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A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives"

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Atualizado às 06:54

Texto de autoria de Michael César Silva, Caio César do Nascimento Barbosa e Glayder Daywerth Pereira Guimarães

Com a crise mundial relativa à pandemia do Coronavírus, a maioria dos países vislumbrou como solução eficaz para contenção de novos casos da doença, a adoção de medidas de distanciamento social, quarentenas e lockdowns. Com locais públicos e privados interditados e aglomerações proibidas, um fenômeno mundial foi fortalecido nesses primeiros meses de 2020: as chamadas lives realizadas por intermédio das redes sociais.

O formato não é inédito, sendo que, em verdade, estava em franca ascensão nos últimos anos. Contudo, com a premente necessidade de distanciamento social como forma de combate a pandemia, as transmissões ao vivo impulsionaram um sucesso de enormes proporções, denominado de "era das lives", para descrever estas manifestações em tempos de Coronavírus. Destaca-se, que são vislumbradas em diversas mídias sociais, sendo as mais populares, o Instagram e o YouTube.

De acordo com a revista EXAME, as buscas pelas lives no YouTube cresceram 4.900% no Brasil durante o período de quarentena1, as quais se converteram em eventos diários, em que as pessoas passaram a acompanhar de forma pontual as transmissões ao vivo dos artistas, popularizando-as. O YouTube, inclusive, criou a campanha "Fique em Casa e #Cante Comigo", proporcionando uma coletânea de shows exibidos em tempo real, com diversos artistas.

Os brasileiros são, em todo o mundo, a audiência que mais participou na era das lives, se sobressaindo no ranking das 10 maiores audiências de lives no YouTube, alcançando 7 de 10 posições2, sendo que a maioria conta com lives de cantores sertanejos.

As lives sertanejas se demonstraram como meio altamente rentável, em que patrocinadores passaram a promover costumeiramente as mesmas, com a exibição de produtos ou serviços3, angariando, também, influenciadores digitais nas redes sociais para alavancar a promoção dos mesmos, conseguindo atrair público expressivo para estes "shows em casa".

Na conjuntura posta, em que patrocinadores, agências, gravadoras e cantores uniram-se para viabilizar as transmissões ao vivo, a venda de produtos e serviços dos respectivos fornecedores aumentou, exponencialmente, bem como a popularidade dos cantores.

Como exemplo, tem-se o caso do músico Gusttavo Lima, que alcançou a posição de cantor brasileiro mais seguido no Instagram após o sucesso de suas primeiras lives4, tendo maximizado sua notabilidade após episódio marcante, em abril de 2020, que culminou com a Representação Ética nº078/20 do CONAR, para análise das ações publicitárias envolvidas em suas lives.

A Representação Ética nº 078/20 foi instaurada após dezenas de denúncias de consumidores ao CONAR, que, ao analisar, julgou pela necessidade de abertura por dois motivos: i) falta de identificação clara do público-alvo, uma vez que não possuía restrições a menores de idade; ii) influência ao consumo exagerado e irresponsável de bebidas alcoólicas, contrário ao anexo "P" do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP)5, que assevera a necessidade de responsabilidade social nos anúncios publicitários, que não devem induzir o exagerado ou irresponsável consumo de bebidas alcoólicas.

O episódio foi suficiente para que o YouTube discutisse e reforçasse suas políticas de uso referentes às lives, atentando-se à sua responsabilidade civil como provedor de conteúdo sob a perspectiva do Marco Civil da Internet - lei 12.965/2014 - , atuando por meio da função preventiva, com intuito de mitigar eventuais ocorrências.

Pouco tempo depois, a Representação Ética nº 81/20 foi instaurada em face da dupla sertaneja Bruno e Marrone, pelo motivo de influência ao consumo exagerado e irresponsável de bebidas alcoólicas.

Nas referidas Representações, a patrocinadora das lives (AMBEV), também, fora acionada, pelo CONAR, contudo, se defendeu alegando não possuir qualquer responsabilidade em relação ao ocorrido, dado que os cantores sertanejos realizaram as condutas de forma volitiva, sem qualquer determinação da anunciante.

O CONAR decidiu somente pela advertência aos cantores em ambos os casos, aceitando a alegação da patrocinadora de que os abusos ocorridos partiram de forma espontânea dos influenciadores, retirando-se uma questionável solidariedade dos anunciantes. Em razão dos eventos ocorridos, outros cantores redobraram a atenção necessária em relação a realização de novas lives.

A Representação Ética nº 078/20 - relacionada a live do cantor Gusttavo Lima - apontou a necessidade de existência de responsabilidade social do cantor. Ao induzir o consumo desenfreado de bebidas alcoólicas, além de desrespeitar o anexo "P" do CBAP, o mesmo potencialmente induziu seus seguidores ao consumo exagerado (não foram raros, principalmente, no Instagram, "jogos" e "desafios" envolvendo bebidas alcoólicas durante as transmissões das lives), em uma época crítica em que a própria Organização Mundial da Saúde expressa preocupação pelo aumento do consumo de álcool nesse período em que as pessoas se encontram confinadas.

A lei 9.294/1996, por sua vez, aponta uma série de recomendações que os anunciantes devem seguir na veiculação de publicidade que se refira a bebidas alcoólicas. Ainda que a época de promulgação da lei não existisse as mídias sociais, os dispositivos devem ser atualizados para o contexto contemporâneo, vez que as referidas mídias possuem forte apelo as crianças e adolescentes6.

Constata-se, pelo estudo da temática, que a atuação dos referidos cantores/influenciadores apresenta-se nos termos do artigo 37, §2º, do CDC, como publicidade ilícita, especificamente, na espécie "abusiva", pois os mesmo produzem conteúdos nas lives, que podem induzir o público a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança (pelo incentivo ao consumo imoderado de bebidas alcoólicas), bem como, ainda, atingir ao público hipervulnerável (crianças e adolescentes), em função da sua deficiência de julgamento e experiência.

Neste sentido, os influenciadores digitais violam o princípio do consumo com responsabilidade social, que determina que a publicidade não deverá induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável. Não se atentando, também, a cláusula de advertência que preceitua que todo anúncio, conterá a referida cláusula, à qual refletirá a responsabilidade social da publicidade e a consideração de Anunciantes, Agências de Publicidade e Veículos de Comunicação para com o público em geral.

Denota-se, ainda, que, apesar destes cantores assumirem posição de celebridades (renomadas em seu meio profissional), os fatores espontaneidade e liberalidade para criação de conteúdo - nas ações publicitárias pelas quais se veiculam em ambiente digital - demonstram-se como essenciais para a caracterização destes como influenciadores digitais.

O CONAR nas referidas Representações entendeu nesse sentido e se utilizou da terminologia influenciador para se referir aos cantores, bem como a AMBEV afirmou, em nota, a espontaneidade e liberdade que estes cantores possuem em suas lives.

Ao se tratar da responsabilidade civil dos influenciadores digitais pela publicidade ilícita na qual se vinculam, a doutrina defende a tese da imputação de responsabilidade civil objetiva7.

No contexto das lives, a boa-fé objetiva e da função social dos contratos, se apresentam como parâmetros norteadores da atuação dos patrocinadores, agências, plataformas digitais, celebridades e influenciadores digitais no mercado de consumo digital.

Evidencia-se a inegável força normativa dos referidos princípios no ordenamento jurídico brasileiro, enquanto normas de ordem pública e interesse social, que assumem papel fundamental no deslinde da controvérsia apresentada, no sentido de asseverar a responsabilidade dos influenciadores, que em não raros episódios, deixam de observar os preceitos ético-jurídicos, o interesse social e a promoção do bem comum nas ações de cunho publicitário.

Nessa linha de intelecção, resta caracterizada a responsabilidade objetiva dos influenciadores digitais, tendo-se por fundamento que os mesmos: "a) fazem parte da cadeia de consumo, respondendo solidariamente pelos danos causados, b) recebem vantagem econômica e c) se relacionam diretamente com seus seguidores que são consumidores"8.

Considerando a relação de credibilidade preexistente com seus seguidores e a liberdade que possuem para se comunicarem com estes, tais padrões devem ser reforçados, por meio do fornecimento de informações qualificadas (corretas, claras, adequadas e ostensivas) ao veicularem peças publicitárias que se atrelem a sua imagem ou boa fama.

Nesse giro, relevante discutir ainda a possibilidade de danos sociais em episódios como ocorridos nas lives, vez que a conduta dos influenciadores repercute expressivamente em inúmeros de seus seguidores, que se espelham nestes e possuem relação de confiança e credibilidade, reforçando-se o caráter significativo de influência existente.

Ao refletirem comportamentos voltados a indução a bebidas alcoólicas de forma imoderada, sem restrição à menores de idade, devem estes influenciadores assumir responsabilidade social, devendo promover conteúdos que não sejam considerados como capazes de rebaixar a qualidade de vida do público, vez que possuem expressivo e inegável potencial de induzimento a estas condutas. Logo, o referidos casos e os recentes acontecimentos, reforçam que estes influenciadores devem agir de maneira ética e socialmente responsável sob pena de serem responsabilizados.

Conclui-se, portanto, que no contexto de uma sociedade hiperconectada, evidenciada pela era das lives, a atuação dos influenciadores digitais deve ser pautada pela responsabilidade social, sendo que, o estímulo ao consumo imoderado de bebidas alcóolicas não pode ser tolerado.

A responsabilidade civil atribuída aos digital influencers demonstra-se como sendo objetiva, com fundamento na inobservância dos preceitos normativos da Boa-fé Objetiva e da Função Social dos Contratos, bem como, pela veiculação e promoção de publicidade ilícita (abusiva), que pode induzir o público a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança, e, que ignoram a presença de hipervulneráveis nas lives, incentivando o consumo exagerado de álcool e expondo crianças e adolescentes a tais práticas.

Por fim, a controvérsia em estudo se demonstra atual e necessária de análise, sendo, ainda, construídos os critérios objetivos para caracterização das condutas consideradas como reprováveis por parte de tais personalidades digitais, mas o horizonte indica haver a possibilidade de que ações de influenciadores sejam passiveis de responsabilização civil.

*Michael César Silva é doutor e mestre em Direito Privado pela PUC-Minas. Especialista em Direito de Empresa pela PUC-Minas. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. Mediador Judicial credenciado pelo TJ/MG.

**Caio César do Nascimento Barbosa é graduando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (curso Direito Integral). Integrante sênior do Grupo de Iniciação Científica "Responsabilidade Civil: Desafios e Perspectivas dos novos danos na sociedade contemporânea" da Escola Superior Dom Helder Câmara.

***Glayder Daywerth Pereira Guimarães é graduando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (curso Direito Integral). Integrante sênior do Grupo de Iniciação Científica "Responsabilidade Civil: Desafios e Perspectivas dos novos danos na sociedade contemporânea" da Escola Superior Dom Helder Câmara.

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1 EXAME. Na quarentena, o mundo virou uma live. Disponível aqui. Acesso em: 29 mai. 2020.

2 O GLOBO. Lives de 2020 são dominadas por brasileiros, com sete das 10 maiores audiências do mundo. Disponível aqui. Acesso em: 29 mai. 2020.

3 VALOR ECONÔMICO. 'Lives' atraem patrocínio de marcas. Disponível aqui. Acesso em: 05 jun. 2020.

4 SOUSA JÚNIOR, João Henrique; RIBEIRO, Letícia Virgínia Henriques Alves de Sousa; SANTOS, Weverson Soares; SOARES, João Coelho; RAASCH, Michele. '#fiqueemcasa e cante comigo': estratégia de entretenimento musical durante a pandemia de Covid-19 no Brasil. Revista Boca Boletim de Conjuntura. V. 2, n. 4, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 29 mai. 2020.

5 CONAR. Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. Disponível aqui. Acesso em: 30 mai. 2020.

6 Neste sentido, ver: DENSA, Roberta. A regulamentação da publicidade das bebidas alcoólicas e a proteção do adolescente no Instagram e Facebook. Disponível aqui. Acesso em: 08. jun. 2020.

7 BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade Ilícita e Influenciadores Digitais: Novas Tendências da Responsabilidade Civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019.

8 GASPARATTO, Ana Paula Gilio; FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra; EFING, Antônio Carlos. Responsabilidade civil dos influenciadores digitais. Revista Jurídica Cesumar jan./abr. 2019, v. 19, n. 1, p. 84.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).