão à fraude e ao fraudador; reprime-se o causador do ilícito antes da aprovação do plano de recuperação judicial, o que pode ser uma vantagem para os credores, pois afasta o mau administrador dos negócios. Essa previsão normativa, todavia, embora possa ter a sua utilidade, pois, em tese, estanca a fraude praticada na pendência do processo ou reprime a fraude antes praticada, não repercute na esfera patrimonial. Esse parece ser o ponto decisivo, pois o dano causado pela fraude não é recomposto com a substituição do administrador. É completamente omissa a lei 11.101/05 sobre a recomposição patrimonial da entidade em recuperação judicial. Claro que o problema da fraude não envolve apenas o dano causado à própria empresa em recuperação judicial, como o desvio de bens, por exemplo. Pode ocorrer de terceiros terem experimentado prejuízo em razão de fraude praticada por meio da pessoa jurídica em recuperação judicial. Também nessa hipótese a lei 11.101/05 é omissa. Nesta coluna identifico a omissão normativa, seja para a defesa do patrimônio da empresa em recuperação e que foi vítima de fraude, seja para a defesa do patrimônio de terceiros, que foi vítima de fraude por parte da pessoa jurídica em recuperação judicial. Ao falar em omissão normativa, não ignoro o uso da desconsideração da personalidade jurídica no processo de recuperação judicial, nem o uso da perícia prévia com a finalidade de averiguar fraude7. Talvez uma das primeiras decisões a fazer uso da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da recuperação judicial tenha sido o AI 2043438-91.2013.8.26.0000, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, com relatoria do saudoso Desembargador Araldo Telles. Os bens de uma empresa eram levados a leilões em processos expropriatórios, incluindo execução fiscal; participava do leilão, e arrematava o bem, uma empresa cujos recursos provinham da empresa expropriada, e cujos sócios eram os mesmos. A fraude estava bem comprovada, e os bens estavam na posse da devedora. Entendeu o TJ/SP que os problemas de ordem processual suscitados pela recorrente não mereciam acolhimento, pois a decisão de primeiro grau não declarou a nulidade dos atos de arrematação, limitando-se a declarar a confusão patrimonial. Essa decisão, é importante acentuar, não trouxe terceiros ao polo ativo do processo de recuperação judicial; essa decisão não formou litisconsórcio necessário no polo ativo, não criou a consolidação processual, muito menos a consolidação substancial. Ela limitou-se a dizer que é possível reconhecer que certos ativos, desviados da empresa em recuperação, podem ser declarados como sendo de sua propriedade em razão da confusão patrimonial. O juízo da recuperação pode decidir sobre o patrimônio da empresa em recuperação, ainda que sob a ótica da desconsideração da personalidade jurídica, como o fez a decisão referida, que, diante das circunstâncias do caso, teve o condão de reconstituir o patrimônio da empresa em recuperação. A repercussão dessa consequência no plano de recuperação judicial é clara, seja no plano a ser ainda apreciado pelos credores, seja em plano já apreciado e aprovado, mercê da possibilidade de aditamento ao plano de recuperação, e, agora, com a apresentação de plano pelos próprios credores. Assunto bem distinto é decidir sobre responsabilidade civil patrimonial de terceiros, como administradores e sócios. Existem importantes limites cognitivos no processo de recuperação judicial que não admitem tão larga discussão. Por isso, a discussão de tais temas vão para as vias ordinárias. Nem o arco procedimental do processo de recuperação judicial permite tal discussão, nem o juízo é competente para tanto. Por mais que a fraude seja escancarada, e provada in limine, a discussão depende da instauração de ação própria, no foro competente. O processo de recuperação judicial sem alegação de fraude, de ordinário, já é atribulado, e inserir a discussão sobre fraude dificultaria muito mais o encontro de uma solução para a dívida da empresa. É frequente e legítima a opção legislativa, em processos judiciais, pela celeridade, cortando o âmbito de cognição sobre determinadas matérias, para agilizar a solução da controvérsia. Isso nada tem de inconstitucional, e representa uma perfeita opção do legislador. Embora ciente de que a fraude tem de ser reprimida, a lei limitou-se a disciplinar a reestruturação do passivo. Com isso, pretendeu agilizar a solução da dívida que aperta o devedor. Por certo, a jurisprudência terá de estabelecer a discriminação sobre os assuntos de fraude que podem ser examinados pelo juiz do processo de recuperação e aqueles que serão remetidos às vias ordinárias. A fraude endoprocessual, interna ao processo de recuperação, não pode ser admitida em hipótese alguma, e a competência do juiz do processo é funcional e absoluta para decidir assunto dessa natureza, que pode minar a credibilidade do processo. A lei norte americana permite a anulação do plano de recuperação obtido mediante fraude, e permite a conversão em falência ou a rejeição do processo se ele foi apresentado sem observância da boa-fé. No mês de janeiro de 2023, a Corte de Apelação do Terceiro Circuito rejeitou o processo de uma empresa criada para ir à recuperação judicial com os passivos decorrentes de demandas judiciais (demandas por danos decorrentes de uso de talco fabricado pela Johnson & Johnson). Consta da conclusão: "Our decision dismisses the bankruptcy filing of a company created to file for bankruptcy". Fruto de operações societárias, a Corte considerou que a empresa que ajuizou o processo de reorganização não estava em situação de "financial distress". A crise financeira é um elemento da boa-fé, entendeu a decisão. Noutro caso, a Suprema Corte (Bartenwerfer v. Buckley), no final do mês de fevereiro de 2023, reconheceu fraude para rejeitar a extinção da dívida (discharge). Um casal reformou uma casa para vendê-la; o marido cuidou do projeto, e a mulher não se envolveu na obra. Para a venda, declararam, ambos, que a casa estava em boas condições. Porém, tinha defeitos, que levaram o comprador a ajuizar e vencer demanda de indenização. Os vendedores, então, pediram a autofalência, e pretendiam a extinção das obrigações. Discutiu-se a situação da mulher, se ela sabia ou devia saber da fraude que teria sido praticada pelo marido para fins de extinguir suas obrigações; se a fraude praticada por um poderia ser imputada a outro integrante da partnership. A decisão invoca o seguinte precedente: "In Strang v. Bradner, 114 U. S. 555, the Court held that the fraud of one partner should be imputed to the other partners, who "received and appropri­ated the fruits of the fraudulent conduct.". Importa como o dinheiro foi obtido e distribuído, não quem cometeu o ato material da fraude.  A corte de falências reconheceu a fraude da esposa porque ela formava uma partnership com o marido no negócio envolvendo a reforma da casa para venda. A responsabilidade pela fraude não é exclusiva do fraudador. Os frutos da fraude importam8. Nos dois casos, um de reestruturação de dívida e outro de liquidação, parece existir uma interpretação econômica da fraude que sobreleva a atuação do agente, individualmente considerada. Na definição de um autor que estudou a insolvência sob a ótica filosófica, "está envolvido em fraude a pessoa que procura a falência (e a recuperação judicial) para melhorar sua expectativa na medida em que a insolvência parece uma alternativa mais compensadora que a solvent life"9. Na ausência de previsão expressa na lei 11.101/05, o juiz brasileiro serve-se das normas de cobertura geral do sistema repressivo de comportamentos inadequados, ou ilícitos atípicos (Manuel Atienza), que contêm os institutos do abuso de direito, boa-fé objetiva, simulação, fraude à lei etc. Em razão da competência, o juiz da recuperação atua na verificação da legalidade do plano de recuperação, no controle do patrimônio do devedor, no controle de legitimidade dos votos oferecidos por ocasião da assembleia de credores e, por certo, no controle da legitimidade do próprio postulante da recuperação judicial e da regularidade dos credores. ___________ 1. Vide, a propósito, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, p. 29. 2 https://pipelinevalor.globo.com/mercado/noticia/socio-do-3g-buffett-diz-que-contabilidades-criativas-sao-nojentas-e-vergonha-do-capitalismo.ghtml. Acesso em 26/02/2023. 3 1ª Turma, HC 81.305-4, j. 13/11/2001, rel. Min. Ilmar Galvão. Do corpo do acórdão colhe-se o seguinte: "Ocorre, contudo, que a dita suspeita não pode basear-se em parâmetros unicamente subjetivos, discricionários do policial, exigindo, ao revés, elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, mormente quando notório o constrangimento dela decorrente" 4 Sexta Turma, RHC 158.580,. j. 19/04/22, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 5 Jukka Kilpi, The ethics of bankruptcy. London, Routledge, 1998, p. 107. 6 Bons comentários a esse dispositivo são apresentados por Leonardo Adriano Ribeiro Dias, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. Coord. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. São Paulo: IBR e RT, 2021, p. 439-446. 7 A perícia prévia é destinada a casos extremos, em que o Magistrado, pela documentação aportada, verifica que a empresa pode não estar em atividade. Na antiga concordata, o Ministério Público pedia a constatação nas instalações da devedora. Esse ato processual, na maior parte das vezes, é completamente desnecessário, embora possa ter alguma utilidade. Todavia, não parece ter sido concebida para averiguação de fraude, a menos que se considere fraude o fato de se pedir recuperação judicial sem exercício de atividade empresarial. 8 "The fraud of one partner, we ex­plained, is the fraud of all because "[e]ach partner was the agent and representative of the firm with reference to all business within the scope of the partnership." Ibid. And the reason for this rule was particularly easy to see because"the partners, who were not themselves guilty of wrong, re­ceived and appropriated the fruits of the fraudulent conduct of their associate in business." 9 Jukka Kilpi, ob.cit., p. 108, trad. livre.
O objetivo deste artigo é verificar, à vista do disposto na parte final do inciso II do art. 6º da lei 11.101/2005 ("LFR"), se o sócio que tem responsabilidade solidária por dívida do falido ou do devedor em recuperação judicial, em razão da concessão de garantia real ou fidejussória, é alcançado pelos efeitos do stay period. No texto original, o art. 6º, caput, da LFR, tratou dos efeitos automáticos decorrentes da decretação da falência ou do deferimento do processamento da recuperação judicial, entre os quais a suspensão "de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário." A lei 14.112/2020, ao incorporar ao direito positivo a orientação pretoriana, enumerou nos incisos I a III os efeitos da decretação da falência ou deferimento da recuperação judicial. O inciso II tratou da suspensão das execuções. Com a alteração legislativa foi suprimida a menção à suspensão das "ações", anteriormente prevista no caput, sendo mantida a previsão da suspensão das "execuções". Positivou-se, assim, o entendimento da jurisprudência do e. Superior Tribunal de Justiça ("STJ") que, à luz do §1º do art. 6º da LFR, consolidou-se no sentido de que as ações que demandarem quantia ilíquida devem prosseguir no juízo de origem até a apuração do quantum debeatur. No que interessa para este artigo: o inciso II do art. 6º da LFR, na redação dada pela lei 14.112/2020, estabelece que a decretação da falência e o deferimento da recuperação judicial implicam a "suspensão das execuções inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência". Por "sócio solidário", a norma refere-se especificamente aos sócios de responsabilidade ilimitada da sociedade falida ou que teve deferido o pedido de recuperação judicial, que são aqueles que respondem pelas dívidas da sociedade de forma pessoal e integral1 (não limitada à sua participação social), em razão do vínculo societário existente. Nesses casos, a responsabilidade ilimitada dos sócios pelas dívidas sociais pode resultar da lei - tal como ocorre nas hipóteses de sociedades em comum, sociedade em nome coletivo e sociedade em comandita, simples ou por ações (arts. 990, 1.039, 1.045, 1.091, todos do Código Civil)2 - ou de expressa previsão no estatuto ou contrato social. A opção do legislador por estabelecer a suspensão das execuções em face dos "sócios solidários" se deve ao fato de que os efeitos da decretação de falência se estenderem ao sócio de responsabilidade ilimitada, nos termos do art. 81 da LFR, hipótese na qual os credores particulares dos sócios terão que se submeter à ordem de pagamento do regime falimentar. O objetivo da extensão da suspensão das execuções promovidas em face do sócio de responsabilidade ilimitada é conferir tratamento isonômico entre os credores da sociedade recuperanda e os credores do sócio de responsabilidade ilimitada, o que tem fundamento no princípio do par condicio creditorum. Por sua vez, a suspensão das execuções em face do devedor em recuperação judicial, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias - que de acordo como o §4º do art. 6º da LFR, com a redação dada pela lei 14.112/2002, seria prorrogável uma única vez, por igual período - tem por objetivo viabilizar a negociação do plano de recuperação judicial entre o devedor e seus credores, cujo resultado, caso aprovado, definirá as novas condições de pagamento dos créditos sujeitos3. A extensão dos efeitos conferida pelo II do art. 6º da LRF não pode ser confundida com aquela disciplinada pelo art. 49, §1º, da mesma lei. Isso porque a disposição contida no art. 49, §1º, da LFR diz respeito aos coobrigados em geral, sócios (de responsabilidade limitada) ou não sócios, que oferecem garantias, reais ou fidejussórias - hipoteca, penhor, aval, fiança,  entre outras - da dívida do devedor principal no âmbito de relação contratual. É a hipótese, por exemplo, da prestação de garantias cruzadas entre sociedades do mesmo grupo econômico, prática comum no mercado, cujos ativos de uma garantem o pagamento dos credores da outra no âmbito de relações contratuais envolvendo a emissão de títulos de dívida e/ou de crédito (notas promissórias, cédulas de crédito, debêntures, etc.), como forma de viabilizar operações de financiamento, investimento e capitalização. Na hipótese tratada pelo art. 49, §1º, da LFR, a responsabilidade do terceiro solidário ou do coobrigado não advém de uma relação societária estabelecida - como ocorre na hipótese do art. 6º, II, da LFR, em relação aos sócios de responsabilidade ilimitada -, mas de uma relação de natureza contratual, de caráter obrigacional, por deliberado consentimento daquele que figura como garantidor da dívida. Os coobrigados a que se refere o art. 49, §1º da LFR não se submetem aos efeitos de eventual decretação de falência da sociedade. Solvida a dívida pelo terceiro garantidor, este sub-roga-se na posição do credor primitivo, podendo exercer o direito de regresso em face da devedora em recuperação ou da falida (art. 346, III, c/c art. 350, ambos do Código Civil). Em razão da concessão de garantia, ditos coobrigados também não são atingidos pelos efeitos da novação sui generis, decorrentes da concessão da recuperação judicial, como esclarece o art. 59 do mesmo diploma legal - cujo próprio caput ressalta que isto se dará "sem prejuízo das garantias" -, na hipótese de aprovação do plano de recuperação judicial da devedora principal, de sorte que o credor pode executar os devedores solidários nos termos da obrigação originalmente assumida4. Diante dessa ordem de ideias, parece que a interpretação do art. 49, §1º, da LFR que melhor se compatibiliza com a sistemática da lei 11.101/2005 é a que autoriza o prosseguimento das execuções pelos credores em face dos coobrigados - excluídos os sócios de responsabilidade ilimitada - mesmo com o deferimento do processamento da recuperação judicial da devedora principal. Na jurisprudência, verifica-se que os tribunais estaduais já tiveram a oportunidade de enfrentar a matéria para ratificar a interpretação literal do art. 49, §1º, da LFR, destacando-se aqui, para fins de ilustração, os precedentes dos eg. Tribunais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul5. Nesse sentido, o Conselho da Justiça Federal - CJF, na 1ª Jornada de Direito Comercial, realizada em 2012, editou o enunciado n. 43  sobre o tema: "A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6º da lei 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor." Em 2014, o eg. STJ pacificou a questão ao analisar o REsp. 1.333.349/SP6, julgado sob os ritos dos recursos repetitivos representativos da controvérsia, oportunidade em que decidiu que aos terceiros solidários ou coobrigados em geral não se aplicam "a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput": "RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO E CONCESSÃO. GARANTIAS PRESTADAS POR TERCEIROS. MANUTENÇÃO. SUSPENSÃO OU EXTINÇÃO DE AÇÕES AJUIZADAS CONTRA DEVEDORES SOLIDÁRIOS E COOBRIGADOS EM GERAL. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 6º, CAPUT, 49, § 1º, 52, INCISO III, E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005.1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005". 2. Recurso especial não provido." Ainda analisando o tema, em 2016 a Corte Superior editou o verbete sumular n.º 581, com a seguinte redação: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória."  Nos termos do art. 927, III e IV, do CPC, o entendimento sumulado e fixado em sede de recurso repetitivo é de observância obrigatória por todos os órgãos jurisdicionais, e que permanece hígido mesmo com as alterações promovidas pela lei 14.112/2020 Desse modo, a exegese pacífica da norma é de que os efeitos do stay period e de eventual novação dos créditos aproveitam exclusivamente aos sócios de responsabilidade ilimitada, sujeitos aos efeitos de eventual quebra da devedora, nos termos do art. 81 da LFR, não beneficiando os demais coobrigados em geral, em face dos quais os credores do devedor principal em recuperação judicial conservam seus direitos nos moldes da obrigação primitiva, salvo na excepcional hipótese de expressamente anuírem com a extinção das garantias - reais ou fidejussórias - prestadas. __________ 1 "Desse conjunto resulta existirem no Direito brasileiro sete tipos ordinários de responsabilidade de sócios perante os credores: (...) f) responsabilidade ilimitada e solidária entre os sócios, de forma subsidiária ao patrimônio social, atribuída: a todos os sócios de na sociedade em nome coletivo (...)" (NEGRÃO, Ricardo. "Manual de direito comercial e de empresa. v. 1 - 9ª ed.- São Paulo, Saraiva, p. 294/295")  2 "Os tipos societários (raros) que contemplam sócios ilimitadamente responsáveis são a sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita, tanto a simples como a comandita por ações (ambas, somente em relação aos sócios comanditados). Tem-se, portanto, de plano, que o dispositivo não é endereçado aos sócios de sociedade anônima nem aos sócios de sociedade limitada. Por elementar regra de hermenêutica, nem o caput nem os parágrafos são aplicáveis às sociedades limitadas e às anônimas" (CAMIÑA, Alberto. - "Comentários à Lei de Recuperação de Empresas" - coord. Paulo Fernandes Campos Salles Toledo" - São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 579).  3 Não obstante a intenção do legislador de limitar a prorrogação do stay period, considero que a interpretação do §4º do art. 6º da LRF não pode ser dissociada do objetivo da recuperação judicial, que é a de viabilizar a superação da crise pela empresa viável.  4 Nesse sentido, confira-se a ementa do Resp. 1.326.888/RS, de relatoria do e. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 08/04/2014: "DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO DO PLANO. NOVAÇÃO SUI GENERIS. EFEITOS SOBRE TERCEIROS COOBRIGADOS. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO. DESCABIMENTO. MANUTENÇÃO DAS GARANTIAS. ARTS. 49, § 1º E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005. 1. A novação prevista na lei civil é bem diversa daquela disciplinada na Lei n. 11.101/2005. Se a novação civil faz, como regra, extinguir as garantias da dívida, inclusive as reais prestadas por terceiros estranhos ao pacto (art. 364 do Código Civil), a novação decorrente do plano de recuperação traz como regra, ao reverso, a manutenção das garantias (art. 59, caput, da Lei n. 11.101/2005), sobretudo as reais, as quais só serão suprimidas ou substituídas "mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia", por ocasião da alienação do bem gravado (art. 50, § 1º). Assim, o plano de recuperação judicial opera uma novação sui generis e sempre sujeita a uma condição resolutiva, que é o eventual descumprimento do que ficou acertado no plano (art. 61, § 2º, da Lei n. 11.101/2005). 2. Portanto, muito embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias, de regra, são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral. 3. Deveras, não haveria lógica no sistema se a conservação dos direitos e privilégios dos credores contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005) dissesse respeito apenas ao interregno temporal que medeia o deferimento da recuperação e a aprovação do plano, cessando tais direitos após a concessão definitiva com a homologação judicial. 4. Recurso especial não provido."  5 "EXECUÇÃO. TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AVALISTAS. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO.INADMISSIBILIDADE. (...) O art. 6º da Lei 11.101/05 não se aplica ao caso concreto. O citado artigo refere-se a suspensão de todas as ações e execuções em face do devedor, e o devedor que está em recuperação judicial é a Arantes Alimentos Ltda., e não os avalistas, pessoas físicas. Mantida a decisão agravada, haveria, também, violação ao art. 52, inciso III, da Lei 11.101/05, e pela mesma razão adunada anteriormente, pois o inciso III se refere ao devedor em recuperação. E mais, o § 1º do art. 49 da Lei 11.101/05, preserva o direito dos credores do devedor em relação aos coobrigados, como o são os avalistas, qualidade afeta aos Agravados. O pagamento a ser feito pelos Agravados virá, ao contrário do que se alega, auxiliar o processo de recuperação, pois retirará um ônus da recuperanda, favorecendo o objetivo preconizado no art. 47 da Lei 11.101/05 Recurso provido, nos termos do voto do Desembargador Relator." (TJRJ, AGRAVO DE INSTRUMENTO N.º 0008897-66.2010.8.19.0000, RICARDO RODRIGUES CARDOZO, 15ª CÂMARA CÍVEL, J. EM 8/6/2010).  "Agravo interno. Decisão monocrática em agravo de instrumento. Pode o Relator, com base nas disposições do art. 557, do Código de Processo Civil, negar seguimento ou dar provimento a recurso. Afastamento da preliminar. Recuperação judicial. Os créditos oriundos de adiantamento de contrato de câmbio são extraconcursais e, portanto, excluídos da recuperação judicial. Afastada a determinação de suspensão ou cancelamento de protesto na hipótese de credores extraconcursais. A recuperação judicial não afeta os direitos creditórios detidos em face de coobrigados, avalistas, e obrigados de regresso em geral, podendo o respectivo titular exercê-los em sua plenitude, sem qualquer limitação acarretada pelo estado. O plano de recuperação judicial não pode prever a extinção das execuções contra os avalistas e coobrigados, porque eles são terceiros e o plano de recuperação deve produzir efeitos somente com relação à empresa recuperanda. A suspensão atinge tão somente a pessoa jurídica devedora, restando afastados de tal benefício os eventuais coobrigados. Suspensão dos procedimentos extrajudiciais de consolidação de propriedade que deve ser limitada ao prazo legalmente previsto. Não trazendo a parte agravante qualquer argumento novo capaz de modificar o entendimento adotado na decisão monocrática hostilizada, apenas reeditando a tese anterior, improcede o recurso interposto. Agravo interno não provido." (TJRS, Agravo Interno no Agravo de Instrumento n.º 0475337-32.2014.8.21.7000, Relator Desembargador Ney Wiedmann Neto, 6ª Câmara Cível, j. em 11/12/2014). 6 Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, j. em 26/11/2014.
O noticiário recente, em função de grandes processos de recuperação judicial de grupos econômicos distribuídos nos primeiros meses de 2023, trouxe à baila a discussão sobre a utilização de medidas de urgência pelas devedoras deferidas e implementadas mesmo antes do ajuizamento do processo de recuperação judicial propriamente dito. Nesse sentido, faz-se necessária uma explicação sistemática das possibilidades legais de utilização das medidas de urgência em processos de recuperação judicial: as típicas e as atípicas. Medidas de urgência atípicas são aquelas deferidas pelo magistrado com base no Poder Geral de Cautela previsto no art. 300 do Código de Processo Civil. Nesse sentido, o magistrado poderá determinar qualquer medida suficiente e necessária para garantir o resultado útil do processo, sempre que a parte demonstrar a plausibilidade do seu direito (fumus boni juris) e a existência de risco de dano irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora). Medidas de urgência típicas, por outro lado, são aquelas expressamente previstas e reguladas em lei. Nesse sentido, a lei define o conteúdo da medida, bem como o que seria exigido para a comprovação do fumus boni juris e/ou periculum in mora. Em relação aos processos de recuperação empresarial, há duas medidas de urgência típicas, previstas e reguladas pela lei 11.101/05. São elas a medida prevista no art. 6º, parágrafo 12 e a medida prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro. O art. 6º, parágrafo 12, da Lei n. 11.101/05 previu e regulou a tutela antecipada de urgência em processos recuperacionais. Importante destacar que o cabimento dessa medida pressupõe necessariamente o prévio ajuizamento do pedido de recuperação. Trata-se de medida que visa antecipar, total ou parcialmente, os efeitos do deferimento do processamento de uma recuperação judicial. No sistema de insolvência brasileiro, o deferimento do processamento de uma recuperação judicial é o marco inicial da incidência do conhecido stay period, ou seja, da suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor e da proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial, conforme art. 6º da lei 11.101/05. Entretanto, frequentemente há o transcurso de um tempo relevante entre a data da distribuição do pedido recuperacional e a data do deferimento do seu processamento, em razão da necessidade de detida análise judicial da presença dos requisitos legais ou mesmo em razão da determinação de uma constatação prévia, com fundamento no art. 51-A da Lei n. 11.101/05. Durante esses dias ou meses de espera do deferimento do processamento da recuperação judicial, a devedora fica sem a proteção do stay contra os seus credores. Daí podem resultar situações que coloquem em risco o resultado útil do processo de recuperação, com prejuízos irreparáveis à devedora e aos interesses maiores tutelados pelo sistema de insolvência, de natureza pública e social. A lei não definiu para o caso dessa medida típica (antecipação total ou parcial do stay period) exigências específicas de comprovação do fumus boni juris e do periculum in mora, fazendo apenas remissão ao art. 300 do CPC, de modo que a devedora tem liberdade para demonstrar por qualquer meio a plausibilidade do seu direito e a presença do risco de dano irreparável ou de difícil reparação ao resultado útil do processo. Nesse sentido, havendo a necessidade de proteção de ativos objeto de constrição judicial ou extrajudicial ou de atos de excussão por credores sujeitos à recuperação judicial, poderá a devedora requerer que o juiz antecipe para esse momento anterior ao deferimento do processamento da recuperação judicial, os efeitos do stay period, a fim de neutralizar o risco de dano irreparável decorrente do prosseguimento das referidas medidas executivas. Há casos, por exemplo, em que no momento do ajuizamento da recuperação judicial já existe um pré-aviso de corte do fornecimento de energia elétrica para a devedora, em razão de dívidas relativas ao não pagamento das faturas de consumo, a exigir que o juiz antecipe a impossibilidade de interrupção do serviço mesmo antes do deferimento do processamento da recuperação judicial. Esses são, portanto, exemplos de tutela antecipada de urgência cabíveis de forma incidente no processo de recuperação judicial, com fundamento no art. 6º, parágrafo 12, da lei 11.101/05. A segunda tutela de urgência típica em processos recuperacionais está regulada pelo art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Trata-se de medida que traduz a essência do novo modelo de pré-insolvência criado pela reforma de 2020. O legislador reformista criou uma ferramenta legal para que a devedora tente reestruturar suas atividades sem a necessidade do ajuizamento de medidas judiciais invasivas, custosas e que tragam dano reputacional relevante. Nesse sentido, a devedora poderá iniciar um procedimento de mediação ou conciliação extrajudicial, em caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial, com o objetivo de realizar acordos com seus credores e, ao fim e ao cabo, não ter a necessidade de lançar mão de remédios legais de reestruturação mais amargos, como a recuperação judicial ou extrajudicial. Entretanto, confiar apenas na boa vontade de credores para empregar eficiência ao instituto da mediação ou conciliação antecedentes seria, no mínimo, ingênuo. Por essa razão, o legislador - inspirado no modelo francês e nos modelos asiáticos de pré-insolvência - criou uma medida de urgência que mimetiza o stay, determinando a suspensão das execuções e atos de constrição dos credores envolvidos na negociação durante o prazo de 60 dias. Essa medida tem por objetivo criar estímulos para que os credores se sentem à mesa para negociar, estabelecendo um ambiente mais propício à realização dos acordos. O Fórum Nacional de Recuperação de Empresas e Falências - FONAREF do Conselho Nacional de Justiça editou diversos enunciados para orientar a boa aplicação dessa tutela de urgência. Observa-se que é medida de urgência com conteúdo definido por lei, qual seja, a suspensão das execuções por 60 dias. Da mesma forma, a lei estabelece o que deve ser demonstrado pela devedora para comprovação do fumus boni juris: a) a devedora deve preencher os requisitos legais para requerer recuperação judicial (art. 48 da lei 11.101/05); b) a devedora já deve ter iniciado um procedimento de mediação ou conciliação numa câmara privada ou num Cejusc do tribunal competente. O periculum in mora, no caso, é in re ipsa, ou seja, a lei já presume que se não houver a suspensão das execuções o procedimento de mediação ou conciliação sofre risco de não ser eficiente, prejudicando os interesses tutelados pelo sistema de insolvência empresarial. Mas, além dessas duas tutelas de urgências típicas, também há a possibilidade de utilização da tutela de urgência atípica em processos recuperacionais. Trata-se da utilização do procedimento de tutela cautelar requerida em caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial, com fundamento nos artigos 305 e seguintes do CPC. O Código de Processo Civil autoriza que a parte pleiteie tutela cautelar inominada em caráter antecedente ao ajuizamento do processo no qual discutirá sua pretensão de direito material. Nesse sentido, a devedora ajuíza essa medida cautelar buscando alguma proteção e, no prazo de 30 dias, deve ajuizar a ação principal (emendar a petição inicial da cautelar). Já houve casos em que a devedora ajuizou pedido de tutela de urgência consistente na suspensão das execuções de seus credores, a fim de ajuizar no prazo de 30 dias o pedido de recuperação judicial. Tratando-se de medida cautelar inominada, não há definição legal do conteúdo da tutela a ser deferida pelo magistrado, nem tampouco definição específica do que configuraria o fumus boni juris e o periculum in mora. Assim, pode a devedora requerer qualquer medida de proteção, desde que convença o magistrado de que existe fumaça do seu bom direito e de que a não concessão da cautela colocaria em risco o resultado útil do futuro processo de recuperação judicial. O fundamento da utilização dos procedimentos de tutela cautelar requeridas em caráter antecedente é o art. 189 da lei 11.101/05, segundo o qual se aplicam aos procedimentos de insolvência empresarial as disposições do Código de Processo Civil, desde que não sejam incompatíveis com os princípios da lei de recuperação empresarial e falências. Interessante notar que há grandes diferenças entre essa tutela inominada e a medida do art. 20-B da lei 11.101/05. Na tutela cautelar requerida em caráter antecedente, a devedora poderá requerer qualquer medida de proteção que terá duração de, no máximo, 30 dias quando, então, deverá ser ajuizada a ação de recuperação judicial; além disso, não há exigências legais prévias para a demonstração do fumus boni juris e do periculum in mora. Na medida do art. 20-B (pré-insolvência), por outro lado, a devedora poderá pleitear apenas a suspensão das execuções pelo prazo de 60 dias e desde que preencha os requisitos para requerer recuperação judicial (art. 48) e já tenha iniciado um procedimento de mediação ou conciliação extrajudiciais. Essas são, portanto, as três possibilidades de utilização de medidas de urgência aplicáveis ao processo de recuperação empresarial, sendo imperioso o bom manejo dessas ferramentas para resguardar o resultado útil das reestruturações empresariais, com proteção dos empregos, da geração de riquezas, de tributos e da produção de produtos e serviços em prol da comunidade.
Introdução A concessão do benefício de gratuidade de justiça depende da demonstração pela parte, pessoa natural ou jurídica, da insuficiência para pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, nos termos do que prevê o art. 98 do Código de Processo Civil1. No âmbito da insolvência empresarial, sedimentou-se na jurisprudência o entendimento de que não se presume a existência de dificuldade financeira em razão da decretação de falência - confirmando, portanto, a exigência legal de comprovação cabal, por parte da massa falida, da incapacidade de arcar com as custas processuais para se beneficiar da gratuidade de justiça. Com efeito, o fato de se tratar de massa falida não implica na conclusão automática sobre a inexistência de recursos para pagamento destes encargos, uma vez que o critério adotado pela lei 11.101/2005 é estritamente jurídico: o estado de insolvência decorre diretamente da lei, diante da constatação de determinados fatos relacionados à sociedade empresária, listados no art. 94 do referido diploma. Ainda assim, na prática, é recorrente a concessão automática do benefício para massas falidas, sem que haja uma análise pormenorizada de sua real situação financeira - acabando por configurar uma situação que contraria a própria lógica da garantia fundamental, encorajando o comportamento aventureiro para o ajuizamento de demandas desprovidas de fundamentos jurídicos mínimos que, não onerando a massa falida, acabam, por outro lado, causando prejuízos a terceiros que com ela contendem. O tema ganha especial relevo se analisado sob a perspectiva da persecução da fraude pelas massas falidas que, não raramente, promovem ações judiciais a fim de obter reparação pelos prejuízos experimentados. O presente ensaio busca refletir sobre a necessidade de revisão do critério - ou ausência dele - utilizado por muitos juízos para a concessão do benefício de gratuidade, questionando se a isenção - quase que automática - do pagamento de custas e verbas sucumbenciais não estaria estimulando disputas judiciais temerárias diante da perspectiva de ganho sem qualquer ônus em contraparte, gerando desproporcional prejuízo aos demandados. O critério legal para a configuração da insolvência empresarial Na legislação brasileira, o estado de insolvência empresarial é presumido diante da constatação de determinados fatos relacionados ao empresário ou à sociedade empresária, todos eles indicados no art. 94 da lei 11.101/2005: impontualidade nos pagamentos (art. 94, I) ou a prática de algum dos atos taxativamente listados naquele diploma (art. 94, incisos II e III). Trata-se do denominado critério jurídico para a caracterização da insolvência - que se afasta do critério estritamente financeiro, adotado, por exemplo, no sistema de insolvência civil do Código de Processo Civil. A diferenciação entre ambos já foi objeto de análise do Superior Tribunal de Justiça,  quando do julgamento do Resp nº 1.433.652/RJ, em caso que o devedor (Lojas Americanas S.A.) buscou evitar a decretação de sua falência sob a justificativa de que teria notória solidez financeira: DIREITO EMPRESARIAL. FALÊNCIA. IMPONTUALIDADE INJUSTIFICADA. ART.94, INCISO I, DA LEI N. 11.101/2005. INSOLVÊNCIA ECONÔMICA. DEMONSTRAÇÃO. DESNECESSIDADE. PARÂMETRO: INSOLVÊNCIA JURÍDICA. DEPÓSITO ELISIVO. EXTINÇÃO DO FEITO. DESCABIMENTO. ATALHAMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS PELO PROCESSO DE FALÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Os dois sistemas de execução por concurso universal existentes no direito pátrio - insolvência civil e falência -, entre outras diferenças, distanciam-se um do outro no tocante à concepção do que seja estado de insolvência, necessário em ambos. O sistema falimentar, ao contrário da insolvência civil (art. 748 do CPC), não tem alicerce na insolvência econômica. 2. O pressuposto para a instauração de processo de falência é a insolvência jurídica, que é caracterizada a partir de situações objetivamente apontadas pelo ordenamento jurídico. No caso do direito brasileiro, caracteriza a insolvência jurídica, nos termos do art. 94 da Lei n. 11.101/2005, a impontualidade injustificada (inciso I), execução frustrada (inciso II) e a prática de atos de falência (inciso III). 3. Com efeito, para o propósito buscado no presente recurso - que é a extinção do feito sem resolução de mérito -, é de todo irrelevante a argumentação da recorrente, no sentido de ser uma das maiores empresas do ramo e de ter notória solidez financeira. Há uma presunção legal de insolvência que beneficia o credor, cabendo ao devedor elidir tal presunção no curso da ação, e não ao credor fazer prova do estado de insolvência, que é caracterizado ex lege. (...) (grifamos). Na sistemática da lei 11.101/2005, é possível até mesmo imaginar uma situação em que haja a "quebra jurídica" sem que haja a "quebra financeira", e vice-versa. É o caso, por exemplo, do devedor que simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de prejudicar um determinado credor: na hipótese, o art. 94, III, 'd' daquele diploma autoriza a decretação da falência, ainda que o devedor comprove que seu ativo é superior ao seu passivo. Em sentido diverso, o passivo de uma sociedade empresária pode ser infinitamente superior ao seu ativo, sem que isso leve à decretação de sua quebra, caso não se verifique a prática de quaisquer dos atos listados no art. 94 da lei 11.101/2005. Tem-se, portanto, que a insolvência como pressuposto para a decretação da falência não pode ser entendida em sua acepção exclusivamente financeira, ou seja, como um estado patrimonial de insuficiência de bens para a quitação das obrigações contraídas. A errônea presunção da massa falida como beneficiária da justiça gratuita Nesse contexto, tem-se que a simples condição de falida não é e nem deveria ser premissa suficiente a autorizar a concessão do benefício processual sem a necessária análise da situação econômico-financeira da falência no caso concreto. Isto porque considerando o já mencionado critério estritamente jurídico para a decretação da falência,  deve-se reconhecer que apesar da existência de um sem-número de hipóteses em que massas falidas realmente não possuem caixa suficiente a honrar sequer as despesas ordinárias para sua manutenção, deparamo-nos com situações diversas em que a falida, gerida por seu Administrador Judicial, apresenta regular receita financeira e está apta a arcar com os gastos hodiernamente impostos para o acesso ao Judiciário. Em outras palavras: a condição de falida não lhe atribui automaticamente a condição de deficitária, isto é, a massa não está impossibilitada, em todo e qualquer caso, a dispender do mínimo necessário a fazer frente às suas despesas, dentre as quais, as custas e verbas sucumbenciais a que eventualmente seja responsabilizada ao pagamento, como demandante ou demandada. Ao revés, o objetivo da falência é exatamente a liquidação dos ativos do devedor, viabilizando tanto a sua realocação na cadeia produtiva, bem como a obtenção do máximo de recursos para o atendimento, em rateio e observadas as preferências legais, de todos os credores reunidos perante o juízo falimentar - sendo perfeitamente possível, portanto, que o ativo liquidado supere o passivo concursal. Tanto é assim que a própria lei contempla a possibilidade de a massa falida lograr êxito em promover o pagamento da totalidade de seu passivo, garantindo a obtenção, por conseguinte, da extinção de suas obrigações por sentença (art. 158, inciso I da lei 11.101/20052). Assim é que se afigura perfeitamente concebível que uma massa falida seja detentora de recursos suficientes para, notadamente, arcar com as custas e verbas sucumbenciais de um processo judicial e, assim, a importância da desconstrução do pensamento automatizado de que toda massa falida é imune ao princípio da sucumbência e, portanto, beneficiária da gratuidade de justiça. Da necessária revisão do critério de concessão da gratuidade de justiça à massa falida na persecução de fraude A questão da gratuidade de justiça toma especial relevo no que diz respeito à persecução de fraudes eventualmente praticadas contra a massa falida. O sistema legislativo delineado na lei 11.101/2005, no âmbito do procedimento falimentar, autoriza a persecução de fraudes e a revisão de determinados atos praticados antes da decretação da falência e durante o período suspeito, como se depreende dos arts. 813 (extensão dos efeitos da falência a sócios de sociedades cuja responsabilidade é ilimitada), 824 (responsabilização dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores) e 82-A5 e desconsideração da personalidade jurídica), e arts. 129 e 1306 (ineficácia e da revogação de atos praticados antes da falência). Todos os mecanismos legais postos à disposição da massa falida propiciam, é certo, chance de reparação e ressarcimento pelos prejuízos eventualmente experimentados a partir de expedientes fraudulentos direcionados contra o agente econômico falido, quando ainda ativo. Nesse sentido, o benefício da gratuidade de justiça surge como importante aliado no ajuizamento de ações judiciais que visam, em última análise e em benefício do concurso de credores, o reingresso de ativos à massa que fora esvaziada economicamente e, portanto, não detém capacidade financeira para fazer frente às despesas processuais impostas a todo demandante. Todavia, o deferimento irrestrito do benefício nestes casos, sem que seja realizada uma análise prévia e séria do real estado financeiro da falida, cria um cenário perigoso: sem qualquer receio de consequências negativas à massa falida ou a eles próprios - eis que blindada a devedora do pagamento de verbas sucumbenciais -, a concessão da gratuidade de justiça sem uma análise pormenorizada da situação financeira da devedora pode encorajar condutas temerárias por parte dos Administradores Judiciais que, intentando toda sorte de demanda judicial sob a justificativa da necessidade de perseguir ressarcimento em favor dos credores da massa falida, iniciem uma busca desenfreada por recursos em litígios sem fundamento jurídico, gerando, na prática, um ônus tremendo ao demandado, que se vê praticamente forçado a realizar um acordo para encerrar o litígio, por uma suposta fraude, a qual não cometeu. O fato de que o Administrador Judicial é frequentemente remunerado com um percentual dos ativos arrecadados e alienados, na forma do art. 25, §1º da lei 11.101/2005, cria ainda mais um incentivo para a situação descrita; necessário é o contrapeso advindo do risco do insucesso da demanda. O interesse dos credores é também apontado, muitas das vezes, como a justificativa maior da imperiosa concessão de justiça gratuita sob o argumento falseado de que todos os recursos disponíveis são destinados à satisfação do passivo concursal e que qualquer dispêndio expressivo poderia vir a ser irremediável para consecução desse objetivo. Trata-se de falsa premissa calcada no intuito, ainda que legítimo, de maximizar o ativo arrecadado em favor da massa subjetiva, mas que, se desassociada de uma pesquisa criteriosa da situação financeira efetiva da falida, estimula pretensões vazias que, além de não gerarem qualquer perspectiva de ganho, prejudicam terceiros que precisam mover toda a sorte de esforços para refutá-las, com dispêndio financeiro, reputacional e desgaste pessoal imensuráveis. O fato de ser possível a imputação de sucumbência à massa falida, gerando consequências negativas sobre seu patrimônio, não pode justificar a concessão da gratuidade de justiça. Tal benesse só deve ser concedida caso comprovada a impossibilidade absoluta de pagamento das custas judiciais, como exige precisamente o mencionado art. 98 do CPC. Admitir este raciocínio significaria conceder à devedora uma "carta branca", autorizando-a a simplesmente a não mais quitar quaisquer de seus débitos, sob o argumento genérico de que tais recursos poderiam, ainda que hipoteticamente, ser vertidos em benefício da coletividade de credores. Decerto que a escolha racional da massa falida em intentar ações judiciais deve envolver avaliação ponderada das possíveis consequências econômicas justamente para desestimular o ingresso no Judiciário a qualquer custo. A condenação em sucumbência e honorários é medida que se impõe, e, caso gerem prejuízo à massa (e, consequentemente, à coletividade de credores), notória será a responsabilidade do Administrador Judicial, que deverá ser buscada nas vias próprias. Os Tribunais seguem o mesmo caminho A jurisprudência combate o raciocínio automatizado de deferimento da justiça gratuita com base em suposta hipossuficiência presumida da massa falida, sem análise da situação real do caso concreto e respectiva comprovação nos autos, ainda que se trate de ação intentada pela massa na busca de ressarcimento pelas fraudes eventualmente contra ela cometidas. O Superior Tribunal de Justiça já definiu que a hipossuficiência da massa falida não é presumida, sendo certo que o benefício da gratuidade só deve ser concedido àquela se comprovado que dele necessita. Assim verifica-se em julgado da sua Terceira Turma, que a condição de falida, por si só, não é suficiente para a concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita, prevista na lei 1.060/50. A Relatora Ministra Nancy Andrighi consignou, na ocasião, precedente da 1ª Seção do Tribunal, segundo o qual não é possível presumir a hipossuficiência da massa falida (EREsp 855.020)7. Em outro julgado relevante, o STJ já afirmou expressamente a submissão da massa falida ao princípio da sucumbência, concluindo não ser "presumível a existência de dificuldade financeira da empresa em face de sua insolvabilidade pela decretação da falência para justificar a concessão dos benefícios da justiça gratuita", razão pela qual "a massa falida, quando demandante ou demandada, sujeita-se ao princípio da sucumbência (Precedentes: REsp 148.296/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, Segunda Turma, DJ 07.12.1998; REsp 8.353/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, DJ 17.05.1993; STF - RE 95.146/RS, Rel. Min. Sydney Sanches, Primeira Turma, DJ 03.05.1985) Agravo regimental desprovido" (AgRg no Ag 1292537/MG, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 05.08.2010, DJ 18.08.2010). Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se depara frequentemente com o tema. Em recente decisão envolvendo cumprimento de sentença promovido por massa falida requerente da gratuidade de justiça, o juízo de primeiro grau fundamentou que a massa vinha obtendo sucesso em várias demandas judiciais, o que tornava possível o suporte aos encargos decorrentes das despesas do processo. O E. Tribunal manteve o indeferimento do benefício ressaltando que "o fato da empresa encontra-se (sic) no estado de massa falida, não lhe conferia direito automático ao benefício da justiça gratuita, que continuava dependendo de adequada comprovação de hipossuficiência financeira"8. Em outra oportunidade, ainda que adotando posição intermediária, conferindo a oportunidade de diferimento do recolhimento do preparo recursal ao final, o mesmo E. Tribunal ressaltou que o "estado de insolvência não induz de forma automática a concessão integral dos benefícios da Assistência Judiciária, sendo certo que a parte tem o ônus de demonstrar a vulnerabilidade econômica para arcar com os ônus processuais"9. A Justiça Especializada do Trabalho, por sua vez, já teve oportunidade de rechaçar a tese de insuficiência financeira pelo simples decreto de falência, ressaltando-se, na oportunidade, que a quebra não significa que a devedora se encontra em estado de miserabilidade jurídica10. Nesse sentido, garantiu-se a incidência do verbete sumular nº 86 do Tribunal Superior do Trabalho11, assegurando-se ampla defesa ao permitir que a massa falida devedora interpusesse recurso sem recolher as custas processuais e realizar o depósito recursal, em virtude de seus bens se encontrarem indisponíveis. A isenção total do recolhimento de custas, no entanto, foi negada diante da ausência de comprovação de direito ao benefício. Resta claro, portanto, que a jurisprudência é pacífica no sentido de que é necessária uma análise criteriosa sobre a incapacidade financeira da massa falida para a obtenção do benefício da gratuidade de justiça - o que se coaduna também com a segurança jurídica conferida pelo princípio da sucumbência, que, como exposto, é um importante instrumento de contenção contra demandas aventureiras e desprovidas de fundamento jurídico, frequentemente constatadas nos casos de persecução contra supostas fraudes cometidas contra massas falidas. Conclusão Nesse contexto, não se desconsidera a imprescindibilidade que o benefício da gratuidade de justiça pode representar às falências, sobretudo, àquelas marcadas por práticas fraudulentas que, em muitos casos, determinaram a quebra ou agravaram a condição de crise em que já se encontrava o empresário (individual ou sociedade empresária) antes do seu decreto, o que pode vir a se estender durante a execução concursal diante da ausência ou insuficiência de recursos. Em casos tais, a concessão da justiça gratuita faz-se necessária, real e justa. A experiência permite-nos concluir, no entanto, que o exame dos pressupostos para o deferimento da benesse processual não deve vir desassociado de uma análise pormenorizada do caso concreto, tampouco, tomado pela conclusão açodada da tese de insuficiência financeira pela simples condição de falida das massas litigantes. Deve ser incentivada, ademais, solução intermediária, diferindo o recolhimento das verbas sucumbenciais, em caso de insucesso da demanda, ao final. Raciocínio diferente incita comportamentos que, descompromissados com o resultado da demanda, invoquem toda sorte de fundamentos em ações aventureiras que desafiam a segurança jurídica e o devido processo legal, impondo pesado e desproporcional ônus à uma das partes. __________ 1 Art. 98: A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. 2 Art. 158: Extingue as obrigações do falido: I - o pagamento de todos os créditos; 3 Art. 81: A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida e, por isso, deverão ser citados para apresentar contestação, se assim o desejarem. 4 Art. 82: A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil. 5 Art. 82-A: É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. (Incluído pela lei 14.112, de 2020) Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela lei 14.112, de 2020)  6 Art. 129: São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: I - o pagamento de dívidas não vencidas realizado pelo devedor dentro do termo legal, por qualquer meio extintivo do direito de crédito, ainda que pelo desconto do próprio título; II - o pagamento de dívidas vencidas e exigíveis realizado dentro do termo legal, por qualquer forma que não seja a prevista pelo contrato; III - a constituição de direito real de garantia, inclusive a retenção, dentro do termo legal, tratando-se de dívida contraída anteriormente; se os bens dados em hipoteca forem objeto de outras posteriores, a massa falida receberá a parte que devia caber ao credor da hipoteca revogada; IV - a prática de atos a título gratuito, desde 2 (dois) anos antes da decretação da falência; V - a renúncia à herança ou a legado, até 2 (dois) anos antes da decretação da falência; VI - a venda ou transferência de estabelecimento feita sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os credores, a esse tempo existentes, não tendo restado ao devedor bens suficientes para solver o seu passivo, salvo se, no prazo de 30 (trinta) dias, não houver oposição dos credores, após serem devidamente notificados, judicialmente ou pelo oficial do registro de títulos e documentos; VII - os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior. Parágrafo único. A ineficácia poderá ser declarada de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada mediante ação própria ou incidentalmente no curso do processo. Art. 130: São revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que com ele contratar e o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida. 7 Naquele caso, concluiu a Relatora que "a recorrente não demonstrou lhe faltarem recursos para arcar com as custas processuais, razão suficiente para o indeferimento do seu pedido. A aplicação do direito à espécie pelo TJ/SP está em consonância com a legislação infraconstitucional e deve ser integralmente mantida." Também restou destacado que o entendimento foi seguido de maneira pacífica pelas Turmas que integram a Primeira Seção daquela Corte. Ilustrativamente: AgRg no Ag 1292537/MG, Primeira Turma, DJe 18/8/2010; EDcl no REsp 1136707/PR, Primeira Turma, DJe 17/10/2014; AgRg no REsp 1111103/SP, Primeira Turma, DJe 24/09/2014; AgRg no REsp 1.488.508/RS, Segunda Turma, DJe 10/12/2014; AgRg no AREsp 580.930/SC, Segunda Turma, DJe 05/12/2014, AgRg no AREsp 860.182/SP, Segunda Turma, DJe 09/05/2016; REsp 1.075.767/MG, Segunda Turma, DJe 18.12.2008." (REsp n. 1.648.861/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 6/4/2017, DJe de 10/4/2017) 8 TJSP. Agravo de Instrumento 2274750-86.2022.8.26.0000; Relator (a): Alexandre David Malfatti; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro de Lins - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/11/2022; Data de Registro: 21/11/2022 9 TJSP. Apelação Cível 0043514-48.2010.8.26.0100; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 26/05/2022; Data de Registro: 26/05/2022 10 TRT da 3ª Região. Processo: 0000384-85.2011.5.03.0060 RO; Data de Publicação: 09/02/2012; Disponibilização: 08/02/2012, DEJT, Página 97; Órgão Julgador: Sétima Turma; Relator: Maristela Iris S. Malheiros; Revisor: Taisa Maria M. de Lima. 11 Enunciado nº 86 da súmula de jurisprudência do TST: "Não ocorre deserção de recurso da massa falida por falta de pagamento de custas ou de depósito do valor da condenação. Esse privilégio, todavia, não se aplica à empresa em liquidação extrajudicial."
Recentemente fui instigada pela querida e super competente Juliana Biolchi a contribuir com um artigo para sua obra coletiva que será lançada em breve sobre recuperação extrajudicial, projeto que conduz com Alexandre Nasser de Melo junto ao Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial. O tema escolhido - financiamento DIP para os devedores em recuperação extrajudicial -, não poderia ser mais oportuno e instigante. Compartilho aqui algumas percepções que teci neste artigo a respeito do assunto. Com a nova onda de ajuizamentos de processos de insolvência, impulsionada pela ressaca econômica em que nos encontramos, é a hora de testar para valer a recuperação extrajudicial. Apesar de ser um uma simplificação da recuperação judicial, inspirada no prepacked insolvency procedure previsto no Bankruptcy Code norte-americano, e conceitualmente se lançar como um meio de recuperação menos traumático para a empresa em crise se comparado à recuperação judicial, até agora a recuperação extrajudicial ficou meio opaca.    Uma das razões declaradas para isso era a falta de segurança jurídica que rondava os seus partícipes, que ficavam inseguros quanto à aplicação de certos benefícios legais típicos da recuperação judicial também para a recuperação extrajudicial. Exemplos clássicos eram a aplicação do stay period em benefício dos devedores durante a tramitação do processo, a garantia de não sucessão do investidor na aquisição de ativos, e a falta de regulamentação do financiamento DIP na extrajudicial. Diante da omissão da lei quanto a tais pontos, e na dúvida, devedores e investidores optavam pela recuperação judicial, que acabou consolidando uma jurisprudencia mais firme sobre estes temas.    O cenário agora começa a mudar. A recente reforma implementada pela  lei 14.112 com o fim de atualizar e aprimorar a lei 11.101/05 ("LFRE") facilitou o acesso do devedor à recuperação extrajudicial, por meio de diversos estímulos. Dentre eles, a lei agora facultou ao devedor ingressar com o pedido contando com apenas 1/3 dos créditos sujeitos à recuperação extrajudicial, e concedeu-lhe um prazo de até 90 dias para chegar à anuência ao plano de uma maioria simples por valor de crédito. Nesse sentido, a reforma veio em boa hora, apesar de ainda ser tímida para a recuperação extrajudicial. Isso porque, sem se ater muito à técnica legislativa, muitas das alterações cirúrgicas feitas em artigos esparsos da LFRE buscaram abranger também a recuperação extrajudicial, ainda que em normas constantes em capítulos específicos sobre a recuperação judicial, o que causou uma certa confusão em termos de sistemática legal. Algumas dessas normas permanecem "escondidas" na lei e podem passar desapercebidas pelo intérprete mais afoito. É o caso do financiamento DIP na recuperação extrajudicial. Assim é que a recuperação extrajudicial vem tratada no Capítulo VI da LFRE, que segue silente quanto ao financiamento DIP para as empresas que optam por esse caminho. O DIP hoje, por sua vez, vem tratado nos artigos 66-A e 67 e na Seção IV-A (artigos 69-A a F), todos do Capítulo III, da LFRE, que em princípio trata exclusivamente da Recuperação Judicial. Apesar dessa aparente segregação, o artigo 69-A abre as portas para uma interpretação sistemática da lei que conduz à aplicação do DIP também para a recuperação extrajudicial. Isso porque tal artigo prevê expressamente que "nos termos dos arts. 66 e 67 desta lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comite de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor (...)".      Ocorre que o novo artigo 66-A, também incluído na reforma da lei, expressamente dispõe que a garantia outorgada ao financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio com o recebimento dos recursos ao devedor1. Lincando um artigo com o outro, conclui-se que o legislador estendeu o DIP à recuperação extrajudicial. E, afinal, quais as vantagens do DIP para a recuperação extrajudicial? São muitas. Empresas em crise sofrem limitação de acesso ao crédito no mercado, notadamente após o ajuizamento de um pedido recuperacional.  O financiamento é um dos fatores de maior relevância quando o objetivo é soerguer a companhia devedora, já que é uma das únicas fontes disponíveis  para bem equacionar a estrutura de capital da empresa. Entretanto, trata-se de negócio de risco para os investidores, que para colocarem recursos novos numa empresa tecnicamente insolvente precisarão de estímulos extras para proteção do seu crédito, associados à maior remuneração pela concessão de crédito. A recente reforma da LFRE trouxe uma série deles, que terão o condão de estimular soluções financeiras mais estruturadas por meio da recuperação extrajudicial. Foquemos no DIP previsto na nova Seção IV-A do Capítulo III da lei2. A principal proteção ao investidor é ver tutelado o seu direito ao crédito e às garantias atreladas ao crédito ao realizar o aporte mediante autorização judicial (exigência do art. 69-A), mesmo se houver posterior reconsideração da decisão de primeiro grau em sede recursal3. Ou seja, uma vez desembolsados os recursos ao devedor, mesmo que posteriormente o DIP seja anulado pelo poder judiciário, o investidor conserva sua garantia, mitigando o risco jurídico da operação. Isto significa que, ao submeter um plano de recuperação extrajudicial à apreciação do poder judiciário para posterior homologação, o devedor terá que obter autorização judicial para o aporte de capital na companhia, que deverá ser garantido por ativos não circulantes do devedor ou de terceiros, e ser regulado pelas normas da Seção IV-A do Capítulo III da LFRE. Assim fazendo, o investidor terá a proteção da imutabilidade da garantia que lhe foi outorgada, ao desembolçar os recursos ainda que o plano de recuperação extrajudicial não seja homologado posteriormente pelo juiz. Seguindo o objetivo de estimular este tipo de operação, a lei também fez constar que o investidor poderá receber garantia adicional e subordinada ao empréstimo, dispensando a anuência do detentor da garantia original. Antes da reforma, havia dúvida se isso poderia representar supressão de garantia ao credor originário, nos termos do artigo 50, §1º da LFRE4. Hoje, acionistas ou partes relacionadas poderão financiar a empresa em recuperação com os mesmos benefícios e proteções concedidos a terceiros, sem temer que seu crédito seja considerado subordinado em caso de falência (artigos 69-E e F). Por fim, o credor DIP na recuperação judicial recebe com superprioridade seu crédito em caso de falência do devedor, logo na segunda ordem de prioridade prevista no art. 84, I-B5. Ou seja, o financiador DIP receberá de forma muito mais vantajosa do que a até então prevista antes da reforma legislativa, estando atrás apenas e tão somente dos pagamentos decorrentes das despesas relacionadas à administração da massa falida e dos créditos trabalhistas vencidos nos três meses anteriores à quebra da empresa, até o limite de cinco salários mínimos por trabalhador, conforme arts. 150 e 151 da LFRE6. Questiona-se, apesar da aplicação do DIP à recuperação extrajudicial aqui defendida, se em caso de falência do devedor os investidores seriam também beneficiados pela ordem de prioridade prevista no artigo 84, I-B. Ou seja, caso a empresa em recuperação extrajudicial tenha sua falência decretada no meio do caminho, os créditos dos financiadores serão pagos como extraconcursais, seguindo a nova prioridade estabelecida na lei? Uma interpretação sistemática da lei, aplicando o gênero recuperacional a ambas as especies tratadas na LFRE (recuperação judicial e extrajudicial) nos leva à conclusão de que essa proteção também se aplica à recuperação extrajudicial, como indica a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)7, que disciplina os critérios para a correta aplicação das normas jurídicas, e estabelece, dentre outros princípios, o do diálogo das fontes8. Seu art. 4º  também determina que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito", a fim de que seja conferida eficácia normativa à lei. Ora, nada mais coerente do que a norma protetiva prevista para a recuperação judicial também se aplicar para a extrajudicial. Entretanto, o tema é controverso, e o fato é que uma leitura restritiva da norma poderá levar à conclusão de que essa prioridade especial não se aplica para o financiador no caso da recuperação extrajudicial. Afinal, além de o art. 84, I-B ser expresso ao citar hipótese de recuperação judicial, a não homologação do plano de recuperação extrajudicial pelo juiz não acarreta automaticamente a falência do devedor, como se dá na recuperação judicial. Ao contrário, a qualquer momento fica facultada ao devedor a possibilidade de conversão da extrajudicial em recuperação judicial9. Mais do que isso, na hipótese de não homologação do plano, o devedor poderá apresentar novo pedido de homologação de plano de recuperação extrajudicial10. Não havendo a convolação em falência nessas hipóteses, e diante da menção expressa no inciso I-B do artigo 84 apenas à recuperação judicial, essas normas podem ainda ser tidas como restritas à recuperação judicial. O intérprete, nesse sentido, poderia partir do princípio que, sendo a recuperação extrajudicial menos amarga ao devedor, não necessariamente acarretando a sua falência em caso de fracasso, o risco do investidor seria menor nessa operação, se comparado à recuperação judicial. Portanto, não se justificaria o benefício da prioridade de pagamento na falência. Justamente por ser questionável, nos parece que o investidor cauteloso não deverá considerar esse benefício em seus cálculos de risco para concessão do empréstimo.  No entanto, essa circunstância por si só não remove o brilho e a novidade do DIP na recuperação extrajudicial, com as novas proteções conferidas pela lei. Isso porque, na hipótese do DIP previsto na Seção IV-A, garantido pela alienação fiduciária de bens do ativo não circulante do devedor ou de terceiros (art. 69-A e seguintes), o credor na falência conservará seu direito à excussão da garantia fiduciária, que deixa de pertencer à esfera de propriedade do devedor e nem é passível de arrecadação pelo administrador judicial. Ou seja, o financiador DIP ainda assim será pago de forma superprivilegiada até o limite da sua garantia, que em geral cobre mais que a totalidade do crédito, sem sequer concorrer com outros credores, por mais privilegiados que sejam no concurso da falência. Portanto, embora recomende-se ainda cautela ao investidor na recuperação extrajudicial, é certo que poderá optar por conceder financiamentos no curso do processo, agora contando com maiores proteções e incentivos. Além da imutabilidade da garantia, em caso de desembolso dos recursos, se o DIP ocorrer segundo os ditames da Seção IV-A do Capítulo III da LFRE, o investidor sequer participará do concurso de credores em caso de falência, podendo satisfazer seu crédito com a consolidação da propriedade fiduciária. __________ 1 "Art. 66. A alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor a adquirente ou a financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor". 2 Além deste, há o mútuo pós concursal regulado pelo artigo 67 da lei, sobre o qual não trataremos aqui. 3 Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado. 4 Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: § 1º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia. 5 Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, aqueles relativos: I - (revogado); I-A - às quantias referidas nos arts. 150 e 151 desta Lei; I-B - ao valor efetivamente entregue ao devedor em recuperação judicial pelo financiador, em conformidade com o disposto na Seção IV-A do Capítulo III desta Lei; I-C - aos créditos em dinheiro objeto de restituição, conforme previsto no art. 86 desta Lei; I-D - às remunerações devidas ao administrador judicial e aos seus auxiliares, aos reembolsos devidos a membros do Comitê de Credores, e aos créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência; I-E - às obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência; 6 Art. 150. As despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência, inclusive na hipótese de continuação provisória das atividades previstas no inciso XI do caput do art. 99 desta Lei, serão pagas pelo administrador judicial com os recursos disponíveis em caixa. Art. 151. Os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, serão pagos tão logo haja disponibilidade em caixa. 7 Decreto 4657 de 4 de setembro de 1942 8 Teoria de que deve ser aplicada a melhor regra para tutelar o direito ao caso, como meio de preservação da hermenêutica jurídica e da coerência do sistema normativo. Neste sentido: "O uso da expressão do mestre, "diálogo das fontes", é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, coexistentes no sistema. É a denominada "coerência derivada ou restaurada" (cohérencedérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e a microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a "antinomia", a "incompatibilidade" ou a "não coerência" (MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo das fontes. In: BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013) 9 §7º do artigo 163 da LFRE. 10 §8º do art. 164 da LFRE.
A construção civil responde por parte significativa dos investimentos da economia brasileira, o que efetivamente também ocorre em outros países, pelo que se pode compreender facilmente que a indústria da construção abre as portas para gerar significativos investimentos na economia. E a construção civil reflete em grande medida a realidade do mercado imobiliário de habitação, que em nosso país é movido pelo elevado déficit de moradias, tornando perceptível a necessidade de segurança jurídica ao consumidor, mola propulsora de todo esse mecanismo, sobretudo diante do cenário de seguidas crises econômicas que afetaram o país e as empresas do setor imobiliário. Exemplo contundente dessa situação ocorreu há pouco mais de duas décadas, em 1999, quando veio a falir a Encol, prejudicando cerca de 42 mil adquirentes que ainda não haviam recebido as unidades habitacionais compromissadas à venda pela construtora. Em que pese a proteção ao adquirente de imóveis dedicada pela Lei das Incorporações Imobiliárias à época, lei 4.591/64, foi necessária a edição da medida provisória 2.221/2001, depois revogada pela Lei 10.931/2004, que disciplina até os dias de hoje a formação do patrimônio de afetação, com a introdução dos artigos 31-A a 31-F na Lei de Incorporações, vinculando tal patrimônio exclusivamente à construção de determinado empreendimento imobiliário, tornando-o imune à eventual falência ou insolvência civil da empresa. O legislador começou a entender a importância da proteção do consumidor nessa área. Tecnicamente, é verdade que o patrimônio em geral é uno e indivisível, como conceituava o CC de 1916 (art.57); mas, a economia moderna trouxe inúmeras exceções a essa regra, tanto que não fora reeditado o mencionado dispositivo no CC de 2002 e há hoje diversas possibilidades de segregação ou especialização de parte de um patrimônio, conforme previsões de leis específicas, como a lei 9.514/1997, que disciplina o Sistema de Financiamento Imobiliário; a Lei 8.668/1993, que regula os Fundos de Investimento Imobiliário etc1. Trata-se de opção da incorporadora imobiliária a adoção do patrimônio de afetação, que na realidade traz mais segurança aos adquirentes e valoriza o empreendimento2; havendo também a possibilidade de as incorporadoras criarem ou não sociedades de propósito específico (SPEs) e segregar ou não parte de seus patrimônios para a consecução de determinado empreendimento. Assim, uma incorporadora pode ou não constituir o patrimônio de afetação, o que não é obrigatório, mas há incentivos fiscais para a sua criação e a realidade tem mostrado grande adesão a essa espécie de segregação3, que absorve todos os bens e recursos necessários para a construção de um empreendimento imobiliário, assim como responde pelas obrigações diretamente ligadas à construção. Independentemente da segregação, consoante dispõe o artigo 833, inciso XII, do CPC, são impenhoráveis os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias vinculados à execução da obra, o que possibilita a finalização da construção do empreendimento imobiliário mesmo diante das dificuldades financeiras da incorporadora, o que também representa proteção ao consumidor das unidades construídas. Desta maneira, além do patrimônio geral da incorporadora ou de suas SPEs, pode haver patrimônio reservado a determinado empreendimento4. E, havendo patrimônio segregado, dispõe a lei que os adquirentes, no caso de atraso injustificado na construção ou de falência da incorporadora, podem assumir a obra, contratar outra construtora ou liquidar o patrimônio de afetação, vendendo seus ativos e pagando o respectivo passivo, de forma que seus bens não são arrecadados com a eventual falência da incorporadora. O patrimônio de afetação, previsto na Lei de Incorporação Imobiliária, protege assim os consumidores adquirentes das unidades contra a insolvência da incorporadora, garantindo-lhes de certa forma a conclusão e a entrega dos imóveis5. Também, a lei 11.101/05 se refere ao patrimônio de afetação em seu art. 119, inciso IX, determinando proteção a esses patrimônios ao assegurar a destinação específica a determinado empreendimento, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados daqueles do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade. Mas, se a incorporadora vem a falir e não há patrimônio de afetação para a construção de seus empreendimentos, os seus bens serão arrecadados à massa e os adquirentes das unidades imobiliárias somente terão a opção de promover a habilitação de seus créditos de privilégio real na falência, em posição inferior aos créditos extraconcursais, trabalhistas e fiscais, o que os coloca na incomoda posição de não ser suficiente o ativo realizado para o pagamento de seus créditos6. Soluções diversas já foram adotadas, como a aplicação extensiva dos artigos 31-A a 31-F da lei 4.591/1964 a incorporações não afetadas, até mesmo antes da edição da lei que possibilitou a criação dos patrimônios de afetação, como no caso da Encol, em que foi deferida a exclusão dos apartamentos que ainda pertenciam à construtora para a venda e destinação do produto à conclusão de outros empreendimentos e não a sua arrecadação ao ativo da massa. Mas, essa ideia é discutível, pois, como pondera Chalhub, "...ainda que se reconheça que a prioridade dos fins sociais a que a lei se destina, a decisão, despeito de ter beneficiado o contratante mais fraco, que são os adquirentes, expropriou bens do ativo da massa falida cuja venda deve beneficiar, também, outros credores igualmente hipossuficientes, como são os trabalhadores, além do fisco e da previdência"7. Dessa maneira, sendo as unidades em estoque de propriedade do incorporador, com a decretação da falência, devem ser arrecadadas para venda e distribuição dos valores para pagamento dos credores da massa, conforme a ordem legal de preferência. Essa disciplina, que se encontra razoavelmente clara em relação à falência, não fora prevista para a recuperação judicial ou extrajudicial. Considerando que a crise pela qual atravessa o país também atinge o setor imobiliário e a construção civil e que muitas incorporadoras se utilizam da criação de sociedades de propósito específico (SPEs) para a realizar seus empreendimentos, bem como criam patrimônios de afetação, atrelados à realização de determinadas obras, surgem dúvidas relativas à proteção da posição dos adquirentes nessas situações. Nesse sentido, indaga-se: seria possível admitir o litisconsórcio ativo quando essas incorporadoras incluem as SPEs na recuperação judicial? Deve-se incluir os direitos e obrigações do chamado "patrimônio de afetação" na recuperação judicial?  É possível aplicar a consolidação substancial, unificando as responsabilidades patrimoniais do grupo, de forma a enfrentar a crise englobando tais patrimônios que estavam segregados para finalidades específicas? Aqui se está entre a cruz e a espada, já que, de um lado, sempre presente a necessidade de preservação das empresas viáveis, objetivo plenamente reconhecido na lei 11.101/05 (art.47), e, de outro, a proteção ao consumidor no ramo imobiliário e tudo o que representa em termos de economia popular, direito à habitação e também a geração de inúmeros empregos. Tenha-se em conta, primeiramente, que o patrimônio de afetação não se confunde com o patrimônio geral da sociedade incorporadora ou mesmo com o patrimônio de cada SPE, que também tem um patrimônio geral. Com isso em mente, é necessário separar os direitos e obrigações que se referem a determinado patrimônio de afetação e ao patrimônio geral da incorporadora ou mesmo da SPE. Assim, obrigações, vejamos, decorrentes de indenizações por atraso das obras ou defeito nas construções são da incorporadora ou da SPE, se constituída; despesas relativas ao financiamento da obra ou aos operários das construções devem ser atribuídas ao patrimônio de afetação. Feita essa separação, é possível compreender que não há óbice à recuperação das SPEs em litisconsórcio com a incorporadora, mesmo que estas tenham patrimônios de afetação, se as dívidas do patrimônio afetado não se submeterem à recuperação judicial. Como dissemos, a lei protege os adquirentes em caso de falência do incorporador e o patrimônio de afetação não é arrecadado, podendo os adquirentes continuar a obra, que será administrada por uma comissão de representantes, ou liquidar o patrimônio de afetação (art.31-F da Lei de Incorporação). Se assim é no processo de falência, também não se pode incluir as dívidas desse patrimônio na recuperação, porque, no insucesso do processo de reorganização, esse patrimônio também não poderá servir para pagar as dívidas do patrimônio geral. Dessa maneira, somente entram na recuperação as dívidas do patrimônio geral da incorporadora e/ou da SPE. As dívidas do patrimônio de afetação constituem o seu passivo. Assim, apesar de alguma resistência da jurisprudência de início, como no caso do Grupo Viver8, esse é o sentido para o qual tende a jurisprudência9, podendo ser citados outros casos nos quais se admitiu à recuperação também as SPEs10. Apesar da controvérsia sobre o assunto, pode-se dizer até mesmo que não há óbice à recuperação em litisconsórcio com as SPEs com patrimônio de afetação, desde que respeitada a segregação do patrimônio de afetação, fazendo-se a devida separação entre as obrigações concursais e extraconcursais. Contudo e por outro lado, nessa mesma linha, é possível concluir que não é cabível a consolidação substancial aos patrimônios de afetação11, em especial, diante da proteção conferida pelo legislador  pela disposição contida no artigo 31-A da Lei n.4.591/64, com a redação que lhe deu a lei 10.391 de 2004, que prevê a não comunicação "do patrimônio de afetação com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos, só respondendo por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva", de forma a serem preservadas as situações dos adquirentes12. O patrimônio de afetação é incomunicável com o patrimônio geral da incorporadora e nesse sentido ele não pode e não deve se misturar com o patrimônio geral da incorporadora ou da SPE13. A extensão da responsabilidade patrimonial serviria como sanção e, no caso das sociedades que adotam o patrimônio de afetação, não foram os adquirentes que abusaram da personalidade, porque não exerceram a administração do empreendimento, e, por isso não podem sofrer a sanção e serem afetados com o comprometimento do patrimônio segregado, que foi instituído justamente para lhes garantir a entrega das unidades. Pelo que pode se observar, grande é a importância dos patrimônios de afetação que minimizam em boa medida o risco dos consumidores do mercado imobiliário habitacional diante das hipóteses de falência das incorporadoras, e, na falta de disposições específicas da lei e diante dos cenários de seguidas crises na economia, que levaram muitas empresas do ramo à recuperação judicial, as soluções têm sido construídas na prática, desafiando o bom senso daqueles que atuam nessa área. __________ 1 Cf. Godoy, Luciano de Souza; SERAFIM, Tatiana Flores Gaspar; MARTINIANO, Marcela Machado. O PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL TESTA A EFICÁCIA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO, in Revista de Direito Recuperacional e Empresa | vol. 6/2017 | Out - Dez / 2017. 2 Como ressalta a doutrina: "Não há dúvida, pelo que já pudemos observar, que o patrimônio de afetação tem como principal objetivo trazer segurança aos adquirentes das unidades imobiliárias, às instituições financiadoras e ao sistema habitacional como um todo. Na mesma linha, pode-se dizer que o instituto implica em um diferencial em termos de segurança, que pode ser refletido no preço de venda da unidade autônoma" (cf. JUNQUEIRA NETO, Ruy de Mello. "Patrimônio de afetação na recuperação judicial e na falência". Publicado em 06/2019. Último acesso em 03.03.20 3 Consoante a doutrina: "Especificamente para as incorporadoras, além dos regimes tributários convencionais acima identificados, o art. 1º da lei 10.931/2004 também permite que, com a instituição do Patrimônio de Afetação, seja feita a opção pelo Regime Especial Tributário, em caráter opcional e irretratável, enquanto perdurarem direitos de créditos ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis, com tributação reduzida. De fato, percebe-se a adesão em massa ao instituto do Patrimônio de Afetação pelas incorporadoras do país" (cf. MOTA, Jessica Cristina Coitinho. Da importância jurídica do regime da afetação patrimonial nas incorporações imobiliárias, in Revista de Direito Imobiliário | vol. 82/2017 | p. 155 - 181 | Jan - Jun / 2017). 4 Conforme a doutrina: "Em qualquer das duas situações coexistem o patrimônio geral da sociedade, que abrange a totalidade dos direitos e obrigações integrantes do seu patrimônio geral, e o patrimônio dele destacado, que se restringe aos direitos e obrigações correspondentes à execução da obra, entrega das unidades vendidas e liquidação do passivo da construção (cf. CHALHUB, Melhim Namem. A afetação patrimonial e a recuperação judicial de empresa incorporadora. Revista de Direito Imobiliário | vol. 87/2019 | p. 245 - 270 | Jul - Dez / 2019 5 Cf. GODOY, Luciano de Souza. O processo de recuperação judicial testa a eficácia do patrimônio de afetação. Revista de Direito Recuperacional e Empresa. Vol. 6/2017, Out - Dez. 2017. 6 Nesse sentido, também: JUNQUEIRA NETO, Ruy de Mello. "Patrimônio de afetação na recuperação judicial e na falência". Publicado em 06/2019. Último acesso em 03.03.2023). 7 Cf. CHALHUB, Melhim Namem. "Incorporação imobiliária: aspectos do sistema de proteção do adquirente de imóveis", in Revista de Direito Imobiliário | vol. 75/2013 | p. 167 | Jul - Dez / 2013. 8 TJSP, Agravo de Instrumento 2218060-47.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Fábio Tabosa, j. 12.06.2017. 9 Nesse sentido, o Acórdão do STJ no caso do Grupo Viver: "EMENTA RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NÃO INDICAÇÃO DE DISPOSITIVO LEGAL REPUTADO VIOLADO, NO TOCANTE À QUESTÃO PRELIMINAR. DEFICIÊNCIA DAS RAZÕES RECURSAIS. ENUNCIADO N. 284 DA SÚMULA DO STF. INCIDÊNCIA. STAY PERIOD. CONTAGEM EM DIAS CORRIDOS. POSICIONAMENTO UNÍSSONO DAS TURMAS DE DIREITO PRIVADO DO STJ. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 83 DA SÚMULA DO STJ. SOCIEDADES DE PROPÓSITO ESPECÍFICO. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INCOMPATIBILIDADE. ENTENDIMENTO ADOTADO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM QUE ENCONTRA RESSONÂNCIA NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. RECONHECIMENTO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, IMPROVIDO. (STJ. RECURSO ESPECIAL Nº 1758563 - SP (2018/0197742-2). 3ª Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. J. 18.11.2022. DJe. 22.11.2022.) Consta do Acórdão: "As sociedades de propósito específico que não administram patrimônio de afetação podem se valer dos benefícios da recuperação judicial, desde que não utilizem a consolidação substancial como forma de soerguimento e a incorporadora não tenha sido destituída pelos adquirentes na forma do art. 43, VI, da lei 4.591/1964" 10 Nesse sentido: Agravo de instrumento. Direito empresarial. Recuperação judicial. Agravo de instrumento manejado em face de decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial do Grupo João Fortes, incluída a Sociedade de Propósito Específico (SPE's) JFE 12. Inexistência de incompatibilidade entre o regime de recuperação judicial e as SPE's sem patrimônio de afetação. O patrimônio de afetação possui autonomia e autossuficiência em relação ao patrimônio do incorporador, não respondendo pelas dívidas estranhas à consecução da incorporação, fenômeno que não ocorre com as SPE's sem patrimônio de afetação. Conquanto haja alegação de esgotamento do objeto da SPE, o processamento da recuperação judicial dessa Empresa se justifica pela existência de patrimônio expropriável que poderá ser essencial ao soerguimento do grupo. Recurso desprovido. (TJRJ - AgIn 0048366-70.2020.8.19.0000 - 7.ª Câmara Cível - j. 26/5/2021 - julgado por Luciano Saboia Rinaldi de Carvalho - DJe 31/5/2021) 11 Nesse sentido: EMENTA RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. SOCIEDADES DE PROPÓSITO ESPECÍFICO. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INCOMPATIBILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a recuperação judicial é compatível com as sociedades de propósito específico com patrimônio de afetação, que atuam na atividade de incorporação imobiliária. 3. As sociedades de propósito específico que atuam na atividade de incorporação imobiliária e administram patrimônio de afetação estão submetidas a regime de incomunicabilidade, criado pela Lei de Incorporações, em que os créditos oriundos dos contratos de alienação das unidades imobiliárias, assim como as obrigações vinculadas à atividade de construção e entrega dos referidos imóveis, são insuscetíveis de novação, sendo, portanto, incompatível com o regime da recuperação judicial. 4. Para cada um dos microssistemas examinados, o legislador previu consequências distintas para a hipótese de não superação da crise econômico-financeira, a inviabilizar o entrelaçamento de institutos que, desde a sua gênese, visam proteger interesses jurídicos distintos. 5. O papel das SPEs com patrimônio de afetação na recuperação judicial do grupo econômico à qual pertencem está, de fato, restrito ao repasse de eventuais sobras após a extinção do patrimônio afetado, que voltarão a integrar o patrimônio geral da incorporadora (holding), e, somente a partir desse momento, poderão ser utilizadas para o pagamento de outros credores. 6. Pensar de modo diverso conduziria ao indesejável enfraquecimento dos efeitos esperados e efetivamente concretizados desde a edição da lei 10.931/2004, inserida no ordenamento jurídico com vistas a conferir maior segurança, estabilidade e desenvolvimento ao ramo da incorporação imobiliária, com inegáveis benefícios para todos os envolvidos. 7. Recurso especial não provido. Agravo interno prejudicado. (STJ. RECURSO ESPECIAL Nº 1958062 - RJ (2021/0280895-6). 3ª Turma. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. J. 22.11.2022). 12 Nesse sentido: AI. 2043269-65.2017.8.26.0000, Comarca de Taubaté, TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Claudio Godoy, v.u., j. 27.11.2017. 13 Nesse sentido: SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Os direitos do compromissário comprador diante da falência ou recuperação judicial do incorporador de imóveis. Revista de Direito Bancário e de Mercado de Capitais, v. 76, abr.-jun. 2017.
Inovação trazida pela lei 14.112/20, a lei 11.101/05 (LRE), que disciplina os procedimentos de recuperação judicial, extrajudicial e falência, passou a permitir a tutela cautelar preparatória ao pedido de recuperação judicial (LRE, art. 6º, §12). A matéria ganhou novos contornos e relevância diante dos novos casos distribuídos. A compreensão de seus limites, entretanto, mostra-se imprescindível para tutelar o próprio processo de recuperação, cujos efeitos a cautelar procura preservar. Prevista no art. 6º, §12º, a tutela cautelar procura assegurar as partes do dano ou risco de dano ao resultado útil do processo de recuperação, consistente justamente na negociação coletiva por meio da qual as partes pretenderiam a maximização dos ativos do devedor, preservação das empresas recuperáveis ou retirada do mercado das empresas irrecuperáveis de modo a se assegurar a higidez do mercado. De modo concreto, o devedor, antes de pedir a recuperação judicial, por recear os efeitos decorrentes de eventual demora ao pretender as medidas de saneamento empresarial tempestivas, pleiteia a tutela cautelar para se valer dos efeitos da recuperação judicial. Para tanto, deverá demonstrar os pressupostos imprescindíveis para a tutela de urgência. A norma em questão é clara quanto à exigência de demonstração dos requisitos da tutela cautelar previsto nos termos do art. 300 e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), isto é, mediante prova da verossimilhança de suas alegações e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (CPC, art. 303). A prova do direito se justifica pela demonstração de que detém a legitimidade e os requisitos necessários para o requerimento do processo de recuperação judicial. Cabe ao autor provar a sua legitimidade, enquanto empresário, na forma do art. 1º, e demais requisitos objetivos previstos no art. 48, ambos da LRE. Deverá ainda apresentar toda a documentação imprescindível a demonstrar seu estado de crise econômico-financeira e o montante de seu passivo (art. 51). Presentes os requisitos para a concessão, a medida cautelar poderá antecipar "total ou parcialmente os efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial."  Logo se vê que a medida cautelar não pode extrapolar os próprios efeitos do processo de recuperação judicial, se não pela razão óbvia de que a medida acessória não poderia ser mais ampla do que a própria principal cuja proteção era o objetivo da primeiro, pela redação expressa da lei. Com efeito, caso a tutela seja ampla para antecipar todos os efeitos da recuperação judicial, quando muito teria o autor direito a se valer da suspensão das ações de cobrança que tem contra si nos termos do que estabelecem os incisos I, II, além da liberação de medidas constritivas, conforme disposição constante do inciso III, todos do art. 6º da LRE em relação aos créditos sujeitos a uma futura recuperação judicial. Disso se percebe a distinção entre essa tutela cautelar e aquela prevista no art. 20-B, §1º, da LRE. Este último disciplina tutela cautelar com o objetivo de facilitar o procedimento de conciliação ou mediação. A decisão liminar possível, nessa hipótese, apenas suspende as ações de cobrança contra o devedor pelo prazo máximo de 60 dias, mas não antecipa os efeitos do processo de recuperação judicial. A medida possível não antecipa os efeitos da recuperação judicial, mas apenas suspende as ações, por prazo ainda dedutível do chamado stay period previsto no art. 6º da LRE sobrevindo processo de recuperação judicial ou extrajudicial. Se a cautelar não pode extrapolar os efeitos do próprio processo principal, não poderá versar sobre efeitos que extravasem os créditos sujeitos à recuperação judicial futura, como interferências em ações de crédores titulares de propriedade fiduciária, arrendadores mercantis, vendedores de imóvel com cláusula de reserva de domínio, credores decorrentes de promessa de compra e venda irretratável ou de contratos de câmbio para exportação. Tampouco a cautelar não assegura a sustação da exigibilidade do título em si, imposição de obrigação não prevista em lei de natureza revisional. O juízo da recuperação judicial, nesse ponto, sequer teria competência para tratar de outras questões que não envolvam a negociação coletiva dos créditos sujeitos à recuperação judicial. Em outras palavras, não poderia o Juízo ao qual se dirige a tutela cautelar, bem assim a recuperação judicial, intervir na relação contratual entre recuperanda e seu credor, a não ser para a verificação do valor do crédito, sua classificação ou exclusão dos efeitos da recuperação judicial. Se falta competência para apreciar questões contratuais, revisar obrigações ou impedir a exigibilidade de créditos não sujeitos à recuperação judicial em face do devedor, também extrapola os limites definidos pelo próprio processo principal de recuperação judicial a intervenção sobre créditos em face de terceiros. Se, nos termos do art. 49, §1º e do 59, da LRE, consubstanciados no enunciado da Súmula 581 do Col. Superior Tribunal de Justiça, dispõe-se que "a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória", a cautelar não poderia retirar a exigibilidade de títulos. Afinal, se o título não é exigível, careceria o credor, consoante estabelece o art. 783 do CPC, de título executivo para cobrar o crédito diretamente das garantias contratadas. Se tais questões parecem evidentes, há outras que desafiam o intérprete. Dentre essas, relaciona-se ao momento em que é considerado o fato gerador para a sujeição ou não do crédito à recuperação judicial. Pela redação do caput do art. 49, sujeitam-se à recuperação judicial "todos os créditos existentes na data do pedido", mas há uma lacuna nesse dispositivo se a parte se valeu da tutela cautelar antecedente à recuperação judicial. Poder-se-ia integrar essa lacuna pela interpretação lógico-sistemática da lei, de maneira que, se antecipado totalmente os efeitos da recuperação judicial, de igual modo a regra do art. 49 deveria ser antecipada, para efeito de termo inicial de sujeição do crédito, à distribuição da tutela cautelar. Mas se a antecipação for parcial, a mesma interpretação seria válida? Da mesma forma, questiona-se se o prazo para distribuição da ação principal, no caso, a recuperação judicial. Quanto à controvérsia, o §12º do art. 6º nada esclarece. Apenas faz remissão ao art. 300 e ss. do CPC. Assim, a rigor, a recuperação judicial teria que ser apresentada no prazo de 30 dias contado do momento em que efetivada a decisão liminar (CPC, art. 308). Tem-se por efetivada a decisão liminar, nessa hipótese, do momento em que proferida respectiva decisão ou da intimação dos credores? A dúvida é natural porquanto, se a tutela cautelar é em caráter antecedente à recuperação judicial, não haveria a necessidade de indicação de um credor específico a ser intimado dessa decisão. Toda a coletividade de credores sujeitos seria afetada, hipótese que bem se coadunaria à necessidade de publicação de edital, a exemplo do que ocorre no processo de recuperação judicial para a intimação dos credores acerca do processamento da recuperação judicial e para, querendo, apresentar habilitação ou divergência de crédito (LRE, art. 7º, §1º, c/c 52, §1º). Tais questionamentos, portanto, evidenciam que a tutela cautelar exige o aprofundamento de sua análise e a compreensão de seus limites. Sua aplicação sem parcimônia, sem atenção à excepcionalidade conferida pela disciplina legal, sem a demonstração dos requisitos legais ou sem o respeito aos efeitos que a própria recuperação judicial poderia produzir, poderá comprometer o próprio processo principal cuja utilidade procurava preservar e a própria negociação coletiva pretendida.
1. Introdução A Lei n. 11.101/2005 prevê a nomeação de administrador judicial - órgão criado para auxiliar o Juízo - sendo este essencial para o bom funcionamento da recuperação judicial e da falência. O presente artigo tem por finalidade analisar as atribuições do administrador judicial, em especial a obrigação de fiscalizar o cumprimento do plano, que sofreu relevante alteração com a edição da Lei n. 14.112/2020. 2. Alterações da lei 14.112/20 A lei14.112/2020 alterou a alínea c e acrescentou as alíneas e, f, g e h ao inciso II do art. 22, atribuindo ao administrador judicial, na recuperação judicial as funções de (c) apresentar ao juiz, para juntada aos autos, relatório mensal das atividades do devedor, fiscalizando a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor; (e) fiscalizar o decurso das tratativas e a regularidade das negociações entre devedor e credores; (f) assegurar que devedor e credores não adotem expedientes dilatórios, inúteis ou, em geral, prejudiciais ao regular andamento das negociações; (g)  assegurar que as negociações realizadas entre devedor e credores sejam regidas pelos termos convencionados entre interessados ou, na falta de acordo, pelas regras propostas pelo administrador judicial e homologadas pelo juiz, observado o princípio da boa-fé para a solução construtiva de consensos, que acarretem maior efetividade econômico-financeira e proveito social para os agentes econômicos envolvidos; e (h) apresentar, para juntada aos autos, e publicar no endereço eletrônico específico relatório mensal das atividades do devedor e relatório sobre o plano de recuperação judicial, no prazo de 15 (quinze) dias contado da apresentação do plano, fiscalizando a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor, além de informar eventual ocorrência das condutas previstas no art. 64. 2.1 Apresentação de relatórios. A lei determina ao administrador judicial a apresentação de relatórios que são essenciais à fiscalização das atividades do devedor, a saber: relatório mensal das atividades do devedor (art.22, II, c), relatório sobre a execução do plano (art. 22, II, e) e relatório sobre o plano (art.22, II, g). 2.1.1. Relatório mensal das atividades do devedor (art. 22, II, c). O relatório mensal é importante porque o devedor continua na administração da atividade empresária, devendo prestar informações sobre seu exercício. Esse fluxo de informações deve ser apresentado mensalmente para lastrear o relatório preparado pelo administrador judicial. Essa obrigação de exibir contas demonstrativas mensais imposta ao devedor é de tal ordem relevante que o legislador considera o seu descumprimento causa de destituição dos administradores da sociedade devedora (art. 52, IV e art. 64, V). Da mesma forma, caso o administrador judicial não elabore, no prazo estabelecido, qualquer dos relatórios, será intimado pessoalmente a fazê-lo no prazo de cinco dias, sob pena de desobediência. A apresentação do relatório mensal das atividades do devedor já estava prevista na redação original do art. 22, II, c, mas curiosamente a nova alínea h do mesmo art. menciona novamente um relatório mensal das atividades do devedor, e outro relatório sobre o plano de recuperação judicial. É evidente a inutilidade de apresentação de dois relatórios mensais, com o mesmo objetivo. Assim, a regra da alínea h é relevante apenas por introduzir um novo relatório sobre o plano, conforme se verá a seguir. O Relatório Mensal de Atividades, usualmente denominado RMA, deve contemplar informações sobre as atividades exercidas pelo devedor, baseados em elementos fornecidos pelo devedor, que contêm, dados referentes ao respectivo mês, e que deve ser analisado em conjunto com os relatórios anteriores. Deve ser informado qualquer fato "que seja relevante para o processo, em especial aqueles que possam causar prejuízo aos credores, de que são exemplo o desvio de bens, a confusão patrimonial ou qualquer tipo de crime ou fraude. Da mesma forma, qualquer situação de anormalidade no curso das atividades da recuperanda, nas suas demonstrações contábeis ou mesmo na execução do plano devem ser reportadas, sob pena de restar caracterizada negligência, nos termos do art. 32 da LREF".1 Na hipótese de companhia aberta, devem constar no relatório os fatos relevantes e comunicados ao mercado, na forma exigida pela Comissão de Valores Mobiliários. É comum o administrador judicial relacionar o atendimento feito a credores e resumir as suas manifestações mais relevantes nos autos da recuperação judicial, informando os principais recursos nos quais se manifestou. Compete ainda ao administrador judicial indicar no relatório as obrigações do plano que se venceram no respectivo mês. 2.1.1.1 Fiscalizar a veracidade das informações do devedor Em relação às novas atribuições do administrador judicial, o maior desafio certamente será a interpretação da expressão "fiscalizar a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor", que consta nas alíneas c e h do art. 22, II, com a redação dada pela lei 14.112/2020. Isso porque, parece evidente que o administrador judicial não tem a função de atestar a veracidade das informações prestadas pelo devedor, pois nem mesmo o auditor independente, responsável pela apresentação de laudo que demonstra a viabilidade econômico-financeira do plano (art. 53) tem essa obrigação. O objetivo deste laudo é avaliar a real capacidade econômico-financeira, sempre baseado nos trabalhos técnicos apresentados pelo devedor, os quais não são necessariamente objeto de análise independente por parte da empresa de auditoria. Além disso, com muita frequência, o auditor trabalha com dados por amostragem, o que torna impossível atestar a veracidade de todas as informações prestadas pelo devedor. Considerando que a responsabilidade do administrador judicial é subjetiva, Daniel Carnio Costa e Alexandre Correa Nasser de Melo lembram que "somente a intenção de omitir a irregularidade ou a desconformidade das informações prestadas pela devedora ou a negligência/imperícia na sua análise poderão gerar a responsabilização da administração judicial."2 2.1.2. Relatório sobre a execução do plano (art. 22.II, d). Cumpridas as obrigações vencidas no prazo de dois anos de supervisão judicial, previstas no art. 61, o juiz decretará o encerramento da recuperação judicial, determinando ao administrador judicial a apresentação de relatório circunstanciado, sobre a execução do plano de recuperação judicial. Trata-se do relatório final que deve conter "exclusivamente informações acerca do cumprimento do plano de recuperação judicial tais como (i) a forma com que as obrigações foram cumpridas; (ii) as obrigações que, eventualmente, tenham tido seu adimplemento antecipado; (iii) as obrigações que ainda restam ao devedor adimplir".3 Com a apresentação desse relatório, encerra-se a recuperação judicial e,  consequentemente, a atribuição fiscalizatória do administrador judicial. 2.1.3. Relatório sobre o plano (art.22, II, h). A Lei n. 14.112/2020 criou nova espécie de relatório, o qual deve ser apresentado no prazo de 15 dias, contado da apresentação do plano proposto pelo devedor. Percebe-se que o legislador antecipou a atividade fiscalizatória, que agora se inicia logo após a apresentação do plano, e não apenas após a concessão da recuperação judicial. Note-se que antes da concessão da recuperação judicial (art. 58) as obrigações previstas no plano são meras propostas submetidas aos credores e, portanto, não são exigíveis, não havendo razão para fiscalizar o seu cumprimento. Além disso, a utilidade desse novo relatório é questionável, pois é improvável que o administrador tenha condições de analisar o plano no prazo de 15 dias, principalmente em relação à veracidade e a conformidade das informações constantes do plano. Determina ainda o legislador que o administrador judicial verifique a eventual ocorrência das condutas previstas no art. 64, que cuidam de hipóteses que justificam o afastamento dos administradores do comando da sociedade em recuperação judicial. Esses fatos devem ser apurados com muito cuidado, e provavelmente o administrador judicial não terá tempo hábil de fazê-lo. Até a realização da assembleia-geral é frequente a apresentação de modificações do plano, caso em que o administrador judicial deverá também apresentar novo relatório. 2.1.4 Relatórios previstos na Recomendação n. 72 do CNJ. Com a finalidade de padronizar os relatórios a serem apresentados pelo administrador judicial, a Recomendação n. 72 de 19 de agosto de 2020 do Conselho Nacional de Justiça estabelece procedimentos destinados a registrar os fatos mais relevantes ocorridos em cada fase da recuperação judicial, como, por exemplo, o andamento processual, os incidentes processuais e, também, com a sugestão de modelos a serem utilizados nos relatórios previstos na Lei n. 11.101/2005. A Recomendação prevê a necessidade de o administrador judicial encaminhar "um comunicado aos representantes do devedor, informando de forma detalhada toda a documentação que irá solicitar, mês a mês, para a elaboração dos relatórios mensais de atividade."4 2.2. Fiscalizar as negociações entre devedor e credores. O art. 22, II, alíneas e e f impõem ao administrador judicial o dever de fiscalizar as tratativas e a regularidade das negociações entre as partes, bem como assegurar que devedor e credores não adotem medidas inúteis, prejudiciais ao bom andamento das negociações. O administrador judicial, como auxiliar do juiz, não pode intervir nas negociações, mas apenas "fiscalizá-las para assegurar que os devedores ou os credores não adotem expedientes que dificultem referida negociação, assim como assegurar que todas as informações imprescindíveis para a negociação e o conhecimento do negócio sejam efetivamente fornecidas, sob pena de destituição dos administradores ou do próprio devedor, com nomeação de um gestor judicial (arts. 64 e 65)".5 Ainda, a alínea g impõe ao administrador judicial o dever de assegurar que as negociações realizadas entre credores e devedor sejam regidas pelos termos convencionados entre os interessados ou, na falta de acordo, pelas regras propostas pelo administrador judicial. A dificuldade prática na aplicação dessa norma decorre do fato de que, conforme acima ressaltado, o administrador judicial não representa interesses do devedor nem dos credores, sendo apenas uma pessoa de confiança do juiz. Pelo fato de ser pessoa de absoluta confiança do juiz decorre o seu atributo mais importante, que é a imparcialidade.6 Como pode propor regras de negociação? O que tem ocorrido são hipóteses em que o administrador judicial sugere ao juiz que determine a instalação de procedimento de mediação, no qual o mediador submeterá ao juiz o procedimento a ser adotado na negociação. 2.3 Estimular a mediação e a conciliação. O Conselho Nacional de Justiça, através da Recomendação n. 58 de 22 de outubro de 2019 já sugeria aos juízes que determinassem a utilização da mediação e da conciliação nas principais fases da recuperação judicial. A mediação e a conciliação têm sido adotadas em recuperação judicial como instrumento de prevenção e solução extrajudicial de litígios sendo que, em muitos casos, com previsão expressa nos incidentes de verificação de crédito, no auxílio para a negociação do plano de recuperação e muito outros casos na recuperação judicial. A Recomendação veda a atuação do administrador judicial como mediador ou conciliador, cabendo ao juiz nomeá-los. É comum o plano de recuperação prever proposta de mediação e de conciliação, que podem ser implementadas antes da assembleia-geral de credores. Para dar efetividade a essas formas de solução extrajudicial de litígio, o juiz indica o mediador ou o conciliador, propondo regras para esses procedimentos. A Lei n. 14.112/2020 trouxe para o texto legal esse mesmo conceito da Resolução n. 58 do Conselho Nacional de Justiça, ao incluir a alínea j no inciso I do art. 22. O dever do administrador judicial de estimular a conciliação e a mediação é justificável "por ter conhecimento aprofundado dos aspectos fáticos e jurídico processuais do caso, pode identificar com maior facilidade os empecilhos à negociação entre as partes. Desde que sempre com supervisão do juiz, cabe ao administrador judicial incentivar consensos em relação a questões pontuais, para que o processo de falência ou recuperação atinja seus objetivos, com eficiência e celeridade. Para isso, o administrador judicial pode requerer ao juízo a realização de audiências de gestão democrática ou sessões de conciliação".7 3. O administrador judicial e o plano apresentado pelos credores. A Lei n. 14.112/2020 prevê a possibilidade de os credores apresentarem um plano alternativo em dois dispositivos: no art. 6º, § 4º-A e no art. 56, §§ 4º ao 8º.  Na primeira hipótese (art. 6º, § 4º-A) decorrido o prazo do stay period, sem que o plano de recuperação apresentado pelo devedor tenha sido deliberado em assembleia-geral, os credores teriam a faculdade de propor um plano alternativo. A outra previsão está no art. 56, § 4º, o qual dispõe que "rejeitado o plano de recuperação judicial, o administrador judicial submeterá, no ato, à votação da assembleia-geral de credores a concessão de prazo de 30 (trinta) dias para que seja apresentado plano de recuperação judicial pelos credores". Na prática, a possibilidade de apresentação de plano alternativo pelos credores representa um incentivo para o devedor buscar a melhor solução possível pois, caso contrário, ficará exposto ao risco de ser votado um meio de recuperação elaborado pelos credores. Em interpretação literal e mais apressada da alínea h do inciso II do art. 22 pode até parecer que a lei estaria se referindo, apenas, ao plano apresentado pelo devedor. Pondere-se, contudo, que na hipótese de o plano ter sido proposto pelos credores, é até mais relevante a atuação do poder fiscalizatório detido pelo administrador judicial, apresentando relatório com informações sobre a veracidade e a conformidade dos dados que embasaram a elaboração do plano. 4. Conclusão. Por tudo isso, diante das disposições da Lei n. 11.101/2005 e das alterações nela promovidas pela Lei n. 14.112/2020, demonstra-se essencial o papel que o administrador judicial de fiscalizar as atividades do devedor, em especial sobre o cumprimento do plano.8 __________ 1 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; e TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei nº 11.101/2005, 3ª ed - rev. atual e ampl. São Paulo: Almedina, 2018, p. 251. 2 COSTA, Daniel Carnio, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005/Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo - Curitiba: Juruá, 2021, Ob. Cit. p. 108 3 Idem p.109.  4 COSTA, Daniel Carnio, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005/Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo - Curitiba: Juruá, 2021, p.106. 5 Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência/Marcelo Barbosa Sacramone. -2ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p.. 168. 6 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; e TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei nº 11.101/2005, 3ª ed - rev. atual e ampl. São Paulo: Almedina, 2018, p. 244. 7 COSTA, Daniel Carnio, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005/Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo - Curitiba: Juruá, 2021, p. 106. 8 "A boa condução de uma recuperação judicial ou de uma falência decorre em grande medida da atuação do administrador judicial, figura chave nos dois procedimentos. Isso porque o administrador judicial tem papel preponderante no sucesso ou insucesso de uma falência ou recuperação judicial. Um juiz inexperiente na matéria concursal com o auxílio de um administrador judicial competente pode bem conduzir uma recuperação judicial ou uma falência. Mas o juiz mais experimentado nesta área tendo ao seu lado um administrador judicial despreparado, negligente ou mal-intencionado terá grandes dificuldades na condução do processo". SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; e TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei nº 11.101/2005, 3ª ed - rev. atual e ampl. São Paulo: Almedina, 2018, p. 243.
1. Introdução: O conceito de "caixa" e o que está abrangido na definição Para bem entender o fenômeno do saldo credor de caixa e suas repercussões jurídico-contábeis, é mister que antes estabeleçamos corretamente o conceito de caixa. A primeira noção do que se entende por caixa compreende um ativo com liquidez, apto para ser usado como meio de pagamento. Nesse conceito estaria enquadrado tudo o que determinada entidade possua a título de ativo, cuja composição esteja fisicamente em moeda (dinheiro, do inglês cash) ou congênere. Nessa concepção mais restrita, o caixa compreende parte do ativo de maior liquidez, constituído de meios físicos de pagamento. No entanto, a definição restrita de caixa não é mais satisfatória nos dias de hoje, em que os alguns meios eletrônicos (consistentes, dentre outros, em depósitos e investimentos em contas bancárias), também dispõe de grande liquidez e acabam por deter a maior parcela de participação nos processos de liquidação das transações financeiras. Mas se conceituaremos tais formas eletrônicas de pagamento como caixa, precisaremos delimitar quais delas têm liquidez suficiente para ser consideradas como tal e quais não possuem tais características. Afinal, alguns investimentos e aplicações bancárias sem possibilidade de resgate ou saque antes de longos prazos não possuem liquidez suficiente para serem conceituados como caixa. Para chegar a um denominador comum nessa definição, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) definiu dois conceitos: caixa e equivalentes de caixa, em seu pronunciamento técnico CPC 03, sobre Demonstração dos Fluxos de Caixa. Tais definições serão esquematizadas a seguir: Complementando a definição de equivalentes de caixa, o pronunciamento CPC 03 delimita o período de tempo que uma aplicação financeira possa ser considerada no conceito de equivalente de caixa, nos seguintes termos: Os equivalentes de caixa são mantidos com a finalidade de atender a compromissos de caixa de curto prazo e, não, para investimento ou outros propósitos. Para que um investimento seja qualificado como equivalente de caixa, ele precisa ter conversibilidade imediata em montante conhecido de caixa e estar sujeito a um insignificante risco de mudança de valor. Portanto, um investimento normalmente qualifica-se como equivalente de caixa somente quando tem vencimento de curto prazo, por exemplo, três meses ou menos, a contar da data da aquisição. Os investimentos em instrumentos patrimoniais (de patrimônio líquido) não estão contemplados no conceito de equivalentes de caixa, a menos que eles sejam substancialmente, equivalentes de caixa, como, por exemplo, no caso de ações preferenciais resgatáveis que tenham prazo definido de resgate e cujo prazo atenda à definição de curto prazo. Seguindo as definições aludidas, podemos definir caixa (e equivalentes de caixa) de modo simplificado como todo ativo composto por numerário em espécie e depósitos bancários disponíveis e por aplicações financeiras de alta liquidez e conversibilidade imediata em dinheiro ou em outros meios de pagamento, até três meses ou menos da data de aquisição ou da data em que se encerram, no exercício respectivo, as demonstrações contábeis. Dada a similitude de tratamento entre caixa e equivalentes de caixa, é comum encontrar nos balanços contábeis os valores de ativo que constituem numerário em espécie, depósitos bancários disponíveis imediatamente ou aplicações financeiras de liquidez até três meses unificadas sob única rubrica com o título "caixa e equivalentes" ou "disponível". Conceituado o que está abrangido como caixa e seus respectivos equivalentes, cabe analisar no tópico seguinte o funcionamento dessa conta e o fenômeno do saldo credor de caixa. 2. O que é saldo credor de Caixa? Como se configura? A noção contábil-financeira de saldo credor de caixa não é muito intuitiva para o jurista. Com efeito, ao ler esse conceito, a primeira impressão que se tem é que ele estaria a significar que o caixa possui recursos ou meios líquidos de pagamento, uma vez que estaria "credor" de algo ou de alguém. Ao jurista, de fato, o termo "credor" significa usualmente uma posição jurídica ativa em uma relação obrigacional, concernente àquele que tenha o direito de exigir uma prestação de outrem. Do mesmo modo, "crédito", no direito obrigacional, nada mais é que a prerrogativa titularizada pelo credor em receber uma prestação consistente em dar, fazer ou não fazer. Na estrutura contábil, porém, crédito e débito têm feições particulares, que não refletem exatamente o significado da ciência jurídica. Para explicarmos exatamente o que significa saldo credor de caixa, precisaremos fazer breve conceituação dos lançamentos contábeis em partidas dobradas, ou seja, aquelas que envolvem débito e crédito de igual valor. Vamos tomar como exemplo as contas patrimoniais constantes do balanço. No balanço patrimonial, representam-se as contas que compõem o patrimônio da entidade, separadas usualmente em ativo (= bens e direitos), passivo (= obrigações e dívidas) e patrimônio líquido (diferença entre ativo e passivo). Transcrevendo graficamente os grupos e exemplos de contas que compõem o balanço, teríamos: Da figura anterior, podemos tirar algumas lições importantes: O sentido das setas constantes da figura demonstra que o passivo e o patrimônio líquido são origens ou fontes de recursos, as quais estão aplicadas no ativo. Imaginemos dois exemplos práticos para elucidar essa questão: Se os sócios decidem aportar novas quantias em dinheiro no capital social, tal operação implicará aumento do patrimônio líquido (origem do aporte), cujos recursos serão aplicados no ativo (caixa); Se a sociedade decide contrair um empréstimo bancário, os recursos terão origem em uma dívida ou obrigação (passivo), e ingressarão também no ativo (caixa); Constituindo o passivo e o patrimônio líquido ambos fontes ou origens de recursos, podemos separá-los conforme sejam origens provenientes de recursos de terceiros (passivos) ou de recursos próprios (patrimônio líquido). Não por outra razão costuma-se chamar em finanças o passivo de "capital de terceiros" e o patrimônio líquido de capital próprio". Tais fontes de recursos também costumam ser diferenciadas quanto à exigibilidade: enquanto o passivo costuma ser uma fonte com prazo para a devolução dos recursos o patrimônio líquido, usualmente, só é passível de devolução em face de eventos dissolutórios da entidade. Na esteira das lições aludidas, podemos concluir que, se aumentam as origens de recursos próprios ou de terceiros (p.ex.: por meio de um aporte de capital ou pela contração de um empréstimo), aumenta o crédito dos titulares desses recursos (sócios terão direito, em princípio, à devolução de uma quantia de capital em um evento dissolutório; credores terão direito a restituição de quantias referentes ao empréstimo). Por outro lado, se a entidade tiver de devolver capital aos sócios ou pagar o empréstimo, terá de fazê-lo com recursos que aplicou no ativo. Desse modo, o aumento de ativo, originado no aumento de passivo ou de patrimônio líquido, representa igualmente um aumento de débito da entidade, já que terá de utilizar o ativo para restituir os recursos para os titulares dos recursos originais. Daí surge o entendimento contábil convencionado, segundo o qual, como regra geral: As contas de passivo e de patrimônio líquido são contas credoras (ou com saldo credor), por representarem o direito daqueles que titularizam os recursos conferidos à entidade; Por sua vez, as contas de ativo, que receberam recursos oriundos de passivo ou de patrimônio líquido, e cujos valores deverão ser eventualmente empregados na restituição aos respectivos titulares, são contas devedoras ou cujo aumento ocorre segundo um lançamento contábil a débito.   A conta caixa (e equivalentes de caixa), como vimos, é uma conta de ativo. Representa, portanto, bens e direitos consistentes em meios líquidos e imediatos de pagamento, cujas origens estão no passivo (recursos de terceiros) ou no patrimônio líquido (recursos próprios). Sendo uma conta de ativo, contabilmente, o caixa é uma conta devedora ou cujo saldo deve permanecer devedor. Esse fato, ao contrário do que possa parecer, obedece a uma convenção contábil e indica justamente que há recursos no caixa, que serão destinados futuramente ao pagamento de passivos ou à devolução de recursos aos titulares do patrimônio líquido. Graficamente, representando alguns eventos econômicos na conta caixa por meio de um razonete, teríamos: Ressalte-se novamente: a existência de um saldo devedor em conta de ativo como o caixa, regra geral, representa justamente o que é esperado e significa, no exemplo supracitado, que a entidade tem R$ 185 mil em dinheiro ou outros meios líquidos de pagamento (caixa e equivalentes). O contrário (saldo credor) é que, regra geral, não é esperado em uma conta de ativo como o caixa. Vejamos novamente o exemplo anterior, agora com outros valores, para verificarmos o que seria um saldo credor de caixa. Ao verificarmos esse último exemplo, veremos que a entidade pagou mais (R$ 650 mil) do que tinha ou do que recebeu em caixa (R$ 250 mil) no período, restando um saldo credor de R$ 400 mil. A pergunta é: como isso pôde ocorrer? Como houve desembolsos que superaram o valor que se tinha em caixa? Esse é exatamente o ponto onde começa a investigação do saldo credor de caixa, objeto deste artigo. Para uma melhor explicação, abriremos um tópico específico a seguir. 3. Por que um "saldo credor" no caixa (e equivalentes) é algo potencialmente irregular ou passível de fraude? Retomando o último exemplo, vemos que se houve desembolsos de caixa, é necessário antes que esses recursos tenham existido ou tenham tido alguma origem, seja no passivo ou no patrimônio líquido. Em outras palavras: se houve mais saídas (pagamentos) do que entradas de caixa (recebimentos e outros saldos anteriores), necessariamente deve ter havido alguma fonte de recursos que possa ter gerado meios de pagamento. Essas fontes de recursos podem ser variadas. Como exemplo, podemos citar um aporte de capital, a contração de um empréstimo, a emissão de títulos no mercado financeiro (debêntures, commercial papers, etc.). No entanto, não é incomum que, na prática, a fonte de recursos que gerou o saldo credor de caixa seja justamente a omissão de receitas tributáveis, quando decorre de processo de sonegação fiscal. Nessa hipótese, ocorre uma omissão intencional e mediante fraude na escrita do contribuinte, buscando a evitar o pagamento de tributos. Imaginemos o exemplo teórico anterior e vislumbremos justamente o seguinte: procurando não recolher os tributos devidos (IRPJ, ICMS, etc.), a entidade não contabilizou como receitas que deveriam entrar no caixa o montante de R$ 400 mil, o que deixou esta conta com saldo credor em igual valor. Desse modo, havendo saldo credor de caixa, podemos concluir inicialmente que seria necessária outra fonte de recursos para que as saídas de caixa (maiores que as entradas) pudessem ser efetuadas. E qual a origem? Pode ser variada, como dissemos, mas dentre elas fatalmente estará a omissão de receitas tributáveis. Não é por outra razão que o fisco federal e estadual, em processos administrativos tributários referentes a fiscalização de impostos que incidem sobre a receita ou sobre o lucro (IRPJ, IPI, ICMS, etc.) trata o saldo credor de caixa como uma presunção (relativa) de omissão de receitas. Em outras palavras: encontrado saldo credor de caixa, o contribuinte deverá provar ao fisco qual foi a origem dos recursos que permitiram pagamentos superiores às entradas de caixa. Na omissão do contribuinte, prevalece a autuação considerando tratar-se de receita omitida, efetuando-se, por consequência, a tributação cabível. Vejamos algumas decisões administrativas nesse sentido: MINISTÉRIO DA FAZENDA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DELEGACIA DA RECEITA FEDERAL DE JULGAMENTO EM FORTALEZA 4 º TURMA ACÓRDÃO 08-23274 de 17 de Abril de 2012 EMENTA: OMISSÃO DE RECEITA. SALDO CREDOR DE CAIXA. PRESUNÇÃO. A presunção de omissão de receita decorrente da apuração na escrituração de saldo credor de caixa decorre de previsão contida na legislação tributária, cabendo ao sujeito passivo a prova da improcedência da presunção. Ano-calendário: 01/01/2003 a 31/12/2003. Tribunal de Impostos e Taxas - SP NATUREZA DO RECURSO LOCALIDADE AIIM Nº / SÉRIE RECURSO ORDINÁRIO MONTE ALTO 41457/"Q" ASSUNTO ICMS - FALTA DE RECOLHIMENTO, APURADA VIA LEVANTAMENTO FISCAL - SALDO CREDOR NA CONTA CAIXA. No Judiciário, da mesma forma, inúmeras decisões existem a respeito de saldo credor de caixa, no campo tributário, considerando-o como presunção de receitas tributáveis omitidas na escrituração do contribuinte. Nesse sentido: Processo REsp 1045495 / SC RECURSO ESPECIAL 2008/0067236-0 Relator(a) Ministro CASTRO MEIRA (1125) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 12/8/08 Data da Publicação/Fonte DJe 4/9/08 Ementa TRIBUTÁRIO. IRPJ. OMISSÃO DE RECEITAS. LUCRO PRESUMIDO. ENCARGO LEGAL. 1. Não se faz necessário o detalhamento das receitas na CDA, pois não constitui requisito legal. A especificação ocorre nos autos de infração. 2. Os valores apurados referentes às compras não registradas e ao saldo credor de caixa representam receitas omitidas, não se aplicando o disposto no art. 44, § 2º, da lei 8.541/92. 3. Segundo o art. 40 da lei 9.430/96, "a falta de escrituração de pagamentos efetuados pela pessoa jurídica, assim como a manutenção, no passivo, de obrigações cuja exigibilidade não seja comprovada, caracterizam, também, omissão de receita". A constatação de saldo credor registrado em livro caixa da autuada revela a existência de receitas à margem da escrituração, o que corrobora o entendimento de que as compras não escrituradas foram pagas com o produto de receitas omitidas. 4. Recolham as empresas imposto sobre a renda pelo lucro real ou pelo lucro presumido, a omissão de receitas implica pagamento a menor, o que é devidamente tratado pela legislação. 5. Omissão de receita não se confunde com dedução indevida para efeito de aplicação do art. 44, § 2º, da lei 8.541/92, que estabelece uma presunção de transferência automática para os sócios de receitas omitidas na escrituração fiscal da pessoa jurídica. 6. Recurso especial não provido. Processo REsp 901311 / RJ RECURSO ESPECIAL 2006/0215688-9 Relator(a) Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124) Relator(a) p/ Acórdão Ministro LUIZ FUX (1122) Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 18/12/07 Data da Publicação/Fonte DJe 6/3/08 Ementa PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ESCRITURAÇÃO IRREGULAR. SALDO CREDOR EM CAIXA. PRESUNÇÃO DE OMISSÃO DE RECEITA. FACULDADE DO CONTRIBUINTE PRODUZIR PROVA CONTRÁRIA. PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL. SUCUMBÊNCIA. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. 1. A presunção juris tantum de omissão de receita pode ser infirmada em Juízo por força de norma específica, mercê do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5.º, XXXV, da CF/88) coadjuvado pela máxima utile per inutile nom vitiatur. 2. O princípio da verdade real se sobrepõe à presuntio legis, nos termos do § 2º, do art. 12 do DL 1.598/77 (art. 281 RIR/99 - decreto 3.000/99), ao estabelecer ao contribuinte a faculdade de demonstrar, inclusive em processo judicial, a improcedência da presunção de omissão de receita, considerada no auto de infração lavrado em face da irregularidade dos registros contábeis, indicando a existência de saldo credor em caixa. Aplicação do princípio da verdade material. 3. Outrossim, ainda neste segmento, concluiu a perícia judicial pela inexistência de prejuízo ao Fisco. 4. Deveras, procedido o lançamento com base nos autos de infração, infirmados por perícia judicial conclusiva, constituiu-se o crédito tributário principal, mercê de o mesmo ter sido oferecido à tributação, por isso que inequívoco que o resultado judicial gerará bis in idem quanto à exação in foco. 5. Lavrados os autos de infração por erro formal de escrita reconhecido pelos recorrentes, não obstante materialmente exatos os valores oferecidos à tributação, impõe-se reconhecer que a parte que ora se irresigna foi a responsável pela demanda. 6. Regulada a sucumbência pelo princípio da causalidade, ressoa inacolhível imputá-la ao Fisco, independente de prover-se o recurso para que não haja retorno dos autos à instância a quo, porquanto o aresto recorrido reconheceu a higidez conclusiva da prova mas desprezou-a. 7. A responsabilidade pela demanda implica imputar-se a sucumbência ao recorrente, não obstante acolhida a sua postulação quanto ao crédito tributário em si. (Precedente: REsp 284926/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05.04.2001, DJ 25.06.2001 p. 173) 8. Recurso Especial provido, imputando-se a sucumbência ao recorrente. Mas se no campo tributário a questão do saldo credor de caixa se resolve por uma presunção fiscal relativa, contra a qual deve o contribuinte demonstrar que outra fonte (não tributável) que não uma omissão de receitas ocorreu, como enquadrar a questão sob a ótica penal? É o que veremos no próximo tópico. 4. O enquadramento penal do saldo credor de caixa É sempre bom lembrar que a ocorrência de saldo credor de caixa não indica uma fraude, crime falimentar ou sonegação fiscal por si só: cuida-se somente de um indício. O contribuinte ou a entidade podem simplesmente ter omitido um lançamento de sua escrita por culpa ou por erro, o que não indica intenção ou dolo de fraudar ou sonegar. No campo tributário, como vimos, a questão resolve-se por uma presunção: ocorrido o saldo credor de caixa, até prova contrária a cargo do contribuinte, presume-se omitida receita tributável. Na seara penal, entretanto, não se pode acusar ou condenar por presunção. A acusação deve provar cabalmente os fatos subsumíveis ao tipo penal respectivo. Vejamos, portanto, nos subtópicos seguintes, como a existência de saldo credor de caixa pode configurar crime tributário ou até mesmo crime falimentar. 4.1. Saldo credor de caixa como crime contra a ordem tributária Sob a perspectiva da legislação penal tributária, a lei 8.137/90 preceitua em seu art. 1º, II, o seguinte: Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal. Nessa toada, o saldo credor de caixa poderá caracterizar (embora não necessariamente em todos os casos) crime contra a ordem tributária, se derivar de omissão de receita tributável, não lançada na escrituração do contribuinte. Para que se tenha o crime caracterizado é necessário que a acusação prove cabalmente, dentre outros fatores, que o saldo credor de caixa derivou de omissão intencional (dolosa) do contribuinte em sua escrituração contábil, não lançando receitas ou outros fatos geradores de tributo, com o fim de suprimir ou reduzir a respectiva exação. Se o saldo credor de caixa, por outro lado, derivar da omissão de lançamentos contábeis decorrentes de operação sobre a qual não fosse exigível tributo (p.ex.: omissão de lançamento de aporte regular de capital ou de entrada de caixa derivada de empréstimo), não existirá crime. É bom que se reprise: no campo penal, não bastará a presunção fiscal tributária de omissão de receitas. É a acusação quem precisa evidenciar que o saldo credor decorreu de um processo econômico-contábil visando à sonegação de tributos. Na jurisprudência criminal, deve-se notar, já houve decisão reconhecendo, dentre outros fatores, o saldo credor de caixa como crime contra a ordem tributária. Processo ACR 00000254420034036125 ACR - APELAÇÃO CRIMINAL - 43746 Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI Sigla do órgão TRF3 Órgão julgador PRIMEIRA TURMA Fonte e-DJF3 Judicial DATA: 5/8/13. Decisão Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, rejeitar as preliminares arguidas e dar parcial provimento ao recurso tão somente para reduzir a pena aplicada para 04 (quatro) anos de reclusão, em regime inicial aberto, e pagamento de 19 (dezenove) dias-multa, mantido o valor unitário fixado na sentença recorrida, substituindo-se a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos consistentes na prestação de serviços à comunidade ou à entidades públicas, pelo prazo da sanção corporal substituída, a ser cumprida na forma estabelecida pelo artigo 46 do Código Penal e demais condições do Juízo das Execuções Penais, bem como na prestação pecuniária consistente no pagamento mensal de 01 (um) salário mínimo durante o período de 01 (um) ano, à entidade pública ou privada com destinação social cadastrada no Juízo das Execuções Penais, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Ementa PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL. ART. 1º, INCISO I, DA LEI 8.137/90. PRELIMINARES REJEITADAS. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. DOSIMETRIA. SÚMULA 444 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO DA DEFESA A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. 1. Imputa-se ao apelante o cometimento do crime descrito no art. 1º, inciso I, da lei 8.137/90, em continuidade delitiva. 2. Exaurida a via administrativa, resta atendida a condição de procedibilidade da ação penal nos crimes contra a ordem tributária (Súmula Vinculante 24). 3. O réu foi devidamente assistido por defensor em todos os atos processuais. A defesa prévia, como sói acontecer na maioria das vezes, é peça processual concisa. Além disso, embora sinteticamente, as alegações finais abordaram todas as teses defensivas, postulando a absolvição. O fato de não ser uma defesa prolixa não significa que não tenha poder de convencimento, caindo por terra assertiva de nulidade absoluta dos atos praticados em razão da atuação deficitária do defensor dativo. 4. Inocorrência do advento prescricional. 5. Materialidade e autoria delitiva comprovadas pelo conjunto probatório. 6. O tipo penal descrito no art. 1º da lei 8.137/90 exige apenas o dolo genérico. Não é essencial o dolo específico ou especial fim de agir. O crime de sonegação fiscal consiste em reduzir ou suprimir tributo por meio de uma das condutas arroladas, e não em adotar uma daquelas condutas com o fim de suprimir ou reduzir tributo. 7. Amplamente demonstrada a vontade livre e consciente do réu de reduzir tributo, na forma narrada na peça acusatória. O escopo fraudulento, a intenção de fraudar o fisco foi comprovada, uma vez que, o acusado, responsável pela administração da empresa omitiu, de forma injustificada, rendimentos e outras informações nos documentos fiscais, ensejando a redução de pagamento de tributos, não havendo falar em atipicidade fática por ausência de dolo. 8. O questionamento do lançamento arbitrado por auditor fiscal carece de acolhida, havendo presunção de veracidade em seus atos. Ausente impugnação ao procedimento administrativo que culminou no lançamento tributário, acomodando-se o réu ao resultado atingido. 9. A conduta de efetuar pagamentos sem causa se subsume à figura típica do art. 1º, inciso I, da lei 8.137/90, na medida em que contribuiu, e muito, para a diminuição injustificada da receita da empresa, fato que gera a incidência de tributos. 10. Não tem o condão de desconstituir a materialidade delitiva alegação genérica de que a receita declarada teria sido resultado de empréstimo realizado junto à empresa de câmbio, uma vez a defesa não se desincumbiu do ônus de provar o quanto alegado, nos termos do art. 156, primeira parte, do Código de Processo Penal. 11. Os elementos de cognição coligidos no transcorrer da instrução criminal atestam, de forma cristalina, a omissão de rendimentos e outras informações relevantes nos documentos fiscais da empresa, conduta que subsume à figura típica do art. 1º, inciso I, da lei 8.137/90. 12. O fato imputado não é atípico, porquanto a conduta de efetuar pagamentos sem causa resultou na diminuição injustificada da receita da empresa. Tampouco há bis in idem, uma vez comprovada a redução de tributos mediante omissão de receitas caracterizada pela ocorrência de saldo credor de caixa, conforme consignado no relatório fiscal. 13. Não se admite agravar a pena com alusão ao desajuste na personalidade do acusado se tal avaliação se funda no registro de inquéritos policiais e ações penais, não havendo notícia acerca do trânsito em julgado, como é o caso dos autos, visto que tal juízo choca-se com o princípio da presunção de inocência. Súmula 444 do STJ: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base". 14. Reduzida a pena-base para 02 (dois) anos de reclusão. Mantida a majoração da pena-base de 1/3 em decorrência da causa de aumento estabelecida no art. 12 da lei 8.137/90 e o acréscimo em ½ (metade) por conta da continuidade delitiva, resulta na pena definitiva de 04 (quatro) anos de reclusão. 15. A sonegação de vultosa quantia (R$ 2.547.874,64) não está ínsita ao tipo penal, vale dizer, não consubstancia elementar da figura típica e justifica a incidência da majorante específica em comento, na terceira fase do sistema trifásico, disso não resultando bis in idem ou ofensa à taxatividade. 16. Inaplicável a atenuante da confissão espontânea, já que o acusado em nenhum momento da instrução criminal admitiu ter sonegado impostos mas, ao revés, quando instado, refutou as conclusões da autoridade fazendária. 17. A pretendida redução da pena pelo fato de a conduta de efetuar pagamentos sem causa restar absorvida pela conduta de omitir rendimentos não guarda amparo normativo, eis que o crime se configura com a prática de uma única ação, dentre aquelas disciplinadas no preceito primário do tipo penal. 18. A pena de multa não seguiu o critério da proporcionalidade com a pena privativa de liberdade, de forma que a reduzo para 19 (dezenove) dias multa, mantido o valor unitário fixado pelo Juízo "a quo". 19. O regime inicial da pena privativa de liberdade será o aberto, nos moldes do art. 33, §2º, alínea "c", do Código Penal, cujo cumprimento se dará na forma e condições estabelecidas pelo Juízo das Execuções Penais. 20. Nos termos do art. 44, §2º, do Código Penal resta substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos consistentes na prestação de serviços à comunidade ou à entidades públicas, pelo prazo da sanção corporal substituída, a ser cumprida na forma estabelecida pelo art. 46 daquele Código e demais condições do Juízo das Execuções Penais, bem como na prestação pecuniária consistente no pagamento mensal de 01 (um) salário mínimo durante o período de 01 (um) ano, à entidade pública ou privada com destinação social cadastrada no Juízo das Execuções Penais. 21. Preliminares rejeitadas. Recurso parcialmente provido tão somente para reduzir a pena aplicada para 04 (quatro) anos de reclusão, em regime inicial aberto, e pagamento de 19 (dezenove) dias-multa, mantido o valor unitário fixado na sentença recorrida, substituindo-se a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos consistentes na prestação de serviços à comunidade ou à entidades públicas, pelo prazo da sanção corporal substituída, a ser cumprida na forma estabelecida pelo artigo 46 do Código Penal e demais condições do Juízo das Execuções Penais, bem como na prestação pecuniária consistente no pagamento mensal de 01 (um) salário mínimo durante o período de 01 (um) ano, à entidade pública ou privada com destinação social cadastrada no Juízo das Execuções Penais. Recomendável, portanto, que nas investigações criminais em que se discuta a ocorrência de sonegação fiscal derivada de saldo credor de caixa, sejam evidenciadas provas seguras (p.ex.: documentos, perícias contábeis, etc.) de que a acusação não se baseia unicamente na presunção fiscal derivada do processo administrativo-tributário, sob pena da imputação criminal estar fadada ao insucesso. 4.2 Saldo credor de caixa como crime falimentar Na esfera criminal falimentar (ou recuperacional), a tutela penal não busca a incolumidade da arrecadação estatal, mas a proteção coletiva da comunidade de credores, além da própria higidez do processo falimentar ou de recuperação. Assim, em havendo as condições de procedibilidade necessárias ao crime falimentar ou recuperacional (art. 180 da lei 11.101/05), a omissão dolosa de lançamento em conta de caixa, com prejuízo potencial aos credores, poderá configurar o crime falimentar do art. 168, I e II, da lei 11.101/05, cuja redação é a seguir transcrita: Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem. Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Aumento da pena § 1º A pena aumenta-se de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se o agente: I - elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos; II - omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros; A mera omissão de lançamentos de caixa usualmente já poderá causar prejuízos potenciais aos credores, mesmo que não seja derivada de omissão de receitas. Deverá ainda ser provado que o saldo credor de caixa buscou assegurar vantagem para o devedor ou para outrem. Imagine-se, por exemplo, um credor em recuperação judicial que não escritura um empréstimo obtido de um credor quirografário, disso decorrendo saldo credor de caixa, tendo a omissão o fim de não sujeitar o credor aos efeitos da recuperação. Se o devedor em recuperação ou falido, por seu turno, não escriturar valores em caixa e ainda movimentar tais recursos fora da contabilidade oficial exigida pela legislação, poderá incidir em contabilidade paralela, conforme definida no art. 168, §2º, da lei 11.101/05, verbis: Contabilidade paralela § 2º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até metade se o devedor manteve ou movimentou recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela legislação. 5. Conclusões O saldo credor de caixa constitui-se em decorrência de lançamentos contábeis em que as entradas (débitos) são inferiores o valor das saídas (créditos) na conta de caixa ou equivalentes.  A causa do saldo credor de caixa pode ser variada: desde erros ou omissões simplesmente culposas na contabilidade, até processos sofisticados de omissão de receitas com o fim de efetivar sonegação de tributos. Sob a perspectiva tributária, o saldo credor de caixa usualmente é tratado como presunção relativa de omissão de receitas, cabendo ao contribuinte a prova de que tal omissão não ocorreu. Já sob a perspectiva penal tributária, o saldo credor de caixa pode configurar crime contra a ordem tributária, se provado que a omissão de escrituração teve por fundamento elementos que possam constituir fato gerador de tributo. Também poderá caracterizar crime falimentar, evidenciando-se prejuízo potencial aos credores e o fim de assegurar vantagem para o devedor ou para outrem, agravado o crime se houver movimentação ou manutenção de recursos fora da contabilidade.
Após trinta anos de plena vigência, o Código de Defesa do Consumidor recebeu importante atualização em julho de 2021. Com a aprovação da lei 14.181, foram acrescentados dois importantes princípios à Política Nacional das  Relações de Consumo: o fomento de ações direcionadas à educação financeira  e ambiental  dos consumidores, e a prevenção e tratamento do superendividamento, como forma de evitar a exclusão social. Eles foram seguidos de dois eficazes instrumentos para a execução de tal política, que são a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial  do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural, bem como de núcleos de conciliação e mediação  de conflitos oriundos  do superendividamento. Além disto, novos direitos básicos foram previstos: a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e prevenção e tratamento de situações de superendividamento; a preservação do mínimo existencial, e a adequada informação acerca de preços de produtos por unidade de medida. No Capítulo que trata sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, após definir os conceitos necessários à compreensão desta complexa situação socioeconômica em que determinados consumidores estão inseridos, quando não têm condições de arcar com o pagamento de dívidas vencidas e vincendas sem prejuízo da própria subsistência, o legislador passou a estabelecer regras para a concessão de crédito responsável, fazendo-o desde o momento da oferta, até a fase pós contratual. Trata-se de uma nova maneira de pensar e regulamentar este importante instrumento do mercado, o crédito, privilegiando a boa-fé como princípio, e o dever de atender mutuamente às expectativas geradas de parte a parte, que devem conduzir ao fiel cumprimento do contrato como meta. Se, por um lado, deu-se um importante passo em direção à melhora do sistema de crédito, buscando reinserir no mercado de consumo parcela importante de pessoas que dele se encontram afastadas, por outro, lançou luzes sobre as dificuldades que teremos para implementar tais transformações. No âmbito do direito empresarial, a insolvência teve nova regulamentação a partir de 2005 e, de lá para cá, seus operadores vêm se dedicando a encontrar soluções para melhor lidar com a crise econômica da empresa buscando, sempre que possível, preservar a sua atividade e, como tal, restabelecer a saúde do mercado no qual se encontra inserida, tudo com o escopo de manutenção dos benefícios sociais que emerge da empresa, quais sejam, criação de empregos, arrecadação de tributos, criação e manutenção de relações comerciais e civis, inserção de bens e serviços para o meio social. Sabemos que a economia do país depende do bom funcionamento das instituições, e que a empresa certamente é um de seus pilares de sustentação. Sendo assim, parece fácil compreender que a ruína de uma ou de várias delas pode impactar negativamente na vida de milhares de pessoas - não apenas dos sócios, mas de todos os stakeholders. Se nos valermos da figura de uma engrenagem, podemos visualizar o que acontece quando uma peça se desalinha ou deixa de funcionar a contento: pouco a pouco as demais vão se deteriorando até que, em algum momento, ela desmonta ou simplesmente para. Assim é a empresa: de nada adianta que a produção seja punjante, se não há mercado para o consumo dos seus produtos e serviços. Não basta simplesmente que a sociedade empresária ande bem, mas é imprescindível que todo o ambiente que a circunda siga em condições equivalentes. De todos os seus stakeholders, chama a atenção neste momento, a posição dos consumidores: de acordo com a FECOMERCIOSP, responsável pela PEIC (Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor), mais de um milhão de famílias está em situação de inadimplência, apenas na capital do Estado mais rico da  Federação, sendo este o maior número dos últimos doze anos. Do total das famílias, 9% informou não ter condições de honrar seus compromissos atrasados. Os números são expressivos e importantes: significam que parcela muito significativa da população vem vivendo à margem da economia de mercado, porque não tem recursos, seja para pagar suas dívidas, o que traz inúmeros problemas pessoais e sociais - seja para continuar a consumir - atingindo diretamente a saúde financeira do mercado e o ambiente de negócios, além de contribuir para a elevação do  risco Brasil em níveis igualmente espantosos. A lei 14.181/21 percorreu um longo e árduo caminho até a sua aprovação, em julho de 2021: teve início a partir da nomeção de uma comissão de juristas, que redigiu o projeto de lei 3515/15, o qual foi submetido a amplo debate perante a comunidade jurídica, a quem se somaram todos os representantes daqueles que de alguma maneira poderia por ele ser afetados: Febraban, Banco Central, representantes da sociedade civil, das empresas, dos consumidores, Poder Judiciário, Ministério Público, Senacon, entre outros: foram todos ouvidos até que chegasse a um texto básico e de consenso. A aprovação em plena pandemia é o primeiro passo para que passemos a pensar no que fazer com esta massa de consumidores submersa em dívidas (muitas absoltamente impagáveis). Busca-se, com ela, uma mudança de cultura, deixando de lado a ideia de que o inadimplemento das pessoas natuais não é um problema isolado, mas sim uma questão a ser tratada por toda a comunidade, diante de sua repercussão direta e imediata na economia local e do país. Os paradigmas a partir dela são outros: prestigia-se ainda mais a boa fé, a função social do contrato e a iniciativa do devedor que, sponte propria, busca o auxílio do Poder Judiciário (ou dos órgãos do sistema de defesa do consumidor) para renegociar e , de alguma maneira, pagar suas dívidas e poder voltar ao mercado de consumo. Antes desta lei, restava à pessoa natural a incômoda e ineficiente via da insolvência civil: incômoda pela extrema exposição que se lhe impunha; ineficiente, porque incapaz de trazer de volta  tanto a sua reinserção no mercado, quanto o dinheiro do credor. Começamos a engatinhar neste tema. Alguns mecanismos de atuação foram apresentados, seguindo inspiração da legislação francesa, que prestigia o pagamento, sem perdão de dívidas (a não ser que haja consenso entre os contratantes, a lei não cuida de remissão, diferentemente do sistema norte americano que prevê, a partir do cumprimento determinados requisitos, o perdão e o fresh start). Como os franceses, especialmente na forma inicial de sua lei (hoje se aproximam mais dos americanos) tratamos de trazer à negociação conjunta todos os credores para chegar a uma forma de pagamento que, de alguma maneira, possa satisfazê-los. Os envolvidos são livres para negociar como melhor lhes aprouver e, se chegarem a um consenso, o plano de pagamento é homologado e passar a valer como título executivo judicial. Se não houver acordo (que haverá de estabelecer condições de pagamento passíveis e possíveis de cumprimento, resguardando o mínimo existencial), ou se ele não for total, o consumidor pode ajuizar ação em que pedirá ao juíz que, com auxílio de um administrador, elabore tal plano. É verdade que hoje, mais de um ano após o início da vigência da lei, pouco se tem dela na prática. Parece consenso que a  competência para conhecer e julgar destas causas é do juízo cível. Segue-se, assim, a orientação de aproximar o direito do consumidor do direito civil, mas apenas o tempo dirá se esta é a melhor forma de tratar a questão. Não se perca de vista, contudo, que o novo formato proposto pela lei modifica substancialmente tanto a maneira de tratar o processo, quanto de organizar e conduzir as audiências (que terão de um lado o consumidor e, de outro, a coletividade de seus credores). Uma vez instaurado (por iniciativa exclusiva do condumidor) o processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos, tal como estabelece a lei, toma uma formato ímpar que, salvo melhor juízo, para que possa atingir seus objetivos, deve reunir todas as ações em curso que envolvam aquela pessoa, assim podendo chegar a uma reorganização da vida financeira e a possibilidades efetivas de pagamento e reinserção social. A temática assume importância na medida de propiciar ao consumidor endividado, pelas mais variadas razões (a causa do superendividamento não é condicionante para a concessão do benefício, podendo assumir algum relevo por ocasião da construção do plano de pagamento e das negiciações em trono dele), uma forma de se reinserir no mercado de consumo como um agente econômico que irá se satisfazer de produtos e serviços necessários à sua sobrevivência (alimentação, vestuário, lazer, etc.), além de buscar uma recuperação de crédito de maneira mais eficiente, ainda que não seja possível o pagamento integral do débito tal como pactuado. Mas, além da relação inter partes, há o efeito de se preservar a manutenção de agentes econômicos que servem o mercado empresarial de maneira direta ou indireta, pois a empresa é voltada à produção e circulação de bens e serviços, razão pela qual necessita de um mercado de consumo lato sensu, para que haja escoamento das riquezas por ele produzidas. Nossa ordem econômica é fundada na livre iniciativa (art. 170, caput, CF), a qual, longe de ser um fim em si mesma, possui o objetivo de assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social. Isso sem prejuízo de prestigiar o direito de propriedade (art. 170, II, CF), o qual possui seus limites no atendimento de sua função social. A perseguição do crédito investido, independentemente da forma assumida, é medida relevante para que os investimentos no país possam ser verificados com maior facilidade e fluidez, em benefício do próprio corpo social (proteção ao direito de propriedade). Mas isso é apenas uma face da moeda. A outra é a realidade de concessão de crédito muitas vezes de maneira irresponsável e sem a escorreita análise prévia, além da ausência de instrumentos voltados à readeuqação do passivo dos agentes econômicos. Em razão de tal contexto, muitos buscam a aplicação da Lei 11.101/2005 para a recuperação de suas atividades, tais como associações civis e clubes de futebol. Isso evidencia o fato de que agentes econômicos necessitam de instrumentos jurídicos e administrativos para lidar com sua crise econômico-financeira, a fim de que sua posição seja mantida no mercado e não haja a liquidação e interrupção de relações econômico-jurídicas com o mercado empresarial. O sufocamento de associações civis, consumidores e demais agentes que não se identificam como empresários possui repercussão direta e imediata dentro da esfera das empresas, justamente porque, em larga escala, não haverá pontos de escoamento necessário ao que se produz. A engrenagem, como dito acima, não prescinde de instrumentos voltados à sua reorganização, para que possa continuar operando de maneira eficaz, ampliando a circulação de riquezas e a prosperidade econômica do país. Estamos caminhando para superar o défict legislativo. O tratamento ao consumidor superendividado, para além de sua reinserção imediata em prol do mercado empresarial e de melhoras na recuperação dos créditos a ele concedidos, permitirá uma mudança de cultura na própria concessão de crédito e na interação entre aqueles que produzem e aqueles que adquirem os frutos dessa produção, numa simbiose virtuosa entre os agentes econômicos empresários e consumidores.
quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A arbitragem e o Direito das empresas em dificuldade

Introdução Disputas são inerentes à realidade empresarial, que reúne uma miríade de diferentes interesses, naturalmente contrapostos - os dos empresários, dos acionistas, dos investidores, dentre muitos outros1. Estes conflitos de interesses tendem a aumentar significativamente no caso de uma crise econômico-financeira, elevando os custos de transação próprios de uma negociação para superação da crise. Nesta hipótese, a necessidade por uma solução célere e justa, como aquelas proporcionadas pela arbitragem, torna-se ainda mais premente, considerando a função social desempenhada pela empresa e o consequente interesse público em sua preservação. A crise da empresa demanda, assim, solução multidisciplinar2, tendo em vista o alcance de soluções que atendam os diversos interesses envolvidos nos procedimentos de insolvência3. No presente ensaio, enfrentaremos aspectos relacionados à utilização da arbitragem em disputas que envolvam sociedades em recuperação judicial, extrajudicial e falidas, sob o ângulo da capacidade do empresário (individual ou sociedade empresária), notadamente a possibilidade da continuidade dos processos arbitrais já iniciados e a adesão da cláusula de arbitragem por um devedor insolvente. Arbitrabilidade subjetiva e capacidade das partes Como é cediço, o consentimento é a própria essência da arbitragem. Trata-se de instituto que representa uma exceção voluntária à regra constitucional da inafastabilidade da jurisdição estatal (art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal), devendo ser fruto de um acordo de vontades firmado entre as partes que decidem a ele se submeter. Nesse sentido, o professor Carlos Alberto Carmona4 afirma que o consentimento das partes para a submissão a um procedimento arbitral é essencial, uma vez que o efeito severo de afastar a jurisdição do Estado não pode ser deduzido, imaginado, intuído ou estendido5. Há, assim, a análise do que se cunhou doutrinariamente de arbitrabilidade6, desdobrada em arbitrabilidade objetiva e arbitrabilidade subjetiva. A primeira consiste no adequado enquadramento da questão de mérito a ser apreciada como sendo direito patrimonial disponível, ou seja, aquela demanda que verse sobre direitos que possam ser livremente dispostos pelas partes, denominados de direitos disponíveis. Já a segunda consiste no enquadramento das partes ao comando normativo imposto pelo artigo 1º da Lei 9.307/1996, segundo o qual somente pessoas dotadas de capacidade jurídica podem figurar nos polos do procedimento arbitral, sendo, portanto, condição sine qua non para que celebrem convenção de arbitragem. A capacidade jurídica é atributo da pessoa natural ou jurídica, complementando a personalidade jurídica7. Assim, tendo em vista que a existência da pessoa jurídica não é afetada pelo deferimento do processamento da recuperação judicial ou pelo decreto de falência, a sua capacidade jurídica, em que pese poder sofrer modificações, não é igualmente suprimida8 nestes casos, devendo ser analisada de diferentes maneiras, a depender de o devedor se encontrar em recuperação judicial, extrajudicial ou falência e, especificamente, se a convenção de arbitragem foi negociada antes ou durante o processo de insolvência empresarial. Antes do processo de insolvência Conforme mencionamos, o consentimento válido e expresso é o que vincula as partes a uma convenção de arbitragem. Logo, o caminho para identificar os efeitos de um processo de insolvência sobre uma cláusula de arbitragem é examinar se, no momento em que o acordo foi firmado, as partes - e especialmente o devedor insolvente - possuíam plena capacidade legal. Durante o processo de recuperação judicial ou extrajudicial, o devedor é regularmente mantido na condução de suas atividades e na posse de seus bens9, sendo a manutenção da empresa o próprio objetivo do instituto, como se depreende do art. 47 da lei 11.101/200510. Assim, conforme precisa lição doutrinária11, a capacidade legal do devedor não sofre alterações com a deflagração da recuperação judicial ou extrajudicial.                 Nesse cenário, a validade de uma cláusula de arbitragem previamente negociada é indiscutível, sendo indiferente se o procedimento arbitral teve início antes ou depois da recuperação judicial ou extrajudicial. Em ambos os momentos, considera-se válido o consentimento dado pelo devedor plenamente capaz quando da adesão à convenção de arbitragem, restando cumprido o requisito subjetivo (qual seja, a capacidade civil para contratar) imposto pelo art. 1º da Lei de Arbitragem. Ademais, como a arbitragem tem a natureza de processo de conhecimento, a decisão de processamento da recuperação não acarretará a suspensão das arbitragens em curso12, afastando a incidência do art. 6º da lei 11.101/200513. Endossando tal entendimento é que, na qualidade de membro da comissão de juristas que assessorou o Deputado Hugo Leal na reforma da lei 11.101/2005, tive a oportunidade de sugerir proposta legislativa14, que se transformou no §9º do artigo 6º da referida lei15. O novo dispositivo reflete entendimento doutrinário já anteriormente consagrado no enunciado nº 6, da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, organizada pelo Conselho da Justiça Federal16. Em se tratando de um processo de falência, aplica-se análogo raciocínio. Com a decretação da falência e objetivando-se o melhor aproveitamento dos bens, ativos e recursos produtivos, tangíveis e intangíveis da empresa, o devedor é afastado de suas atividades e administração dos seus bens, sendo representado, no procedimento falimentar, pelo administrador judicial, a quem caberá cumprir com o compromisso arbitral validamente firmado pelo falido, anteriormente à decretação da quebra. Foi este o entendimento adotado no voto-vista da Ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.355.831-SP17. Desta forma, ainda que um dos efeitos da decisão de falência seja o afastamento do devedor da administração de seus bens, como determina o art. 103 da lei 11.101/200518, deve-se analisar se, no momento da adesão à convenção da arbitragem, a parte detinha plena capacidade legal. A posterior modificação desse cenário com o decreto falimentar torna-se irrelevante, uma vez que a verificação deve ser restrita ao momento da contratação, quando foi, de fato, concretizada a vontade das partes de se submeter à jurisdição arbitral19, entendimento este que vem sendo reiteradamente adotado pela jurisprudência brasileira20. Por fim, o início ou o prosseguimento de uma arbitragem com a participação de um devedor insolvente não encontra obstáculos na falta de recursos para o custeio do procedimento, não constituindo este fato justificativa hábil para afastar uma convenção de arbitragem válida. Nesse caso, tanto o devedor em recuperação judicial ou extrajudicial, quanto a massa falida (devidamente representada pelo administrador judicial e com a autorização do juízo falimentar), poderão buscar um contrato de financiamento de disputas por terceiro (third party funding), acordo por meio do qual um terceiro aceita arcar com as despesas da arbitragem em troca de um percentual dos valores recebidos no caso de êxito, entendimento este já endossado em sede de doutrina21 e jurisprudência22. O cenário acima explicitado sofre algumas alterações quando o devedor, já submetido a um processo de insolvência empresarial, pretende aderir a uma convenção de arbitragem, conforme explicitaremos a seguir. Durante o processo de insolvência Durante a recuperação judicial ou extrajudicial o devedor é regularmente mantido na condução de suas atividades e na posse de seus bens, mantendo-se inalterada sua capacidade. Como a única restrição legal aplicável à recuperação judicial, em relação a novos contratos, é a alienação ou oneração de bens ou direitos do ativo não circulante do devedor (art. 66 da lei 11.101/2005), não há qualquer obstáculo legal à celebração de contratos contendo compromisso arbitral relativo a direitos patrimoniais disponíveis, matéria inserida no âmbito da autonomia privada das partes.  Para além de ser possível, a celebração de uma convenção de arbitragem por sociedade em recuperação judicial ou extrajudicial trata-se de opção recomendável, em razão da redução dos custos de transação para o procedimento de reestruturação. A questão torna-se mais delicada quando tratamos do devedor submetido a um processo falimentar. Nesse caso, uma das principais consequências da sentença de falência é o afastamento do devedor da administração de seus bens, como determina o art. 103 da lei 11.101/200523. A partir de então, o administrador judicial será responsável não apenas pela administração do patrimônio da massa falida, mas também por representá-la em juízo, como determinam os arts. 22, III, 'n' e 76, parágrafo único, do referido diploma24. Entretanto, a capacidade civil do devedor não é automaticamente extinta quando decretada a falência, tendo em vista que a massa falida exercerá os seus direitos, no que se inclui o direito de ser parte em juízo e de celebrar contratos. Como o falido é afastado da administração da empresa, o administrador judicial passa a ser responsável pela sua representação, devendo assumir a defesa da devedora (massa falida) no processo arbitral25. Por se tratar de entidade dotada de direitos, a massa falida pode aderir a uma cláusula de arbitragem, se o seu representante legal (o administrador judicial) assim optar, reputando-a como a solução adequada para a defesa de seus interesses26. Portanto, ainda que exista uma modificação em sua representação, sua arbitrabilidade subjetiva mantém-se inalterada27. Outrossim, o surgimento do juízo universal falimentar (art. 76 da lei 11.101/2005) e a suspensão das execuções que versam sobre interesses da massa falida (art. 6º da lei 11.101/2005) não impedem o início de um procedimento arbitral. O objetivo das referidas disposições legais é impedir a promoção de medidas executivas individuais por parte dos credores, o que violaria o princípio da igualdade entre credores (par conditio creditorum), um dos pilares do procedimento falimentar. A jurisdição arbitral, por outro lado, tem natureza essencialmente cognitiva, sendo destituída de força executiva - razão pela qual a execução forçada de sentenças arbitrais depende, necessariamente, da adoção de medidas judiciais. Desta forma, a sentença arbitral não terá efeito automático sobre o patrimônio da massa falida, e sua execução dependerá, obrigatoriamente, de decisão do juízo falimentar sobre a inclusão no quadro geral de credores, assegurando a observância do indigitado princípio da par conditio creditorum. Conclusão Os procedimentos de insolvência empresarial não acarretam a supressão da capacidade dos agentes econômicos em crise: na recuperação judicial ou extrajudicial a capacidade do devedor permanece inalterada, havendo restrição, no primeiro caso, apenas sobre a disponibilidade dos bens do seu ativo não circulante. Na falência, a arbitrabilidade subjetiva da pessoa jurídica falida não é suprimida, sofrendo apenas modificação, em virtude da adequada representação da massa falida pelo administrador judicial, demonstrando, deste modo, a compatibilidade entre a arbitragem e os procedimentos de insolvência, desde que respeitadas as particularidades intrínsecas a cada instituto. A reforma introduzida pela lei 14.112/2020, com a inserção do §9º ao artigo 6º da lei 11.101/2005, positivou este entendimento, conferindo um melhor posicionamento do Brasil no cenário jurídico internacional, fortalecendo, assim, o próprio instituto da arbitragem em relação ao direito das empresas em dificuldade. Referências Bibliográficas CARDOSO, Marcelo Carvalho Engholm. Arbitragem e Financiamento por Terceiros. São Paulo: Almedina, 2020. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um Comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019. FIGUEIRA Jr, Joel Dias. Arbitragem. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019. GRION, Renato Stephan; DE PAIVA, Luiz Fernando Valente; SILVA, Guilherme Piccardi de Andrade. A arbitragem no contexto das recuperações judiciais e extrajudiciais e das falências In: MELO, Leonardo de Campos; BENEDUZI, Renato Rezende (coord.). A reforma da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2016. GUIMARÃES, Márcio Souza. Arbitrabilidade Subjetiva, Capacidade da Parte, Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência. In: Arbitragem, Mediação, Falência e Recuperação. MONTEIRO, André; VERÇOSA, Fabiane; FONSECA, Geraldo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. GUIMARÃES, Márcio Souza. Insolvency and Arbitration In: International Arbitration - Law and Practive in Brazil. SESTER, Peter (coord.). Oxford: Oxford University Press, 2020. GUIMARÃES, Márcio Souza. O Aumento do Capital Social como meio de Recuperação Judicial e a Desnecessária Submissão à Assembleia Geral de Acionistas. In: Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e outros temas - Homenagem a Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2020, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 30ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021. SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020. TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e Insolvência. In: Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jan-Mar, 2009. TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e insolvência In: WALD, Arnoldo (Org.). Arbitragem e mediação: arbitragem aplicada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. VASCONCELOS, Ronaldo; CARNAÚBA, César Augusto Martins; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva. Financiamento de terceiros e arbitragem no processo concursal. In: LEE, João Bosco; MANGE, Flavia. Revista Brasileira de Arbitragem. Vol. XVI. São Paulo: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 2019. __________ 1 GUIMARÃES, Márcio Souza. O Aumento do Capital Social como meio de Recuperação Judicial e a Desnecessária Submissão à Assembleia Geral de Acionistas. In: Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e outros temas - Homenagem a Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 105. 2 A crise da empresa, nas palavras de Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, "exige abordagem multifária. Vista sob apenas um ângulo, os demais ficariam a descoberto. E a solução, sendo incompleta, seria, por isso mesmo, inadequada". TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e Insolvência. In: Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jan-Mar, 2009, p. 25.  3 "Acerca da instauração de jurisdição privada para a resolução de conflitos advindos dos desdobramentos multifacetados da recuperação de empresas, instituída por intermédio da Lei 11.101, de 09.02.2005, algumas reflexões precisam ser feitas. De início, não se pode perder de vista o objeto litigioso que decorre dessas questões que envolvem os administradores da devedora e uma plêiade de credores, especialmente durante o período de dois anos seguintes ao deferimento pelo juiz da recuperação judicial e a aprovação do plano de recuperação, com possibilidades múltiplas (quiçá inimagináveis) de surgimento de conflitos de interesses e a certeza de que o eventual descumprimento por parte da sociedade devedora dará azo à transmudação em falência da sociedade". FIGUEIRA Jr, Joel Dias. Arbitragem. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 153. 4 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um Comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 83. 5 É esta a norma inserta no Art. 1º da Lei de Arbitragem, que faz expressa menção à possibilidade de pessoas capazes utilizarem a arbitragem como método de resolução de disputas relativas a direitos patrimoniais disponíveis: "Art. 1º. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis". 6 Sobre o conceito, debruçam-se André Monteiro, José Antonio Fichtner e Sergio Manheimer, com apoio em autores de renome: "João Bosco Lee explica, por um lado, que 'a arbitrabilidade stricto sensu se limita à análise da condição de validade da convenção de arbitragem', sendo certo que 'este conceito é utilizado amplamente pelo direito comparado'. Por outro lado, o autor afirma que a arbitrabilidade lato sensu 'consiste em determinar preliminarmente o campo de aplicação da cláusula compromissória, para, em seguida, examinar se o litígio é susceptível de ser resolvido pela arbitragem', valendo-se dizer que 'esta aplicação é utilizada principalmente pelos tribunais norte-americanos'. Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold Goldman lecionam que 'the term arbitrability is sometimes given a broader meaning, covering the existence and validity of the parties' consent to arbitration, as is the case with the terminology used by the United States Supreme Court'. Os autores, porém, entendem que 'that meaning is liable to generate confusion and is not widely used in international practice'. Julian D. M. Lew, Loukas A. Mistelis e Stefan M. Kroll esclarecem que 'in the US the term 'arbitrability' is often used in a wider sense covering the whole issue of the tribunal's jurisdiction'. (.). A classificação realmente importante no que diz respeito à arbitrabilidade é aquela que a divide em subjetiva e objetiva. Referindo-se à arbitrabilidade objetiva e depois à arbitrabilidade subjetiva, Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold Goldman ensinam que 'this means, first, that the agreement must relate to subject-matter which is capable of being resolved by arbitration, and, second, that the agreement must have been entered into by parties entitled to submit their disputes to arbitration". FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 223-224. 7 Sobre o tema da capacidade civil, é a doutrina de Caio Mário da Silva Pereira: "Aliada à ideia de personalidade, a ordem jurídica reconhece ao indivíduo a capacidade para a aquisição dos direitos e para exercê-los por si mesmo, diretamente, ou por intermédio (pela representação), ou com a assistência de outrem. Personalidade e capacidade completam-se: de nada valeria a personalidade sem a capacidade jurídica que se ajusta assim ao conteúdo da personalidade, na mesma e certa medida em que a utilização do direito integra a ideia de ser alguém titular dele.". PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 30ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 221. 8 "O caput do artigo 1º da Lei de Arbitragem estabelece dois pré-requisitos subjetivos com relação às partes de uma arbitragem: trata-se da existência e da capacidade dos sujeitos que integram os polos de um procedimento arbitral. O termo técnico 'pessoa' refere-se tanto ao artigo 1º do Código Civil, que trata das pessoas naturais, quanto aos artigos 40 a 52 do Código Civil, que trazem a definição de pessoa jurídica. (...). Quanto à existência das pessoas jurídicas de direito privado, os artigos 45 e 51 do Código determinam que ela tem início com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, e termina com o encerramento da liquidação e o cancelamento da inscrição no registro. Vale ressaltar que a decretação da falência e o processamento da recuperação judicial não têm impacto sobre a existência da pessoa jurídica. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, 'a decretação da falência, que enseja a dissolução, é o primeiro ato do procedimento e não importa, por si, na extinção da personalidade jurídica da sociedade. A extinção, precedida das fases de liquidação do patrimônio social e da partilha do saldo, dá-se somente ao fim do processo de liquidação, que, todavia, pode ser antes interrompido, se acaso revertidas as razões que ensejaram a dissolução". SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 96. 9 Em relação à recuperação judicial, o artigo 64 é enfático: "Durante o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob fiscalização do Comitê, se houver, e do administrador judicial, salvo se qualquer deles: (...)". Não há dispositivo legal semelhante para a recuperação extrajudicial, em razão da lógica do instituto: procedimento que visa à homologação do plano de reestruturação apresentado, sem qualquer restrição à gestão da recuperanda. 10 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 11 "Importante notar, como explicado por Felipe Moraes, que a convenção de arbitragem celebrada antes da declaração da recuperação ou falência é negócio jurídico bilateral perfeito, 'com efeitos já realizados por meio de opção pela arbitragem, com o consequente afastamento da jurisdição estatal. Portanto, não há que se falar em necessidade de interpelação do administrador judicial relacionada a contrato que produz efeitos esperados". SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 517. 12 "De forma análoga às ações de conhecimento, os procedimentos arbitrais não são suspensos pela concessão da recuperação judicial ou pela decretação da falência. A suspensão das ações em face do falido e da recuperanda visaria a assegurar o tratamento equivalente entre os credores e a satisfação de seus créditos nos termos do plano de recuperação judicial ou conforme a ordem de pagamento na falência. Não há qualquer risco de o credor ser satisfeito ou de retirar ativos em virtude do procedimento arbitral. As arbitragens visam a formar o título executivo, de modo a apurar o an debeatur (se é devido) e o quantum debeatur (quanto se é devido). Não há risco de retirada do bem da Massa Falida ou do empresário em recuperação, de modo que os procedimentos arbitrais devem ter prosseguimento normalmente.". SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 108. 13 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; 14 GUIMARÃES, Márcio Souza. A Arbitragem na Reforma da Lei de Falências e Recuperação Judicial - Lei 14.112/2020. FGV Blog de Arbitragem. Disponível aqui. Acesso em 5 de novembro de 2021. 15 §9º - o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral. 16 "o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impede a instauração do procedimento arbitral, nem o suspende".   17 "A partir de uma leitura sistemática da referida legislação e ainda à luz da teoria do diálogo das fontes, a natureza contratual da convenção de arbitragem, seja ela cláusula compromissória, cheia ou vazia, ou compromisso arbitral, não é suficiente para subordinar sua eficácia ao juízo de conveniência do administrador judicial, afastando-se o art. 117 da Lei de Falências. Isso porque, como já salientado, a convenção de arbitragem é, por si só, suficiente ao afastamento efetivo da jurisdição estatal, consumando, de pronto, renúncia definitiva, ainda que sujeita a condição suspensiva. Portanto, a superveniência da quebra não afasta a exigibilidade e a eficácia da convenção arbitral celebrada validamente pelas partes plenamente capazes no momento de sua contratação". Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.355.831-SP. Relator: Ministro Sidnei Beneti. Data do Julgamento: 19.03.2013. DJe: 22.04.2013, p. 18-19. 18 Art. 103. Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor. 19 Sobre o tema, Renato Stephan Grion, Luiz Fernando Valente de Paiva e Guilherme Piccardi de Andrade e Silva enfatizam que: "A convenção arbitral deverá ser considerada válida e eficaz se, no ato da contratação, havia capacidade plena da parte para a celebração de negócios jurídicos, e não no momento em que efetivamente surge o conflito a ser dirimido pela arbitragem. Ora, não fosse assim, estaria a validade da convenção arbitral sujeita, ad aeternum, a condições resolutivas, quais sejam, a eventual falta de capacidade contratual das partes envolvidas e a eventual indisponibilidade de seus respectivos direitos patrimoniais". GRION, Renato Stephan; DE PAIVA, Luiz Fernando Valente; SILVA, Guilherme Piccardi de Andrade. A arbitragem no contexto das recuperações judiciais e extrajudiciais e das falências In: MELO, Leonardo de Campos; BENEDUZI, Renato Rezende (coord.). A reforma da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 90. 20 Por todos, destacamos trecho do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Desembargador Relator Ricardo Negrão consignou que "a superveniência da quebra não afasta a exigibilidade e a eficácia da convenção arbitral celebrada validamente pelas partes plenamente capazes no momento de sua contratação". Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1004662-51.2019.8.26.0510. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Relator (a): Ricardo Negrão. Foro de Rio Claro - 4ª Vara Cível. Data do Julgamento: 18/03/2020. Data da Publicação: 18/03/2020. A respeito do tema, cite-se  também trecho de acórdão da lavra do Des. Manoel Pereira Calças, em que restou consignado que: "(...) mesmo considerando-se que no processo de falência há interesses da coletividade dos credores do devedor comum, não se entrevê qualquer impedimento ao cumprimento de convenção de arbitragem pactuada anteriormente à decretação da falência, em cláusula prevista no contrato firmado por pessoas jurídicas, regularmente constituídas e presentadas na forma de seus atos constitutivos, com plena capacidade negocial e tendo por objeto direitos patrimoniais disponíveis (...)." Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.  Agravo de Instrumento nº 9044554-23.2007.8.26.0000. Relator (a): Pereira Calças. Órgão Julgador: N/A. Data do Julgamento: 25/06/2008. Data de Registro: 30/09/2008. Em caso diverso, quando do julgamento do Conflito de Competência nº 157.099 pela 2ª seção do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Marco Buzzi proferiu voto, consignando que o processamento da recuperação judicial "não tem o condão de impossibilitar o devido trâmite do processo arbitral e este, portanto, poderá prosseguir, observados seus limites materiais". Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 157.099/RJ. Relator: Ministro Marco Buzzi. Relatora para Acórdão: Ministra Nancy Andrighi. Data do Julgamento: 10/10/2018. DJe: 30/10/2018.    21 GUIMARÃES, Márcio Souza. Arbitrabilidade Subjetiva, Capacidade da Parte, Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência. In: Arbitragem, Mediação, Falência e Recuperação. MONTEIRO, André; VERÇOSA, Fabiane; FONSECA, Geraldo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p.  113. SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 517. Sobre o tema, conferir também: CARDOSO, Marcelo Carvalho Engholm. Arbitragem e Financiamento por Terceiros. São Paulo: Almedina, 2020 e VASCONCELOS, Ronaldo; CARNAÚBA, César Augusto Martins; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva. Financiamento de terceiros e arbitragem no processo concursal. In: LEE, João Bosco; MANGE, Flavia. Revista Brasileira de Arbitragem. Vol. XVI. São Paulo: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 2019. 22 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1598220/RN. 3ª Turma. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Data do Julgamento: 25/06/2019. DJe: 01/07/2019. No caso, a corte adotou o entendimento de que a validade da cláusula de arbitragem não pode ser afastada pela alegação de vulnerabilidade de uma das partes, no que se inclui, logicamente, a vulnerabilidade econômica do devedor insolvente.   23 Art. 103. Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor. 24 Art. 22, III, 'n' - "representar a massa falida em juízo, contratando, se necessário, advogado, cujos honorários serão previamente ajustados e aprovados pelo Comitê de Credores". Art.76, parágrafo único - "Todas as ações, inclusive as excetuadas no caput deste artigo, terão prosseguimento com o administrador judicial, que deverá ser intimado para representar a massa falida, sob pena de nulidade do processo." 25 GUIMARÃES, Márcio Souza. Insolvency and Arbitration In: International Arbitration - Law and Practive in Brazil. SESTER, Peter (coord.). Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 499. 26 No mesmo sentido, Paulo Fernando Campos Salles de Toledo critica posição doutrinária contrária à celebração de convenção de arbitragem na pendência de processo falimentar: "A assertiva é, no entanto, questionável: quem não pode celebrar a convenção é o falido, que perde a administração de seus bens. Mas, pergunta-se, e o administrador judicial, representando a massa, pode? (...) Seria aplicável ao caso, por extensão, a regra segundo a qual o administrador judicial, desde que autorizado judicialmente, pode 'transigir sobre obrigações e direitos da massa falida e conceber abatimento de dívidas' (...). TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e insolvência In: WALD, Arnoldo (Org.). Arbitragem e mediação: arbitragem aplicada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 522-523. 27 Aqui cabe o entendimento de que, caracterizando-se a arbitragem como verdadeira jurisdição privada, aplica-se à massa falida a mesma representação que é realizada pelo administrador judicial nos processos jurisdicionais estatais, que se dá igualmente em outros ordenamentos jurídicos, como nos Estados Unidos da América, em que o trustee age como representante da massa falida e é encarregado de administrar seus bens e proteger os direitos dos credores. É o que se depreende da Section 704 do Chapter 7 do U.S Bankruptcy Code. Na Inglaterra a mesma previsão se encontra no Chapter VII do Insolvency Act de 1986 (Inglaterra) e na França no art. L. 811-1 do seu Código Comercial.
terça-feira, 8 de novembro de 2022

Aspectos polêmicos da falência da pessoa física

Estamos diante de um período de crise sem precedentes na história contemporânea. Isso se reflete no número crescente de endividados no país: segundo levantamentos recentes1, são 79,3% de famílias superendividadas no Brasil, e mais de 6 milhões de empresas inadimplentes. Essa triste realidade impõe a adoção de mecanismos legais eficientes para lidar com o problema, pois quanto mais célere for a superação da crise financeira, maior será o giro da economia, o que colabora para a manutenção (ou crescimento) da capacidade contributiva da sociedade e para um PIB sólido. Para as empresas em geral, ainda que tenha seus defeitos, a lei 11.101/05 ("LRF") trouxe esquemas sofisticados para resolver a crise, tanto por meio da recuperação quanto da falência. A recente reforma que lhe foi implementada pela lei 14.112/20, pretendeu revigorar a (até então problemática) falência, minimizando seus estigmas com um sistema mais eficiente para liquidação dos ativos e o reingresso do falido às atividades após razoáveis três anos da decretação da quebra. A partir daí o falido está reabilitado para recomeçar, com o chamado fresh start. Em contraposição a isso, para as pessoas físicas insolventes o Brasil fica muito aquém das expectativas, diante da ausência de leis que, similares à LRF, permitam a célere formação do concurso de credores e a reinserção do endividado na economia e na vida civil, trazendo a chance de um recomeço digno. Para estes endividados pessoas físicas, em regra aplica-se a obsoleta insolvência civil, regulada pelos artigos 748 a 786-A do Código de Processo Civil de 1973. Fato é que a ineficiente insolvência civil não resolve o problema para o devedor nem para os credores. Isso porque, embora a declaração de insolvência acarrete o vencimento antecipado das dívidas com a instauração de um concurso de credores a serem pagos com a alienação dos bens arrecadados, o devedor não se exonera das suas obrigações2 enquanto a dívida integral não for paga. Ou seja, o devedor permanece responsável pelo pagamento das dívidas até que o juiz declare a extinção das obrigações, o que acontecerá após 5 anos contados da data do encerramento do processo de insolvência com o pagamento integral dos credores. Isso faz com que o processo de insolvência civil perdure indefinidamente, causando uma morte civil antecipada ao devedor pessoa física, que não poderá manter contas e bens livres de penhora, ou um trabalho digno com remuneração apropriada, diante da pecha de devedor contumaz. Pois bem. Voltando à LRF, a lei reformada explicitou princípios importantes para nortear a falência, que deve buscar a preservação e otimização da utilização produtiva dos bens; a liquidação célere de empresas inviáveis; a realocação eficiente dos recursos na economia; e, mais importante para este artigo, o fomento ao empreendedorismo, com o retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica (art. 75). Para fazer valer esses princípios, a LRF deu novo ritmo à falência. Em até 60 dias após ter sido nomeado, o administrador judicial deverá apresentar um plano detalhado para venda dos ativos, a ser concretizado em até 180 dias contados da sua arrecadação, sob pena de sua destituição (art. 99, §3º). E, independentemente do pagamento dos credores, as obrigações do falido serão extintas depois de 3 anos da decretação da quebra (art. 158, V). Neste caso, transcorrido o prazo, o falido poderá requerer ao juízo da falência que suas obrigações sejam declaradas extintas (art. 159), e estará livre para recomeçar e exercer novamente qualquer atividade empresarial. Apesar da boa intenção do legislador em agilizar o fresh start do falido, com sua plena reabilitação, o texto legal deixou margem a dúvidas importantes. A principal delas se refere à amplitude da aplicação do tão desejado fresh start. Afinal, quem é o falido a que a lei se refere no art. 158/159? Quem tem direito à reabilitação em 3 anos, nos termos do art. 158, V? É a empresa falida, o empresário falido, ou seu sócio e/ou administrador? A dúvida é pertinente porque afinal, na prática, pouco interesse se vê na exclusiva reabilitação da empresa falida em 3 anos. Talvez marcas notórias pudessem se beneficiar dessa disposição (uma empresa do porte da Varig, por exemplo, que poderia tentar um renascimento no mercado), mas em geral, uma vez falida, o mais lógico e factível seria que os sócios da empresa iniciassem um novo negócio, distante da pecha da falida. Nesse contexto, pouco importaria reabilitar a empresa falida em si. A situação é diferente quando se está diante do empresário individual ou do sócio garantidor da empresa falida. Teriam essas pessoas físicas acesso aos mecanismos da LRF para a falência, com o fresh start, ou estariam elas relegadas à insolvência civil? Não nos esqueçamos que o sócio da devedora costuma ser garantidor e devedor solidário de toda a dívida bancária da empresa, por exigência dos próprios bancos na concessão de empréstimos, além de também ser responsável direto pelas dívidas trabalhistas, ambientais, e outras previstas em legislação esparsa. Em outras palavras: poderia o sócio da empresa falida, em grande parte solidário ao seu endividamento, também se reabilitar junto com a empresa em 3 anos? Ou faria sentido apenas reabilitar a empresa, deixando de lado os sócios, como potenciais empreendedores e agentes econômicos que são? Para resolver essa questão espinhosa, faz-se necessária uma intepretação sistemática das normas vigentes. O artigo 1º da LRF já anuncia que a lei somente se aplica ao empresário e às sociedades empresárias. Para estes, portanto, não existe dúvida: a lei foi desenhada para as empresas, e admite também a falência do empresário individual.  Adentrando na questão do sócio pessoa física da empresa devedora, o artigo 81 dispõe que a falência será estendida aos sócios ilimitadamente responsáveis, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida. Já o artigo 115 da LRF deixa claro que os credores na falência somente exercerão seus direitos sobre os bens do falido e do sócio ilimitadamente responsável. E o art. 82-A ainda esclarece que é vedada a extensão da falência aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, a menos que haja a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, nos casos em que estão presentes os requisitos do artigo 50 do Código Civil (se houver a configuração de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial)3. Ou seja, ao rol de empresas e empresários individuais, não há dúvidas de que a LRF adiciona como possíveis falidos os sócios de responsabilidade ilimitada ou os sócios de responsabilidade limitada ou administradores que tiveram seus bens contaminados em razão da desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida4. Essas normas reforçam as regras do Código Civil ("CC") sobre autonomia patrimonial entre as pessoas físicas e jurídicas: o artigo 49-A do CC hoje é expresso no sentido de que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores, sendo que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos. Em razão disso, a grande maioria dos doutrinadores é enfática ao entender que os sócios de responsabilidade limitada e administradores não estão sujeitos ao regime da falência (a menos que sejam penalizados pela desconsideração da personalidade jurídica). A exceção é o Dr. Daniel Carnio Costa que entende que, pelo teor do §2º do art. 81 da LRF5, os sócios que "representam ou administram a sociedade limitada (diretores/administradores) são equiparados ao empresário individual para fins dos encargos processuais e restrição profissional" e, portanto, [assim como os sócios ilimitadamente responsáveis] "somente estarão autorizados a exercer novamente a atividade empresarial depois de extintas as suas responsabilidades e de devidamente reabilitados, nos termos da lei".6 Como já adiantando, a controvérsia se justifica pela verdadeira pouca utilidade em se ter um fresh start apenas para as empresas falidas, sem beneficiar os sócios empreendedores em geral, ainda que tenham responsabilidade limitada perante terceiros. E isso é reforçado porque o fresh start incluído no artigo 158 da LRF foi inspirado no instituto do discharge do Bankruptcy Code norte-americano, segundo o qual o devedor pessoa física "honesto, mas azarado"7 tem direito à liberação das suas obrigações, podendo reassumir seu lugar na sociedade como ser econômico produtivo, o que além de beneficiar a economia, está em linha com os princípios maiores da dignidade humana. Como esclarecem Gabriel Saad Kik Buschinelli e Ana Elisa Laquimia de Souza, nos Estados Unidos o direito ao discharge é restrito aos indivíduos/pessoas físicas e aos que agiram de boa-fé, sem a prática de atos fraudulentos8.   Neste contexto, a legislação brasileira peca ao limitar o fresh start às empresas falidas e aos sócios ilimitadamente responsáveis, ou, pior, aos sócios e administradores que foram contaminados em incidente de desconsideração da personalidade jurídica ("IDPJ") pela prática de ilegalidades. Na prática isso significa negar ao instituto os amplos e benéficos efeitos pretendidos pela lei. E mais, como se verá adiante, significa premiar a conduta ilegal de sócios/administradores em detrimento do sócio de boa-fé. Voltando aos sócios de responsabilidade ilimitada, os tipos societários que permitem esse tipo de regime são:  sociedade em nome coletivo, em comandita simples ou por ações, e sociedade em comum. "[A] extensão da falência a esses sócios independe de qualquer demonstração de fraude ou confusão patrimonial"9. Não por outra razão são raríssimos de se ver na vida real, justamente porque não se prestam a limitar e segregar os riscos patrimoniais dos sócios, caso a empresa não tenha ativos suficientes para arcar com a dívida social. Isso naturalmente inibe o empreendedorismo. Curiosamente, a prevalecer o entendimento de que o fresh start não se aplica aos sócios de responsabilidade limitada, esse quadro tende a mudar. Isso porque, como antecipado, o sistema brasileiro de insolvência hoje, apesar de se espelhar no norte-americano, traz a maior das inconsistências ao beneficiar tanto o sócio de responsabilidade ilimitada quanto os sócios e administradores de responsabilidade limitada penalizados pela desconsideração da personalidade jurídica, em detrimento do sócio de responsabilidade limitada que age em boa-fé e em estrito cumprimento da lei. Pois este sócio de boa-fé poderá ter sérios problemas diante do insucesso do negócio. Ao se deparar com a quebra da empresa, e seguindo a interpretação literal da lei sem considerar seus princípios norteadores, somente terá à sua disposição a insolvência civil, caso os credores da empresa iniciem as execuções das suas garantias pessoais. Em contrapartida, a interpretação sistemática das normas leva à conclusão de que o mau acionista ou mal administrador, aquele que praticou atos de abuso da personalidade jurídica que o levou a ser falido em razão de um IDPJ, terá tratamento mais favorável e será reabilitado em 3 anos.  E aí o tema começa a ficar espinhoso, porque começam a proliferar decisões esparsas do judiciário decretando a quebra, com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida para atingir bens dos sócios e administradores. Nestes casos, todos os bens dos devedores pessoas físicas, assim como os das empresas devedoras serão (em tese) arrecadados e administrados pelo mesmo administrador judicial e vertidos na integralidade para pagamento do concurso de credores.    Algumas dessas decisões parecem ser bastante questionáveis10. Mas seja como for, o que se pretende aqui é demonstrar a inconsistência dos tratamentos dados pelo sistema brasileiro de insolvência aos sócios de responsabilidade limitada que agem nos limites da lei, frente àqueles que agem de forma ilegal, em prejuízo a credores. A conclusão é que a LRF deveria ser alterada a fim de que as disposições sobre o fresh start sejam aprimoradas, atingindo ao fim almejado com o instituto do discharge norte-americano. Enquanto isso não ocorrer, caberá ao judiciário a árdua tarefa de modular as normas e aplicação da LRF de modo a fazer com que os seus princípios sejam atingidos, notadamente o fomento ao empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica. Como estratégia de sobrevivência, até que haja uma jurisprudência consolidada a respeito, deixa de ser tão absurda assim a ideia de voltar aos tempos da sociedade em comandita por ações ou em nome coletivo. O Código Civil em princípio não veda a transformação do tipo societário. A única limitação vem no parágrafo único do artigo 1.115 do CC, segundo o qual a transformação não modificará, nem prejudicará os direitos dos credores, sendo que "a falência da sociedade transformada somente produzirá efeitos em relação aos sócios que, no tipo anterior, a eles estariam sujeitos, se o pedirem os titulares de créditos anteriores à transformação, e somente a estes beneficiará.". Ora, a regra acima somente se aplica quando a transformação societária resulta em prejuízo aos credores, conforme decisões reiteradas do judiciário11, o que em tese não ocorre no caso da transformação do tipo societário para permitir a alteração da responsabilidade do sócio da empresa de limitada para ilimitada. Afinal, estará o sócio de responsabilidade agora ilimitada passando a oferecer automaticamente todo seu patrimônio em benefício dos credores, permitindo que se inicie um concurso sobre seus bens mais célere e eficiente. Em troca, poderá o sócio (agora) de responsabilidade ilimitada exercer o direito à tão sonhada reabilitação em 3 anos, contados da quebra, com a decretação da extinção das suas obrigações. Seja como for, fato é que começam a surgir casos de falência da pessoa física, tanto de empresários individuais quanto de sócios que tiveram seu patrimônio contaminado por um IDPJ. Daqui a pouco, será a vez dos (recém tornados) sócios de responsabilidade ilimitada, que hoje são raríssimos. E daí surgem inúmeras indagações que deverão ainda ser analisadas pelo poder judiciário. Todo o patrimônio, ativos e passivos, do empresário individual deverá ser incluído na falência? Ou apenas a parte do patrimônio que foi angariada com a atividade empresarial? É possível fazer essa segregação? Problemática similar já havia sido enfrentada nas recuperações judiciais dos produtores rurais e a LRF hoje deixa claro que somente estarão sujeitos à recuperação judicial os créditos que exclusivamente decorram da atividade rural (art. 49, §6º). Se assim funciona para a RJ do produtor rural, o entendimento poderia ser estendido ao empresário individual na falência? Entendo que uma vez falido o empresário individual, ou o sócio da empresa devedora, todo seu patrimônio e todas as suas dívidas deverão entrar na falência, inclusive dos seus credores pessoais, por absoluta impossibilidade prática de segregação entre um e outro. Deverão, claro, ser protegidos o bem de família e o mínimo necessário para garantir uma existência digna, na esteira do que dispõe o CPC sobre impenhorabilidade de bens e a nova legislação consumerista. E como será a atividade do administrador judicial na falência da pessoa física? Caberá a ele administrar todos os seus bens e passivos, tais como o pagamento da escola dos filhos do devedor com o produto da arrecadação dos bens? E o fresh start, nesse caso, abarcará a extinção de todas as dívidas do devedor, incluindo fiscal? Penso inicialmente que o administrador judicial deverá exercer funções parecidas com a do administrador na insolvência civil (artigo 766 do CPC/73), e que todas as dívidas devem ser abrangidas pela ampla extinção das obrigações previstas no artigo 158 da LRF. Quanto às dívidas fiscais, uma dificuldade extra se impõe. O art. 19112 do Código Tributário Nacional exige a comprovação da quitação dos débitos tributários para extinção das obrigações do falido. Mais uma alteração legislativa deveria ocorrer aqui, de modo a fazer valer em sua plenitude o discharge e fresh start do devedor. De toda forma, essa regra não se justifica, considerando que os créditos fiscais estão incluídos na falência, e são sujeitos ao concurso de credores. Mais uma vez, caberá ao Judiciário a árdua tarefa de resolver definitivamente esses problemas. Enquanto isso, caberá aos julgadores aplicar a lei da forma que melhor se amolde aos seus princípios norteadores, sem penalizar o mau devedor em detrimento dos devedores "honestos, mas azarados". _____________  1 https://www.cnnbrasil.com.br/business/endividamento-atinge-80-das-familias-mais-pobres-em-setembro-um-recorde-diz-cnc/ https://www.fecomercio.com.br/pesquisas/indice/peic https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/brasil-atinge-recordes-de-793-de-familias-endividadas-e-30-de-inadimplentes/ https://www.serasa.com.br/limpa-nome-online/blog/mapa-da-inadimplencia-e-renogociacao-de-dividas-no-brasil/ https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/10/26/empresas-inadimplentes-em-setembro.htm https://www.serasaexperian.com.br/sala-de-imprensa/analise-de-dados/junho-registra-mais-de-62-milhoes-de-empresas-inadimplentes-no-brasil-segundo-serasa-experian/ 2 Artigos 761, II, e 766 do CPC/73 3 Some-se a estes o artigo 102, pelo qual o falido fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial até a sentença que extingue suas obrigações e, neste caso, findo o período de inabilitação, poderá requerer ao juízo da falência que proceda à respectiva anotação em seu registro (dando a entender, portanto, que se está diante dos registros na junta comercial). 4 Quando a lei se refere à figura dos sócios e administradores da empresa, o faz de modo explícito. O artigo 104 é claro ao impor aos representantes legais do falido uma série de deveres (assinatura do termo, comparecer às audiências etc). O descumprimento desses deveres (frise-se: pelos representantes legais do falido) poderá enquadrar o falido em crime de desobediência. Embora a terminologia seja, num primeiro momento, confusa, o art. 179 esclarece que na falência os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para todos os efeitos penais decorrentes da Lei, na medida de sua culpabilidade. 5 §2º do artigo 81: As sociedades falidas serão representadas na falência por seus administradores ou liquidantes, os quais terão os mesmos direitos e, sob as mesmas penas, ficarão sujeitos às obrigações que cabem ao falido. 6 COSTA, Daniel Carnio. O fresh start no novo sistema de insolvência empresarial brasileiro. In Revista do Advogado, nº 150, junho 2001, ed. ASSP, p. 10. 7 Vide comentários ao art. 158 elaborados por Gabriel Saad Buschinelli e Ana Elisa Laquimia de Souza. In TOLEDO. Paulo Fernando Campos Salles de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas, ed. IBR e Revista dos Tribunais, 2021, p. 805, 806 e 807. 8 Op. Cit. p. 807. 9 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. In Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Ed. Saraiva, 2ª ed., 2021, p. 413 10 Por exemplo, em caso de recuperação judicial que tramita em Jundiaí - SP, em que houve incidente de desconsideração de personalidade jurídica ("IDPJ") para incluir no polo ativo da recuperação os sócios pessoas físicas das empresas recuperandas e outras empresas, o juiz de primeira instância decretou a quebra não só das empresas do grupo, como das pessoas físicas incluídas. E isso porque algumas das partes não apresentaram os documentos necessários ao processamento do pedido de RJ. Em tal decisão, o juiz deixou clara a necessária consolidação substancial existente entre as partes na recuperação judicial, em razão do IDPJ, o que ocasionou a quebra de todos indistintamente, diante da ausência de emenda à inicial para juntada de parte da documentação faltante ao processamento da RJ. Vale notar que a consolidação substancial dos recuperandos, pelo teor que se extrai da sentença, sequer foi justificada mediante a demonstração dos requisitos do art. 69-J: Art. 69-J. O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses: I - existência de garantias cruzadas; II - relação de controle ou de dependência; III - identidade total ou parcial do quadro societário; e IV  - atuação conjunta no mercado entre os postulantes. (Autos nº 1004934-08.2015.8.26.0309, em trâmite perante a 3ª VC de Jundiaí) 11 Recuperação judicial. Decisão que julgou improcedente impugnação de crédito apresentada por banco credor. Agravo de instrumento. Empresário individual. Dada a unicidade patrimonial entre a pessoa natural e a do comerciante individual, cabe a suspensão também das garantias eventualmente prestadas por aquele. Aplica-se, então, excepcionalmente, a regra do art. 6º da Lei 11.101/2005 ("A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário."), e os processos são suspensos. Solução que, todavia, não pode ser aplicada em havendo alteração de tipo societário em prejuízo de credores. Art. 1.115 do Código Civil ("A transformação não modificará nem prejudicará, em qualquer caso, os direitos dos credores."). Norma que reafirma o princípio de segurança jurídica, pelo qual deve zelar o ordenamento jurídico. Norma de caráter reiterativo do que a respeito dispõe em geral o capítulo acerca da responsabilidade na teoria das obrigações, e, em especial, sobre a repressão à fraude contra credores. Os credores anteriores não podem ser prejudicados pelo negócio jurídico da transformação. Doutrina de MODESTO CARVALHOSA, MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS e MARCELO FORTES BARBOSA FILHO. (...) Agravo de instrumento provido, com observação. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2286126-40.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 18/03/2021; Data de Registro: 18/03/2021). No mesmo sentido: TJSP;  Agravo de Instrumento 2168436-87.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2020; Data de Registro: 29/09/2020; TJSP,  Agravo de Instrumento 2178350-78.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2020; Data de Registro: 29/09/2020. 12 Art. 191. A extinção das obrigações do falido requer prova de quitação de todos os tributos.  _____________  SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2021 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2018. COSTA, Daniel Carnio. O fresh start no novo sistema de insolvência empresarial brasileiro. Recuperação de empresas e falências - Alterações da Lei nº 14.112/2020 In Revista do Advogado, nº 150, junho 2001, ed. ASSP, p. 10 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters, 2021. 1200 p SCALZILLI, João Pedro; BERNIER, Joice Ruiz. O administrador judicial e a reforma da lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2022
Há muito em comum entre os problemas econômicos enfrentados pelo Brasil e pela Argentina, que afligem também muitas outras economias mundo afora, coincidências que, além das boas relações internacionais de integração econômica e de vizinhança que se possam estimar, leva-nos a voltar a atenção à forma de tratamento dos problemas da empresa em crise pelo sistema de reestruturação argentino e o papel reservado ao Judiciário naquele cenário. Na recente história do Direito Concursal argentino, as duas anteriores leis que regeram a matéria, a lei 19.551, de 1972, e a lei 24.522, de 1995, coincidiram no aspecto de permitir ao devedor solução de caráter preventivo para evitar a liquidação, dispondo ser necessária apresentação de proposta que atendesse ao pagamento de uma porcentagem mínima dos créditos para ser admitida judicialmente. Naquele contexto, para não ser abusiva, deveria ser considerado o pagamento superior a 40% dos valores devidos; do contrário as consequências implicavam a quebra do devedor1. Muitas eram as diferenças, contudo, entre os dois diplomas referidos, eis que a Lei 24.522 alterou significativamente a matéria, com novo conjunto normativo sancionado no ano de 1995, que abandonou a ideia de concurso preventivo como mera ferramenta de refinanciamento de passivos em favor de visão mais ampla, que contemplava a reestruturação integral e definitiva das obrigações. Por outras palavras, deixou-se o concurso preventivo como instituição vinculada à moratória, para encampar o ideal de reorganização ou reestruturação empresarial, eliminando, inclusive, o "acuerdo resolutorio", possível na lei anterior durante a quebra2. A partir daquela reforma, não mais se exigia proposta única para todos os credores; possibilitou-se o oferecimento de propostas alternativas; adotou-se o instituto da novação, fazendo nascer uma nova obrigação, além de incentivar-se a participação dos credores por meio dos comitês provisório e definitivo, com os quais podiam obter informações e exercer "certo tipo de controle"3. Como aponta a doutrina, talvez a inovação mais significativa da Lei 24.522 foi a referente à matéria de homologação do acordo, contida no artigo 52, que dispunha que, não deduzidas impugnações à proposta ou rechaçadas as interpostas, ao juiz cabe homologar o acordo. A alteração foi substancial, porque o regime da lei anterior4 "outorgava ao juiz un conjunto de faculdades que excedían el control de legalidade del acuerdo, para introducirse en aspectos vinculados al mérito u oportunidade del mismo"5, como uma tendência já consagrada no Direito argentino6. A crise econômica vivenciada pela Argentina em 2002, representada por uma recessão generalizada da economia no contexto de emergência produtiva e creditícia, trouxe consequências ao Direito Concursal, com modificações substanciais à Ley de Quiebras, que chegou inclusive a suspender por até 180 dias os pedidos de falências, dentre outras medidas drásticas. Após três meses, o Congresso Nacional "voltou atrás em seus passos", regressando ao regime das Lei n.24.522, com reformas parciais em seu texto7. A matéria passou a ser regida conforme a alteração que se deu pela Lei 25.589 de 2002 à chamada Ley de Consursos y Quiebras (LCQ), cuja exposição de motivos e os institutos que dela emergem nos dão conta de que o objetivo a ser perseguido é o da continuidade econômica e não a liquidação da empresa8. E esse intento persistiu até mesmo durante a Pandemia iniciada em 2020, que proporcionou aguda crise no sistema econômico da Argentina, e de todo o mundo de uma forma geral, que foi enfrentado, contudo, apenas com "ferramentas de emergência"9. Na atualidade, o sistema concursal argentino, além da quiebra, que se destina à liquidação da empresa, conta com três processos concursais que objetivam a reestruturação do devedor, que são o concurso preventivo, o acuerdo preventivo extrajudicial e o salvatage de entidades deportivas10. Pelo sistema atual, houve sensível redução dos poderes do juiz em matéria de homologação do plano, restrita ao controle de legalidade sobre os termos da decisão da assembleia em cotejo com as disposições do sistema jurídico em seu conjunto, mas que não deve voltar-se aos aspectos econômicos do acordo11. Conforme aponta a doutrina, foram evitadas discussões sobre questões subjetivas, como "interesse geral, a proteção do crédito, as possibilidades de cumprimento ou a ponderação da conduta do devedor a respeito das causas que levaram à cessação de pagamentos e quanto resulta merecedor de uma solução preventiva"12. Não obstante, a lei 25.589, alterando o artigo 52 da lei 24.522, permite ao juiz homologar a proposta mesmo quando o devedor não tenha obtido as maiorias necessárias, se pelo menos uma das categorias quirografárias tenha aprovado o acordo; se houver a conformidade de pelo menos três quartos do capital quirografário; se não houver tratamento discriminatório dos credores dissidentes e se a solução proposta não importar recebimento menor do que em caso de quebra. Não há mais o limite de pagamento de porcentagem mínima dos créditos, antes expresso na lei; mas, a doutrina aponta haver necessidade de representar a proposta solução melhor do que a que se teria com a quebra do devedor13   e que a apreciação econômica da oferta cabe aos credores, ou seja, não é algo que seja suscetível de controle judicial14.   Em contrapartida, a Lei n.25.589 incorporou previsão expressa no sentido de proibir a homologação de acordos abusivos ou em fraude à lei15, dispondo a lei que a proposta que obteve sucesso na aprovação pelas maiorias em assembleia deve ser reconhecida pelo juiz, que deixará de homologar o acordo, entretanto, se representar hipótese de abuso do direito ou fraude a lei (art.52 da LCQ)16. E a jurisprudência, que antes incorporava o papel de análise sobre questões econômicas17, adaptou-se ao modelo instituído, deixando aos credores a deliberação em relação a esses temas18, ponderando, quando da aferição de eventual abuso do direito da proposta do devedor ou da recusa do credor, a necessária conciliação entre os objetivos da preservação da empresa e o da tutela do crédito19, evitando a fraude e outras soluções que contrariem a boa-fé20. Certamente, não há no sistema argentino uma fórmula concordatária única em que se moldura a solução que deve ser adjudicada pelo juiz, existe, antes, possibilidades abertas21, reconhecendo ao controle judicial o conhecimento sobre a difícil situação da empresa em crise22 e os inegáveis impactos causados aos credores, à economia e à sociedade de forma difusa23, para abordagem de questões de direito e a abstenção quanto às questões econômicas, eis que lá, como aqui, o sistema de reorganização é baseado na realidade de mercado e no consenso a que podem chegar o devedor e os credores da empresa em crise. __________ 1 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.32 2 Cf. RICHARD, Efraín Hugo. "Acuerdos preventivos abusivos o en fraude a la ley". p.1. (disponível aqui, acesso em 16/01/2017) 3 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. pp.132-137. 4 Art. 61 da Ley 19.551. 5 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.156. 6 Note-se que a ley 11.719, além de relacionar as hipóteses em que os credores inconformados com a aprovação majoritária do acordo no art.38, já dispunha que o convenio não deveria ser homologado quando contrário "al intrerés de la generalidad de los acreedores" (art.40). Se, por um lado, o juiz poderia deixar de homologar acordo aprovado, por outro, não tinha a liberdade de impor acordo que não houvesse sido aceito pela maioria, pois, como aponta a doutrina, "el juez convertiría su decisión en creadora de derechos, lo que repugna a la esencia y naturaliza de la función judicial" (Cf. MARTINEZ, Francisco Garcia. El concordato y la quiebra en el Derecho argentino y comparado. T.1. 2ª edição. Buenos Aires: Victor P. de Zavalia Editor. 1953. p.202). 7 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. pp.85-99. 8 Cf. TROPEANO, Darío. "Esbozo sobre el abuso em materia concursal", in Contribuiciones para el estúdio del Derecho Concursal: Homenage al Professor Dr. Ariel Á. Dasso. 1ª edição. Buenos Aires: Ad-hoc. 2005. p.657. 9 Conforme aponta a doutrina argentina: "Es claro que, en la actualidad y aún en épocas de una aguda crisis recesiva potenciada por la pandemia mundial provocada por el SARS-CoV-2, el parlamento no intentó una reforma del estamento concursal a través de herramientas concursales "de emergencia" como las empleadas en otras crisis vernáculas (años 2001/2002) a través de la sanción de las leyes 25.561, 25.563 y 25.589 (Cf. ALONSO, Ana C. y CULLARI, Carlos. PROPUESTA DE SANEAMIENTO ACTIVO PARA LA NORMATIVA CONCURSAL, in Derecho concursal: perspectivas actuales. Coord. Darío J. Graziabile. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: DyD, 2021, p. 54). 10 Cf. Gerbaudo, Germán E. Pensar el derecho concursal frente a la pandemia por COVID-19, p.4. Disponível em: http://cdi.mecon.gov.ar/bases/jurid/19402.pdf. Último acesso em 28.10.2022. 11 No dizer da doutrina:  La protección del crédito de los acreedores se ha visto reflejada en 1995 con la supresión del control de mérito del acuerdo preventivo que poseía el juez con arreglo a lo dispuesto por el art. 61 de la ley 19.551. De esta manera se reconoce que son los acreedores los únicos jueces de la conveniencia del acuerdo preventivo (Cf. Germán E. Gerbaudo. "Sistema y Filosofía de la ley concursal argentina. El derecho concursal entre la tutela del crédito y la protección del deudor", in Diario Comercial Nro. 294 - 24.02.2021. 12 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.157 - Tradução nossa. 13 Consoante a doutrina: "... la comprobación de que la concreta propuesta aprobada es la mejor que puede formular la concursada, esto es, que el concurso no implicará un indebido enriquecimiento de la deudora en perjuicio de los acreedores, en lugar de un sacrificio compartido, y que es imposible mejorar la propuesta presentada"...." corresponde señalar que todas las pautas recién referidas deben ser tenidas en cuenta por el juez concursal y valoradas, no mediante una fórmula matemática, sino en función de las circunstancias de cada caso y atendiendo a la prioridad que corresponde asignar a los diversos valores en juego (acreedores, deudor, empresa, trabajadores, vulnerables, Fisco, Estado, etc.) en el marco del "derecho concursal pós-moderno" (Cf. Eduardo M. FAVIER DUBOIS. LA SEGUNDA QUIEBRA DE "CORREO ARGENTINO". ANTECEDENTES. CUESTIONES JURÍDICAS Y ENSEÑANZAS, p.12. Disponível aqui. Última consulta: 12.10.2022). 14 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.35. Consoante aponta o autor, também no Direito argentino a homologação da proposta implica em novação das obrigações e, até mesmo em caso de quebra, as obrigações a serem verificadas são aquelas nascidas após o acordo homologagado e não as obrigações originais (pp.50-51). 15 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. pp.73-74. 16 Conforme sustenta Darío Tropeano, com base no direito argentino, "abuso no es oferecer poco o mucho, porque ya dijimos se trata de la búsqueda de una finalidad continuativa. Abuso podia ser una espera sine die cuando efetivamente los conformantes esperan cobrar el percentual oferecido en un plazo que creen previamente estabelecido; abuso es no permitir representantes de acreedores en el directorio de la nueva sociedad capitalizada con acreencias concursales, o la imposicón de propuestas residuales a los no conformantes y tardios, lo que implicará discriminación, o condicionar las fechas de pago de las cuotas concordatarias en días vista de dificultosa determinación; abuso es entregar bienes aparentando un estado o condición que ellos no tienen, bonos u obligaciones negociabiles con condiciones que dificultan el ejercicio de posteriores derechos, o someter a los tardios y revisionistas a una forma de pago más gravosa que a los tempestivos, categorizados". Por outro lado, aponta o autor que o percentual que levará à quitação e o tempo de espera por mais sacrificantes que possam parecer, representam a vontade das maiorias e poderão ser livremente apreciadas pelos credores, o que não deve retirar a validade do acordo (Cf. TROPEANO, Darío. "Esbozo sobre el abuso em materia concursal", in Contribuiciones para el estúdio del Derecho Concursal: Homenage al Professor Dr. Ariel Á. Dasso. 1ª edição. Buenos Aires: Ad-hoc. 2005. p.658). 17 Nesse sentido: "La propuesta aceptada por los acreedores, que implica una quita nominal del 60% del capital adeudado y una espera de más 15 años para el cobro de las acreencias, no resulta razonable. Importa un ejercicio abusivo por parte del deudor y de los acreedores que lo votaron, que desnaturaliza el instituto del concurso preventivo al no satisfacer la exigencia mínima de integridad patrimonial establecida en el art. 43 de la ley 24.522; toda vez que, además de haberse pesificado los créditos, se ha previsto el pago de intereses compensatorios a una tasa mínima (libor), ante una nueva realidad inflacionaria, al derogarse la ley de convertibilidad, que si bien escasa y controlada actualmente, ha de influenciar sobre las obligaciones dinerarias reclamadas, que en el plazo de pago otorgado significa que la quita resulta claramente superior a la programada". (Suprema Corte de Justicia -Província de Buenos Aires - CC0000 DO 80357 RSD-183-4 S 11/05/2004 Juez PORTIS (MA) Carátula: Cosulich, Julio Gabriel s/ Pequeño Concurso s/ Incidente art. 250 del CPCC Magistrados Votantes: Portis - Gómez Ilari - Eyherabide. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022). 18 Nesse sentido: "La reglamentación contenida en el art. 45 de la ley 24522 toma en cuenta la libertad del acreedor o del deudor para decidir, con amplias facultades, en torno a la propuesta del concordato, lo que incluye las prerrogativas de los distintos interesados para negociar, sin restricciones, en orden a la satisfacción de los distintos intereses implicados en el concurso preventivo. De allí que corresponda excluir del cómputo de mayorías a aquellos organismos fiscales -en el caso, la AFIP-DGI- cuyos funcionarios se encuentran constreñidos en sus facultades de negociación por rígidas resoluciones que determinan específicamente las condiciones en que se prestará el acuerdo a la propuesta del deudor" (Suprema Corte de Justicia -Província de Buenos Aires - CC0002 AZ 52754 RSD-170-8 S 02/12/2008 Juez PERALTA REYES (SD). Carátula: Ronicevi SECPA s/Concurso Preventivo. Magistrados Votantes: Peralta Reyes-De Benedictis-Galdós. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022) 19 Nesse sentido: "La referencia a la ciencia económica efectuada por la cámara para definir el valor real y actual de lo ofrecido, no constituye un recurso argumental dogmático, en el análisis del abuso del derecho relacionado con la admisibilidad de una propuesta de acuerdo preventivo, el juez debe apreciar objetivamente si el deudor, en el ejercicio de su derecho, ha contrariado la finalidad económico social del mismo que, en la especie, no está solamente dada por la conservación de la empresa como fuente de producción y trabajo, sino que también está definida por el logro de una finalidad satisfactiva del derecho de los acreedores, la cual naturalmente resulta negada cuando la pérdida que se les impone a ellos resulta claramente excessiva".  (Celulosa Campana SA (TF 29047-I), 03/03/2015. Fallos: 330:834 - Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina. Disponível aqui. Última consulta em 12.10.2022). 20 Nesse sentido: "En el análisis del abuso del derecho relacionado con la admisibilidad de una propuesta de acuerdo preventivo, el juez debe apreciar objetivamente si el deudor, en el ejercicio de su derecho, ha contrariado la finalidad económico-social de aquél, que está dada no sólo por la conservación de la empresa como fuente de producción y trabajo sino que también está definida por el logro de una finalidad satisfactiva del derecho de los acreedores, no pudiendo prescindirse de las situaciones jurídicas abusivas creadas por el entrelazamiento de un cúmulo de derechos guiados por una estrategia contraria a la buena fe, las buenas costumbres o los fines que la ley tuvo en miras al reconocerlos". (Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina - Sociedad Comercial del Plata S.A. y otros, 620/2006-S-42-RHE 20/10/2009. Disponível aqui. Última consulta em 12.10.2022). 21 Nesse sentido: "Si bien no puede establecerse en una fórmula concordataria única y taxativa en qué puede consistir la propuesta de acuerdo preventivo, en tanto las que pueden hacerse y aceptarse resultan infinitas, pudiendo acogerse cualquier arreglo entre el deudor y los acreedores que permita solucionar las expectativas de quiebra siempre que se respeten los principios que establece la legislación concursal, no resulta admisible la condonación total de las deudas, pues ello importa un verdadero ejercicio abusivo de los derechos por parte del deudor (art. 1071 del CC) desnaturalizando el instituto del concurso preventivo y encuadrable en la noción de objeto ilícito de la regla moral ínsita en el art. 953 del citado código". (Suprema Corte de Justicia -Província de Buenos Aires - CC0100 SN 5984 RSD-243-3 S 28/08/2003 Juez RIVERO DE KNEZOVICH (SD. Disponível aqui. Última consulta em 12.10.2022). Carátula: Negri Roberto Angel s/Concurso preventivo. Observaciones: (Trib.Orig. JC 0503). Magistrados Votantes: Rivero de Knezovich-Porthé-Telechea. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022). 22 Conforme aponta Vítolo: "No es una novedad -en mi pensamiento- que las empresas en crisis, dentro de un marco de procesos de concurso preventivo, o avocadas a una quiebra, están como en el limbo. Desde el punto de vista económico y financiero, no se sabe realmente a quién pertenecen, si a su propietario actual o a sus acreedores" (Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. La reforma de la ley de quiebras en la pospandemia y la necesidad de sancionar un código de bancarrotas, a 25 años de vigencia de la ley 24522. Disponível aqui. Última consulta: 12.02.2022).   23 Conforme precisamente tem apontado a jurisprudência: "Así, si se rechazara la viabilidad del concurso preventivo y se declarara la quiebra, se generaría un daño injustificado no solo a los deudores  y  a  los  acreedores  en  los  términos vistos,   sino   también   a  los  titulares  de  aquellos  otros intereses   que  convergen   en  torno a la empresa. Estamos ante una deudora que ha logrado continuar con su actividad pese a sus dificultades y que hoy   da   empleo   a   más   de   cuarenta personas.  En un tiempo tan difícil como el que atraviesa no solo nuestro país, sino   también el  mundo,  el  juez  debe  ser especialmente   prudente  al  tomar  decisiones  como  esta,  que podrían  generar  injustificadamente   la   destrucción  de  esos valores, en cuya preservación hay interés público".(Cámara Nacional de Apelaciones en lo Comercial. Machin-Villanueva. 24995/18REPLEN SRL S/PREVENTIVO FALÊNCIA. 5/06/22. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022).
Na coluna do dia 30 de agosto de 2022, intitulada A novela do Fisco na Recuperação judicial: cenas do próximo capítulo, Daniel Carnio Costa e Liliane Midori Yshiba Michels apresentaram preciso relato da discussão envolvendo o processo de recuperação e a dívida tributária, seja sob o aspecto jurisprudencial, seja sob o aspecto legislativo. Para os autores, o próximo capítulo será protagonizado pelo Superior Tribunal de Justiça, que, recentemente, por meio de decisão monocrática, voltou à cena, estabelecendo a divergência, ainda que momentânea, entre a Justiça Ordinária (TJSP) e a Corte Superior. Paulo Penalva, na coluna do dia 13/09/2022, também discorreu sobre o assunto, e o fez sob a ótica do artigo 57. Após afirmar que a possibilidade de equacionamento do passivo tributário, por meio de parcelamentos, não tem influência na interpretação do artigo 57, concluiu, com inteligência, que o equacionamento do passivo tributário é condição econômica e não condição jurídica para a superação da crise do empresário. Em razão da inegável importância, volto ao assunto nesta coluna. Recordo-me que em janeiro de 2006 (vejam que a novela é antiga) atuei no caso Parmalat. Ainda estava no Ministério Público de primeiro grau e, após a aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia de credores, a Fazenda Pública Estadual peticionou pedindo a apresentação das certidões previstas no artigo 57 da Lei 11.101/05. A manifestação1 da Promotoria de Justiça foi no sentido da inconstitucionalidade do artigo 57. A decisão de lavra do Magistrado Alexandre Lazzarini dispensou a apresentação das certidões negativas de tributo, e o fez por mais de um fundamento2. A inconstitucionalidade defendida pela Promotoria de Justiça jamais foi acolhida; nem discutida, a bem da verdade. Eu continuo convencido da inconstitucionalidade da norma, que é uma sanção política. Porém, o assunto desta coluna é outro, que parte da premissa de que a lei é constitucional. Com a reforma da Lei 11.101/05, em 2020, foram introduzidas modificações em prol do Fisco. Contudo, como bem explicaram Daniel Carnio e Liliane Midori, "A reforma promovida pela Lei n. 14.112/2020 não alterou a opção legislativa em relação à exclusão dos créditos tributários do processo de recuperação judicial". Essa é a questão essencial, e, por essa razão, o problema por mim suscitado em janeiro de 2006 sobrevive e a ele retorno nesta coluna, ainda que muito brevemente, e por outra ótica. Sem falar de inconstitucionalidade, pretendo usar, como pano de fundo, a derrotabilidade, tema da teoria do direito. Pois bem. Recentemente, por ocasião do julgamento sobre a possibilidade de aplicação de equidade na fixação de honorários advocatícios de sucumbência (RESP 1.664.077), o fundamento do ilustrado voto vencido, de lavra da Eminente Ministra Nancy Andrighi, foi a derrotabilidade. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 O parecer foi publicado no livro Jurisprudência da nova lei de recuperação de empresas e falências, de Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo, RT, 2006, p. 132-143. 2 A decisão foi publicada no livro referido na nota anterior, p. 152-155.
Introdução A lei 14.112/2020 introduziu relevantes alterações no sistema recuperacional contemplando a relação jurídico-tributária entre o devedor em recuperação judicial e o fisco. Destacam-se alterações bem-vindas, como aquelas que racionalizam a tributação do lucro sobre os ganhos obtidos com a redução das dívidas na aprovação do plano de recuperação judicial e as possibilidades conferidas ao devedor em recuperação judicial para o equacionamento do passivo tributário. Além disso foi adotado meio de cooperação já previsto no Código de Processo Civil de 2015 ("CPC/2015") para regular a prática de atos de constrição de modo a viabilizar o prosseguimento das execuções fiscais com a prática de atos de constrição sobre bens do devedor, para garantia de execuções fiscais como condição ao oferecimento de embargos de devedor, no caso de créditos controvertidos, ou para alienação e pagamento do crédito exequendo. O objetivo deste artigo é analisar os eventuais reflexos dessas alterações na orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") que abandona a literalidade do art. 57 da lei 11.101/2005, reproduzido no art. 191-A do Código Tributário Nacional ("CTN"), para dispensar a apresentação de certidões negativas de débito fiscal ("CND") como condição para o deferimento da recuperação judicial. Por comodidade, farei referência apenas ao art. 57 da leiº 11.101/2005.  O fundamento para dispensa de CND - breve contextualização histórica da jurisprudência Desde a época da antiga concordata, a apresentação de certidões negativas de débitos fiscais tem sido motivo de discussões e dificuldades no Brasil, país que adota o modelo federativo de Estado no qual o poder de tributar é exercido pela União, pelos Estados-membros, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, cabendo a cada uma destas entidades da Federação legislar sobre os seus respectivos tributos. Assim, cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir condições especiais de parcelamento dos seus tributos. Por isso, se o devedor em recuperação judicial for empresa com atuação de âmbito nacional, poderia ser chamada a apresentar centenas ou até milhares de certidões fiscais, a depender do alcance de sua atividade empresária.   A experiência mostra que além de todas as dificuldades enfrentadas por quem ousa empreender, gerar empregos, rendas, pagar tributos e contribuir para o desenvolvimento nacional, há ainda a complexidade do sistema tributário, que não raro é causa de demandas legítimas do setor privado contra exações reputadas indevidas. A burocracia, por sua vez, não facilita o cumprimento das obrigações tributárias principal (de pagar o tributo) e acessórias (deveres administrativos, instituídos no interesse da arrecadação e da fiscalização). A lei 11.101/2005 surgiu com a promessa de viabilizar a superação de crise pela empresa produtiva viável e, sem nenhum favor, em muitos aspectos representou mudança de paradigma em relação ao direito anterior, atingindo, assim, a sua finalidade. Não obstante, na questão pertinente à exigência de CND para concessão da recuperação judicial, os avanços não vieram da lei, mas da adequada ponderação de valores que a jurisprudência, designadamente do Superior Tribunal de Justiça, soube fazer ao longo dos quinze anos de vigência do texto original da lei 11.101/2005. Imaginou-se que a possibilidade de parcelamento em condições favorecidas, tal como prometido no art. 68 da lei 11.101/2005, viabilizaria o equacionamento do passivo tributário e a obtenção, pelo devedor em recuperação judicial, de certidões positivas com efeitos de negativa. Contudo, as leis especiais ou não vieram a tempo, ou o legislador ordinário não resistiu à tentação de valer-se do parcelamento favorecido como meio de coagir o contribuinte com as finanças já combalidas a confessar todas as suas dívidas tributárias, incluindo aquelas que considera indevidas, e que ao bom gestor não é lícito pagar sem discutir. No âmbito federal, a lei 13.043/2014 alterou a lei 10.522/2002, para autorizar um parcelamento com prazo estendido e escalonado, sem qualquer desconto, quer no principal, quer nas multas e encargos moratórios, e, em contrapartida, condicionou o parcelamento à renúncia ao direito de discutir - seja na via administrava, seja na judicial - a legalidade da exação, conforme dispôs o §2º do art. 10-A da lei 10.522/2002, na redação dada pela lei 13.043/2014. Foi nesse cenário, de omissão legislativa e de leis incompatíveis com o escopo da recuperação judicial que foi construída a jurisprudência do STJ, a partir do julgamento do julgamento pela Corte Especial do STJ do REsp 1.187.404/MT, da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão1. Da análise do REsp 1.187.404/MT, verifica-se que o voto do eminente Relator conclui que "nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resulta circunstância que - além de não fomentar - inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores", com forte fundamento em princípios e normas do direito concursal, consagrados na lei 11.101/20052. O voto do Ministro Luis Felipe Salomão destaca, também, a ausência, à época, de leis especiais de parcelamento. Não obstante, no plano racional, os fundamentos para a conclusão no sentido de que a apresentação de CND não é requisito para concessão da recuperação judicial estão lastreados na análise dos meios de superação da crise, contemplados na lei e na norma principiológica do art. 47 da lei 11.101/2005. No mesmo sentido, andou a Terceira Turma do STJ no julgamento do REsp 1.864.825/SP, da Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, do qual se destaca a conclusão sintetizada no seguinte trecho da ementa: "[Assim de se concluir que os motivos que fundamentam a exigência da comprovação da regularidade fiscal do devedor (assentados no privilégio do crédito tributário), não tem peso suficiente - sobretudo em função da relevância da função social da empresa e do princípio que objetiva sua preservação - para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira que o acomete"3. Afastada pela Terceira Turma do STJ a tese da violação da cláusula de reserva de plenário, a União ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal ("STF") reclamação, distribuída sob nº Rcl 43.169/SP, alegando que no julgamento do REsp 1.864.825/SP, a Terceira Turma do STJ teria violado a cláusula de reserva de plenário. Com apoio nos esclarecimentos prestados pela Ministra Nancy Andrighi, o Ministro Dias Toffoli negou seguimento à reclamação e tornou sem efeito a liminar antes concedida (decisão de 03/12/2020 - Dje de 03/12/2020)4. Mais recentemente, em sede de decisão monocrática, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino deferiu pedido de tutela de urgência (TP 4113/SP)5, que tem origem em caso no qual o plano de recuperação judicial foi homologado na vigência da lei 14.112/2020, com dispensa da apresentação de CND, tendo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP") acolhido recurso da União, para anular a sentença concessiva da recuperação judicial e determinar a apresentação de novo plano6. Pois bem, a decisão concessiva da tutela de urgência tem fundamento no princípio da preservação da empresa: "Verifica-se, contudo, plausibilidade do direito alegado pelo recorrente, uma vez que a jurisprudência desta Corte excepciona a imprescindibilidade do requisito previsto no art. 57 da LRF, verbis: Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional. E o faz em virtude do princípio da preservação da empresa e de sua relevante função social, ponderando-se o direito do devedor de buscar, nesse processo, a superação efetiva da crise econômico-financeira que o acomete." (DJe de 18/08/2022) Em síntese, a jurisprudência do STJ interpreta o art. 57 da Lei nº 11.101/2005 sistematicamente em harmonia com a norma do art. 47 da mesma Lei e com outros princípios do direito recuperacional, levando em conta inclusive, que o interesse maior é o da empresa, não raro em detrimento do próprio empresário, como apontam os meios de recuperação previsto no art. 50 da lei 11.101/2005. Efeitos das alterações introduzidas pelo §7º-B do art. 6º na interpretação do art. 57 da lei 11.101/2005 Antes da edição da lei 14.112/2020, a cobrança do crédito tributário encontrava-se em situação fragilizada, porque embora o §7º do art. 6º da lei 11.101/2005 estabelecesse que o deferimento do processamento da recuperação judicial não acarretava a suspensão das execuções fiscais, a jurisprudência da Segunda Seção do STJ se consolidou no sentido de que a competência para os atos de constrição, mesmo na execução fiscal, era exclusiva do juízo da recuperação judicial. Essa jurisprudência tem origem em casos de deferimento de atos de constrição, pelos juízos de execução fiscal, sobre bens essenciais para viabilizar o sucesso do plano de soerguimento7.   A situação acabou por se agravar com determinação de suspensão dos processos em tramitação versando sobre o tema, em razão da afetação, em 20.02.2018, pela Primeira Seção do STJ, do Tema Repetitivo nº 987, com a questão jurídica "[p]ossibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal"8. Contudo, esse cenário alterou-se como consequência da edição da lei 14.112/2020. Com efeito, após a desafetação do REsp 1.694.316/SP e do REsp 1.712.484/SP por decisões monocráticas9, a Primeira Seção no julgamento REsp 1.694.261/SP, da relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, "por unanimidade, determinou a remoção da submissão do recurso especial ao regime dos recursos repetitivos, cancelando-se o Tema Repetitivo 987, nos termos da proposta do Sr. Ministro Relator."10 Em seu voto no REsp 1.694.261/SP, o Ministro Mauro Campbell Marques, analisando o §7º-B do art. 6º da lei 11.101/2005, com a redação dada pela lei 14.114/2020, destacou que "cabe ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição efetuada em sede de execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional (art. 69 do CPC/2015), podendo determinar eventual substituição, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial." (destaque do original). Por sua vez, quando do julgamento do Conflito de Competência 181.190/AC, da relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, a Segunda Seção do STJ, por unanimidade, seguiu nessa mesma linha, concluindo, em síntese,  que (i) ["a partir da vigência da lei 14.112/2020, com aplicação aos processos em trâmite (afinal se trata de regra processual que cuida de questão afeta à competência), não se pode mais reputar configurado conflito de competência perante esta Corte de Justiça pelo só fato de o Juízo da recuperação ainda não ter deliberado sobre a constrição judicial determinada no feito executivo fiscal, em razão justamente de não ter a questão sido, até então, a ele submetida" e (ii) "a caracterização do conflito de competência entre os Juízos da recuperação judicial e da execução fiscal, pressupõe a "materialização concreta da oposição concreta do Juízo da execução fiscal à efetiva deliberação do Juízo da recuperação judicial"11. Portanto, restituiu-se ao Juízo da execução fiscal o poder de coerção, que autoriza a prática de atos de constrição sobre o patrimônio de empresa em recuperação judicial, independentemente de prévia deliberação do Juízo recuperacional. Como consequência dessas alterações, cabe à Fazenda Pública buscar na execução fiscal - que é o meio adequado, de fato e de direito - a satisfação dos seus créditos. Concluindo, os créditos tributários não estão sujeitos à recuperação judicial e a Fazenda Pública tem a prerrogativa de constituir o próprio título executivo e, com base nele, ajuizar a execução fiscal, sendo que os atos de constrição sobre o patrimônio do devedor devem obedecer ao disposto no § 7º-B do art. 6º da lei 11.101/2005. Logo, a interpretação literal do art. 57 da lei 11.101/2005 se afigura como desarrazoada, desproporcional e não contribui para o objetivo maior da lei: viabilizar a superação da crise pelo devedor em recuperação judicial. Efeitos das possibilidades de parcelamento e de transação na interpretação do art. 57 Ao analisar as possibilidades de parcelamento e transação não pode o intérprete deixar de levar em consideração que a lei 14.112/2020 é uma lei federal de aplicação restrita aos tributos federais, porque a possibilidade de a União conceder isenções de impostos estaduais, distritais e municipais - que era admitida na vigência da Emenda Constitucional nº 1/196912 - foi abolida pela Constituição de 198813. A experiência mostra que se são oferecidas condições atrativas para liquidação das dívidas tributárias, o fisco não precisa se valer de meios indiretos de cobrança, como a exigência de CND para concessão de recuperação judicial, porque é também interesse do devedor, em recuperação judicial ou não, equacionar o seu passivo tributário.   Além disso, diante da aprovação de um plano de recuperação judicial, sem que o devedor tenha apresentado as CNDs relativas aos tributos a que está sujeito, não se pode deixar de indagar a respeito da consequência da omissão. A possibilidade de convolação da recuperação judicial em falência, nesta hipótese, deve ser afastada por não haver previsão legal expressa nesse sentido. Da mesma forma, a extinção da recuperação judicial sem julgamento do mérito deve ser afastada não só em razão da falta de previsão legal, mas principalmente porque não estando o crédito tributário sujeito à recuperação judicial, a Fazenda Pública é carecedora de legitimo interesse jurídico para impedir a homologação do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores a ela sujeitos. Portanto, as possibilidades de equacionamento do passivo tributário, oferecidas a partir das alterações introduzidas pela lei 14.112/2020, devem ser interpretadas como relevante contribuição para que o devedor em recuperação judicial venha a equacionar o seu passivo tributário perante a União e, assim, superar a crise econômico-financeira. Mas essas possibilidades de equacionamento do passivo tributário não têm qualquer influência na interpretação sistemática dos arts. 57 e 47 da lei 11.101/2005 e, consequentemente, na inexigibilidade da CND como condição para concessão da recuperação judicial. Conclusão: o equacionamento do passivo tributário é condição econômica e não condição jurídica para superação da crise A lei 11.101/2005 trouxe para o ordenamento jurídico relevante avanço, ao colocar os titulares de créditos anteriores ao ajuizamento do pedido, na qualidade de protagonistas, porque o devedor deverá negociar com os seus credores os meios de superação da crise, o que deve ser feito com boa-fé e transparência. E aqui, não se pode deixar de lembrar, que o plano de recuperação judicial tem duas espécies de controle: um é o controle de legalidade, exercido pelo Poder Judiciário, outro é o controle econômico-financeiro, exercido pelos credores, durante todo o processo de recuperação judicial, através do comitê de credores e da assembleia geral de credores. As informações relativas ao passivo tributário são relevantes para fins de avaliação da viabilidade econômico-financeira do plano proposto pelo devedor, ou pelos próprios credores, nas hipóteses previstas na lei 11.101/2005, com as alterações introduzidas pela lei 14.112/2020. Assim, cabe ao devedor levar aos autos do processo recuperacional, para conhecimento do Juízo, do Ministério Público, do administrador judicial e dos titulares de créditos sujeitos, as informações relativas ao passivo tributário, como, aliás determina o art. 51, III, da lei 11.101/2005, que, com a redação dada pela lei 14.112/2020, estabelece que a relação nominal de credores deve incluir tanto os créditos sujeitos quanto os não sujeitos à recuperação judicial. O art. 57, tal como o art. 51, III, consagra norma que prestigia o dever de informar, a que fica sujeito o devedor em recuperação judicial, a quem não é lícito omitir informações relevantes para avaliação econômico-financeira da empresa. Não se trata, porém, de requisito para homologação da deliberação da assembleia geral de credores que tenha aprovado o plano de recuperação judicial. __________ 1 STJ - REsp: 1187404 MT 2010/0054048-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 19/06/2013, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 21/08/2013. 2 Destaque-se, ainda o seguinte trecho do voto do Ministro Luis Felipe Salomão: "3. Analisando a questão pelo ângulo do direito concursal, penso que a solução para o caso concreto deve observar que, no caso da recuperação judicial da empresa, esta não pode ser observada a partir da amesquinhada visão de que o instituto visa a proteger os interesses do empresário, em detrimento de outros não menos legítimos. Na verdade, o valor primordial a ser protegido é o da ordem econômica, bastando analisar com mais vagar os meios de recuperação da empresa legalmente previstos (como, por exemplo, os incisos III, IV, V, XIII e XIV do art. 50 da LRF), para se perceber que, em alguns casos, é exatamente o interesse individual do empresário que é sacrificado, em deferência da preservação da empresa como unidade econômica de inegável utilidade social. Cumpre sublinhar também que, em se tratando de recuperação judicial, a nova Lei de Falências traz uma norma-programa de densa carga principiológica, constituindo a lente pela qual devem ser interpretados os demais dispositivos. Refiro-me ao art. 47, que serve como um norte a guiar a operacionalidade da recuperação judicial, sempre com vistas ao desígnio do instituto, que é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". 3 STJ - REsp: 1864625 SP 2019/0294631-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 23/06/2020, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/06/2020.  4 STF - Rcl: 43169 SP 0102138-58.2020.1.00.0000, Relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 03/12/2020, Data de Publicação: 04/12/2020. 5 STJ - TP: 4113 SP 2022/0251661-1, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 18/08/2022. 6 AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE HOMOLOGOU O PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL, COM DISPENSA DA CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. INSURGÊNCIA DA UNIÃO FEDERAL. HIPÓTESE DE PROVIMENTO. PLANO HOMOLOGADO APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA LEI Nº 14.112/2020, A QUAL MODIFICOU A SISTEMÁTICA PARA A REGULARIZAÇÃO TRIBUTÁRIA DAS EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL, JUSTAMENTE PARA VIABILIZAR A EFICÁCIA DO ART. 57, DA LEI Nº 11.101/05. (....)  ANULAÇÃO DA SENTENÇA DE HOMOLOGAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO NÃO IMPORTA, PORÉM, EM AUTOMÁTICA CONVOLAÇÃO DA RECUPERAÇÃO EM FALÊNCIA, POIS É POSSÍVEL A FORMULAÇÃO DE NOVO PLANO, INCLUSIVE ADEQUAÇÃO DA SITUAÇÃO FISCAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO DA UNIÃO FEDERAL PROVIDO. (Ementa do Acórdão do TJSP, transcrita na decisão concessiva da antecipação da tutela recursal).  7 CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DA EXECUÇÃO FISCAL E JUÍZO DA VARA DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÕES JUDICIAIS. EMPRESA SUSCITANTE EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO FALIMENTAR PARA TODOS OS ATOS QUE IMPLIQUEM RESTRIÇÃO PATRIMONIAL. 1. As execuções fiscais ajuizadas em face da empresa em recuperação judicial não se suspenderão em virtude do deferimento do processamento da recuperação judicial, ou seja, a concessão da recuperação judicial para a empresa em crise econômico-financeira não tem qualquer influência na cobrança judicial dos tributos por ela devidos. 2. Embora a execução fiscal, em si, não se suspenda, são vedados atos judiciais que reduzam o patrimônio da empresa em recuperação judicial, enquanto for mantida essa condição. Isso porque a interpretação literal do art. 6º, § 7º, da Lei 11.101/05 inibiria o cumprimento do plano de recuperação judicial previamente aprovado e homologado, tendo em vista o prosseguimento dos atos de constrição do patrimônio da empresa em  dificuldades financeiras. Precedentes. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do JUÍZO DA JUÍZO DA VARA DE FALÊNCIAS E ECUPERAÇÕES JUDICIAIS DO DISTRITO FEDERAL para todos os atos que impliquem em restrição patrimonial da empresa suscitante. (CC n. 116.213/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 28/9/2011, DJe de 5/10/2011.).  8 Foram selecionados como representativos da controvérsia: REsp 1.694.316-SP; REsp 1.694.261-SP e REsp 1.712.484-SP.  9 DJe de 23/04/2021 e de 20/04/2021, respectivamente.  10 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SUBMISSÃO À REGRA PREVISTA NO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 03/STJ. PROPOSTA DE CANCELAMENTO DE AFETAÇÃO. VIGÊNCIA DA LEI 14.112/2020, QUE ALTEROU A LEI 11.101/2005. NOVEL LEGISLAÇÃO QUE CONCILIA ORIENTAÇÃO DA SEGUNDA TURMA/STJ E DA SEGUNDA SEÇÃO/STJ. 1. Em virtude de razões supervenientes à afetação do Tema Repetitivo 987, revela-se não adequado o pronunciamento desta Primeira Seção acerca da questão jurídica central ("Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária.") 2. Recurso especial removido do regime dos recursos repetitivos. Cancelamento da afetação do Tema Repetitivo 987. (STJ - REsp: 1.694.261-SP, Primeira Seção, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 28/06/2021).  11 STJ - CC: 181190 AC 2021/0221593-7, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: DJ 07/12/2021. 12 Confira-se a redação do § 2º do art. 19 da EC 1/1969: "A União, mediante lei complementar e atendendo a relevante interêsse social ou econômico nacional, poderá conceder isenções de impostos estaduais e municipais." 13 Nesse sentido, a Constituição de 1988 estabelece: "Art. 151 - É vedado à União: (.....) III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios."
A reforma promovida pela lei 14.112/2020 não alterou a opção legislativa em relação à exclusão dos créditos tributários do processo de recuperação judicial, nos termos do art. 187 do CTN e do art. 29 da Lei de Execução Fiscal. Todavia, a lei 14.112/2020, ao modificar a lei 10.522/2002, dando nova redação ao art. 10-A e incluindo os arts. 10-B e 10-C, promoveu significativas e relevantes transformações na postura do Fisco no processo de recuperação judicial, ao oferecer à empresa recuperanda instrumentos para regularização do passivo fiscal em condições mais vantajosas e eficientes que a realidade legislativa anterior permitia, como o parcelamento especial e a transação tributária especial. As alternativas de equalização do passivo fiscal criadas pela reforma têm por finalidade viabilizar - ao menos essa é a intenção do legislador - a obtenção da certidão negativa de débitos tributários ou positiva com efeitos de negativa e, com isso, igualmente e em tese, a concessão da recuperação judicial, na forma dos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005. Com efeito, o cenário legislativo anterior praticamente inviabilizava o cumprimento do disposto nos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005, na medida em que a lei não apresentava alternativa viável de equacionamento do passivo fiscal. Durante vários anos, a legislação não oferecia aos devedores em recuperação judicial planos de parcelamento fiscal em condições mais favoráveis quando comparados com os REFIS disponíveis aos devedores em geral. Levando em consideração a ausência de lei específica para regulamentar o parcelamento tributário para as empresas recuperandas, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de dispensar a certidão de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial1. O parcelamento específico de que trata o art. 68 da lei 11.101/2005 foi, na prática, instituído com a edição da lei 13.043/2014, por meio da inclusão do então art. 10-A na lei 10.522/2002. Entretanto, esse parcelamento não atendia às finalidades legais, pois dava às empresas recuperandas tratamento mais rigoroso do que aquele oferecido aos devedores em geral, além de exigir a inclusão no parcelamento específico de todos os débitos tributários da empresa recuperanda, ainda que fossem objeto de discussão judicial ou estivessem com a exigibilidade suspensa. Diante da violação aos princípios da isonomia e da inafastabilidade da jurisdição pelo dispositivo legal acima mencionado, o Superior Tribunal de Justiça permaneceu aplicando o entendimento anteriormente adotado2, não exigindo a apresentação das certidões de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial. No julgamento do REsp n. 1.864.625/SP3, o Superior Tribunal de Justiça reforçou o entendimento anterior, reputando inaplicável o art. 57 da Lei n. 11.101/2005 após ponderação realizada conforme o princípio da proporcionalidade, ante a aparente incompatibilidade entre os arts. 57 e 47 da lei 11.101/2005, concluindo que a exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal não era adequada nem tampouco necessária para a concessão da recuperação judicial. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a questão no pedido de liminar formulado na Medida Cautelar na Reclamação Constitucional n. 43.169/SP, que teve como objeto a decisão proferida no REsp n. 1.864.625/SP, tendo o Ministro Luiz Fux deferido a liminar para sobrestar os efeitos da decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no referido recurso especial, aplicando-se o contido nos artigos 57 da lei 11.101/2005, e 191-A do CTN, até o julgamento final da referida Reclamação, já que a aplicação do art. 57 da lei 11.101/2005 teria sido afastada com fundamento no princípio da proporcionalidade, por meio do exercício do controle difuso de constitucionalidade, sem que a Corte Especial, que seria a competente, tivesse analisado a questão (cláusula de reserva de plenário). Em acréscimo, registrou que a mora legislativa em relação ao parcelamento específico a que faz menção o art. 68 da lei 11.101/2005 havia sido sanada com a edição da lei 13.043/2014. Contudo, essa Reclamação Constitucional foi redistribuída ao Ministro Dias Toffoli, que acabou negando-lhe seguimento, ao reconhecer inexistente a situação que caracterizaria violação à Súmula Vinculante n. 10 e ao art. 97 da Constituição Federal (cláusula de reserva de plenário), o que acarretou, por consequência, a revogação da liminar inicialmente concedida. A edição da lei 14.112/2020, entretanto, criou as alternativas de equacionamento do passivo fiscal, em tese, proporcionais e adequadas. A reforma aproximou mais o Fisco da recuperação judicial para que lhe seja assegurado um tratamento, na medida do possível, semelhante ao concedido aos demais créditos sujeitos à recuperação judicial. Diante da criação do parcelamento especial e da possibilidade de transação fiscal, surgiram julgados que indicam possível alteração do entendimento jurisprudencial que até então prevalecia4. Em contrapartida, diversas decisões proferidas pelos tribunais pátrios parecem não ter acompanhado a alteração promovida pelo legislador, o que indica que em significativa parte dos julgados ainda se aplica o entendimento de que a regra que exige a apresentação das certidões de regularidade fiscal deve ser flexibilizada para que tais certidões não sejam exigidas para fins de concessão da recuperação judicial. Recentemente, em decisão monocrática proferida no Pedido de Tutela Provisória n. 4113/SP, publicada no DJe em 18/08/2022, o Relator Ministro Paulo de Tarso concedeu efeito suspensivo ao recurso especial para sobrestar os efeitos do acórdão que anulou a decisão de homologação do plano de recuperação judicial, e entendeu que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativa à questão da exigência de certidões negativas de débito para concessão da recuperação judicial, mesmo com a possibilidade de parcelamento do débito, não foi alterada. Apesar disso, ainda remanesce a dúvida de como a Corte Superior, por meio de suas Turmas e/ou Seção competentes, a quem incumbe uniformizar a interpretação da legislação federal no país, se posicionará, diante do atual cenário legislativo, que disponibilizou novos instrumentos às empresas em recuperação judicial para equalização do seu passivo fiscal, o que, em tese, permitiria a aplicação, na prática, do art. 57 da lei 11.101/2005 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional. Vale destacar, por fim, que a Fazenda Nacional vem regulando a possibilidade de parcelamentos e de transação fiscal, na tentativa de oferecer concretamente aos devedores a possibilidade de fruição desses direitos previstos em lei. A Portaria PGFN n. 6.757, de 29/07/2022 regulamentou a transação na cobrança de créditos da União e do FGTS (já alterada pela Portaria PGFN 6.941, de 04/08/2022, que revogou o inciso II do art. 36) e apresentou regras de utilização dos créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL. Não obstante a louvável iniciativa do Fisco, existem, em princípio, elementos indicativos de ilegalidade por excesso de poder regulamentar, em razão de alteração dos critérios da lei regulamentada (lei 14.375/2022, que alterou a lei 13.988/2020), ao restringir direitos previamente estabelecidos na referida lei. Essas ilegalidades da regulamentação fiscal podem ser corrigidas pela via judicial, enquanto não revistas pelo próprio Fisco. De toda forma, resta claro que se caminha em direção à solução do impasse do crédito fiscal na recuperação judicial, estando cada vez mais próximo o momento em que o Superior Tribunal de Justiça dará a palavra final sobre essa questão de direito federal. __________ 1 O julgamento paradigmático em relação a esse entendimento foi proferido no REsp n. 1.187.404/MT, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19/6/2013, DJe de 21/8/2013. 2 Nesse sentido: REsp n. 1.173.735/RN, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/4/2014, DJe de 9/5/2014. 3 REsp n. 1.864.625/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/6/2020, DJe de 26/6/2020. 4 Nesse sentido: TJSP;  Agravo de Instrumento 2244665-54.2021.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Americana - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/04/2022; Data de Registro: 11/04/2022. E ainda: TJSP;  Agravo de Instrumento 2035180-77.2022.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 24/05/2022; Data de Registro: 30/05/2022.
Uma das teses com maior acolhida pela literatura jurídica e pela jurisprudência que tratam da matéria de recuperações e de falências é a chamada subcapitalização material. Cuida-se, na verdade, de considerar, sem critério muito preciso, a sociedade empresarial falida ou em recuperação como insuficientemente capitalizada para enfrentar os riscos e as agruras impostas pela atividade constante de seu objeto social. Como consequência, impõe-se a desconsideração da personalidade jurídica e a constrição do patrimônio dos sócios. Tratados jurídicos foram escritos tentando justificar a tese supracitada, que acabou por conseguir razoável espaço na jurisprudência. Mas será que realmente procede a alegação de que dada sociedade pode ter capital insuficiente para seu objeto social? Será que o mundo jurídico ignora a realidade, mais uma vez, ao consagrar teoria sem base econômico-financeira? Este artigo busca analisar essas e outras questões correlatas. Definições - Como a teoria se insere no mundo jurídico A doutrina costuma conceituar duas formas de subcapitalização: a material e a nominal. A primeira (e única que tratamos neste artigo) caracteriza-se pelo nível insuficiente de capital social em conjunção com proporção majoritária de financiamento por capital de terceiros (= passivo). A segunda ocorreria no caso de os sócios realizarem financiamento da sociedade por meio de passivo (p.ex.: utilizando contratos de mútuo) para obterem prioridades de recebimento em eventual falência. A jurisprudência, por seu turno, acolheu a tese em alguns julgados, autorizando a desconsideração da personalidade jurídica por subcapitalização, como se verifica no exemplo seguinte: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA. GRUPO ECONÔMICO CONFIGURADO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ABUSO DE DIREITO. SUBCAPITALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ART. 50 E 187 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO, OMISSÃO OU ERRO MATERIAL. 1. Inexistência de obscuridade, contradição, omissão ou erro material no presente acórdão, uma vez que a parte embargante demonstra, apenas, inconformidade quanto às razões jurídicas e a solução adotada no aresto atacado. 2. A falida acumulou dívidas que alcançavam R$ 700.000,00, desde o ano de 2009 até a data do pedido de autofalência, em fevereiro de 2011. Ocorre que ainda no ano de 2009, em auditoria realizada nas contas da falida, foi indicado o aporte de capitais, o que não foi atendido pelas empresas controladoras, de acordo com o teor do documento de fl. 628 dos autos. 3. Dessa forma, evidente o abuso do direito por parte das empresas sócias controladoras, ante a clara subcapitalização havida pela não manutenção do capital necessário para o pleno cumprimento do objeto social da falida. 4. O Julgador não está obrigado a se manifestar a respeito de todos os fundamentos legais invocados pelas partes, visto que pode decidir a causa de acordo com os motivos jurídicos necessários para sustentar o seu convencimento, a teor do que estabelece o art. 371 da novel lei processual civil. 5. Ausência dos pressupostos insculpidos no art. 1.022 do novo Código de Processo Civil, impondo-se o desacolhimento do recurso. Embargos declaratórios desacolhidos. (TJRS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO QUINTA CÂMARA CÍVEL 70073675118 (CNJ: 0131626-45.2017.8.21.7000) Vejamos, portanto, se a teoria tem fundamentos razoáveis. Capital social - Um marcador de origem e não de garantia A primeira falha da teoria da subcapitalização material está em, de alguma forma, sustentar que o capital social é um garantidor dos direitos dos credores. Essa crença, se não pode ser considerada falsa, é, ao menos, uma meia verdade. A rigor, o capital social é apenas um marcador da origem dos recursos que financiam uma atividade empresarial. Se provém de aportes dos sócios, classifica-se como capital social (ou reserva de capital). Empregando sentido figurado, o capital social caracteriza-se meramente como a identificação da porta de entrada dos recursos sociais. Dessa forma, se o balanço societário indica que há, p.ex., R$ 100 mil de capital social, isso não significa que os credores terão a sua disposição esse valor para satisfazer seus créditos na data em que foram cobrados. Esse valor, no balanço, simplesmente indica que, em determinado momento, os sócios decidiram aportar recursos para financiar a atividade. Se esses recursos estarão disponíveis no ativo, trata-se de outro problema e de algo que o montante de capital social aportado não garante, mesmo que devidamente integralizado. Vejamos um exemplo numérico simples: uma sociedade é capitalizada em seu início com um aporte de R$ 100 mil, em dinheiro. Esse valor, que entrou pela porta de entrada (= origem) do capital social, é aplicado no caixa da sociedade. Portanto, o balanço social (ignorando os passivos), estaria assim:   Se eventuais credores sociais tivessem de satisfazer seus créditos, teriam à disposição, no momento imediatamente posterior à constituição da sociedade, R$ 100 mil de caixa (e não de capital social!). No entanto, vamos imaginar que, alguns anos depois, essa mesma sociedade tivesse apresentado prejuízos acumulados de R$ 150 mil, pagando aos credores com a totalidade do que dispunha de caixa anteriormente (R$ 100 mil). Agora seu balanço hipotético estaria da seguinte forma: Veja-se que: O capital permaneceu o mesmo de antes = R$ 100 mil, mas não mais coincide com o montante de ativos; Restam créditos no montante de R$ 50 mil, que não serão satisfeitos, pois não há mais ativo (caixa) para o respectivo pagamento. Essa breve explanação, com um simples exemplo, leva-nos claramente a concluir que o capital social, ao contrário do que afirma boa parte da literatura jurídica e jurisprudencial, não é fonte de garantia dos direitos dos credores. Na verdade, o que garante o pagamento dos credores é o ativo societário (e não o capital!): os valores de capital social somente indicam a origem do ativo (= recursos próprios / dos sócios), nada indicando sobre a manutenção ou permanência de montantes para a satisfação dos credores. Portanto, constatar-se no contrato social que há "muito" ou "pouco" capital, isoladamente, nada significa em termos de garantia aos credores, uma vez que esses recursos aportados a título de capital podem sequer estar disponíveis no ativo. Aliás, fosse o capital garantia de maior segurança dos credores, não teríamos (ou teríamos menos) exemplos de sociedades empresárias que faliram quando dispunham de grandes quantias de capital social em seus balanços e contratos. Poder-se-ia questionar as conclusões iniciais a que se chega neste ponto, ao indagar: se o capital não é garantia do direito dos credores, por qual motivo a legislação societária exige que os credores anuam previamente a operações de redução de capital social (art. 1081 e seguintes do Código Civil e art. 173 e seguintes da Lei das sociedades por ações)? A pergunta supracitada, que parece contradizer as conclusões a que chegamos até aqui, na verdade, confirma-as. De fato, devemos lembrar que, como regra geral, a redução voluntária de capital é permitida pela legislação societária em duas hipóteses básicas: (1) perdas irreparáveis; (2) capital excessivo. No primeiro caso, não há o que se modificar no ativo: cuida-se de mera operação contábil (em contas de patrimônio líquido) em que se reduz o capital social para amortizar prejuízos acumulados. No segundo caso, há devolução de ativos, uma vez que parte dos recursos que o compunham retornarão ao patrimônio dos sócios. Assim, quando a redução decorre de perdas (= prejuízos), não há modificação no ativo garantidor dos direitos dos credores, não sendo necessário que estes anuam à redução do capital. Por outro lado, quando a redução decorre de devolução de capital (excessivo), os credores devem ser consultados não porque o capital, em si, diminui, mas porque o ativo (que decorreu da aplicação do aporte inicial de capital) deixará de fazer parte dos bens da sociedade, retornando para os sócios. Em suma: é pelas consequências da redução do capital no ativo que se consultam ou não os credores. Mais uma vez, a conclusão está confirmada: para os credores, o que importa é o ativo e não o capital social. A teoria da subcapitalização também conclui que deveria haver certo nível de capital social para fazer frente aos riscos oriundos de dívidas ou passivos. Será que essa conclusão é correta? É o que veremos no tópico seguinte. Proporção capital/passivos - Devemos exigir menores riscos? Uma outra conclusão que a teoria da subcapitalização material advoga é que pode haver abuso de direito quando não há capital suficiente em relação ao total de passivos assumidos pela sociedade. Assim, em havendo uma desproporção acentuada entre capital próprio (= patrimônio líquido do qual o capital faz parte) e capital de terceiros (= passivos), concluir-se-ia pelo nível insuficiente de capital próprio, uma vez que a sociedade estaria assumindo riscos exorbitantes diante do financiamento prioritário por capitais de terceiros. O efeito da subcapitalização, como asseverado anteriormente, estaria na desconsideração da personalidade jurídica. Para analisarmos a veracidade ou não dessas conclusões, devemos verificar quais são as fontes (ou origens) de financiamento de que dispõe uma sociedade empresária, além de seus custos e de seus riscos. A rigor, podemos resumir as fontes de recursos de uma sociedade em dois tipos: Capital próprio: na terminologia da literatura financeira, o capital próprio se identifica com o patrimônio líquido, abrangendo todos os recursos dos sócios empregados no financiamento da sociedade, sejam eles componentes do capital social, de lucros acumulados ou de reservas; Capital de terceiros: os quais corresponderiam aos recursos fornecidos por credores (p.ex.: empréstimos, financiamentos, debêntures, etc.). Portanto, o passivo e o patrimônio líquido (que abrange o capital social) são as duas fontes de recursos das sociedades, constituindo-se, respectivamente, em fontes de recursos próprios (capital próprio) ou fontes advindas de terceiros (capital de terceiros). Por sua vez, o ativo se constitui no total de bens e de direitos em que os recursos aportados pelas fontes foram aplicados. Resumindo, mais uma vez, temos: Fontes/origens de recursos: capital próprio e capital de terceiros, usualmente representadas do lado direito do balanço patrimonial; Aplicações de recursos advindos das fontes/origens: ativo, usualmente representado do lado esquerdo do balanço. Façamos um exemplo numérico/gráfico de um balanço patrimonial para demonstrar como isso ocorre: suponhamos que uma sociedade obtenha em seu início de operação R$ 50 mil dos sócios (aporte de capital) e outros R$ 50 mil de empréstimos de credores, ambos em dinheiro. Seu balanço ficaria organizado assim:   Percebe-se que as origens dos recursos foram duas e iguais (= R$ 50 mil) de capital próprio e de terceiros. Essas origens, somadas, tiveram destino e foram aplicadas no ativo (caixa) da sociedade, que totalizou R$ 100 mil. Explicadas como se formam as origens e como são aplicadas, cabe indagar: (1) qual a diferença de se financiar com capitais próprios ou de terceiros? (2) há alguma proporção ótima ou recomendável entre essas duas fontes de recursos? As diferenças entre o financiamento por capital próprio e por capital de terceiros se situam basicamente em dois pontos: (1) custos; (2) riscos. Regra geral, o financiamento por capital de terceiros (passivos) tende a ser mais barato que o financiamento por capital próprio (recursos dos sócios). Essa afirmação tende a causar certo espanto no meio jurídico, conquanto seja moeda corrente no meio financeiro. Explicaremos seus motivos a seguir. O titular do capital de terceiros (credor) detém uma renda fixa, ou seja, pode antever com razoável segurança, quanto receberá ao final. O titular do capital próprio (sócio/acionista), por sua vez, detém uma renda variável, não dispondo de conhecimento prévio sobre o "se" e o "quanto" irá receber no futuro. Obviamente, o risco do sócio/acionista é maior do que o do credor. Maior risco resulta em exigência de maior retorno, acarretando maiores ônus à sociedade em se financiar por capital próprio. O mundo jurídico, aliás, muitas vezes ignora que o capital próprio tenha custos. Isso ocorre porque o custo do capital próprio não é um custo explícito, mas um custo de oportunidade, ou seja, custo que se materializa pelo valor da melhor alternativa ao investimento. Vamos resumir isso ao leitor numa pergunta: você investiria seu dinheiro em uma ação cuja expectativa de rendimento anual fosse de 12%, quando um título público (com risco mínimo) rendesse 15% no mesmo período? Não? Justamente porque alguém só se dispõe a ser sócio se o investimento superar o custo de oportunidade consistente no valor de outras remunerações que seus recursos poderiam obter. No nosso exemplo, um sócio possivelmente exigiria para investir uma remuneração de 15%, acrescida de um prêmio de risco. Capital próprio, portanto, tem custo. E alto! Outro motivo que faz o capital próprio ser mais caro que o capital de terceiros é a economia tributária. A remuneração do credor (juros) é considerada, como regra, despesa dedutível, reduzindo o lucro líquido e a base de cálculo para os impostos sobre o lucro. Essa economia não ocorre com o capital próprio, uma vez que a remuneração do sócio/acionista (lucros/dividendos) não é considerada despesa contábil, não reduzindo base de cálculo de tributos. Portanto, podemos concluir que a imposição de grandes proporções de capital próprio em relação ao capital de terceiros fará com que a sociedade empresária tenha maiores gastos, em regra, com seu financiamento, o que é um ponto extremamente prejudicial da teoria da subcapitalização. Por outro lado, é bem verdade que uma maior proporção de capital próprio em relação ao capital de terceiros reduz riscos de falência, pois como o capital próprio não é, via de regra, uma obrigação exigível, eventuais prejuízos ou incapacidades de pagamento de remuneração aos sócios não acarretarão pedidos de falência ou constrição de bens. Dessa forma, podemos concluir, grosso modo, que financiamento prioritário por capital próprio é mais caro e menos arriscado que financiamento preponderante por capital de terceiros. Não há, entretanto, uma proporção ótima ou segura para que se possa dizer quanto de cada fonte deve se usar no financiamento da atividade empresarial. Até mesmo na literatura financeira, conquanto haja alguns modelos buscando eficiência, não há recomendação precisa de uma proporção de estrutura de capital. Nesse sentido, Lawrence J. Gitman (Princípios de Administração Financeira, Harbra, 7ª ed., p. 443): De modo prático, não existe maneira para calcular a estrutura ótima de capital [...]. Devido ao fato de ser impossível determinar o ponto [...] exato da estrutura ótima de capital e fixar-se nele, as empresas geralmente tentam operar num intervalo que as aproxima do que elas acreditam ser a estrutura ótima de capital. O fato de que os lucros retidos e outros novos financiamentos farão com que a estrutura de capital atual da empresa mude mais tarde justifica o enfoque em um intervalo de estrutura de capital, ao invés de um único ponto. Como se verifica da abordagem do autor supracitado, outro problema de se impor proporções de capital próprio e capital de terceiros é que a estrutura de financiamento é extremamente mutável na vida de uma sociedade empresária: há momentos em que somente algumas fontes estarão disponíveis, além de outros em que os custos podem limitar a escolha. Veja-se, aliás, como a aplicação da teoria da subcapitalização material poderia implicar sérios riscos a alguns tipos de negócios: imaginemos as chamadas aquisições alavancadas (leveraged byouts). Trata-se de modelo negocial em que a aquisição de uma determinada empresa é financiada por meio de baixo capital próprio e elevado capital de terceiros (por vezes em razões de 30% - 70%), apoiando-se na perspectiva de forte geração de caixa futuro. Aplicando a teoria da subcapitalização material, deveríamos desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade diante de abuso de direito? A resposta parece obviamente negativa. Mas os problemas não param por aqui. Veremos mais um no tópico seguinte. Fluxo e estoque - Confundindo as variáveis Para finalizar o artigo, precisamos fazer outra observação: como já se disse, uma das assunções implícitas da teoria da subcapitalização material é que o capital represente, de certa forma, garantia aos credores. Vimos que isso não é necessariamente verdadeiro, mas ainda há um outro problema que precisa ser apontado nesse tipo de raciocínio: o problema de confundir variáveis de fluxo e de estoque. Uma variável de estoque, como o nome retrata, traz uma mensuração momentânea. É como se tirássemos uma foto de um dado em um instante único no tempo. Assim, quando falamos de variáveis de estoque usualmente tratamos de fenômenos como número de objetos guardados em certo dia, nível da água num reservatório em dado momento, valor total de patrimônio/riqueza ao final do ano, etc. Por seu turno, variáveis de fluxo tratam de fenômenos continuados, repetidos ou em movimento. Não se trata de uma foto de um instante, mas de um vídeo que retrata como determinados acontecimentos se passaram em um período. Assim, poderíamos falar de vazão de água por tempo, receitas ou despesas por exercício financeiro, etc. O problema da teoria da subcapitalização material é que, propondo maiores garantias e menores riscos por intermédio de montantes ou proporções de capital social, confunde os tipos de variáveis e sugere que uma variável de estoque (capital) faça frente a um problema de variável de fluxo (despesas continuadas de remuneração de passivos). Com efeito, a vida financeira de uma sociedade não é algo que se possa resumir num instante único. Cuida-se de extremas variações sucessivas. Passivos, por outro lado, não são representados apenas por seu valor inicial (nominal), mas são acompanhados por um fluxo de remuneração (juros). Como estrutura/variável de fluxo que são, os passivos e os demais fenômenos societários não devem ser confrontados com variáveis de estoque, como o capital social (que representa o estoque de aportes dos sócios em data específica), mas com outras variáveis de fluxo (como receitas ou lucros do período). Pensar que dado aporte passado e único de capital social (variável de estoque) deva fazer frente a despesas perenes e repetíveis (variável de fluxo) é fazer plena confusão entre conceitos econômicos. Isso ocorreu várias vezes quando de discussão de fenômenos como a reforma da Previdência Social, em que se objetava que, se a Previdência cobrasse seus créditos, as reformas não seriam necessárias. Trata-se, mais uma vez, de confundir créditos (variável estoque) com pagamentos de benefícios previdenciários (variável de fluxo). Em suma: variáveis de fluxo devem ter contraponto em outras variáveis de fluxo e não em variáveis de estoque. Tem-se nesse ponto mais uma falha da teoria da subcapitalização material. Conclusões Verificam-se, portanto, os diversos problemas da teoria da subcapitalização material: Pressupõe que o capital social seja garantia dos credores, quando tal garantia se encontra no ativo social, que normalmente não coincide com o capital no decorrer da existência da sociedade; Impõe uso de fontes mais caras de financiamento, sem apontar razões econômicas que justifiquem sua utilização; Acarreta séria insegurança jurídica, ao exigir razões entre capital próprio e de terceiros as quais não são objetivamente definidas sequer na literatura financeira; Inibe, pelos possíveis efeitos de desconsideração, que os sócios assumam riscos que podem ser necessários à atividade empresarial; Confunde variáveis de estoque e de fluxo, ao contrapor capital e despesas.
O tratamento sobre habilitações e impugnações de crédito ainda não possui o amadurecimento necessário na doutrina e jurisprudência. Faço essa afirmação com base nos mais variados entendimentos sobre o tema e a profusão de situações que são vistas na prática forense. Por habilitação de crédito se entende a pretensão de ver seu crédito incluído no quadro geral de credores em processo de recuperação judicial ou de falência. Já os incidentes de impugnação ou divergência de crédito visam a correção de determinado crédito incluído, seja para modificar a classificação dada ao valor ou natureza do crédito, ou até mesmo para que se proporcione a exclusão de determinado crédito incluído pelo devedor ou pelo administrador judicial. Entretanto, o tema assume profundo relevo uma vez que são tais incidentes que ocasionam o grande volume de processos a serem julgados nas competências de falências e recuperações judiciais na justiça brasileira. Só na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, existe em tramitação o número de 18.792 processos, entre feitos principais e incidentes a eles relacionados. Além dos impactos na gestão judicial, a se considerar a otimização das rotinas judiciais e cartorárias para o cumprimento da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), o grande volume dos processos nos quais tais questões são discutidas trazem implicações de ordem processual e tributária, na medida em que algumas legislações estaduais preveem o recolhimento de taxa judiciária para as habilitações retardatárias. Um primeiro problema enfrentado é que os incidentes de habilitação ou impugnação de créditos são resolvidos por decisões de mérito e não por sentenças. Tal circunstância ocasiona uma falsa percepção de produtividade judiciária em varas judiciais, pois, mesmo decidindo centenas ou milhares de processos, pela incompreensão dessa realidade diante do baixo número de sentenças prolatadas em feitos ligados à recuperação judicial ou falência, há a incorreta percepção de pouca produção das magistradas ou magistrados que atuam em tal competência. A situação, antes de 2018, no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, era ainda pior, pois a distribuição de um processo de habilitação ou divergência de crédito sequer era computada, para fins de contagem do número de processos da vara judicial, o que mudou após a edição do Comunicado CG 219/2018, o qual determinou que tais incidentes fossem distribuídos como ações judiciais autônomas, de modo a refletir a realidade das varas de falências e recuperações judiciais. Por mais que a jurisprudência venha se firmando no sentido de que as decisões em incidentes de habilitação ou impugnação de créditos assemelhem-se a sentenças judiciais, a medição da produtividade em nível de competência de falências e recuperações judiciais ainda precisa de um melhor olhar, computando-se também as decisões de mérito e não somente sentenças judiciais. Já em relação aos aspectos processuais e tributários relacionados a tais feitos, o primeiro ponto é saber se há diferenciação entre os incidentes. Há certo consenso na doutrina e na jurisprudência acerca da inexistência de diferença processual entre ambas as espécies, seja pelo texto do art. 7º, § 1º, da lei 11.101/2005, seja por força do § 5º do art. 10 do aludido diploma legal, que preceitua ser aplicado o procedimento das impugnações de crédito para as habilitações retardatárias. E o que são habilitações retardatárias? Pela leitura do art. 10, caput, da lei 11.101/2005, serão retardatárias as habilitações não propostas no prazo de 15 dias junto ao administrador judicial, conforme mandamento do art. 7º, § 1º, da lei de regência. Entretanto, nem sempre surgirá o interesse processual do credor em promover sua habilitação de crédito após a publicação do edital da lista da recuperanda/falida. Um exemplo seria a supressão do crédito pelo administrador judicial na lista do art. 7º, § 2º, da lei 11.101/2005, momento a partir do qual teria o credor o interesse processual de buscar eventual correção na lista de credores do processo de recuperação judicial ou de falência.  O entendimento que tem sido adotado na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, até o presente momento, é o de que as habilitações e impugnações de crédito (diante da similitude dos procedimentos) serão consideradas retardatárias quando, a parte, com interesse de agir, não tiver observado: - O prazo de 15 dias previsto no art. 7, §1º, da Lei n. 11.101/05 ou, - O prazo de 10 dias previsto no art. 8º da Lei n. 11.101/05. E por serem retardatárias, os processos de habilitação e impugnação de crédito estão sujeitas ao recolhimento das custas nos termos do art. 4º, parágrafo 8º, da lei estadual 11.608/03, exceto no caso de pedido de gratuidade da justiça, que será analisado nos termos dos arts. 98 e ss. do CPC. Por tal razão é que se faz a distinção acima mencionada, malgrada a existência de doutrina que desconsidera a previsão do art. 10 da lei 11.101/2005, sem apresentar a devida justificativa para sustentar tal posicionamento. Há, ainda, outra controvérsia a ser dirimida, que reside em ser o prazo de 10 dias do art. 8º da lei 11.101/2005 peremptório ou não. No julgamento do REsp 1.704.201-RS, o voto vencido do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino foi no sentido de se admitir a interposição de impugnações de crédito após o prazo do art. 8º da Lei 11.101/2005, observando-se o rito processual previsto nos arts. 13 a 15 do mencionado diploma legal, com necessidade de recolhimento de custas. Cito o seguinte o excerto: Possível, pois, concluir que a homologação do quadro geral consolidado é o marco fatal para impugnações embasadas em fatos conhecidos pelos credores, mas não suscitados em momento oportuno. A apresentação de impugnação extemporânea, mas antes da homologação do quadro de credores, poderá, assim, ser conhecida, exigindo-se, apenas, do impugnante o pagamento das custas respectivas. Todavia, no mencionado Recurso Especial, o voto vencedor foi da lavra da Ministra Nancy Andrighi, que considerou como peremptório o prazo do art. 8º para o credor-impugnante, verbis: A norma do artigo retro citado contém regra de aplicação cogente, que revela, sem margem para dúvida acerca de seu alcance, a opção legislativa a incidir na hipótese concreta. Trata-se de prazo peremptório específico, estipulado expressamente na lei de regência. O dispositivo, assim, é ele próprio o resultado da ponderação, levada a cabo pelo legislador, entre quaisquer princípios potencialmente colidentes (isonomia versus celeridade processual, p.ex.), não havendo espaço, nessa medida, a se proceder a interpretações que lhe tirem por completo seus efeitos, sob pena de se fazer letra morta da escolha parlamentar. Enquanto não consolidado o tema pela jurisprudência, para evitar maiores controvérsias sobre o tema e permitir o acesso à jurisdição, existem muitos precedentes no sentido de se admitir habilitações e impugnações retardatárias, até a consolidação do quadro geral de credores, cujo rito observará o previsto nos arts. 13 a 15 da lei 11.101/2005. Como critério de tempestividade, todavia, ainda não há consenso, ora se aplicando os prazos constantes ou do art. 7º, parágrafo 1º ou do art. 8º, da legislação de regência, somado ao nascimento do interesse processual para intervenção da parte, ora somente se aplicando o prazo do art. 8º da lei 11.101/2005. Como dito acima, no tocante às impugnações retardatárias, há entendimento de que a elas a lei 11.101/05 atribuiu as mesmas características e ritos das habilitações retardatárias (art. 10, §5º da lei 11.101/05), o que, por corolário lógico, implicaria, também, o recolhimento de custas (art. 10, §3º e §5º da lei 11.101/05). Cito como precedente utilizado sobre o tema, o Agravo de Instrumento autos nº 2173513-77.2020.8.26.0000, da relatoria do Desembargador Grava Brazil, data do julgamento: 08/04/2021, verbis: Agravo de instrumento - Incidente de impugnação de crédito - Decisão agravada que acolheu a alteração da classificação do crédito - Inconformismo das recuperandas - Não acolhimento - Pretensão do credor de alteração da classificação do crédito que possui conteúdo de impugnação de crédito (art. 8º, da Lei n. 11.101/05) - Impugnação de crédito retardatária que passou a ser expressamente reconhecida com a inclusão dos §§ 7º e 8º no art. 10 da Lei n. 11.101/05, com a reforma feita pela Lei n. 14.112/20 - Natureza alimentar do crédito discutido que ficou comprovada pelo teor da Confissão de Dívida, o qual é expresso a respeito da dívida ser originada de honorários advocatícios - Crédito relativo a honorários advocatícios que é equiparado ao crédito trabalhista - Crédito que fica mantido na Classe Trabalhista - Impugnação de crédito retardatária que se assemelha à habilitação de crédito retardatária no tocante ao recolhimento das custas iniciais (arts. 8º e 10 da Lei nº 11.101/05 e art. 4º, § 8º, da Lei Estadual nº 11.608/2003) - Contudo, o recolhimento de custas pelo credor, neste momento processual, não é necessário, tendo em vista a sucumbência das recuperandas e o disposto no art. 82, do CPC - Decisão mantida - Recurso desprovido.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2173513-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairiporã - 2ª Vara; Data do Julgamento: 08/04/2021; Data de Registro: 08/04/2021)  Importante registrar que se tem imposto maior rigor na apreciação de questão relativa ao recolhimento de custas em São Paulo, mediante a edição do Provimento CG 01/2020, que alterou o art. 102, § 6º do artigo 1.093, "caput" do art. 1.098 e §1º do artigo 1.275 das NSCGJ, adequando-os ao disposto no artigo 1.007 do Código de Processo Civil, determinando mais acuidade com a verificação de recolhimento das taxas judiciárias pelos Juízos de primeira instância. Litigar no Brasil é barato. Em razão de uma visão de irrestrito acesso à jurisdição, tanto a concessão de justiça gratuita como a aplicação das taxas judiciárias têm sido um tema tratado de maneira lateral e insuficiente. Empiricamente é possível afirmar que a morosidade do sistema de justiça, nos dias atuais, está atrelada ao alto número de processos, ausência de filtro para o ajuizamento de demandas e recursos e uma cultura beligerante ainda ensinada nos bancos universitários. Diante dos índices de alta produtividade do Poder Judiciário1, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, por mais que juízas, juízes e servidores se dediquem ao cumprimento de seu dever, não haverá a devida satisfação esperada pela população brasileira. É preciso que modifiquemos nossa cultura jurídica com o fomento a métodos alternativos de resolução de conflitos, os quais devem prevalecer antes da fase judicial. Mas, se recorrer ao Judiciário for inevitável, é preciso maior acuidade com a concessão de benefícios processual, justamente para evitar a massificação de discussões judiciais, as quais, em matéria de falências e recuperações judiciais, funciona como meio de alavancagem processual na ilícita defesa de interesses não ligados aos fins dos procedimentos do sistema de insolvência. É imprescindível, nessa toada, que o tratamento dos processos de habilitações e divergências de crédito, que ocupam volume de relevo no cotidiano forense, tenha um olhar mais assertivo da comunidade jurídica, para melhor fluidez em sua tramitação e resolução de conflitos em tempo adequado e sem que o processo seja utilizado para acorbertar interesses divorciados das finalidades da recuperação judicial e da falência, ao prolongar discussões como forma de evitar o pagamento de créditos ou, ainda, como maneira de pressionar determinada parte, para conseguir melhor poder de negociação. __________ 1 No ano de 2022, a 01ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo promoveu a baixa de 6.754 processos, um número maior do que de distribuição de novos feitos, para o mesmo período, que ficou em 5.184 processos (números de janeiro a julho de 2022)