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O dever do Estado contemporâneo no salvamento do futebol

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Atualizado em 5 de julho de 2016 14:56

Rodrigo R. Monteio de Castro e Glauco Martins Guerra

Em entrevista publicada na Folha do dia 2 de julho, Leonardo, ex-jogador da seleção brasileira, do São Paulo, do Flamengo e do Milan, dentre outros times, afirma que a salvação do futebol depende dos clubes. O peso de sua afirmação não se mede apenas por sua experiência nos gramados, mas, também - e especialmente - pelo seu conhecimento acumulado fora dele: além de técnico, Leonardo teve passagem na função de executivo de times importantes como o PSG.

A afirmação é sem dúvida correta. Mas deve ser lida juntamente com outra sua proposição, contida na mesma matéria, que sustenta e justifica a primeira: a necessidade de mudança da estrutura jurídica dos clubes brasileiros.

Dessas proposições extrai-se, portanto, o seguinte: enquanto os clubes brasileiros não tiverem força, continuarão a ser subjugados e se manterão no atual processo de apequenamento; e, enquanto forem associações civis, sem fins lucrativos, os clubes manterão uma visão e uma conduta política, pautada e comandada por seus dirigentes-políticos, que, segundo palavras de Leonardo, "nos impede de ser atuais".

A saída para esse ciclo vicioso, que entrou numa espiral perdedora, em todos os planos - clubístico ou do selecionado nacional -, passa pela coragem na implementação de um novo modelo, que deve priorizar os aspectos esportivos e econômicos, em detrimento da politização amadora.

Isso somente se resolve, no atual estágio do futebol brasileiro, por meio da criação de uma via jurídica que ofereça o ferramental necessário para a criação e o desenvolvimento de um ambiente que atraia agentes que, historicamente, se trataram como incompatíveis.

A incompatibilidade é falsa, porém. Foi- e ainda é - dogmatizada justamente por esse discurso político, avesso à ruptura com o modelo arcaico que vige no país. E que pretende incentivar e reforçar o sentimento de incompatibilidade.

Não existe, é bom repetir, incompatibilidade entre a tradição dos times e do jogo de bola, de um lado, e o capital, de outro. O que existe, isto sim, é um chassi regulatório inadequado - ou a falta dele.

Um chassi regulatório que reconheça os aspectos fundamentais a serem tutelados, em nome da preservação histórica e cultural do futebol. E que, justamente por conta dessa motivação, ofereça os instrumentos necessários para financiamento desse propósito.

Aí está, de modo simplista, a demonstração de que, ao contrário do que as poucas pessoas que se apoderaram da cultura de um povo pretendem reverberar, futebol e capital podem se atrair.

E podem conviver, fortalecendo-se um com o outro. Desde que um não explore ou subjugue o outro.

Esse foi o caminho percorrido por grande parte dos grandes times do planeta. E somente a partir do momento em que decidiram percorrê-lo, eles puderam defender e impor seus interesses, antes manipulados por entidades centralizadoras e monopolistas.

Entidades que não tinham interesse no fortalecimento dos times. Pois a força os libertaria. Como de fato os libertou.

A mesma liberdade que poderão ter os clubes brasileiros.

E como fazê-lo?

Aí está o problema. E a solução não é simples.

Endividados, desacreditados, sujeitos a sistemas políticos internos incompatíveis com a atividade econômica que administram - e na qual se inserem -, os clubes não têm, atualmente, meios de reverter o jogo, sem o apoio de um agente superior.

A ilusão não pode turvar a realidade. Os clubes se submetem, necessariamente, a um poder organizador que não se interessa pela reversão desse quadro. A força dos clubes implica enfraquecimento da CBF; inversamente, a crise clubística fortalece a CBF.

Aí surgem algumas questões fundamentais.

O futebol é um bem público? Ou será um "patrimônio nacional"?

A CBF seria seu "agente regulador", do ponto vista da organização do Estado? Aqui não há dúvida: não.

E como conjugar essas questões, algumas, inclusive, ainda não respondidas.

O futebol possui um papel institucional que transcende, por sua história de conquistas e pelo enorme apelo popular, os limites do campo e da paixão, atingindo dimensões econômico-sociais que justificam uma regulação apropriada.

A CBF é uma entidade tipicamente privada. Superavitária, estruturada para atingir os seus próprios interesses, detentora de algumas dezenas de marcas, já registradas ou em processo de registro (a exemplo de Taça de Ouro - registrada; Seleção Brasileira de Futebol - registrada; Copa do Brasil - registrada; Somos Todos Futebol - no aguardo de exame para registro; We are all Footbal - no aguardo de exame para registro).

Todas as suas ações, condutas e atuações envolvem os nomes Brasil e Brasileiro. As cores que adota são as da Bandeira. O hino, o Nacional. Ela atua em nome do país em competições internacionais. E, novamente, organiza o futebol, um bem econômico em sentido estrito, no plano interno.

Esse quadro mostra a importância e alcance que um ente jurídico do porte da CBF representa no cenário esportivo de uma das 10 principais economias atuais e a maior ganhadora de campeonatos mundiais da história do futebol.

Como então compreender - ou melhor, aceitar - que essa entidade assuma características de uma verdadeira "Corporação de Ofício", no melhor estilo medieval do termo, auto regulamentando um mercado que, por suas características e dimensões, teria tudo para ser lucrativo, autônomo e independente, empresarialmente estruturado, inclusive em regras de governança e compliance, e eficiente, tanto social como economicamente?

A única forma de reverter esse cenário é por meio da atuação de um poder maior, superior e legitimado a fazê-lo. O único poder que realmente tem a atribuição de, por meio de políticas públicas, zelar pela preservação da cultura de um povo: o Estado.

E a função do Estado, no caso do futebol, não consiste em financiá-lo ou praticar ações intervencionistas em seu funcionamento. Definitivamente não.

Cabe ao Estado criar os meios necessários à implantação de um ambiente que induza os clubes a deixarem de agir como clubes, e sim por meio de sociedades empresárias - as sociedades anônimas do futebol.

Para que, nesse ambiente, as sociedades anônimas do futebol possam - caso queiram, é sempre bom destacar - captar recursos, investir em suas atividades, sobretudo na formação, educação, treinamento e manutenção de atletas, e gerar receitas. Dessas receitas, reinvestir parte em suas atividades. E outra parte reverter aos seus acionistas, clubes e investidores de mercado, que houverem acreditado na proposta modernizante.

Esse toque de letra permitirá que o Estado deixe de financiar o amadorismo e a ineficiência e passe a legitimamente tributar a renda auferida pelas novas empresas econômicas, aumentando, assim, sua receita.

Esse ciclo virtuoso parte - o craque Leonardo tem absoluta razão - do fortalecimento dos times. E, continuando na linha do seu raciocínio - com o qual, aliás, esta Coluna concorda e vem, desde a sua criação, enfatizando - somente se implementa mediante a imposição de um novo marco regulatório.

Marco este que crie um mercado do futebol.

Marco que não será proposto pela CBF, mas sim protagonizado pelos clubes que ousarem enfrentar o poder central - um poder privado -, algo que, diante da periclitante situação financeira da grande maioria, é improvável ocorrer nas atuais circunstâncias.

De maneira que o Estado deve agir. O verbo é este mesmo: trata-se de um dever. E rápido. É caso de urgência e necessidade.

A ação não pode repetir os erros do passado. Não se trata de simplesmente prever que clubes se transformem ou constituam sociedades anônimas do futebol. Isso já foi tentado, mutatis mutandis, com a Lei Zico e com a Lei Pelé, ambas rapidamente subjugadas pelo status quo auto regulatório da CBF, em sua incrível capacidade de controle entrópico.

Não é por aí, portanto. O Estado deve reconhecer a necessidade de inclusão da formação do mercado do futebol na agenda prioritária de políticas públicas.

O Estado deve orientar seus agentes, como a CVM, na implementação das ações necessárias para que o futebol possa servir como elemento de integração nacional, desenvolvimento social, cultural, educacional e econômico.

O Governo que se mantiver inerte em relação a tamanha prioridade perderá uma oportunidade histórica de reconstruir o ludopédio, transformando as relações de suserania e vassalagem que hoje pautam o futebol brasileiro.

*Glauco Martins Guerra é advogado.