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  4. PL 1.379/20: a crise não se supera com metáforas

Texto de autoria de Marcelo Sacramone

O projeto de lei 1.397/2020 visa a alterar pontualmente a legislação falimentar diante de um novo contexto social: uma pandemia que assola o mundo todo, com um isolamento social que já dura meses e o perigo cada vez mais iminente de uma crise econômica de proporções assustadoras.

O PL, aliás, é temporário. Sua proposta é a de possuir um caráter transitório, até 31 de dezembro deste ano, justamente para "acomodar o impacto econômico da pandemia causada pelo coronavírus sobre empresas em dificuldades econômicas"1. Ele foi aprovado no último dia 21/05/2020 e segue, agora, para deliberação pelo Senado Federal.

A intenção do PL - na mesma linha que a de tantos outros que vêm surgindo nos últimos anos para atualizar a lei 11.101/2005 - certamente é a de otimizar a eficiência do processo de recuperação judicial, ainda que nestes períodos sombrios de pandemia e isolamento social. É praticamente fato notório que o tempo é inimigo dos empresários em crise (mesmo durante a recuperação judicial), e contra ele todos os sujeitos do processo devem travar uma luta incessante2 - acrescida, agora, da preocupação com o coronavírus.

Nada obstante, boas intenções não bastam para uma solução adequada. É preciso uma análise bastante atenta dos possíveis efeitos que a alteração legal pode causar num mercado já enfraquecido e na dinâmica dos agentes econômicos, devedores e credores, todos afetados, em pequeno ou maior grau, pela pandemia.

Há de se lembrar que a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB, decreto-lei 4.657/1942) foi alterada em 2018 e, com a inclusão dos artigos 20 e seguintes, passou a prever o que vários já chamam de um consequencialismo jurídico no ordenamento pátrio. Nenhuma autoridade (das esferas administrativa, controladora e judicial, nos dizeres da lei) pode decidir "sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

Além disso, a Lei de Liberdade Econômica, em seu art. 5º, exige que qualquer edição ou alteração de ato normativo editado por órgão da administração pública federal devam ser precedidas da realização de análise de impacto regulatório.

Ambos os dispositivos legais não fazem referência ao poder legislativo. Em boa lógica, contudo, é no mínimo prudente que alterações legais sejam feitas após um exame cauteloso de suas consequências ou efeitos, sob pena não apenas de os objetivos pretendidos não serem alcançados, como de agravar a situação justamente daquilo que se pretendia proteger.

Metáforas simplesmente não garantem que os resultados pretendidos serão obtidos.

A primeira delas é que se pretende adequar o "relógio financeiro ao relógio econômico" para se permitir que mercado se recupere. Ainda que absolutamente nenhum número tenha sido produzido, ou discutido, o projeto vai no sentido absolutamente oposto do pretendido.

Para permitir que o devedor, mas não o mercado, se recupere, o projeto possibilita que os agentes econômicos deixem de pagar seus débitos por 120 dias, ao menos. O "período de suspensão legal" de pelo menos de 30 dias (art. 5º) e o período de negociação preventiva (que permite suspensão por mais 90 dias - art. 6º) não impõem nenhuma contrapartida ou ônus ao devedor. Cria-se, assim, um incentivo a que todo devedor se utilize efetivamente dessa verdadeira moratória de 120 dias, em que expressamente as multas não podem ser exigidas, as garantias não podem ser excutidas, os contratos não podem ser resilidos, assim como os créditos não podem ser executados.

Decerto a saúde financeira do devedor seria beneficiada. Contudo, o projeto parece esquecer que o financiamento do devedor é feito às custas de outro agente econômico, o credor também afetado econômica e financeiramente pela pandemia. Pelo projeto, o credor é compelido a financiar, sem análise do risco e sem eventualmente condições financeiras, o devedor inadimplente. Como consequência, o projeto pode suspender a circulação de riquezas, comprometer o fluxo de pagamentos e, por fim, tornar o próprio credor um devedor também inadimplente, com o aprofundamento da crise já existente.

Outra metáfora comumente utilizada ao versar sobre o projeto é seu intuito de "achatar a curva de demanda" das recuperações judiciais e impedir o colapso do judiciário. Não se mensurou, entretanto, sequer o impacto da crise econômica e qual sua repercussão nos pedidos de recuperação judicial.

Suas disposições, contudo, vão no sentido diametralmente oposto. O projeto estende a negociação coletiva a todos os agentes econômicos e não se restringe ao conceito de empresário.

A alta demanda, criada pelo próprio projeto, é direcionada ao Judiciário numa data certa e única para todos os agentes: o término dos primeiros 30 dias de período de suspensão. Isso porque a negociação preventiva, incentivada pela Lei a milhões de agentes econômicos, é inexplicavelmente um processo judicial no projeto de lei, ainda que voluntário. Sua alternativa judicial exigirá o olhar insone do juiz sobre questões de legitimidade para a negociação preventiva, como o status de agente econômico, a queda do faturamento, débitos submetidos, etc.

A desjudicialização de atividades mais burocráticas, ou que possam ser resolvidas de forma consensual, é uma realidade crescente no direito brasileiro - inventário e divórcio são bons exemplos de procedimento que podem se desenvolver de forma bem mais célere e barata em cartórios, extrajudicialmente. Não há motivo para não aplicar essa lógica também ao direito das empresas em crise.

Em um período de incertezas, como é o presente, quem tem as melhores condições de saber o que é melhor para as empresas em dificuldade é o próprio mercado. Logo, na inexistência de razões em contrário, é mais adequado deixar a ele a responsabilidade por tomar tais decisões, ao passo que o Poder Judiciário permanece inerte, firme em sua nobre missão de garantir o acesso à ordem jurídica justa apenas depois que o mercado falhar em adjudicar uma solução adequada para a crise que já se aproxima.

O projeto, nesses termos, não endereça os principais problemas e que exigem aprimoramento na legislação de insolvência, como a agilização do processo de liquidação de empresas, aumento da segurança para venda de bens, definição de hipótese factível para que o empresário individual falido, mas de boa-fé, possa voltar a empreender, ou limita temporalmente a responsabilidade dos sócios como incentivo a empreender.

Sem absolutamente nenhuma mensuração das regras propostas, o projeto não apenas pode não combater os efetivos problemas a serem enfrentados pela crise econômica que deve advir da Covid-19 como pode provocar justamente o seu aprofundamento, com sua disseminação a todos os agentes do mercado.

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1 Disponível aqui. Acesso em 1/6/2020.

2 Ver: WAISBERG, Ivo; SACRAMONE, Marcelo; NUNES, Marcelo Guedes; CORRÊA, Fernando, Judicial Restructuring in the Courts of São Paulo - Second Phase of Insolvency Monitor (Recuperação Judicial no Estado de São Paulo - 2ª Fase do Observatório de Insolvência) (April 26, 2019). Disponível em SSRN: aqui ou aqui, p. 45.