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Responsabilidade parental em tempos digitais

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Atualizado às 06:45

Os hábitos digitais permeiam a vida das pessoas em diversas esferas, desde o trabalho às atividades recreativas. A incorporação do mundo digital ao cotidiano é um caminho que se acentua sem volta. Alguns dos benefícios e malefícios desse contexto gradativamente vão se revelando e, certamente, muitos ainda estão por vir. Como parte dessa sociedade digital, crianças e adolescentes estão cada vez mais integradas a esse contexto.

A Internet possibilita a efetivação de diversos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Facilita o acesso à educação, à informação, à cultura, ao lazer e, até mesmo, à convivência familiar, como os tempos de pandemia estão ressaltando. Há novos recursos para a profissionalização e para a realização da pessoalidade desses humanos em desenvolvimento.

Paralelamente a esses os diversos benefícios, vários riscos e danos surgem e se concretizam na esfera existencial desse grupo. Com a era digital, o bullying tradicional se tornou mais complexo, com potencial ainda maior de atingir diversas esferas da personalidade de crianças e adolescentes. O Cyberbullying pode acontecer por meio do anonimato, ainda, dificulta a reação da vítima, deixa registros indeléveis no espaço sem fronteiras do mundo digital, podendo atingir um número potencialmente maior de expectadores1. Em alguns casos, leva à automutilação e ao suicídio2.

A pedofilia ganha novos veículos para invadir a intimidade, podendo partir do vizinho a um agente do outro lado do mundo. Imagens íntimas de menores sem o respectivo consentimento são veiculadas na Internet também em decorrência de relações sociais entre adolescentes na fase de iniciação sexual, seja em contextos de conflito como nos casos de pornografia de vingança ("revenge porn").

No meio disso, ainda, se verifica o discurso de ódio, comumente inserido nas mídias sociais, tendo potencialidade para atingir a identidade e a liberdade de crianças e adolescentes, em decorrência, por exemplo, da etnia, modelo familiar, opção sexual e religião.

No contexto desse modelo digital, grupos terroristas aproveitam-se para cooptar integrantes ao redor do planeta, tendo como seus principais alvos crianças e adolescentes, justamente por estarem em desenvolvimento. Crianças e adolescentes podem se tornar, ainda, alvos de ataques cibernéticos. Em março de 2019, o Youtube infantil foi invado por hackers, passando a exibir em meio a vídeos voltados para a faixa etária de até 13 anos, a boneca Momo que os induzia a praticar automutilação ou suicídio3. Nota-se, ainda, que o vício no uso das redes sociais e Internet tem sido cada vez mais debatido, de forma que, recentemente, a Organização Mundial da Saúde reconheceu como distúrbio mental a dependência de games em algumas situações4.

Os menores ficam ainda mais suscetíveis a propagandas abusivas, seja por anúncios subliminares em vídeos recreativos, seja por posts supostamente despretensiosos de digital influencers5.

A pretensão deste texto não é aterrorizar pais e educadores, mas o tema tem ganhado proporções de saúde pública, como se observa de várias recomendações da Organização Mundial de Saúde6. Naturalmente, os debates já repercutiram nos Tribunais.

Diversos aspectos jurídicos são observados no envolvimento de crianças e adolescentes no mundo digital. Entretanto, este texto pretende propor reflexões sobre a responsabilidade civil dos pais em relação aos atos de seus filhos para com terceiros, e, especialmente, em relação a seus próprios filhos.

No primeiro caso, as soluções jurídicas são claras e não comportam muitos debates quanto à função compensatória da responsabilidade civil. Nas hipóteses nas quais um menor viola a honra e a imagem de terceiros, aplica-se o art.  927, inciso I do Código Civil, que dispõe que os pais são responsáveis pela reparação dos atos dos filhos que estiverem sob sua autoridade. O menor ainda tem reponsabilidade subsidiária a dos pais, casos estes não tenham condições econômicas para arcar com o dano7. Apesar da possibilidade, na prática serão raras as situações nas quais o filho terá maior capacidade financeira que seus ascendentes de primeiro grau.

Ilustrativamente, em fevereiro de 2020, a 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve sentença que condenou os pais a pagar indenização por danos morais pelo fato de o filho ter compartilhado, via WhatsApp, fotos íntimas da ex-namorada. O colegiado confirmou o valor da indenização, R$ 15 mil, e a determinação de que o aplicativo impeça o compartilhamento das imagens8.

Embora não trate especificamente da responsabilidade civil dos pais em relação aos atos dos filhos menores, o Marco Civil da Internet, lei 12.965 de 2014, comporta medidas que podem inibir o prolongamento do ilícito. No caso de mensagens ou imagens que violem a honra ou a privacidade de terceiros, poderá a vítima, nos termos do art. 19, ajuizar ação em face do provedor de Internet para que lhe seja determinado, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo fixado, tornar indisponível o conteúdo danoso. Deve o autor da ação, como dispõe o § 1º do artigo, identificar de forma clara e específica o conteúdo apontado como infringente, de maneira a permitir por parte do provedor de internet a localização inequívoca do material9.

Se o ato ilícito envolver a divulgação de imagens ou outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, sem o consentido da vítima, o art. 21 do Marco Civil da Internet autoriza à vítima acionar o provedor de Internet via notificação extrajudicial para que retire o conteúdo danoso. Também deverão ser indicados os URLs na notificação10.

Ponto ainda incipiente na doutrina se refere a segunda reflexão proposta por este texto, a responsabilidade civil dos pais decorrente da omissão dos deveres de cuidado com os próprios filhos no mundo digital.

Antes de prosseguir na análise dos aspectos jurídicos, é preciso reconhecer que a questão é complexa e bastante controversa. A inserção das crianças e adolescentes no ambiente digital é fato. Muitas vezes, os pais acabam se socorrendo da Internet para entreter os filhos e, em tempos de pandemia, até mesmo conseguir efetivar compromissos de trabalho. Assim, não se trata aqui de criticar a autorização para que os filhos usem os diversos recursos ofertados pelos celulares, tablets e computadores. Os desafios familiares no mundo digital são imensos e complexos. Até mesmo algumas instituições de ensino, há alguns anos, já vinham inserindo atividades on line para crianças e adolescentes. Agora, inclusive os eventos sociais das escolas, como festas culturais, estão ocorrendo por plataformas de interação coletiva.

Ao contrário, é preciso concordar com os estudiosos que afirmam que o acesso à Internet é direito fundamental das crianças e adolescentes11.

Mas o exercício desse direito impõe riscos, sendo dever dos pais tomar medidas que os minimizem. Dentre as soluções, está o uso de aplicativos e softwares que bloqueiam conteúdos impróprios para a idade. Em algumas situações, desde que com o objetivo de proteger e no melhor interesse da criança e do adolescente, caberá aos pais interferir e invadir a esfera de privacidade dos filhos para averiguar a ocorrência de riscos e danos12.

Entretanto, pais e educadores devem buscar o equilíbrio entre o cuidado e a superproteção que acarreta a invasão desarrazoada e injustificada à privacidade dos filhos. Sem sombra de dúvidas, é um desafio que o mundo digital impõe aos pais.

O poder familiar tem como finalidade primordial promover o desenvolvimento do filho, devendo ser exercido sempre em prol do melhor interesse do filho. Assim, os deveres se sobrepõem aos poderes inseridos nesse múnus. Tanto o excesso quanto a falta de atuação dos pais no exercício do poder familiar, se causadores de danos à existência da criança e do adolescente, podem ensejar a responsabilização civil em favor dos filhos. Há, nessas hipóteses, um comportamento contraditório à norma (art. 227 e 229 da Constituição Federal e 1.634 do Código Civil de 2002).

A responsabilização civil dos pais em relação à omissão de cuidado consubstanciada na ausência da figura paterna ou materna na vida filho já está pacificada nos Tribunais13. Tem-se um ilícito agravado pelo fato de se protrair no tempo, podendo, até mesmo, afetar a estruturação psíquica do menor ao longo de toda a vida14.

A omissão de cuidado decorrente da negligência com a interação da criança e do adolescente no mundo digital também tem aptidão para acarretar danos que acompanharão a pessoa ao longo da vida, como enunciado nos parágrafos iniciais deste texto.

Por isso, alguns parâmetros devem ser observados para se verificar a omissão de cuidado dos pais no caso, pois não é toda e qualquer ausência de atuação que causará a respectiva responsabilização.

É necessária a averiguação de culpa, por meio em standards de comportamento esperado dos pais. Em princípio, a reiteração da negligência é um pressuposto para a responsabilização civil, sob pena de insegurança jurídica. O dano injusto à esfera existencial da criança ou do adolescente deve ser verificado e efetivado em situação no mundo digital. Ademais, ocorrência do dano deve ter correlação necessária à ausência de medidas de cuidado dos pais. Assim como no dano convivencial acarretado pela omissão de cuidado, é preciso a constatação clara de que o fato omissivo do pai ou da mãe foi a causa necessária do evento lesivo, sobremaneira por não existir outra causa que justifique a lesão15.

Tendo em vista a própria circunstância do poder parental e da situação de pessoa em desenvolvimento, a busca por responsabilização civil dos pais poderá, muitas vezes, ser efetivada com o advento da maior idade. Como a prescrição não corre entre pais e filhos durante o exercício do poder familiar (art. 197, I do CC/02), aquele que sofreu danos no mundo digital contará com o prazo de 3 anos contatos da sua maior idade para ajuizar a ação indenizatória (art. 206, §3º, V do Código Civil).

De toda forma, ainda que os pais sejam responsabilizados civilmente e o filho receba a indenização anos mais tarde, o dano já foi efetivado. A função compensatória da responsabilidade civil, embora seja uma resposta desejável à vítima, é incapaz apagar o dano existencial ou moral. Algumas marcas são indeléveis e seguirão na vida adulta. Em matéria de acesso de crianças e adolescentes ao mundo digital, é preciso envidar esforços em prevenção. Família, Estado e sociedade precisam se unir em prol de uma cultura de educação e prevenção de danos digital.

*Ana Cristina de Melo Silveira é doutoranda em Direito Privado pela PUC-Minas. Mestre em Direito. Pesquisadora, consultora de pesquisa e escrita acadêmica. Professora. Advogada.

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1 SCHREIBER, Anderson. Cyberbullying: responsabilidade civil e efeitos na família. Carta Forense, São Paulo, 04 out. 2018. Disponível aqui. Acesso em 09 set. 2019.

2 PORTELA, Graça. Cyberbullying e casos de suicídio aumentam entre jovens. Agência Fiocruz de Notícias, Rio de Janeiro, 24 fev. 2014. Disponível aqui . Acesso em 10 out. 2019.

3 Neste sentido, verificam se as reportagens: Reapariação da boneca Momo em vídeo acende alerta sobre controle do que as crianças veem na web. Acesso em 20/3/2019. Desafio que induz jovens à automotilação se esconde em vídeos infantis, alertam escolas inglesas. O Globo.  Disponível aqui. Acesso em 20/3/2019.

4 Gaming disorder. Acesso em 14/10/2019.

5 Importante texto sobre a responsabilidade civil dos digital influencers foi publicado na Revista do Iberc v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019. BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César Silva, BRITO, Priscila Ladeira Alves de. publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil.

6 Em 2019, a OMS recomendou a redução do uso de aparelhos eletrônicos para crianças abaixo de 5 anos. Disponível aqui.

7 FARIAS, Cristiano; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 614.

8 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Pais indenizarão ex-namorada do filho por danos morais. 10 de fevereiro de 2020. Disponível aqui. Acesso em 10. fev. 2020.

9 Depreende-se do caput do art. 19 que, o provedor de internet somente será responsabilizado civilmente pelo conteúdo danoso se, primeiramente, a vítima indicar inequivocamente o conteúdo, listando, assim, os URLs. Em segundo, se a determinação judicial para a retirada do conteúdo não for realizada no prazo nela determinado.

10 Nos termos do caput do art. 21, o provedor será responsabilizado subsidiariamente pela violação se não promover, de forma diligente, de acordo com seus limites técnicos, a indisponibilidade do conteúdo após a notificação extrajudicial.

11 LIMA, Taísa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Ensaios sobre a infância e adolescência. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 88.

12 MENEZES, Joyceane Bezerra de. A família e os direitos da personalidade. IN MENEZES, Joyceane Bezerra de; MATOS, Ana Carla Harmatiuk (Org.) Direitos das famílias por juristas brasileiras. São Paulo: Sarava, 2013. P. 91-130. p. 117.

13 Neste sentido, a decisão do Recurso Especial 1.159.242 de abril de 2012 se destaca por tratar o cuidado como um valor objetivo.

14 FARIAS, Cristiano; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 957.

15 FARIAS, Cristiano; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 962.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil