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Responsabilidade civil dos municípios pelos danos decorrentes de ações regionalizadas de combate à Covid-19

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Atualizado às 09:51

Com o temor de uma segunda onda de contágio acentuado da Covid-19 no Brasil, aumenta-se o receio de que uma nova avalanche legiferante oriunda de todos os entes federativos também assole a população.

No âmbito municipal, tem-se um cenário ainda mais propício para o surgimento de incertezas e danos decorrentes da atividade legislativa realizada em caráter de urgência, muitas vezes limitadas a decretos do Poder Executivo. A edição de normas para regular ações de grupos reduzidos de destinatários, aliada a uma menor capacidade técnica legislativa nos municípios (normalmente excepcionada naqueles de maior porte, que são dotados de recursos de informação e capital humano próximos aos disponíveis para a União, Estados e Distrito Federal), não raramente ensejam o advento de ônus desproporcionais a uma parcela da população, sem que o benefício teoricamente motivador da norma reste concretizado. 

Não se discorrerá neste artigo a respeito da responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos1, mas sim da responsabilidade do próprio ente federativo pelos atos relacionados ao enfrentamento da pandemia. Nesse sentido, o presente texto visa defender a responsabilidade civil dos municípios em razão dos danos decorrentes de ações regionalizadas de combate à Covid-19. Trata-se aqui de uma política adotada por alguns municípios e que consiste em restrições regionalizadas às atividades econômicas, com o intuito de reduzir a taxa de contágio em determinadas áreas do município. A partir de dados cuja confiabilidade é questionável, dada a inexistência de respaldo científico e por não ter sido franqueado amplo acesso aos critérios de sua obtenção e ferramentas de apuração, foram editados decretos municipais que elencavam quais bairros seriam afetados e quais não seriam por períodos que variavam de poucos dias a semanas de vigência de medidas de restrição socioeconômicas.

Tome-se, por exemplo, o decreto 32.500, de 16/6/2020, do prefeito do município de Salvador, capital do Estado da Bahia. A norma suspendeu, entre 18 de junho de 2020 e 24 de junho de 2020, toda e qualquer atividade econômica formal e informal, com exceção de um restrito rol de atividades essenciais, em seis bairros e localidades de Salvador. Segundo os considerandos do referido decreto as localidades afetadas pela norma "vem apresentando grandes números de aglomerações e um relaxamento no isolamento social pela população, o que tem levado a uma crescente no número de contaminação e casos confirmados de COVID-19". Nenhuma remissão a qualquer estudo acerca da escolha dos bairros atingidos ou do prazo de sete dias fixado é apresentada no decreto municipal 32.500. Ademais, olvida-se que nem todas as atividades ou espaços existentes em um bairro podem ser compreendidos como espaços de aglomeração.

A economia dos municípios, atingida pela crise econômica agravada pela pandemia, passou a ter um elemento adicional de distorção, em razão dos decretos editados com ações regionalizadas: agora no âmbito da concorrência. Estabelecimentos comerciais concorrentes, situados um em frente ao outro, a poucos metros de distância, porém em margens opostas de uma mesma avenida, foram submetidos a destinos diferentes, simplesmente porque vinculados os seus endereços a bairros distintos: um estaria autorizado a funcionar e o outro impedido de exercer sua atividade.

Extrai-se da motivação dos decretos municipais que impõem ações regionalizadas de combate à Covid-19 que se trataria de medida de contenção razoável e efetiva contra o avanço da contaminação pelo novo coronavírus. A edição das referidas normas que impõem limitações socioeconômicas não deve desconsiderar, entretanto, três vetores em especial: o respeito ao princípio da proporcionalidade, à isonomia e à analogia.

O princípio da proporcionalidade institui a relação entre fim e meio, confronta a finalidade e o fundamento de uma intervenção estatal com os efeitos desta para que se torne possível um controle de excesso ("eine Übermasskontrolle") e respeitada a vedação do excesso, ou seja, "Übermassverbot"2. Qualquer norma que limite a livre iniciativa constitucionalmente prevista, ainda que fundamentada no dever constitucional de proteção à saúde, deverá respeitar o princípio da proporcionalidade.

Não se afigura proporcional e isonômico vedar que estabelecimentos concorrentes, situados a poucas ruas ou mesmo metros de distância, possam ter tratamentos distintos, se ambos podem atender as exigências sanitárias e de limitação de aglomerações para a contenção da pandemia, fundamentos da existência da norma limitadora de determinada atividade comercial.

Em nosso entender, ainda que o texto de determinado decreto municipal vede o funcionamento de um estabelecimento comercial situado em um bairro "X", enquanto não obsta o funcionamento de um concorrente situado na mesma avenida, a uma distância de poucos metros, porém situado no bairro "Y", há de se reconhecer que o texto da norma não é publicado para ser apenas compreendido, mas também para ser trabalhado pelo jurista3. Deve-se interpretar analogicamente o texto para concretizar a norma adequadamente. Não existe interpretação sem analogia4, pois a "analogia é a essência do juízo"5. O direito consiste em um processo analógico6, cujo limite é, destarte, o princípio da igualdade que o fundamenta7 e, em última instância, o princípio da justiça8 que atribui sentido a sua existência.

É necessário, portanto, interpretar analogicamente a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais em outros bairros de um município para se reconhecer que deve ter o mesmo direito qualquer estabelecimento dentro do município que puder operar com as mesmas regras de seus concorrentes, respeitando as existências de distanciamento social e medidas sanitárias, sob pena de se restar violado o princípio da isonomia e o próprio sentido dos decretos que definem as ações de combate à pandemia da Covid-19.

O sentido do direito ou ratio iuris seria, para Kaufmann9, a correspondência recíproca entre realidade e valor, cujo mediador é a analogia, que vincula a determinação do direito no caso concreto a partir do processo situado entre a semelhança e a diferença dos elementos aptos a integrar um específico processo de concretização normativa. Em outras palavras, buscar o sentido do direito é um problema prático-analógico10.

Seria atentatório ao sentido do Direito uma conclusão que afastasse a possibilidade de tratamento idêntico em situações que apresentam semelhança material (estabelecimentos que, de forma idêntica, possuem estrutura para funcionar com segurança sanitária) e igualmente permitem concretizar o sentido da norma: a proteção à saúde.

Nesse sentido, o TJ/MG entendeu ser inconstitucional a edição de norma que limitava a livre iniciativa apenas a determinados empreendimentos, em detrimento de outros que possuem características de funcionamento similares11:

Não se descura que determinadas atividades autorizadas a funcionar são consideradas essenciais, porém o que os decretos visam impedir é a disseminação da pandemia, mediante medidas de contenção e distanciamento social. Se a mesma atividade empresarial pode ser exercida por um estabelecimento sem vulnerar a proteção à saúde da sociedade, com igual razão deve ser permitido o funcionamento por outros estabelecimentos que, no mesmo município, possam se adequar às mesmas medidas restritivas.

A leitura puramente exegética dos decretos municipais que estabelecem ações regionalizadas cria um desequilíbrio concorrencial no mercado, em prejuízo do direito de escolha do consumidor e em prejuízo da livre iniciativa dos estabelecimentos empresariais que, mesmo atendendo às limitações sanitárias impostas, são alijados do mercado, em razão de limitação que não é lastreada em qualquer base científica ou objetiva.

A ausência de base científica ou objetiva é evidenciada, quando se indaga o porquê de o período de restrição às atividades ser de sete dias, e não cinco ou dez dias. Outrossim, quando se questiona o porquê da escolha de fronteiras artificiais como as que delimitam bairros. Será que o vírus não consegue atravessar uma avenida e ingressar em um bairro distinto, situado na outra margem da via?!

Se determinadas atividades do bairro não se adequaram aos protocolos sanitários ou os residentes da localidade não estão se esforçando para atender às regras sanitárias de distanciamento social, o problema não será resolvido com o fechamento indiscriminado de toda e qualquer atividade no local, inclusive de atividades que um município já tenha liberado, com protocolos específicos, em outros bairros.

A ausência de proporcionalidade e isonomia na edição de normas que configuram fato do príncipe poderá causar danos imputáveis ao Estado, pois "havendo o exercício de poder normativo contra a lei, ou do poder legislativo contra a Constituição, há de se reconhecer a responsabilidade do Estado pelos danos que daí decorrem diretamente"12. Nesse sentido, vide o acórdão em recurso extraordinário n° 571.969, relatado pela Ministra Carmem Lucia, julgado em 12/3/2014.

Há muito resta assentada na doutrina e jurisprudência a possibilidade de se responsabilizar o Estado pelos danos decorrentes da atividade legislativa inconstitucional13, porém, ainda que se trate de uma ação normativa constitucional do Estado, não se pode afastar aprioristicamente o direito à indenização, quando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil14. Caberá ao Poder Judiciário avaliar a proporcionalidade entre o sacrifício imputado ao particular e a finalidade de interesse público que configura o escopo da norma. Configurado o excesso, dar-se-á a responsabilidade pelo sacrifício, cujo ressarcimento será a conversão de seus direitos em um equivalente pecuniário15. Igualmente há responsabilidade civil decorrente de atos legislativos constitucionais quando, em virtude de norma expedida pelo ente público, um particular vê o seu direito suprimido, temporária ou definitivamente, por restrições administrativas quanto à forma de utilização de seu patrimônio16.

Conforme registra Mafalda Miranda Barbosa, se for permitido que um ente público ou órgão estatal possa afastar direitos ou interesses de um ou mais cidadãos e não ser responsabilizado pelos danos causados "tal implicaria que, a despeito da lógica de financiamento dos serviços, aquele cidadão estivesse a contribuir pessoalmente de forma mais intensa para o bem geral da comunidade do que os restantes"17.

Uma vez resultante dos referidos decretos municipais que estabelecem ações regionalizadas de combate à Covid-19 uma "ruptura no equilíbrio entre os ônus e os encargos suportados pelos destinatários"18 causadora de danos, tem-se por configurado o dever de indenizar do Município e a necessidade de se suspender a eficácia das normas que, de maneira desproporcional, impeçam a livre concorrência em determinados mercados.

O dever indenizatório do Município deverá levar em consideração o prejuízo causado com a restrição indevida à atividade do da pessoa física ou jurídica, em benefício de seus concorrentes, decorrente da intervenção estatal lesiva à livre concorrência e à livre iniciativa empresarial. O respeito a princípios constitucionais tão caros à ordem econômica passa necessariamente pelo equilíbrio entre as liberdades dos diversos agentes econômicos e os consumidores, e não se limita a questões econômicas ou políticas, mas também por medidas essencialmente jurídicas19.

É cediço que as medidas restritivas adotadas para enfrentamento da pandemia do coronavírus decorrem da competência do Município para a proteção e defesa da saúde, prevista no art. 23, II, da Constituição Federal e, ainda, nos termos do artigo 30, II, pela possibilidade de suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local. Trata-se de entendimento assegurado na ADPF 672/DF, em decisão unânime do Plenário do STF de 9/10/2020, que ratificou a medida cautelar concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes em 8/4/2020. Não se pode confundir, no entanto, a competência legislativa e a necessidade de realizar ações efetivas e céleres para o combate da pandemia com a existência de uma irresponsabilidade estatal pelos atos praticados.

Ainda que motivados por uma causa nobre, há de se ponderar os meios escolhidos para que os fins buscados com a edição dos decretos municipais que estabelecem ações regionalizadas de combate à Covid-19 sejam devidamente alcançados e não se tornem uma patologia legislativa, a ser superada e reparada pelo Poder Judiciário, paralelamente a tantos outros desafios já enfrentados pelos cidadãos nestes tempos pandêmicos.

*Francisco Arthur de Siqueira Muniz é doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, Visiting Researcher da National University of Singapore, Bel. e mestre em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Direito Marítimo e Portuário pela UNINASSAU. Associado fundador do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). Investigador do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor universitário e sócio do escritório Da Fonte Advogados.

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1 Sobre o tema, sugere-se, entre outros, a leitura do artigo de REIS JUNIOR, Antonio dos. A responsabilidade civil dos agentes públicos em tempos de covid-19: análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal no pedido cautelar na ADI 6421 e outras. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 3, n. 2, p. 305-328, maio/ago. 2020.

2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 403.

3 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. 2. Ed. São Paulo, RT, 2009, p. 159.

4 BRONZE, Fernando José Pinto. Lições de introdução ao Direito. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 962.

5 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio d'Água, 2000, p. 90.

6 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 5. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 186.

7 AGUILAR, Francisco. A norma do caso como norma no caso. Coimbra: Almedina, 2016, p. 203.

8 NEVES, Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 253.

9 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 5. Ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2014, p. 187

10 BRONZE, Fernando José Pinto. Analogias. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 275.

11 "MANDADO DE SEGURANÇA - LICENÇA PARA REALIZAÇÃO DE FEIRA COMERCIAL ITINERANTE - DISPOSITIVO DE LEI MUNICIPAL CONTENDO LIMITAÇÃO TEMPORAL À FEIRA - AUSÊNCIA DE LIMITAÇÃO PARA OUTROS TIPOS DE FEIRAS E EVENTOS SIMILARES - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA, LIVRE INICIATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA - VULNERAÇÃO" (TJ/MG, 3ª CÂMARA CÍVEL, AC: 10461140057120002, Relator: Elias Camilo, Data de Julgamento: 6/4/2017, Data de Publicação: 3/5/2017).

12 MIRAGEM, Bruno. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 452-453.

13 CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado, v. 2. Rio de Janeiro: Borsoi, 1957, p 623.

14 Nesse sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, Vol. 3: Responsabilidade Civil. 5. Ed. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 643.

15 CANOTILHO, J. J. Gomes. O problema da responsabilidade do Estado por atos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974, p. 82.

16 CAHALI, Yusef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. Ed. São Paulo: RT, 2007, p. 539.

17 BARBOSA, Mafalda Miranda. COVID-19 e responsabilidade civil: vista panorâmica. In Revista de Direito da Responsabilidade, p. 253. Disponível aqui.

18 FERRAZ, Luciano. Responsabilidade do Estado por omissão legislativa: o caso do art. 37, X, da Constituição da República. In: FREITAS, Juarez (org.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 219.

19 FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 49.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil