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Juízos não especializados não devem ser obrigados a adotar práticas que conhecem superficialmente e as graves consequências de sua implantação

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Atualizado às 08:55


Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho

Recentemente foi noticiada a realização da primeira reunião, no Conselho Nacional de Justiça, de um grupo de trabalho constituído para a modernização e efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de recuperação judicial e falências.

De acordo com a manifestação do presidente do CNJ, algumas propostas seriam analisadas com maior atenção, tais como: (i) perícia prevista em processos de recuperação judicial para evitar a utilização fraudulenta ou de má-fé desse tipo de processo em prejuízo dos credores e da sociedade em geral; (ii) da gestão democrática de processos, com utilização de mediação entre credores e devedores; (iii) da uniformização do procedimento utilizado pelos juízes para fazer o controle de legalidade do plano de recuperação judicial; (iv) da implementação pelos Tribunais de varas especializadas com competência regional, a fim de assegurar eficiência e melhores resultados nesses processos; (v) do fomento à capacitação de magistrados e servidores, e por fim; (vi) à colaboração internacional e à troca de informações entre juízos de insolvência, sobretudo em casos de repercussão internacional.

Já tivemos a oportunidade de tratar, nesta coluna, da indevida utilização da perícia prévia como regra geral ("Perícia prévia na recuperação judicial: a exceção que virou regra?", Migalhas, 2/5/2018). Vale registrar, por oportuno, que a justificativa apresentada pelo presidente do CNJ, para a adoção da perícia prévia, seria o combate ao uso fraudulento da recuperação judicial. Ocorre que a lei 11.101/2005 já contém os remédios adequados para o combate à má-fé: (i) fiscalização das atividades do devedor pelo administrador judicial; (ii) afastamento do devedor da condução dos negócios; (iii) responsabilização do devedor por crime falimentar. Basta que estes instrumentos sejam aplicados que a má-fé nos pedidos de recuperação judicial será adequadamente combatida.

Além disso, se a lei 11.101/2005 não atribuiu ao juiz uma cognição exauriente na fase inicial do processo de recuperação judicial, pois deixou aos credores a análise da viabilidade da superação da crise do devedor, após a apresentação do plano, não seria mais adequada a realização de uma perícia no curso do procedimento, de modo a propiciar aos credores as informações necessárias para uma decisão refletida sore o plano? Os credores, com base na perícia realizada pelo administrador judicial, teriam acesso a informações menos enviesadas do que aquelas contidas no estudo de viabilidade econômico-financeira realizado por pessoa contratada pelo devedor. Com isso, poderiam os credores decidir se a empresa deve ou não permanecer no mercado.

Com a perícia prévia, que propicia o indeferimento do processamento, o juiz simplesmente devolve ao mercado uma empresa inviável, quando, pelos objetivos do nosso sistema de insolvência, deveria ser processado o pedido e, caso constatada a inviabilidade do plano de recuperação, ser decretada a falência e retirado do mercado o empresário. Enfim, a ideia de uma perícia em tese é boa, mas encontra-se fora de lugar ao ser colocada antes do deferimento do processamento da recuperação judicial.

Quanto à gestão democrática, trata-se de denominação atribuída a uma audiência concentrada, em que são ouvidos os interessados e decididas várias questões que, no mais das vezes, poderiam ter sido enfrentadas previamente pelo juízo falimentar, sem maiores delongas. A realização da audiência dessa natureza não se justifica em todos os casos, mas apenas naqueles de maior complexidade que recomendem uma atuação mais incisiva do juiz, de acordo com o seu discernimento.

Nos processos falimentares e de recuperação judicial o juiz conta com o administrador judicial, auxiliar que deve atuar para a consecução dos objetivos da lei 11.101/2005. Por exemplo, a falência é um processo que exige muitas providências materiais, como arrecadação, avaliação e alienação de bens, que devem ser realizadas com agilidade pelo administrador judicial, dispensando audiências presididas pelo juiz. Na recuperação judicial, por sua vez, o devedor e os credores têm papel relevante para a solução da crise, cabendo ao Juiz intervir em situações excepcionais, quando perceber o retardamento indevido desta solução. A mediação poderá entrar aí, como instrumento adicional para auxiliar devedor e credores a melhor a superarem os obstáculos que surgirem na negociação. Exemplos de mediação temos nos casos da recuperação judicial da Saraiva e da EDB.

Casos especialíssimos podem exigir uma audiência, como recentemente se deu no processo da Avianca, em que o magistrado buscou uma composição entre os arrendadores das aeronaves e a companhia aérea em recuperação, ou no caso da Libra Santos, em que se foram exigidas explicações a respeito da notícia de encerramento das atividades da devedora. Enfim, o sistema processual confia no discernimento do juiz para a realização de audiência, nos casos em que ele reputá-la adequada o bom êxito do processo de falência ou de recuperação judicial, não havendo necessidade de imposição, como regra, de um ato processual muitas vezes desnecessário.

Quanto à proposta de uniformização do procedimento de controle de legalidade do plano de recuperação, além de avançar na esfera de atuação jurisdicional de cada magistrado, suscita algumas questões prévias referentes ao momento do controle da legalidade e cuja resposta poderia tornar o processo mais eficiente. Seria possível a análise da legalidade do plano pelo juiz, antes da assembleia-geral de credores, a partir das objeções dos credores, evitando-se a invalidação posterior e a necessidade de apresentação de novo plano? Antes mesmo do aviso do plano aos credores, o juiz poderia determinar ao administrador judicial a análise da legalidade das cláusulas? Logo no início do procedimento o juiz já deveria relacionar as cláusulas que considera ilegais, de modo a evitar a apresentação do plano com tais ilegalidades? Enfim, o controle de legalidade do plano de recuperação pode até ser feito por etapas, no curso do procedimento, com a atuação do administrador judicial, dos credores e do juiz, mas a esfera jurisdicional não pode ser invadida por determinações administrativas.

Finalmente, a mais relevante das propostas contidas na manifestação do presidente do CNJ consiste na especialização dos juízos de insolvência e na capacitação de magistrados e servidores. Nesta coluna, em artigo publicado em 23/10/2008, observamos que somente serão atingidos os objetivos da nossa legislação de insolvência (1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial) se forem assegurados os meios adequados para a sua consecução e se os intérpretes das normas pautarem sua atuação de acordo com os objetivos positivados.

Nenhuma legislação de insolvência terá seus objetivos alcançados sem contar com uma magistratura com condições materiais e humanas de bem aplicar a lei. Nesse sentido, juízos regionais especializados em falências e recuperações tendem a aplicar a legislação de forma mais rápida e eficiente, desenvolvendo os meios adequados à obtenção dos resultados buscados pelo legislador. O Tribunal de Justiça de São Paulo já adotou tal iniciativa legislativa, criando varas regionais especializadas, e realiza estudos para a implantação dessas unidades judiciárias. Além disso, as varas de falências e recuperações judiciais têm peculiaridades que justificam estudos específicos para a adequação do quadro funcional ao volume de serviço. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo está realizando análise do dimensionamento da força de trabalho, sob os aspectos qualitativo e quantitativo, nas 1ª. e 2ª. Varas de Recuperações Judiciais da comarca da capital.

Diante de tudo o que foi exposto, ousamos sugerir ao Conselho Nacional de Justiça o seguinte: primeiro, implantar as varas regionais, com a força de trabalho adequada; em seguida, capacitar os juízes, para os objetivos da lei, com a consciência de que esta capacitação terá suas limitações decorrentes da ausência de atuação prática; após um ano, reunir esses juízes, já capacitados e com experiência própria, para discussão sobre as práticas que julgarem mais adequada (perícia antes ou depois do deferimento do processamento da recuperação; procedimento do controle de legalidade do plano etc). Hoje, não há como exigir de juízes não especializados que apliquem práticas que eles conhecem superficialmente e sem que possam compreender as graves consequências de sua implantação, ainda que venham a ser recomendadas pelo CNJ.