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Condenados criminalmente têm direito ao esquecimento? - Breve análise da recente casuística internacional

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Atualizado às 08:47

Caso relatado por Mayer-Schönberger ilustra perfeitamente toda a angústia humana por detrás do tema do direito ao esquecimento. Ele comenta que estava respondendo perguntas feitas por ouvintes de uma rádio, quando entrou a seguinte ligação de uma mulher:

"Quando ainda uma adolescente, disse ela, havia infringido a lei, fora presa, condenada, passando um tempo na prisão. Ela admitiu ter cometido um terrível erro. Mas uma vez libertada, mudou-se para uma cidade diferente e colocou sua vida em ordem. Apaixonou-se, teve filhos, encontrou um trabalho, formou um lar. Deus a ajudou, ela disse, dando-lhe força e fé. E a sociedade também a ajudou, ao lhe propiciar essa segunda chance. Então, um dia, um dos coleguinhas de seus filhos, fez uma pesquisa sobre ela na internet e encontrou uma página com fotos de identificação policial de ex-condenados (mug shots), incluindo a dela. A notícia espalhou-se rapidamente na pequena comunidade onde ela vivia, e sua preciosa nova vida desintegrou-se na frente de seus olhos. Pais não mais permitiram que seus filhos brincassem com os dela; amigos e conhecidos passaram a evitá-la. Subitamente, após ser um bem-quisto membro da comunidade durante quase uma década, ela era a ex-condenada1. (tradução nossa) 

Casos como esse nos recordam Rodotà, ao dizer que "ao lado de um interesse público que aponta no sentido de que fatos passados sejam relembrados, promovendo uma sociedade mais transparente, há o direito de não ser perseguido ao longo de toda a vida por acontecimento pretérito"2.

A questão, porém, não é simples. Teme-se que muitos aproveitem tal direito para eliminar fatos incômodos, mas verdadeiros, do seu passado, já que "é humano pensar na vida como um filme a ser editado, no qual o protagonista seria sempre o herói, e o desfecho sempre feliz"3.

O presente artigo limitar-se-á a expor recentes decisões de tribunais superiores europeus envolvendo direito ao esquecimento invocado por pessoas que foram condenadas criminalmente, quando, transcorrido certo tempo, tal informação continua a ser facilmente acessível na internet.

Fora do contexto da internet, o Tribunal Constitucional Federal alemão abordara o tema nos casos Lebach I e Lebach II. No primeiro caso (1973), afirmou que "a proteção constitucional da personalidade não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, (...) especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade". Já no segundo (1999), a Corte orientou-se em sentido contrário, em razão das novas circunstâncias fáticas, como o fato de que o novo documentário omitira as imagens e a identificação dos envolvidos, focando mais no fato histórico em si. Afirmou o TCF que "o cumprimento das penas não conduz ao fato de que o autor de um delito tenha um direito de ser 'deixado a sós' com o crime"4.

Esses casos continuam tendo sua importância por claramente indicarem que o direito ao esquecimento envolve o império do fato. É quase impossível uma tomada de posição apriorística, diante da relevância de ambos os direitos conflitantes. A atenção aos detalhes do caso concreto é que fará inclinar o fiel da balança na direção do direito que deverá prevalecer.

Mas, ao contrário dos casos Lebach, que tiveram na sua origem um crime de grande repercussão, o fenômeno da internet fez com que todos os milhões de processados e condenados criminalmente no mundo inteiro pudessem ter seus passados permanentemente escrutinados por qualquer pessoa, mediante simples pesquisa nominal. Essa mudança fez com que cada vez mais os tribunais venham sendo acionados por pessoas comuns, que cometeram delitos singelos, pelos quais já responderam, mas que continuam assombradas por um passado que se converteu em eterno presente. É verdade que ninguém tem o direito de apagar suas falhas passadas, mas é igualmente verdade que ninguém deve ficar eternamente pagando por condutas antigas que já não mais o representam.

Esses casos têm chegado às instâncias superiores de todos os países. Aqui farei breves referências a recentes decisões oriundas do espaço europeu.

O Tribunal de Justiça da União Europeia analisou o tema do direito ao esquecimento em relação a notícias de processos criminais extintos em importante julgamento realizado em 24/09/2019 (processo C-136/17 - disponível aqui). Nessa ocasião, reconheceu o tribunal que a atividade de um motor de busca é decisiva "na difusão global dos referidos dados, na medida em que os torna acessíveis a qualquer internauta que efetue uma pesquisa a partir do nome da pessoa em causa", que, de outra forma, não teria localizado a informação. Especificamente sobre o tema em pauta, afirmou o tribunal que mesmo um tratamento de dados inicialmente lícito, pode-se tornar, com o tempo, incompatível com a proteção de dados, "quando esses já não sejam necessários às finalidades para que foram recolhidos". Na sequência, lembrou a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que sustenta que a disponibilização na rede de antigas reportagens relativas a processos penais deve ser analisada à luz de um justo equilíbrio entre direitos conflitante, pois "o público tem um interesse não apenas em ser informado sobre uma questão de atualidade mas também em poder fazer pesquisas sobre acontecimentos passados, sendo contudo variável o interesse do público sobre os processos penais e podendo esse interesse evoluir ao longo do tempo". Dentre as circunstâncias a serem ponderadas, incluem-se "a natureza e a gravidade da infração em questão, o desenrolar e o resultado final do processo, o tempo decorrido, o papel desempenhado por essa pessoa na vida pública e o seu comportamento no passado, o interesse do público no momento em que o pedido é apresentado, o conteúdo e a forma da publicação, bem como as repercussões desta para a referida pessoa". Ainda que não seja o caso de se proceder à desindexação, o operador está obrigado a "organizar a lista de resultados de tal forma que a imagem global que dela resulta para o internauta reflita a situação judicial atual, o que obriga nomeadamente a que hiperligações para páginas web que contenham informações a este respeito surjam em primeiro lugar nesta lista".

Esse acórdão vem exercendo grande influência na França, tanto na justiça ordinária quanto na justiça administrativa.

Em 27/11/2019, a Corte de Cassação francesa (Arrêt n°990), cassou um acórdão da Cour d'Appel de Paris, que havia negado um pedido de desindexação formulado por alguém que fora condenado por estelionato em 2011. A notícia da condenação, bem como de sua confirmação em segundo grau, fora publicada pelo jornal local, e se encontram arquivadas no seu site. Em 2017, quem pesquisasse o nome deste cidadão no Google seria automaticamente enviado a essas duas notícias.  O interessado, então, pediu ao Google que efetuasse a desindexação de seu nome de tais arquivos. Em razão da negativa do Google, ele acionou, sem sucesso, a justiça comum.

Fazendo expressa referência aos critérios fixados no citado acórdão do TJUE, disse a Corte de Cassação que devia ser analisado especificamente "se a inclusão daquelas páginas na lista dos resultados obtidos a partir de uma pesquisa pelo nome de M.X. realmente atendia a um importante motivo de interesse público, tal como o direito à informação da sociedade". No caso em tela, recriminou-se a decisão de segundo grau por ter feito menção apenas ao droit à l'information des internautes, sem efetivamente debruçar-se sobre possíveis formas de proteção dos dados pessoais de M.X.

Em 6/12/19 foi a vez do Conseil d'État julgar treze demandas envolvendo direito à desindexação na internet, relativo a dados de natureza criminal. O tribunal aproveitou a oportunidade para formular critérios disciplinadores do direito ao esquecimento no âmbito da justiça administrativa francesa. Foram estabelecidas três categorias distintas de dados: dados sensíveis (concernentes à saúde, vida sexual, opiniões políticas, convicções religiosas, etc); dados criminais (relativos a um procedimento judiciário ou a uma condenação penal); dados relativos à vida privada, mas não sensíveis. A proteção conferida às duas primeiras categorias é mais elevada: não se pode negar a desindexação do nome de alguém a páginas da web que contêm tal tipo de informações, salvo se se tratar de informação strictement nécessaire ao público em geral. Para a terceira categoria, basta que haja um interesse preponderante da sociedade ao acesso à informação. Além disso, também devem ser levados em conta o papel social do demandante (sua notoriedade, suas funções públicas ou na sociedade) e as condições sob as quais os dados e se tornaram acessíveis (como, por exemplo, se o próprio interessado tornou pública tais informações).

Um dia depois desta decisão, foi a vez do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha também abordar o tema. Tratava-se de pedido de desindexação do nome de um ex-condenado criminalmente - fato ocorrido trinta anos antes. O resumo que se faz a seguir baseia-se na síntese feita por Ingo Sarlet5. A ação fora movida contra o periódico Der Spiegel, que em 1982 e 1983 publicara três reportagens sobre a condenação de um cidadão alemão à pena de prisão perpétua, por ter assassinado duas pessoas. Os arquivos digitalizados dessas reportagens estavam acessíveis na rede. O cidadão interessado ajuizou, sem sucesso, demanda na justiça ordinária, buscando impedir o acesso. Na última instância, o BGH afirmou que "a opinião pública tem um interesse legítimo em se informar sobre fatos historicamente relevantes". Desta decisão o interessado interpôs uma reclamação constitucional ao TCF, que acolheu o pedido e procurou fornecer critérios para uma adequada ponderação dos relevantes interesses em conflito. Sinalizou a Corte que "as circunstâncias temporais são relevantes e devem ser consideradas". Assim, tratando-se de informações sobre fatos criminosos atuais, o interesse público prepondera sobre o individual. A passagem do tempo, porém, altera esse equilíbrio, pois erros não devem ficar permanentemente sujeitos ao escrutínio público, a fim de se permitir um recomeço, sem que isso implique que alguém possa, discricionariamente, definir quais informações podem ser desindexadas na internet. Especificou o TCF que "o significado concreto do transcurso do tempo depende do conteúdo e impacto das notícias sobre a vida privada e o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas afetadas, o que, por sua vez, guarda relação com ... sua priorização nos mecanismos de busca." Afirmou-se que a decisão do BGH "não levou suficientemente a sério o seu dever de proteção do direito geral de personalidade do reclamante". Segundo o TCF, a justiça ordinária deveria ter considerado a possibilidade de se adotar alguma medida protetiva, ainda que sem afastar o acesso ao conteúdo dos arquivos eletrônicos.

Em 27/7/2020, o BGH voltou ao tema (VI ZR 405/18). Tratava-se de pedido de exclusão de link a uma matéria que fazia referência nominal a um empresário, vinculando-o a suposta fraude. Interpretando o art. 17 do Regulamento Europeu de Proteção de Dados, afirmou-se inexistir nenhuma presunção de prioridade do direito individual, pois os direitos fundamentais contrapostos (do motor de pesquisa, dos usuários, do público em geral e do provedor de conteúdo do link atingido) deveriam ser colocados em plano de paridade no juízo de ponderação.

Como se vê, a matéria continuará polêmica durante bom tempo. O único consenso no contexto aqui tratado passa pelo reconhecimento da importância dos detalhes fáticos do caso concreto. Enfim, em alguns casos, mas nem sempre, até condenados no mundo real podem merecer absolvição no universo digital. 

*Eugênio Facchini Neto é doutor em Direito Comparado (Florença); mestre em Direito Civil pela USP; professor Titular do PPGD da PUC/RS; professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/Ajuris; desembargador do TJ/RS.

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1 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the Digital Age. Princeton: Princeton University Press, 2009, p. 201.

2 RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

3 BINENBOJM, Gustavo. Direito ao esquecimento: a censura no retrovisor. Jota. 16/10/2014. Disponível aqui. Acesso em 23/6/2020.

4 Uma boa síntese desses casos se encontra em SARLET, Ingo W.; FERREIRA NETO, Arthur M. O direito ao "esquecimento" na sociedade da informação. Porto Alegre: Liv. do Adv., 2019, p. 108/111.

5 SARLET, Ingo W. Direito ao esquecimento e a nova decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. CONJUR, 7 de dezembro de 2019.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil