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Duelo no Júri

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Atualizado às 09:27

Fascinado pela advocacia criminal, ainda estudante, desejava assistir a uma sessão do Tribunal do Júri. Estudava pela manhã, trabalhava à tarde no escritório de meu pai e à noite exercia as honrosas funções de foca na sucursal do jornal "O Globo", assim amarguei por bom tempo a frustração do desejo irrealizado.

Surgiu, então, a oportunidade e lá estava eu, confesso que tocado pela emoção, no Segundo Tribunal do Júri de São Paulo. Procurei colocar-me no plenário de modo a não perder um lance dos debates, uma só palavra, um mero gesto que fosse, uma contração facial. Enfim, eu queria registrar todos os eventos do julgamento, passo a passo, minuto a minuto como se aquele fosse uma oportunidade única de estar em contacto com a grande instituição democrática, instrumento de consagração dos grandes nomes da advocacia.

O promotor, Antonio Carlos Penteado de Moraes, e o advogado Hermenegildo Valente defrontavam-se. Presidia a Sessão o Magistrado José Fernandes Rama, que, posteriormente, precisamente no dia 8 de julho de 1970, iria presidir o meu primeiro júri.

Ambos, acusador e defensor, eram dotados de invulgar cultura e oratória primorosa, tiveram nesse dia uma de suas mais brilhantes atuações. Esta foi a opinião de tantos quantos já os conheciam e lá estavam presentes. Nenhum aspecto da prova foi esquecido. Ao lado de argumentações pertinentes e expostas com objetividade e clareza, houve apartes oportunos e inteligentes de ambos os lados. As imagens e as metáforas ricas e bem construídas emprestaram aos discursos uma beleza de obra de arte.

O Segundo Tribunal do Júri da Capital, onde se realizou o julgamento estava instalado no quarto andar do magnífico prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo. As sessões tinham início às 13 horas. Instalavam-se com quinze jurados ou mais, dos quais eram sorteados sete que atuariam como julgadores. Número menor de quinze, caso houvesse sessão, provocava a nulidade do julgamento. Aliás, o sistema é o mesmo até hoje. A esse respeito, ocorre-me um fato que passou a compor o longo e delicioso anedotário do júri. Um célebre advogado, contumaz vencedor das pugnas forenses, não se mostrou minimamente abatido quando um seu cliente, em rumoroso julgamento, foi condenado pelo Tribunal do Júri, tendo-lhe sido aplicada elevada pena, pelo Juiz Presidente. Não obstante o abatimento do réu e de seus familiares, bem como da grande repercussão da sua derrota, ele mostrava-se tranquilo e absolutamente confiante no êxito do recurso que seria interposto. E, com efeito, julgado o mesmo recurso recebeu provimento do Tribunal de Justiça que anulou a sessão do Júri. Descobriu-se, posteriormente, que a confiança do festejado defensor tinha uma razão: o cartorário responsável elaborou a ata de instalação da sessão do Júri registrando a presença de apenas treze jurados, quando a lei, como se disse, exige a presença no mínimo de quinze sob pena de nulidade. Naqueles tempos, havia uma perfeita sintonia entre a defesa e o funcionalismo do Fórum...

Mas, voltando ao primeiro Júri que assisti, na defesa atuava o advogado e procurador do Estado Hermenegildo Valente, lotado na Procuradoria de Assistência Judiciária, órgão voltado para a assistência dos réus pobres. O acusador público era o Promotor Antonio Carlos Penteado de Moraes, que, após aposentar-se, veio a advogar no escritório de José Carlos Dias. Ambos excelentes oradores, dotados de inúmeros recursos retóricos, conhecedores da prova e, acima de tudo, primorosos argumentadores. A acusação desenvolveu-se ao meio de apartes veementes do defensor, de respostas por vezes irritadas do acusador e entremeada por acaloradas discussões. Momentos houve nos quais imaginei que ambos partiriam para o desforço físico, tal o empenho, a eloquência, o ardor com que expunham os seus argumentos.

Quando a defesa terminou o seu discurso, o Juiz Presidente, antes de passar a palavra ao Promotor para a réplica, concedeu um intervalo.

O Segundo Tribunal do Júri estava localizado no quarto andar do vetusto prédio da Praça Clóvis onde está localizado o Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesse andar como nos demais há uma mureta que dá para as escadas e para um vão livre. Pois bem, no intervalo vi que advogado e promotor estavam encostados nessa mureta e gesticulavam e falavam sem descanso, dando-me a nítida impressão que trouxeram para fora do Plenário a acalorada discussão que haviam travado minutos antes.

Preocupei-me com aquela cena. Eu não conhecia os costumes, os personagens, as nuances e peculiaridades do Júri, por isso tive receio que os para mim ferrenhos adversários, se agredissem e despencassem pelo vão do andar.

Entre cauteloso e apressado, fui me aproximando para tentar, embora fosse grande ousadia, evitar que a discussão se transformasse em luta corporal. No entanto, para meu espanto e alívio, ao chegar perto de ambos constatei que a cena belicosa na verdade não passava de uma "exibição musical": Ambos cantavam uma valsa chamada "Naná", ou será uma outra, não sei, também pouco importa, importa sim que eles cantavam, simplesmente cantavam. Permaneci algum tempo junto aos dois grandes tribunos, mas maus cantores.