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Sócrates, Casagrande e Juca Kfouri - Três curtas narrativas

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Atualizado em 29 de novembro de 2016 13:52

A Livraria da Vila promoveu, no sábado, 26/11/16, uma incrível conversa com a participação de Casagrande, Juca Kfouri, José Trajano, Marcelo Rubens Paiva e Gilvan Ribeiro.

O que a tornou incrível não foi a reunião dessas pessoas, pois, como são amigas de longa data, se encontram, aparentemente, com frequência; mas, a inédita abertura ao público, que pôde acompanhar e interagir com os prosadores.

O tema era a relação de amor entre Sócrates e Casagrande, uma das mais bem-sucedidas duplas de ataque que o futebol brasileiro produziu.

Influenciado pelo encontro, resolvi narrar três curtas passagens, duas que presenciei e uma que ouvi. Elas envolvem os dois jogadores e o jornalista Juca Kfouri.

Sócrates

A história se passa em 2009. Um dia da semana, acho que terça-feira. Quase meia-noite.

Toca o telefone de casa e eu corro para atender, aflito para não acordar Olivia, que nascera havia poucos meses. Do outro lado da linha ecoou a voz do jornalista Victor Birner. "Topa ir tomar algo na Vila"? "Está louco, amanhã tenho uma reunião às 8h30. E a Olivia, você sabe bem, é o padrinho dela, não me deixa dormir há meses. Estou destruído". "Pena, o Sócrates, o Juca, o Chico Sá e mais uma turma do Programa vão comigo". "Onde mesmo você disse que nos encontramos? Chegarei em 15 minutos".

Nesse dia, ou melhor, nessa madrugada, enfim, conheci o capitão da seleção de 82.

Lá pelas 4h00, tomei coragem e resolvi fazer uma pergunta sobre um tema que me perturba até hoje: Sarriá. Sim, porque, se eu tivesse poder divino para reverter um acontecimento histórico - ou poético - não seria Troia ou Waterloo. Minha escolha recairia sobre Sarriá.

Nenhum feito heroico se igualaria ao da pessoa que tivesse marcado o terceiro gol do Brasil, não o da vitória, mas de um simples empate, daquele time que, do ponto de vista plástico, artístico, é insuperável na história do futebol.

"Sócrates, desculpe-me pela pergunta, talvez impertinente a essa hora da madrugada, mas não tenho como evitar: o que representa Sarriá para você"?

Nesse momento, ele levava um copo com cerveja à boca. Mas interrompeu abruptamente o movimento e fixou o olhar, durante, não sei, um ou dois minutos - essa foi a minha sensação, tamanha a agonia que tive com o seu silêncio -, até que ele se virou para mim e disse: "ainda hoje passo noites sem dormir pensando naquela tarde. Nunca me livrarei desse pesadelo".

Nenhuma palavra precisa ser acrescentada para evidenciar o seu caráter, a sua grandeza.

Casagrande

A fala de Casagrande, a respeito de Sócrates, no colóquio protagonizado pela mencionada livraria, é fascinante: "Sócrates é gênio. Eu sou o complemento do gênio". "Eu me satisfazia com essa posição. E me orgulho dela. Quantas pessoas foram complemento de um gênio"? "Acho que fui um grande jogador, o melhor companheiro que ele teve". "Jogar ao seu lado era muito difícil. Ele era muito inteligente. Quando a bola se dirigia a ele, três ou quatro possibilidades de jogadas passavam por sua cabeça. Eu precisava adivinhar o que se passava na cabeça dele e o que ele iria aprontar. E sempre aprontava. Era muito tenso. Eu perdia quatro quilos por jogo".

Essa revelação não expressava falsa modéstia. Ecoava, ao contrário, em tom sincero, uma sinceridade desconcertante. Típica do herói que se curva diante de Zeus.

A importância de Casagrande extrapola os gols e as atuações que encantaram torcedores do Corinthians, do São Paulo, do Torino, do Flamengo ou da seleção brasileira. O futebol foi - e é - mero instrumento.

Suas corajosas posições à época das Diretas Já, a coliderança da Democracia Corintiana, a coerência em campo e a sua batalha de vida contra a dependência química, que se tornou pública e passou a ser um lema, com o propósito de ajudar pessoas que sofrem de patologias similares, revelam o caráter desse herói.

Um herói humano. Por isso, sujeito às glórias e aos reveses da vida.

Juca Kfouri

Quando o livro Futebol, Mercado e Estado ficou pronto, resolvemos apresentá-lo ao Jornalista Juca Kfouri. O coautor, José Francisco Manssur, o conhecia. Cuidou, por isso, de enviar uma cópia do manuscrito e marcar um almoço.

No horário marcado, eu abri a porta do restaurante. Juca lá estava, sentado ao bar. Manssur atrasou-se. Tenso, apresentei-me.

A tensão tinha motivo. Afinal, como acabaria, ou melhor, como iniciaria a conversa em que apresentaríamos e defenderíamos, para uma pessoa que guiava o carro para Joaquim Câmara Ferreira (conhecido por "Velho" ou "Toledo"), comandante da ALN após a morte de Marighella, e que se mantém - como poucos - coerente em relações aos seus princípios e às suas opções humanísticas e políticas, que a solução do futebol era o mercado?

Não um mercado selvagem, desregulado e descontrolado, é verdade.

Porém, um mercado que deveria ser criado por meio da atuação legislativa do Estado, com o propósito de preservar o futebol como elemento essencial da cultura brasileira, e, ao mesmo tempo, fixar as bases de um novo modelo de governação e de propriedade dos ativos futebolísticos, rompendo com o anacrônico sistema vigente desde o século XIX. E que, ainda, previa a criação de um sistema de financiamento privado de futuras sociedades anônimas do futebol e de um instrumento de formação e educação de crianças matriculadas em escolas públicas.

Mesmo assim, o mercado.

A conversa deveria ser curta, por conta de compromissos profissionais do nosso interlocutor. Ao menos foi o que ele anunciou, certamente para se livrar, educadamente, de nossa pretensiosa prosa.

Pois bem.

Após mais de duas horas de conversa e duas - ou três, não me lembro - garrafas de vinho, Juca se virou para Manssur e disse: "Manssur ... acho que é isso: a solução é o mercado".

Se qualquer pessoa atribuir essa frase ao Juca, será imediatamente tachada de mentirosa ou insana. Risco que eu aceito correr.

Sócrates, Casagrande e Juca Kfouri integram a lista dos heróis de nosso futebol. Cada um com a sua história, com a sua trajetória, com as suas lutas (e um deles sem ter chutado uma bola profissionalmente).

Heróis que dedicaram - ou dedicam - suas vidas a causas humanistas e que perceberam, como poucos, que o futebol é muito mais do que um esporte; é o elemento da nossa cultura, talvez o único, que pode produzir uma verdadeira transformação social.