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CRISPR/Cas9 - Novos paradigmas e reflexos na responsabilidade civil

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Atualizado às 08:59

O anúncio do Nobel de Química 2020, no último 7 de outubro, marcou a história da referida premiação como sendo a primeira vez que duas mulheres compartilharam o prêmio máximo de Ciências. As cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna receberam o prêmio pela descoberta da técnica de edição gênica CRISPR/Cas9, o que representou o reconhecimento científico de uma das mais importantes descobertas do século XXI.1 Desde a descrição da estrutura molecular do DNA  (J. Watson e F. Crick, 1953)2 e, a partir da superação dos  desafios decorrentes do sequenciamento do genoma humano (Projeto Genoma, 2003)3, os cientistas têm se dedicado ao estudo e desenvolvimento de tecnologias que possibilitam a manipulação gênica de células e organismos, com o intuito de promover a exclusão ou correção de mutações gênicas, desfazendo ou silenciando seus efeitos deletérios. Essa técnica, ora reconhecida no mundo científico, representa um caminho sem retorno diante das evidências alcançadas, exigindo uma nova postura a ser considerada. Essas tecnologias disruptivas provocam mudanças de paradigmas, criando desafios inéditos que suscitam adequações do sistema jurídico aos novos anseios.

Em 2012, Charpentier e Doudna comprovaram que a endonuclease Cas9, juntamente com  uma molécula de  RNA guia, poderia ser programada para clivar especificamente qualquer sequência de DNA.4 Essa descoberta ampliou e generalizou a aplicabilidade do sistema CRISPR/Cas9. A partir daí, foi possível, com alta eficiência, facilidade e baixo custo, utilizar essa ferramenta nas pesquisas básicas, na biotecnologia e no desenvolvimento de novas alternativas preventivas e terapêuticas, representando uma revolução na pesquisa em biologia.  Democratizou-se a edição do genoma.5

Inicialmente, a aplicabilidade da edição gênica restringiu-se à linhagem de células somáticas, ou seja, aquelas responsáveis pela formação dos diferentes tecidos e órgãos sem potencial de gerar gametas. Diversamente, a edição gênica de células germinativas humanas é capaz de impactar o organismo do indivíduo como um todo, bem como de seus descendentes. Por esse motivo, a possibilidade de se promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto sobre as futuras gerações, tem suscitado intensos debates sobre o tema.

É inconteste que, em pesquisas básicas, a técnica CRISPR/Cas9 oferece grande vantagem, gerando conhecimento científico amplo que poderá contribuir para a saúde e bem-estar dos seres humanos. Essa técnica permite esclarecer os mecanismos que justificam a diferenciação celular em modelos humanos, bem como a investigação sobre o papel de alguns genes específicos nos momentos iniciais do desenvolvimento embrionário humano e a compreensão da gênese de doenças genéticas, o que conduz ao desenvolvimento de medicamentos específicos para essas doenças, elaboração de terapias gênicas importantes no tratamento de diferentes tipos de câncer, dentre outros. No que se refere às pesquisas de aplicação clínica, é inegável o potencial da edição gênica na prevenção de doenças genéticas em embriões humanos (6% das crianças recém-nascidas apresentam problemas genéticos importantes). Até mesmo no âmbito das doenças infecciosas, a aplicabilidade da edição gênica tem sido aventada.6

Entretanto, mesmo considerando os benefícios terapêuticos preventivos demonstrados nas pesquisas básicas e pré-clínicas, devido ao seu ineditismo e à possibilidade de promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto sobre as futuras gerações, tais investigações justificam os intensos debates em torno da aplicabilidade dessa nova tecnologia, seja no que tange à necessidade de adequada regulamentação, seja no que se refere à ponderação relativa aos seus limites e potencialidades. 

No contexto da edição gênica de embriões humanos ou de células da linhagem germinativa, discutem-se não somente dilemas éticos, mas, também, o impacto dos riscos futuros e desconhecidos aliados à incerteza quanto aos efeitos danosos decorrentes dessa nova tecnologia, no âmbito da responsabilidade civil. No campo da biotecnologia, não é rara a discussão em torno dos riscos potenciais ou, até mesmo, incertos quando se trata de ineditismo tecnológico como é o caso da técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9. Desse modo, é essencial que, nessas situações, a discussão sobre a previsibilidade e causalidade dos riscos seja aprofundada, pois, apesar de imperceptíveis de imediato, podem representar ameaça latente caracterizando riscos desconhecidos ou de "causa ignota". Soma-se a isso que, diferentemente da tradição anglo-americana, a aversão aos riscos é elemento cultural da sociedade brasileira. Nesse sentido, como grande desafio na tentativa de apresentar alternativas no plano da reparação de danos, ampliação da confiança, solução e administração de conflitos de interesses, justifica-se o enfrentamento de temas relevantes como: a expansão da  função precaucional  da responsabilidade civil, a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento, o cabimento da excludente de responsabilidade, a importância da regulação pública das externalidades negativas e a tutela geral da personalidade.7

Em contrapartida, superadas as limitações técnicas da edição gênica de embriões humanos ou da linhagem germinativa e, diante da persistência de indicações médicas, não permitir o emprego da técnica em condições seguras, ou optar por não utilizá-la em determinadas situações - quando o diagnóstico pré-implantacional é exigido e irrefutável quanto à evidenciação da alteração gênica que implique em doença incurável e que limita a autonomia do indivíduo chegando a comprometer até mesmo sua dignidade - não representaria também um dano passível de reparação?

Assim, em sentido diametralmente oposto e inaugurando singular discussão na esfera da responsabilidade civil, é também necessário confrontar questões ainda postas somente no campo das hipóteses, sobremodo a preocupação de que, na eventualidade da técnica de edição gênica tornar-se opção terapêutica viável, sua não utilização possa também acarretar efeitos potencialmente danosos. Nesse novo cenário, ainda hipotético, porém irrefutável, teríamos configurada, de forma explícita, a negação de um direito constitucionalmente elencado - "proteção à pessoa." Questiona-se: ainda, estaríamos diante de nova modalidade de dano? Qual seria sua gravidade e extensão? Dada sua irreversibilidade e magnitude, implicaria em dano à existência do ser humano? Seria possível cogitar de um dano intergeracional? Nesse contexto, caberia inclusive indagar se a omissão deliberada ao recurso da edição gênica afiguraria como ofensa mediada no tempo, já que, o que nos faz humanos, atravessa gerações e culmina por agir como uma ponte entre elas.8

Desse modo, mesmo considerando que a inquietude recorrente frente a tecnologias inovadoras seja a possibilidade de danos consequentes à sua utilização, não se pode negar a potencialidade lesiva da situação contrária, bem como sua possível repercussão no âmbito da responsabilidade civil. A discussão envolve novos embates. Os riscos morais e jurídicos não podem ser evitados e, diante da iminente realidade da edição gênica e do diagnóstico que justifique sua indicação, não utilizar a técnica pode representar a certeza de dano juridicamente relevante, irreversível, permanente e, quiçá, com potencial de justificar o cabimento de demandas reparatórias. É nesse contexto, por conseguinte, que se vislumbram as consequências jurídicas na busca pela reparação civil do que se denomina wrongful birth e, ainda, tornando-se imprescindível discutir o cabimento de indenização em razão da ação denominada wrongful life.9

É intuitivo que, diante da ocorrência de um dano, surja o sentimento de injustiça. A responsabilidade, nessa perspectiva, manifesta-se como instituto que visa buscar o reequilíbrio. Assim, o mesmo vínculo que relaciona o prejuízo à noção de injustiça, associa a ideia de justiça como decorrente da responsabilidade. Todavia, a controvérsia quanto a uma possível indenização nos casos considerados como wrongful birth ou wrongful life é motivo de debate em diferentes ordens jurídicas. Salienta-se que reflexões, a este respeito, exigem a confluência dos regimes de responsabilidade civil e dos direitos de personalidade, envolvendo uma plêiade de argumentos éticos e pragmáticos que devem ser sempre considerados.

Outra preocupação recorrente, no que diz respeito à edição gênica de embriões humanos, relaciona-se à sua utilização como ferramenta para aprimoramento humano, além da prevenção e tratamento das doenças.10 Nesse sentido, o aprimoramento torna-se preocupação na medida em que pode ser utilizado para reforçar o preconceito ou restringir a diversidade gênica nas futuras gerações, bem como estreitar o conceito de normalidade.

Existem muitas expectativas em relação a utilização da técnica de edição com objetivo de se obter o aprimoramento genético "máximo" da espécie humana - "designer babies." Entretanto, estudos recentes comprovam que se trata, ainda, de uma ficção científica, na medida em que exigiria uma série de modificações complexas e simultâneas do DNA. Além disso, as características potencialmente desejáveis - alvo da edição - teriam que ser determinadas predominantemente pelo DNA, o que já ficou comprovado que nem sempre ocorre.

Merece destacar que essas situações são consideradas como uso indevido da edição gênica em embriões humanos, não se tratando de indicação médica. Portanto, seria questionável a utilização de tal argumento para justificar a proibição do uso da técnica quando essa apresenta exclusiva finalidade preventiva-terapêutica. De fato, o risco dessas práticas é autoevidente, o que enfatiza a necessidade da pesquisa continuada e, principalmente, da cuidadosa regulamentação de quaisquer de suas aplicações.

Em uma discussão que transcende os limites deste artigo, é curial que a chamada convergência NBIC - nanotecnologia, biotecnologia, informática e ciência do conhecimento (neurociências) - estreita os limites entre a vida natural e a artificial, dissolve as fronteiras entres as ciências físicas e a biologia, implicando em um melhoramento (enhancement) do ser humano. Com base no postulado "nem tudo que é tecnicamente possível é eticamente admissível", o maior receio dentre os estudiosos do fenômeno do transhumanismo, consiste no acesso estrito por parte de uma casta de "novos" seres humanos a tecnologias que propiciem longevidade ampliada com capacidades físicas e mentais superiores.11 O fundamental é que se edifiquem políticas públicas que direcionem a tecnologia CRISPR/Cas9 a serviço do homem - como instrumento de mapeamento de graves doenças hereditárias e não subvertida em técnica eugênica utilitária - principalmente no contexto de uma sociedade extremamente desigual, onde a questão do acesso é estruturalmente delicada até mesmo para os bens essenciais (educação, saúde básica, assistência social, moradia).

É notório que, quando implementadas clinicamente, essas técnicas, certamente, irão representar custo elevado o que pode, inclusive, dificultar sua oferta via planos de saúde. Mesmo que a edição gênica, por si, não seja técnica dispendiosa, para sua implementação clínica será necessário associá-la às técnicas de fertilização "in vitro" e de diagnóstico pré-implantação que, sabidamente, são onerosas. Consequentemente, esse fato poderia limitar o acesso à tecnologia criando-se, desta forma, desigualdade de oportunidades.

As diferenças socioeconômicas, mas, também, as culturais e intelectuais podem influenciar na acessibilidade à essas terapias, pois são aspectos que interferem na questão do entendimento e aceitação, ou não, da indicação clínica da edição gênica. É nesse contexto, portanto, que se impõem novos debates, que ultrapassem o âmbito dos laboratórios de pesquisa e alcancem a sociedade como um todo.  

Como em todo avanço biotecnológico restam, ainda, muitos desafios técnicos, éticos e legais a serem enfrentados. Em um necessário ambiente de ceticismo e fundamental condição de incerteza, temos que defender para a edição gênica um conjunto de regras, deveres e formas de reparação. Reforça-se, pois, a necessidade de contínuos diálogos interdisciplinares, imprescindíveis no sentido de se ponderar, delinear e estabelecer novos paradigmas objetivando promover as adequações pertinentes. Apesar das limitações impostas no momento atual, não há como negar a perspectiva de superação futura desses desafios, o que, certamente, determinará a indicação preventiva e/ou terapêutica, segura e viável da técnica.

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1.    The Royal Swedish Academy Of Sciences. Scientific Background on the Nobel Prize in Chemistry 2020. A tool for genome editing. p. 1-13.

2.    Watson, J.D. and F.H. Crick, Molecular structure of nucleic acids; a structure for deoxyribose nucleic acid. Nature, 1953. 171(4356): p. 737-8.

3.    Disponível em: clique aqui. Acesso em: 14/11/20

4.    Gasiunas, G., et al., Cas9-crRNA ribonucleoprotein complex mediates specific DNA cleavage for adaptive immunity in bacteria. Proc Natl Acad Sci U S A, 2012. 109(39): p. E2579-86. ?

5.    Knott, G.J. and J.A. Doudna, CRISPR-Cas guides the future of genetic engineering. Science, 2018. 361(6405): p. 866-869. ?

6.    Clemente, G. T. Avanços e desafios da edição gênica em seres humanos. In: Nicoletti, C. E. et al (Org.) Biodireito, bioética e filosofia em debate. São Paulo: Almedina, 2020. p.21-38.

7.    Clemente, G. T. Responsabilidade Civil, Edição Gênica e o CRISPR.  In: Rosenvald, N.; Dresch, R. F. V.; Wesendonck, T. (Org.). Responsabilidade Civil - Novos Riscos. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019. p. 301-317. 

8.    Clemente, G. T.; Rosenvald, N. Dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica: uma possibilidade. In: Menezes, J.B; Dadalto,L.; Rosenvald, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 227-45.

9.    Clemente, G. T.; Rosenvald, N. Edição Gênica e os limites da Responsabilidade civil. In: Martins, G.M.; Rosenvald, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 235-61.

10Gyngell, C., Fellow, M., Douglas, T., Savulescu, J. The ethics of germline gene editing. J Appl Philos., n. 34(4), p. 498-513, 2017.

11. Tanguy, M. P. Transhumanismo. Madrid: Rialp, 2018, p. 17.

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*Graziella Trindade Clemente é pós-doutora em Direitos Humanos - Centro de Direitos Humanos - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutora em Biologia Celular e Mestre em Ciências Morfológicas - Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito da Medicina - Centro de Direito Biomédico - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora da Graduação e Pós-graduação - Centro Universitário Newton Paiva; Faculdade da Saúde e Ecologia Humana; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil - IBERC. Odontóloga e advogada.