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Responsabilidade civil do Estado por omissão: entre mitos e verdades

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Atualizado às 08:47

Virou lugar-comum dizer que o direito mudou, está mudando. De um sistema fechado, lógico-formal, passamos para um sistema aberto, valorativo. A ordem jurídica, antes estática e fechada, agora aberta e dinâmica, exige soluções que dialoguem com essa complexidade. Isso é particularmente verdadeiro na responsabilidade civil. Ela passa uma filtragem ética e ganha novas funções. Busca, cada vez mais, proteger as dimensões existenciais do ser humano.

Falar em responsabilidade civil é, em boa medida, falar dos problemas atuais de determinada sociedade. Os problemas mudam - e as respostas que a responsabilidade civil oferece também. Aliás, conforme escrevi em outra oportunidade, os caminhos da responsabilidade não são infinitos, mas costumam ser espantosos. Aliás, os problemas (e as soluções) que a responsabilidade civil enfrenta, hoje, são diferentes daqueles dos séculos anteriores. A velocidade da informação, as novas tecnologias, o perfil plural da sociedade atual, o crescimento da violência urbana são apenas algumas das novas questões que chegam, diariamente, aos tribunais, e redefinem o contorno do chamado (por alguns) direito dos danos, sobretudo no que diz respeito aos deveres de indenizar danos injustos.

A responsabilidade civil, no Brasil, pode resultar de atos lícitos ou ilícitos, individuais ou coletivos, próprios ou de terceiros. Não só capazes, mas também incapazes podem responder civilmente. Poderíamos pensar que a responsabilidade civil - cuja história é quase tão antiga quanto a da humanidade - já teria, há tempos, pacificando a discussão acerca de suas funções, porém isso não aconteceu. Trata-se de discussão atual, dos nossos dias - cada vez mais se aceita as funções punitivas e inibitórias do instituto, além da clássica função compensatória ou reparatória (nesse sentido, aliás, decidiu o STJ recentemente em sede de dano moral coletivo (REsp 1.440.721) e, antes, a Suprema Corte Italiana, em julgado paradigmático, reconheceu a multifuncionalidade da responsabilidade civil contemporânea). Por exemplo, o direito não pode obrigar que todos tenham estima e respeito pelos outros, mas pode sancionar e punir atos de desrespeito e desconsideração. Sem falar que a ênfase que se deu à reparação de danos em termos de protagonismo no século passado, necessariamente se concederá à prevenção daqui por diante. Em outras palavras, se o século XX foi devotado à reparação de danos, o século atual será consagrado à prevenção.

Aliás, convém destacar que a noção atual de interesse público está relacionada à promoção de direitos fundamentais. Temos, por exemplo, o direito fundamental não só a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como também em viver numa sociedade sem corrupção (no sentido de uma sociedade que combata, com seriedade e eficiência, a corrupção). Nesse sentido, o STF, em 2020 - ao julgar procedente denúncia do MPF contra ex-deputado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro relativamente à Petrobrás - fixou valor mínimo indenizatório a ser pago de forma solidária pelos condenados. A condenação do mínimo indenizatório foi na forma de danos morais coletivos (STF, AP 1002/DF). Os danos morais coletivos atingem, de modo subjetivamente indeterminado, um espectro imenso de pessoas, grupos e instituições. É inegável que atos de corrupção agridem difusamente a sociedade em seus valores fundamentais, merecendo por isso a adequada condenação em danos morais coletivos. Lembremos ainda que o STF, em outro julgado recente, passou a reconhecer explicitamente - no sentido que sempre sustentamos - que o Estado não tem direito, mas dever de regresso (sob pena de improbidade administrativa) contra o agente público culpado (STF, Pleno, RE 842.846, Rel. Min. Luiz Fux).

O tema deste artigo, porém, é mais específico. Diz respeito a uma (velha) polêmica: a responsabilidade civil do Estado, nas omissões, é subjetiva ou objetiva? Convém lembrar que - de modo amplo - a responsabilidade civil objetiva, sem culpa, já faz parte da tradição constitucional brasileira desde a Constituição de 1946. Poucos países constitucionalizaram a matéria, como o Brasil. Isso traz consequências interpretativas relevantes (que nem sempre são adequadamente desenvolvidas). Outro aspecto que pode ser frisado: hoje há um olhar doutrinário pacífico no sentido de que a responsabilidade civil do Estado de feições objetivas iniciou-se no Brasil em 1946. Porém isso é uma visão atual, com olhos de hoje. Nas décadas seguintes à implementação normativa da novidade (isto é, nas décadas de 40, 50 e 60 do século passado), juristas e tribunais ainda hesitavam, isto é, nem sempre aceitavam que a Constituição de 1946 tivesse trazido uma responsabilidade sem culpa para a matéria. Isso é um exemplo simples que evidencia como o direito é construção cultural: a norma não é a letra da lei (dizemos isso pedindo perdão pela obviedade). A norma jurídica resulta da atribuição de sentido - geração após geração -, aos textos legais, culturalmente falando.

Muitos dos mais importantes avanços jurídicos se dão no silêncio da lei (ou apesar dela), sobretudo na responsabilidade civil. Assim ocorreu com a teoria do risco, com o abuso de direito, com a própria responsabilidade civil do Estado. Avanços jurídicos que resultaram, não propriamente da lei, mas da doutrina e da jurisprudência, aqui e lá fora. Queremos com isso destacar a rica dinamicidade da matéria, com novas interpretações de antigas normas.

Existe, na matéria, quem crie um dualismo: nas ações do Estado, responsabilidade objetiva; nas omissões, responsabilidade subjetiva (é o que o STJ costuma repetir, há tempos, nas ementas dos seus acórdãos). Não aceitamos esse dualismo, nem é essa a visão atual do STF sobre a matéria, conforme temos apontado em algumas obras. Existe atualmente uma rede de conexões conceituais que nos permitem dar um passo além. Aliás, em 2020, o STF, julgando caso que dizia respeito à responsabilidade civil do Estado e seus deveres fiscalizatórios - em caso de comércio clandestino de fogos que causou danos por explosão - explicitamente considerou (no voto do relator para o acórdão, Min. Alexandre de Moraes), que a responsabilidade civil do Estado é objetiva também nas omissões, não só nas ações (STF, RE 136.861, DJe 13/8/2020).

Mesmo o STJ, aqui e ali, se vê obrigado a sair do rígido limite que criou para si. Por exemplo, em 2020, o STJ responsabilizou civilmente o Estado pela morte de um advogado que foi atingido por um tiro dentro de um fórum. O tiro foi disparado por um réu em processo criminal. O detector de metais do fórum estava com defeito, quando ocorreu o dano. O STJ entendeu que houve nexo causal apto a responsabilizar o poder público. Um aspecto teórico interessante - na fundamentação do acórdão - é que, embora o STJ afirme que a responsabilidade estatal é subjetiva nas omissões (com o que nunca concordamos, nem é como o STF pensa), em certos casos percebe-se certo esforço argumentativo para se alcançar a justiça nos casos concretos: "A regra geral do ordenamento brasileiro é de responsabilidade civil objetiva por ato comissivo do Estado e de responsabilidade subjetiva por comportamento omissivo. Contudo, em situações excepcionais de risco anormal da atividade habitualmente desenvolvida, a responsabilização estatal na omissão também se faz independentemente de culpa" (STJ, REsp 1.869.046). O STJ, no caso mencionado, invocou a teoria do risco (CC, art. 927, parágrafo único), para imputar a responsabilidade objetiva ao Estado.

Aliás, não é só no tema acima que STF e STF têm visões divergentes no que diz respeito à responsabilidade civil do Estado. O STJ vislumbra a possibilidade - no caso de dano causado por agente público - da vítima escolher contra quem propor a ação (contra o Estado, contra o autor do dano ou contra ambos). O STJ chega a dizer que a questão é pacífica por lá (STJ, REsp 687.300. Precedentes: REsp 731.746; REsp 1.325.862; AgInt no ARESP 583.842, DJe 24/08/2017). Conforme prevíamos, acabou prevalecendo a tese oposta. A tese de que a ação só poderá ser proposta contra o Estado. O STF decidiu recentemente nesse sentido, afirmando que a vítima não poderá propor a demanda diretamente contra o agente público. Só poderá acionar o Estado e este, se for condenado, é que poderá acionar o agente público que causou o dano (se houver dolo ou culpa) (STF, RE 1.027.633, com repercussão geral).

Há outro ponto que pode ser brevemente mencionado. É comum, no estudo da responsabilidade civil do Estado - sobretudo em manuais de direito administrativo - a menção a três fases históricas (a fase da irresponsabilidade estatal; a fase civilística, fundada na culpa; e a terceira fase, dita atual, fase publicística ou objetiva, fundada na responsabilidade objetiva). Esse é o padrão mental convencional acerca do tema. Porém, conforme apontamos acima, existe hoje uma rede de conexões conceituais que nos autoriza dar um passo além.

Há, porém, atualmente, nesta segunda década do século XXI, uma nova fase, que é o Estado como garantidor dos direitos fundamentais. Não basta, portanto, uma postura de abstenção estatal, no sentido - hoje insuficiente - de não causar danos. Isso ficou no passado, no museu das ideias. Hoje é imprescindível que o Estado assuma uma postura ativa no sentido de resguardar os cidadãos de agressões de terceiros. Desde o clássico caso Lüth, leadind case julgado pela Corte Constitucional Alemã em 1958, discute-se a questão da aplicação horizontal dos direitos fundamentais. A influência desse célebre julgado não se limitou à esfera do direito público, mas alcança todos os campos do direito, incluindo o civil. Esse julgado não foi, naturalmente, o fim, mas o início de uma linha jurisprudencial e doutrinária extremamente fecunda.

É comum que chamemos de clássica a função negativa dos direitos fundamentais, no sentido de evitar que o Estado os infrinja (Abwehrrecht). Hoje, porém, já avançamos consideravelmente em relação à essa posição, e ela já não nos satisfaria. Essa teoria clássica, por assim dizer, não descreve o que acontece atualmente na prática constitucional, seja europeia, seja brasileira. O reconhecimento de uma dimensão positiva dos direitos fundamentais significa que o Estado não deve apenas respeitá-los, mas também protegê-los (Schutzpflicht des Staats).

Vivemos atualmente, em relação ao tema, uma nova fase, que é o Estado como garantidor dos direitos fundamentais. Não basta, portanto, uma postura de abstenção estatal, no sentido - hoje insuficiente - de não causar danos. Isso ficou no passado, no museu das ideias. Hoje é imprescindível que o Estado assuma uma postura ativa no sentido de resguardar os cidadãos de agressões de terceiros. Tudo isso altera o panorama da responsabilidade civil do Estado, que conta, hoje, com o princípio da proteção, que não é senão a função preventiva da responsabilidade civil transformada em dever de agir do Estado.

É fundamental ainda que busquemos, de modo criativo e responsável, soluções que promovam o diálogo da responsabilidade civil do Estado com a teoria dos direitos fundamentais e com os conceitos, categorias e institutos mais harmônicos com o século XXI. É fundamental que tenhamos também estabilidade, isonomia e clareza nos julgados. O direito administrativo do século XXI não pode continuar a trabalhar com conceitos formulados há mais de um século, com um instrumental que se reporta ao século XIX. Há certo sabor autoritário nas lições tradicionais do direito administrativo, que costuma ter como ângulo de análise os poderes do administrador, não os direitos do cidadão. Não por acaso, há autores que ainda usam a palavra "súdito" para falar em cidadão. 

Há outras discussões possíveis que não faremos por questões de espaço. Por exemplo, acerca da responsabilidade civil do Estado e a violência urbana e sobre novas (possíveis) abordagens do fato de terceiro. E ainda o debate sobre a teoria dos deveres de proteção a cargo do Estado - e a questão da ausência de medidas preventivas, questão fundamental nos nossos dias (isso foi uma discussão juridicamente presente na pandemia e, antes dela, nos danos sofridos pelos cidadãos com as fortes chuvas e inundações do início de 2020). Como lembra Daniel Sarmento, "o reconhecimento dos deveres de proteção constitui premissa implícita em toda a discussão concernente à responsabilidade do Estado por atos omissivos".

O sistema conceitual-normativo de responsabilidade civil, no Brasil, está em processo de clara mudança, de notória reformulação. Temos dito que se trata de um edifício em construção. Nota-se o conflito entre velhas fórmulas e novas necessidades sociais. O desafio é abordar a responsabilidade civil com os olhos das sociedades plurais e complexas. O direito dos nossos dias é o direito da ponderação, da reflexão contextualizada, do percurso argumentativo. Vivemos numa república de razões e as democracias constitucionais atuais precisam continuamente se legitimar, de modo contínuo, transparente e dinâmico. A teoria dos direitos fundamentais, a força normativa dos princípios, a funcionalização dos conceitos e categorias, a priorização das situações existenciais em relação às patrimoniais, a repulsa ao abuso de direito, a progressiva consagração da boa-fé objetiva são algumas das ferramentas teóricas que ajudam a construir a teoria da responsabilidade civil do Estado no século XXI.

Cecília Meireles escreveu: "Não é fácil compreender. Mas é belo fazer um esforço nesse sentido". Talvez devamos - todos nós - fazer um esforço para tentar compreender esses dias velozes e instáveis que vivemos. Dias em que a única permanência é a mudança. E talvez as mudanças estejam só no começo.   

*Felipe Braga Netto é membro do MPF (Procurador da República). Pós-doutor em Direito Civil pela Università di Bologna, Itália (Alma Mater Studiorum). Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-RIO. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Associado fundador e 1 vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil, 2017-2019). É autor ou coautor dos seguintes livros: Código Civil Comentado (com Nelson Rosenvald), Novo Manual de Responsabilidade Civil, Volume Único de Direito Civil (com Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves), Novo Tratado de Responsabilidade Civil (com Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves), Manual de Direito do Consumidor (16 edição) e Teoria dos Ilícitos Civis, dentre outros. Publicou artigos em 34 obras coletivas, tendo coordenado 4 delas. Além das obras coletivas publicou 16 livros. 

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil