COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Marizalhas >
  4. O inconformismo de um acadêmico

O inconformismo de um acadêmico

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Atualizado às 08:33

Imensa alegria ele proporcionou à sua família. Ingressara na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1942. Família de origem libanesa, os pais e demais parentes eufóricos e orgulhosos divulgaram por toda São José do Rio Preto, sua cidade, a notícia de que o filho de imigrantes se tornara um Acadêmico das Arcadas. O novo calouro iria, com certeza, recompensar com brilho e bravura os esforços daqueles que se sacrificaram e contribuíram para o seu êxito.

A emoção ao ingressar pela primeira vez no prédio da Faculdade causou-lhe indescritível emoção, perpetuada em suas memórias transmitidas a mim em inesquecíveis encontros em Rio Preto. Essa sua emoção se estendeu por cinco anos, manifestada em cada atividade, em cada episódio, em cada momento vivido na gloriosa velha e sempre nova Academia, casa do culto ao saber e à liberdade.

Quando passei a viajar pelo interior de São Paulo, no exercício da política de classe, em meados dos anos setenta e durante as duas décadas seguintes, eu era fidalgamente recebido por ele e pelo meu queridíssimo amigo Paulo Nimer, um grande advogado de júri daquela região. Aliás, uma região que à época reunia uma plêiade de notáveis oradores que se destacavam na tribuna da defesa.

Assim, Paulo Nimer de Rio Preto; Fernando Jacob de Fernandópolis; Roberto Rolemberg de Jales; Moacir Castro de Olímpia; pontificavam no Tribunal do Júri de toda a região.

Nas minhas idas a Rio Preto, Gabriel e Paulo reuniam advogados da cidade e da região, que se tornaram grandes amigos, para encontros memoráveis no melhor estilo das tradições bacharelescas e boêmias. Havia sempre discurso, cerveja e música, tudo em abundância.

Gabriel era colega de meu pai, da Turma de 1946. Nutriam recíproco carinho e foram amigos vida a fora. Bié, seu apelido, saudava o filho do seu companheiro Macacão, apelido de meu pai, como se saúda um filho. Abraço caloroso, sorriso de contagiante alegria e, durante a estada, gestos de cordialidade e de generosidade, que bem refletiam a sua origem árabe, interiorana e de acadêmico de Direito.

Na Faculdade, Bié teve intensa participação política, tanto na política interna do Centro Acadêmico Onze de Agosto, quanto nas pugnas anti getulistas.

Participava dos comícios, redigia manifestos, frequentava as assembleias do Centro Acadêmico, ia às passeatas. Enfim, passou, desde o primeiro ano, a ser um ativo militante da luta em prol da redemocratização do país.

Houve ocasiões nas quais se viu cercado pela polícia em passeatas. Tinha dificuldades em correr junto com os seus colegas, em razão de um aparelho que usava em uma das pernas. Enquanto os seus colegas que fugiam eram detidos ele era poupado.

Esse fato ao invés de alegrá-lo, o deixava profundamente aborrecido, para não dizer ofendido, humilhado até. Em uma dessas ocasiões, não se conteve e interpelou um delegado "por que nunca sou preso? Fica aqui o meu protesto. Eu quero ir para o DOPS".

Pouco tempo após, a sua vontade foi satisfeita. No mesmo ano de 1943, em 2 de novembro, quando a Faculdade e o Centro foram invadidos, Gabriel foi preso com outros colegas, inclusive com o Macacão e, aí sim, levado ao DOPS.

Anfitrião emérito, como já dito, recebia com enorme alegria todo aquele que fosse visitar a sua cidade ou nela trabalhar. Discorria com orgulho sobre a sua Rio Preto. Cantava a sua gente, a excelência do seu centro médico, a qualidade dos seus companheiros de advocacia, o crescimento industrial da cidade, o seu ativo comércio, e a qualidade culinária de seus clubes e restaurantes.

Uma ocasião, levou um amigo de São Paulo para jantar no Automóvel Clube, não sem antes fazer apologia do requinte do seu bar e da sofisticação da sua cozinha. Sem dúvida se tratava do mais elegante Clube recreativo do interior do Estado, segundo a sua imparcial e insuspeita opinião...

Assim que entraram no bar ele gritou para o garçom amigo "João, solta dois sanduiches de jacaré", de imediato veio a resposta: "Dr. Gabriel estamos sem pãezinhos".

O garçom não quis desmentir o advogado, que deveria ter proclamado a qualidade e o refinamento do restaurante. Com certeza o garçom, que o conhecia de longa data, não quis desmenti-lo, e atribuiu a falta da iguaria à falta dos pãezinhos e não do jacaré.