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Billie Holiday, Daniel Alves, o centrão e o linchamento público

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Atualizado às 07:43

Quando terminei e publiquei o primeiro texto sobre o jogador de futebol Daniel Alves, há pouco mais de duas semanas, achava que o tema se esgotaria ali. No dia seguinte, iniciei, por acaso, a releitura de "Não verás país nenhum", obra-prima da literatura brasileira, e, ao terminá-la, três dias depois, surgiu novo texto, chamado "Ignácio de Loyola Brandão, Daniel Alves, futebol e o futuro da sociedade". Ali, não me restava dúvida de que partiria para outro assunto, deixando Daniel Alves para trás - como de fato parti.

Até que me deparasse, na edição de domingo, 7 de fevereiro, do caderno Ilustríssima, da Folha, com o texto "A onda negra", da jornalista Ana Maria Bahiana. Ao ver a lista de títulos que marcaram os lançamentos cinematográficos de 2020, ano emblemático pela "presença de artistas negros no cinema, seja protagonizando, escrevendo ou dirigindo filmes", um deles, "The United States vs. Billie Holiday", do diretor Lee Daniels, reacendeu a vontade - e a necessidade - de insistir na situação envolvendo Daniel Alves - e, assim, de escrever o derradeiro texto que compõe singela e despretensiosa trilogia.

Lembre-se, antes, que Billie Holiday cantou pela primeira vez, em 1939, Strange Fruit: canção que viria a ser classificada, por determinado crítico, como"o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo"1.

Nessa canção, a mais dramática e profunda (e, ao mesmo tempo, bela) voz feminina da história da música popular protesta contra os linchamentos de negros no sul de seu país, que ocorriam pelos mais fúteis motivos, diante e para deleite de plateias brancas. 

Billie Holiday, que não era uma ativista, chacoalhou até os intelectuais progressistas; mesmo ali, no Café Society, em Nova York, ponto de encontro da intelligentsia, onde a canção foi apresentada, convicções se abalaram.

Não à toa, Ana Maria Bahiana transcreve, em seu texto para Folha, a seguinte fala de Lee Daniels: "Billie Holiday era perigosíssima, ao ponto de o governo norte-americano ter medo dela, segui-la, gravar suas conversas (...) Quando se fala na luta pelos direitos civis (...) lá estava Billie no começo de tudo, com sua voz e sua música, destemida, complicada, uma cantora divina (...) E com esse poder todo, um poder tão grande que as autoridades temiam".

Aí surge a deixa para falar de futebol e de Daniel Alves.

Um dos mais bem sucedidos jogadores da história do futebol, vencedor com todos os times de que participou - exceto o São Paulo -, e riquíssimo, encarou e bravamente, com certa idade para os padrões futebolísticos, o desafio de comandar um time que vivia - e ainda vive - crise sem precedentes em sua vencedora história.

Importante lembrar: clube outrora referência nacional (e internacional) nos planos organizacionais e esportivos, que não soube lidar com sua própria magnitude e poder, e, de soberano, foi se transformando, por conta de deus dirigentes, em soberbo.

Desde a injustificável reforma estatutária promovida em 2011, com o propósito exclusivo de permitir um terceiro mandato ao então Presidente Juvenal Juvêncio, a política (ou a politicalha) e pessoas se sobrepuseram ao futebol, ao time e à instituição; profissionais da política interna criaram uma espécie de centrão clubístico e assumiram o protagonismo que sempre foi atribuído ao que realmente importa: o time e seus jogadores.

Com a aposentadoria de Rogerio Ceni, um mito dentro de campo, mas que foi instrumentalizado pela (e ao mesmo tempo beneficiário da) estrutura de coalização corrosiva de uma história vencedora, formava-se o ambiente ideal para que o baixo-clero, ávido, há décadas, por espaço e oportunidades, dominasse o Esquema interno (para quem não leu o segundo texto da série, o significado do vocábulo esquema pode ser apreendido no livro de Ignácio de Loyola Brandão).

Raí e Lugano não apenas ameaçaram as pretensões "baixocleristas", como atrasaram os planos de dominação. Mas foi a chegada de Daniel Alves e o estabelecimento natural de sua liderança que aumentaram a barreira entre as pretensões cartolariais e o vestiário.

Mesmo tendo arregimentado o melhor elenco dos últimos anos, como Lugano sempre afirmava, o time de 2020, marcado pela ascendência de talentosos meninos formados em Cotia, mais por contingência do que por planificação, dependia de Daniel Alves, dentro e fora de campo.

Foi ele, aliás, quem se expôs, pouco antes da arrancada que conduziu o time à liderança (e a torcida ao sonho de dois títulos relevantes), para defender e sustentar a importância de Raí, como diretor, e de Fernando Diniz, como técnico.

Dupla que, não é segredo para ninguém, nunca fez parte dos planos da então chapa candidata (e posteriormente vencedora) à presidência do São Paulo; e que, pela função que exercia e pelo desgaste que carregava, poderia ser dispensada com certa facilidade.

O maior obstáculo era mesmo Daniel Alves. Mas ele ofereceu aos algozes o motivo que pediam: apesar de não ser um ativista - como Billie Holiday também não era -, ele cantou a sua strange fruit e ousou afirmar que o trabalho do então treinador era grande, dentre outros motivos, porque ele não se preocupava "só em criar grandes jogadores, mas sim grandes serem humanos, que vão sair melhores do que eram aqui (...); [ele, Fernando Diniz] no dia em que não estiver mais aqui, vai deixar uma grande base, não só monetária, mas pessoal também para o São Paulo. Serão pessoas que vão influenciar outras a não serem omissas".

Aí está, portanto - dentre outros que não importam neste texto -, um dos motivos para o linchamento moral, técnico e esportivo de um gigante do futebol. Um gigante que enriqueceu a história do Mais Querido time brasileiro sem ter ganhado um título - menos por sua culpa, e muito mais, ou exclusivamente, pelo sistema político-associativo interno que se transformou num devorador (ou linchador) de homens e de almas. 

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1 Margolick, David. Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção. - São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.22.