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A exigência de certidões negativas de débitos tributários na recuperação judicial: uma análise da decisão do STF

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Atualizado às 08:57

Verificamos nesta última semana polêmica decisão proferida liminarmente pelo ministro Luiz Fux (Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP), determinando a necessidade da apresentação de certidões negativas de débitos tributários (CNDs) como condição da concessão de recuperação judicial, nos termos do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN).

Tentaremos nesse artigo trazer uma análise da decisão proferida, tanto sob o aspecto procedimental quanto em relação ao mérito do problema.

A questão procedimental

Sob a perspectiva procedimental, a liminar suspende os efeitos de decisão do Superior Tribunal de Justiça, sob o argumento de que este tribunal, ao afastar a   aplicação   dos   artigos 57 da lei 11.101/2005 e 191-A do CTN, com fundamento no princípio da proporcionalidade, teria realizado controle difuso de constitucionalidade, atividade inerente à Corte Especial daquele Sodalício.

Nesse aspecto, entendemos que a decisão do ministro Fux é irretocável. Com efeito, se o STJ nega aplicação a um artigo de lei, sob a alegação de que viola um princípio constitucional (proporcionalidade), atrai para o julgamento da matéria a cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição. Melhor seria, portanto, que o STJ tivesse enfrentado claramente a questão de constitucionalidade envolvendo os   artigos   57 da lei 11.101/2005 e 191-A, do CTN em julgamento de plenário ou do respectivo órgão especial.

Mas a questão formal traz menos relevância como precedente, uma vez que pode ser corrigida em outros processos que discutam o assunto. O grande problema da decisão envolve seus aspectos de mérito, uma vez que ingressa na discussão sobre a necessidade da apresentação das CNDs para a obtenção da recuperação judicial. Essa, aliás, é uma das matérias mais polêmicas desde a publicação da atual lei de recuperação e falências (LREF), não tendo, mais de quinze anos após sua vigência, encontrado pacificação.

Passaremos a analisar o mérito da questão a seguir.

A base do problema: situação tributária do devedor em recuperação

A polêmica, em resumo, inicia-se a partir de uma situação fática: devedores em fase de recuperação costumam ter passivos tributários vultosos. A explicação para tanto deriva de que, em estado patrimonial deficitário e na tentativa de manter a atividade empresarial em funcionamento, o devedor se vê obrigado a pagar prioritariamente a seus trabalhadores, aos fornecedores e àqueles que lhe concedem crédito, sem que usualmente sobrem recursos para, ao mesmo tempo, adimplir suas obrigações tributárias. Isso é o que normalmente ocorre e não há que se fazer nenhum julgamento moral sobre esse comportamento, uma vez que é racional e economicamente esperado.

Na conjuntura supracitada, não é difícil constatar que exigir quitação dos débitos tributários como condição para a obtenção da recuperação judicial equivale a, por via oblíqua, inviabilizar o instituto, pois raros serão os devedores em condições regulares com o Fisco.

Justamente por isso, a exigência do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN) nasceu em conjunto com a Lei Complementar 118/05, que deu nova redação ao art. 155-A, § 3º, do CTN, dizendo que: "Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial".

Com a previsão de parcelamento, a ser regulado em lei específica, pensou-se inicialmente que o devedor poderia equacionar razoavelmente seu passivo tributário. Ocorre que, aparentemente, o legislador não se apressou em regular o parcelamento aludido, que só foi previsto depois de quase dez anos da vigência da LREF, com o advento da lei 13.043/14.

Nesse meio tempo, a jurisprudência, de modo sensível à situação dos devedores e visando a não esvaziar o instituto da recuperação judicial, passou a decidir reiteradamente pelo afastamento do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN), enquanto não houvesse a previsão legal do parcelamento dos débitos tributários do devedor em recuperação, concedendo recuperações judiciais sem a necessidade de apresentação das certidões negativas.

As possibilidades de parcelamento dos débitos federais e a transação: lei 13.043/14 e lei 13.988/20

Mesmo após a sobrevinda da lei 13.043/14, notou-se que o parcelamento nela previsto usualmente seria insuficiente para remediar a situação de muitos devedores. Primeiro porque possibilitava parcelamento das dívidas da União, nada trazendo em relação aos Estados e Municípios. Depois porque o tipo de parcelamento que trouxe fixou os pagamentos em máximas 84 (oitenta e quatro) parcelas mensais e consecutivas, calculadas observando-se os seguintes percentuais mínimos, aplicados sobre o valor da dívida consolidada:

I - da 1ª à 12ª prestação: 0,666% (seiscentos e sessenta e seis milésimos por cento);

II - da 13ª à 24ª prestação: 1% (um por cento);

III - da 25ª à 83ª prestação: 1,333% (um inteiro e trezentos e trinta e três milésimos por cento); e

IV - 84ª prestação: saldo devedor remanescente.

Sem precisão científica e não incluindo eventuais juros e correções sobre as parcelas, um breve cálculo aproximado de Net Present Value (NPV), usando uma planilha de MSExcel® demonstra que, a taxas de desconto próximas àquelas dos juros básicos da economia (p.ex.: 0,2% a.m.), o valor presente do fluxo de caixa permitido pela lei 13.043/14 evidenciaria um desconto normalmente inferior a 10% do débito inicial, o que não seria suficiente para permitir a recuperação de muitos devedores.

Diante desse cenário, a jurisprudência, mesmo durante a vigência da lei 13.043/14, continuou a afastar a aplicação do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN), argumentando-se, a fortiori, que a concessão da recuperação judicial não impedia o Fisco de cobrar seus débitos separadamente e que a legislação que regulou o parcelamento não havia sequer fixado um prazo para a apreciação deste pela autoridade tributária.

Os panoramas referentes às dívidas tributárias vieram a se alterar novamente com a edição da lei13.988, de 14 de abril de 2020, que previu a possibilidade de que a União venha a realizar transação nas hipóteses que especifica.

Em resumo, a perspectiva que lei 13.988/20 traz é a seguinte:

Para os devedores em geral: (1) não permite que se reduza o montante principal do crédito; (2) veda redução superior a 50% (cinquenta por cento) do valor total dos créditos a serem transacionados; (3) obsta que se conceda prazo de quitação dos créditos superior a 84 (oitenta e quatro) meses;

Para o devedor pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte: a redução máxima do valor total do crédito será de até 70%, ampliando-se o prazo máximo de quitação para até 145 (cento e quarenta e cinco) meses.

As modalidades de transação previstas na lei podem ser realizadas mediante adesão ou por proposta individual.

Para se ter uma ideia geral da aplicação da legislação supracitada, vamos imaginar o caso hipotético de um devedor que não se constitua como ME, EPP ou pessoa natural e cuja dívida tributária seja de R$ 15 milhões.

Usando os termos de alguns editais já publicados pela PGFN, vamos imaginar, em cálculo simples e sem grandes rigores, que a transação pactuada preveja pagamento de entrada no valor mínimo de 5%, sem reduções, em 5 (cinco) parcelas mensais e sucessivas, sendo o restante parcelado em até 79 (setenta e nove) meses, com redução de 10% (dez por cento). Usando uma taxa de desconto mensal de 0,2% a.m. (próxima da equivalente mensal da atual SELIC), o valor presente dessas prestações seria de R$ 12.479.912,48, o que significa que, na transação imaginada, haveria um desconto total de 16,80% em relação ao valor inicial da dívida, o que traz panorama melhor, em princípio, do que o mero parcelamento previsto na lei 13.043/14, mas pode ficar longe do suficiente para reerguer grande parte dos devedores em recuperação, seja porque os deságios serão baixos, seja porque os prazos do parcelamento serão exíguos.

Note-se, dos termos da legislação, que o Fisco não renuncia a nenhuma parte do principal de seu crédito, abandonando apenas parte dos juros e da multa, que, diga-se de passagem, costumam ser elevadíssimos no Brasil, incrementando sobremaneira as dívidas tributárias.

Saliente-se novamente que a lei 13.988/20 cuida apenas de transação referente a tributos da União, sem considerar as burocracias e peculiaridades legislativas/administrativas que o devedor terá de enfrentar para obter CNDs de autoridades tributárias estaduais e municipais a que estiver sujeito.

Portanto, exigir parcelamento tributário ou transação e a consequente expedição de CND para a obtenção de recuperação judicial, nos termos em que foram propostos na lei 13.043/14 e na lei 13.988/20 parece algo bastante distante da realidade econômica dos devedores em recuperação.

Mas os problemas trazidos com a decisão da Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP não param por aí.

O problema da superação judicial de eventual resistência do credor

Deve-se salientar que, em relação ao Fisco, ao contrário do que ocorre com outros devedores, a LREF não prevê mecanismos suficientes para superar a situação de recalcitrância do credor (holdout problem).

Com efeito, para os credores que resistem injustificadamente à aprovação do plano de recuperação judicial, a LREF estabelece dispositivos para que o juiz possa suplantar esse tipo de resistência, impondo a vontade da maioria, utilizando-se, por exemplo, do mecanismo do cram down previsto no art. 58, § 1º. Aliás, até mesmo a jurisprudência tem desenvolvido meios de superação do voto abusivo de credor que opõe objeção jurídica ou economicamente injustificável ao plano.

Em relação aos créditos tributários, o panorama parece bem distinto. Por um lado, podemos pensar que o parcelamento tributário é direito do contribuinte, pois o Fisco não poderia negá-lo ao devedor que preenchesse os requisitos legais, mesmo que somente se defira tal direito ao contribuinte que cumpra as condições previamente estabelecidas (com certa discricionariedade) pelo Fisco.

Quando se vislumbra, entretanto, a transação tributária prevista na Lei 13.988/20, notadamente naquela espécie realizada por proposta ou aceitação individual, a discricionariedade do Fisco é muito mais pronunciada.

Com efeito, as transações tributárias podem vir acompanhadas de exigências de garantias, valores mínimos de entrada e renúncias por parte do contribuinte. Há vários critérios de aceitação, incluindo análise de capacidade econômica do contribuinte, recuperabilidade do crédito etc. Antes de ingressar em recuperação judicial, aliás, algumas dívidas só podem ser transacionadas por adesão, como ocorre com o caso daquelas inferiores a R$ 15 milhões (art. 4º, §1º e art. 32, I, da Portaria PGFN nº 9917, de 14 de abril de 2020), o que obriga o contribuinte a aguardar a publicação de edital propondo a transação e aceitar integralmente seus termos.

Suponhamos então que, com base em alguns desses critérios, vários deles bastante subjetivos, o Fisco se recuse a propor ou a aceitar uma transação? Como resolver? Como poderia o juiz da recuperação superar a recalcitrância? Simplesmente não há meios para tanto.

Assim, no caso de resistência injustificada, mas dentro dos parâmetros legais, à concessão da transação, ficaria o credor tributário com verdadeiro poder discricionário de veto sobre a possibilidade de soerguimento do devedor, uma vez que o juiz da recuperação não teria mecanismos para superar a recalcitrância. Ocorreria, mutatis mutandis, algo semelhante a conceder ao Fisco uma golden share na recuperação judicial: não participa das assembleias, não vota, não se submete ao plano, mas tem o irrestrito poder de vetar a decisão tomada pelos demais credores, tornando sem efeito a deliberação que aprovou o plano de recuperação.

A imposição de maiores riscos à concessão da recuperação e as consequências sobre a concessão de crédito ao devedor

Como se sabe, um dos maiores problemas do devedor em recuperação é a obtenção de crédito. Pode-se dizer, nessa linha, que quase todas as propostas legislativas que buscam alterar o atual regime da recuperação judicial tendem a incluir dispositivos que facilitem a concessão de crédito ao devedor.

Em resumo, tem-se que o crédito é o coração do processo de recuperação. Sem condições facilitadas para tanto, raríssimos serão os devedores que obterão sucesso na caminhada para a normalidade de seus negócios.

Com a decisão tomada na Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP, entretanto, aumenta o risco de falência decorrente de o devedor eventualmente não conseguir obter junto ao Fisco transação ou parcelamento de suas dívidas e a(s) correspondente(s) CND(s).

Não é preciso ser um expert para saber que maiores riscos de insolvência farão escassear ou encarecer o crédito para o devedor em recuperação, justamente quando este mais necessita da fidúcia de seus credores.

A decisão tende a dificultar linhas de crédito bancário e até mesmo a negociação de planos de recuperação de devedores com passivos tributários sem condições de obter rapidamente parcelamento ou transação. Dados os riscos envolvidos, talvez os próprios credores passem a exigir CNDs como condição de crédito ou de anuência ao plano.

Trocando variáveis de estoque por variáveis de fluxo e a dissonância com o PL 6.229/2005

Em favor da decisão em comento, há quem argumente que, em não se exigindo CND para a concessão da recuperação judicial, violar-se-ia o privilégio do crédito tributário, além de inviabilizar sua cobrança, pois, além de o Fisco não participar da recuperação judicial, ficaria impedido de realizar atos de constrição patrimonial, pois estes estariam submetidos ao crivo do juízo da recuperação, conforme jurisprudência que tem se consolidado.

Não nos parece que esses argumentos sejam procedentes.

Primeiramente, o privilégio concedido ao crédito tributário visa a garantir, dentro de determinados parâmetros, que o Fisco tenha relativa prevalência para alcançar bens de devedores em situação patrimonial deficitária definitivamente constituída. Incide naquela situação em que os ativos do devedor não bastam para pagar os passivos e não haja mais possibilidade de soerguimento do devedor. A lógica da prerrogativa dada ao crédito tributário, portanto, opera-se em relação aos créditos passados, quando a situação do devedor não mais permita o ingresso de novas receitas e a continuidade do negócio.

Quando, diversamente, tenha-se a perspectiva de continuidade da atividade empresarial, conceder ao Fisco um privilégio absoluto para recebimento antecipado de seus créditos pode acarretar - e normalmente acarreta - a morte da fonte produtora. Com isso, não é difícil antever que o Fisco acabaria por fazer uma troca de bens futuros por bens presentes, em prejuízo de seus próprios interesses, recebendo seu crédito passado com prioridade sobre alguns dos demais credores, mas provocando a cessação da empresa, com a consequente renuncia à futura arrecadação que a atividade produziria. No jargão econômico, equivale a dizer que haveria a troca de uma variável de estoque (total de créditos até o momento presente) em detrimento de uma variável de fluxo (arrecadação futura). Para usar uma semelhança do cotidiano, é como se trocássemos uma banheira cheia de água (estoque), destinada à higiene presente, renunciando aos banhos futuros decorrentes da vazão (fluxo) que a companhia de saneamento poderia prover no porvir.

Também não nos parece acertado argumentar que o Fisco, com a recuperação da empresa, estaria impedido de praticar atos de constrição de bens do devedor. O que a jurisprudência vem ressaltando é que atos de constrição praticados em execuções fiscais devem estar submetidos ao crivo do juízo de recuperação. Nada mais natural, aliás, uma vez que, por princípio geral, se todos os credores agirem autônoma e simultaneamente sobre o patrimônio de um devedor em posição patrimonial deficitária, acabarão por inviabilizar a respectiva recuperação.

Por fim, acredita-se que a decisão não está em consonância com as mudanças que ora se discutem na disciplina das recuperações, notadamente em relação àquelas inseridas no PL 6.229/2005, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, que prevê, dentre outras medidas, formas mais flexíveis e em consonância com a realidade econômica nacional, notadamente no tocante ao parcelamento dos débitos tributários.

Conclusões

Assim, por acarretar prejuízo à sociedade, dificultando ou inviabilizando a recuperação de empresas, a manutenção dos empregos e a produção de riquezas que beneficiam a todos, espera-se que decisão liminarmente tomada na Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP, ressalvadas as questões processuais envolvidas, seja superada no próprio julgamento de mérito pelo STF ou com a aprovação definitiva do PL 6.229/2005.