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Ao contrário de Odin, não vivemos só de vinho: um esboço frugal acerca do consumo de produtos inseguros e de alguns de seus reflexos no âmbito direito de danos

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Atualizado às 08:46

Ao buscar inspiração na Edda nórdica, Mark Forsyth relata que Odin "não bebia nada além de vinho". O escritor inglês, destaca, aliás, que Odin - entre nós, brasileiros, mais conhecido por ser o pai do Deus do Trovão - alimentava-se, exclusivamente, da bebida produzida a partir da fermentação dos frutos da vitis vinífera, fato que pode soar deveras estranho aos leitores e, obviamente, aos enólogos mais atentos, pois, não havia produção de vinhos que fosse digna de nota ao norte do paralelo 60°1 ao tempo em que os Vikings acordaram que o caminho para Asgard pressupunha morrer com bravura em Midgard, ainda que, em nosso inculto sentir, muito mais Vikings devem ter morrido por conta de problemas ligados à má ou à falta de alimentação que em batalha.

Mas não se preocupem. Ao menos, não se preocupem com isso. A aparente aporia contida no parágrafo anterior desfaz-se como a névoa ao ser tocada pelos primeiros raios que pulsam do sol em uma manhã primaveril, pois, é exatamente a dificuldade na obtenção da bebida que a torna nobre e, consequentemente, a única bebida digna de ser a fonte de energia do deus mais formidável dentre todos os que habitam o panteão nórdico2.

À época, aliás, e permitam-me leitores e leitoras que chegaram até aqui manter-me preso à elucubrações e notas históricas e hedonísticas que nada têm de supérfluas, o vinho consumido na cena nórdica provinha da França, dos fragmentos do Império Romano e, eventualmente, da Alemanha, país que, permitam-me divergir, tem lugares fantásticos como Berlim, Dresden e Lübeck, viu nascer pessoas incríveis que vão de Karl Marx à Karl Rummenigge ou de Marcuse à Nietzsche, mas que, apesar destas e de incontáveis outras maravilhas, segue sendo incapaz de produzir vinhos que me seduzam.

Neste instante, entorpecido pelo turbilhão de palavras, expressões, frases e orações que pululam dentro do meu ser, signos e significados que lutam freneticamente buscando experimentar, ainda que provisoriamente, destino diferente daquele que fora reservado à maioria dos fragmentos de ideias que neste instante jazem no vazio do esquecimento tendo alimentado o vácuo que pantagruelicamente digere palavras que não foram pronunciadas, consome frases que não foram escritas, desvio-me da rota que conduz ao interior do labirinto dos dilemas galináceos e fujo, portanto, da eterna discussão que envolve saber quem teria vindo primeiro: os ovos ou as penosas.

Advertindo a todos que tenham contato com este sóbrio opúsculo que não tentem viver como Odin, mesmo quando sabemos sobre os inúmeros benefícios afetos ao consumo diário de algumas taças da bebida cujos tons violetas, particularmente, me encantam, certas vezes, me fazem cantar e, excepcionalmente, servem como portais que me conduzem para outras dimensões e provocam muita dor nas viagens de volta, busco, em verdade, tentando dar algum sentido ao parágrafo anterior, dividir com vocês o fato de que Odin, no vernáculo, pode ser literalmente traduzido como O frenético3.

Enfim, posso agora - não sem antes pedir que me perdoem o inaceitável salto temporal, um movimento literário feito, tão somente, por conta da limitação de caracteres que nos foi sugerida de forma deveras gentil, é fato, embora, igualmente, não negociável -, como escrevia, posso agora mostrar como o mito Viking se liga ao cenário contemporâneo em um Brasil que tanto tem sofrido com o mal uso de tão nobre signo.

Posso agora apontar, portanto, como o referido mito tem energia suficiente para impulsionar o movimento de dedos lançados de forma feroz sobre indefeso teclado, de modo a dar vida a este quasímodo texto, em boa medida, é verdade, por conta do frenético frenesi antecipado quando imaginei-me a principal personagem em uma cena retratando o contato involuntário de minha mucosa bucal com bebidas - e, por que não, com alimentos sólidos ou pastosos -, que ora trazem consigo, ora abandonam no fundo de seus invólucros, surpresas deveras desagradáveis que vão de pelos a patas de insetos, de corpos deformados a cabeças carcomidas de pequenos répteis, aves ou roedores, passando, obviamente, por pedras, pregos enferrujados e preservativos, tal qual relata farta literatura realista escrita sobre um tema que poderia interessar a autores que vão de Sade à Edgar Alan Poe.

Devo confessar, derradeiramente, que o retrocitado choque de ideias me permitiu, também, reviver reflexões sobre um tema que há aproximadamente um lustro fez parte de alfarrábio virtualmente armazenado sob o título Jurisprudência em Teses, no Superior Tribunal de Justiça4, tema que, curiosamente, de lá fora sacado, extirpado sem deixar quaisquer vestígios, quiçá, com lastro no exercício do pseudodireito de apagar escolhas institucionais ruins e que fora posto em movimento sem qualquer respeito ao contraditório que deveria ser garantido àqueles que tentam teorizar o Direito a partir de seus fragmentos, de sua memória histórica.

Também por isso, o ponto que quero retomar aqui pode ser sintetizado nos problemas afetos à oferta e à comercialização de produtos impróprios ao consumo humano, ponto esse que, talvez, seja melhor percebido ao revisitarmos a cena que nos parece ser a mais dantesca dentre as que foram roteirizadas em investigação outrora realizada acerca do tema:

Inicialmente, sugere-se ao leitor que imagine, que arquitete mentalmente, a existência de inseto da ordem Blattaria ou Blattodea habitando, vivo (ou não), o interior da embalagem de um gênero alimentício que chegou as suas mãos. Agora, busque conceber que o intruso não detectado em tempo invadiu outro invólucro e pôs-se em contato com sua língua, com sua mucosa bucal, moído, fragmentado, pela força de seus poderosos molares. Esse segundo movimento - que consiste na agitação do inseto provocada pelo frisson de mãos humanas movidas por impulsos pantagruélicos, pela força atada à mais conhecida Lei de Newton ou por qualquer outra causa, pouco importa aqui - parece não ser imperioso à sustentação teórica da possibilidade de imputação do dever de reparar na hipótese em pauta5.

A ideia é preencher a tela que aqui busco colorir não com aqueles conhecidos tons usualmente produzidos nos fornos da teoria do vício do produto ou do serviço, mas com cores e texturas buscadas no contato da normatividade constitucional que impõe a escorreita tutela da pessoa humana - a partir de comandos que exigem condutas informadas pela precaução e pela prevenção - com a energia aporética que pulsa do catálogo de direitos básicos do consumidor elencados no artigo 6° da melhor dentre todas as leis produzidas no Brasil e dentre os quais merecem ênfase:

(a) "a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos",

(b) "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade [...] bem como sobre os riscos que apresentem",

(c) "a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas" e, enfim,

(d) "a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais" e extrapatrimoniais.

No âmbito da segurança alimentar, tem-se aí um catálogo de direitos que, ao informar condutas humanas utopicamente esperadas em concreto, hão de potencializar, ao menos, no mais das vezes, a proteção individual e coletiva de consumidores indelevelmente expostos a riscos e perigos6 pelo simples fato de vagarem sobre os tabuleiros da Contemporaneidade, colorindo e vivificando, nesse contexto, as dimensões preventiva e precautória que informam o direito de danos em construção no Brasil, afinal, em nosso sentir, a oferta de um gênero alimentar contendo corpo estranho parece ecoar com conduta não tutelada pelo Direito pátrio e logo, ao menos em potência, passível de disparar o dever de reparar.

Isso ocorre, aliás, como antecipado, porque potencialmente expõe a vida e a saúde dos consumidores a riscos não informados - o risco de consumirem alimentos contaminados - e, evidentemente, porque produtos com tais características destoam das balizas normativamente fixadas pelos órgãos responsáveis pela segurança alimentar no Brasil.

Ocorre que, tal qual grafado outrora, ainda parece haver "relevante ponto [hermenêutico] em aberto" identificado na usual não compreensão, enquanto inconteste ato de consumo, da compra de alimentos ofertados por fornecedores antes de sua ingestão, à exemplo da aquisição de refrigerante7 ou de bom vinho que não tenha sido degustado. Tais dúvidas parecem ter sido gestadas em um cenário que só consegue pensar em soluções dicotômicas, logo, que segue a operar na lógica do tudo ou nada e que acaba por desprezar a força normativa da linguagem e, nesse contexto, o fato de que in dubio pro consumidor pode emergir na contemporaneidade como uma ferramenta hermenêutica deveras útil na lapidação das respostas mais adequadas à Constituição.

Tais respostas, entretanto, não se pode olvidar, sempre prestes a emergirem entremeio ao absurdo que marca a vida humana, talvez, jamais abandonem o interior das garrafas que metaforicamente as contêm e vagam pelos oceanos da coexistência, tal qual profetiza a poetisa portuguesa Florbela Espanca ao escrever que:

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...

Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...

Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

*Marcos Catalan é doutor summa cum laude em Direito pela USP. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professor no PPG em Direito e Sociedade da Unilasalle. Visiting Scholar no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2015-2016). Estágio pós-doutoral na Facultat de Dret da Universitat de Barcelona (2015-2016). Professor visitante no Mestrado em Direito de Danos da Facultad de Derecho da Universidade da República, Uruguai. Professor visitante no Mestrado em Direito dos Negócios da Universidade de Granada, Espanha. Professor visitante no Mestrado em Direito Privado da Universidade de Córdoba na Argentina. Editor da Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Líder do Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e Cofundador da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Advogado parecerista.

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1 FORSYTH, Mark. Uma breve história da bebedeira: como, onde e por que a humanidade tomou umas da Idade da Pedra até hoje. Trad. Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia da Letras, 2018. p. 109-118. 

2 FORSYTH, Mark. Uma breve história da bebedeira: como, onde e por que a humanidade tomou umas da Idade da Pedra até hoje. Trad. Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia da Letras, 2018. p. 109-118. 

3 FORSYTH, Mark. Uma breve história da bebedeira: como, onde e por que a humanidade tomou umas da Idade da Pedra até hoje. Trad. Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia da Letras, 2018. p. 109-118. 

4 ARONNE, Ricardo; CATALAN, Marcos. Quando se imagina que antílopes possam devorar leões: oito ligeiras notas acerca de uma tese passageira. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, [s.p.], 2018. 

5 ARONNE, Ricardo; CATALAN, Marcos. Quando se imagina que antílopes possam devorar leões: oito ligeiras notas acerca de uma tese passageira. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, [s.p.], 2018. 

6 COMPORTI, Marco. Esposizione al pericolo e responsabilità civile. Camerino: Edizioni Scientifiche Italiane, 2014.

7 ARONNE, Ricardo; CATALAN, Marcos. Quando se imagina que antílopes possam devorar leões: oito ligeiras notas acerca de uma tese passageira. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, [s.p.], 2018.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).