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O ocaso do dano moral - Breves reflexões sobre o fim - ou não - do dano moral

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Atualizado às 08:23

O texto que rapidamente se articula nesta prestigiada coluna busca indagar sobre o dano moral, sua existência e destino na ordem jurídica brasileira contemporânea.

A razão de ser das reflexões adiante apresentadas decorre de uma constatação muito simples: enquanto orientador e examinador de dissertações e teses, dei-me conta que há muito tempo nada oriento ou examino sobre dano moral (s.s.); enquanto pesquisador do Direito Civil observo que poucos são os trabalhos de menor1 ou maior folego2 que ainda laboram sobre dano moral.  Parece ser legítima, portanto, a auto indagação sobre o ocaso do dano moral ou, quiçá, especular sobre o seu locus na estrutura das fontes jurídicas nacionais contemporâneas.

Para responder à provocação é necessário analisar "de onde viemos" para entender "onde estamos" e para "onde vamos".

De modo muito breve, percorrer-se-ão os tempos da redemocratização e reconstitucionalização (1988), da aplicação direta da normativa constitucional às relações interprivadas, da resignificação do ser e a autocompreensão de que ele/ela não se limita ao ter, até aportamos no CC 2002. Após, investigar-se-á a expansão do dano moral nas assim denominadas novas hipóteses de danos e a sua relocação da estrutura das fontes normativas.

Viemos de um tempo pré-constitucional de 1988, momento o qual o dano moral já desafiava a lógica de um sistema privado fundado em dois diplomas legais unitários, centralizadores e totalizadores da experiência fática, Código Civil 1916 e Código Comercial de 1850, em evidente revolta dos fatos contra os códigos.

Nessa toada, a melhor doutrina nacional já trabalhava com o porvenir3.  Advogados Inquietos, desde antes de 1988, passaram a demandar "indenização por danos morais", sobretudo com base na literatura francesa do dommage moral (ex vi George RIPPERT, Le prix de la douleur), já adotada e absorvida pela doutrina nacional. Rebeldes, juízes discretamente passaram a acolher os pleitos, afinal de contas não era mais possível resistir a danos horrendos, como, por exemplo, a morte do filho, não tutelado pela lei privada, somente pela criminal. Com efeito, na hierarquia das fontes jurídica, o dano moral já era um valor social, mas não era princípio jurídico e tampouco regra, digno de tutela jurídica. 

Ante a resistência, insensibilidade ou ignorância do legislador infraconstitucional, o constituinte de 1988 recepcionou o dano moral, estabilizando-o na fonte normativa constitucional, como direito fundamental da pessoa humana: "art. 5  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: inc. V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;"

O conceito de dano foi reduzido na sua dicção de ofensa a interesse jurídico patrimonial tutelado para ofensa a interesse jurídico tutelado, estendendo o seu alcance para o ser e todo o seu plexo de imputações existenciais.

Embora esdrúxula a constitucionalização de instituto próprio do direito privado na fonte normativa constitucional, foi esta uma tônica da Constituição de 1988, o que se verificou não somente com o dano moral, como também com o direito de família, direito à herança, direito de propriedade e outros tantos, frente a desatenção do legislador infraconstitucional aos anseios sociais pela atribuição de tutela a novas situações jurídicas patrimoniais e, sobretudo, existenciais.   

Certo ou errado, justo ou injusto, técnico ou não sob o ângulo do direito positivo, fato é que a dano moral foi a primeira experiência de aplicação direta da Constituição da República às relações interprivadas, sem que existisse, portanto, regra infraconstitucional regulamentadora que mediasse a normativa constitucional e o fato concreto. Desde outubro de 1988, sentenças e acórdãos passaram a ser proferidos com ampla legitimação do dano moral como categoria de dano indenizável, em que pese não regulado por normativa infraconstitucional.

A primeira regulamentação infraconstitucional sobre o dano moral, no campo das obrigações privadas, veio com o CDC/1990 (art. 6º São direitos básicos do consumidor: VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos), seguida da codificação civil CC/2002 (art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito). Entretanto, como o CDC é regra especial ao passo que o CC estabelece as regras gerais da Responsabilidade Civil, pode-se concluir que entre 5 de outubro de 1988 e 10 de janeiro de 2003 verificou-se a incidência direta da normativa constitucional às relações interprivadas, no tocante ao dano moral na responsabilidade civil geral.

Assim sendo, a pessoa humana passou a ser uma fonte de imputação de danos em si e não mais e somente o seu patrimônio, que potencialmente pode ser atingida por atos ilícitos absolutos e relativos.

A pessoa humana na sua perspectiva simplesmente existencial é sujeito passivo potencial de danos não patrimoniais, ou seja, interesses, direitos, ou, como preferimos, situações jurídica que não podem ser aferidas em pecúnia, somente estimadas, dai porque existenciais.

A pessoa humana é passiva de danos não patrimoniais enquanto viva, após a sua morte e mesmo antes de nascer, uma vez que o Código Civil põe a salvo os interesses do nascituro e em harmonia com a normativa constitucional esta tutela não pode ser reduzida ao viés patrimonial do ser (art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro).

Como resultado, severamente ampliou-se a tutela da pessoa humana e, por consequência, a litigiosidade social. Pós 1988 verificou-se a explosão de ações indenizatórias por danos morais, uma vez que os valores existenciais do ser são infinitos, pessoais, coletivos e difusos ao passo que os patrimoniais se restringem ao ter ou à coisa desta mesma pessoa.

A responsabilidade civil como categoria jurídica foi renovada e ampliada e os tribunais não tardaram em dar uma resposta reducionista a tais pretensões, impondo requisitos limitadores, seja no tocante à quantificação do dano moral, seja na distribuição de ônus probatório, a partir da rejeição da técnica in re ipsa para danos imateriais contratuais, em nosso pensar, equivocadamente.

Com relação ao posicionamento jurisprudencial é importante salientar que decorre ele, nalguma medida, na própria incompetência da doutrina nacional (faz-se o mea culpa) em traduzir o dano moral como categoria existencial propriamente dita, na busca da despatrimonialização do Direito Civil.

Muito embora a despatrimonialização seja um dos vértices do Direito Civil brasileiro pós Constituição de 1988, não pode ele atuar como uma simples miragem desértica, incongruente e retórica, ao se pretender compensação patrimonial pela ofensa não patrimonial. Nesse passo, urge redesenhar as funções do dano moral.

O ocaso do dano moral é símbolo do fracasso da doutrina brasileira em apresentar à esta norma a exata medida da sua importância na reinvenção do ser, que não se confunde com o ter, seja ele estático (substantivo), seja ele dinâmico (adjetivo).  

A compensação do dano moral não pode ter como primeira resposta o arbitrário e discricionário "equivalente" pecuniário da dor, devendo ser lançado mão de tal recurso quando não seja possível devolver à pessoa humana a dignidade subtraída pelo ilícito. Tal solução parece ser inviável quando se analisa o exemplo do filho morto, mas, por outro lado, deve ser secundária, combinada ou complementar, ao se tratar de qualquer hipótese de ofensa à honra da vítima (redes sociais, fake news, mídia escrita ou digital em geral), desde que a reconstrução dos fatos seja imediata, incondicional e de alcance similar ou maior que ao da falsa notícia.   

Estamos numa fase de exploração de novos danos ou novas hipóteses de danos, tendência em si que não escapa da crítica mais sutil, sob pena de se empregá-las no afastamento da função coercitiva da responsabilidade civil, com a redução do espaço das liberdades negativas4.

Nesse cenário, o dano moral sofisticou-se, evoluindo para mares individuais nunca antes singrados5 e também metaindividuais, não mais se contendo na figura da dignidade da pessoa humana individual, como também da coletiva, posto que a pessoa jurídica não tem dignidade propriamente dita, e mais especialmente aspergindo o seu potencial para qualquer interesse difuso ou coletivo, bem como a honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos6.

Aliás, o dano moral coletivo aproxima-se do dano social, muito embora careça o primeiro de caráter punitivo, enquanto pena civil, por faltar-lhe critérios objetivos e subjetivos mínimos para sua aplicação como sanção punitiva, o que, segundo ROSENVALD7, somente pode ser aportado por meio de reforma da Lei da Ação Civil Pública. O debate dirige a atenção para as funções do dano moral: compensar e punir; punir em regimes especial e geral, o que em muito extrapola a singular função reparatória dos danos patrimoniais.  

Para onde vamos?

Longe de buscar a quiromancia jurídica, após o rápido apanhado sobre o dano moral, tomando-se como marco a Constituição de 1988, possível constatar que a sua evolução não significa propriamente dita o seu desaparecimento, mas um seu sutil deslocamento na estrutura das fontes jurídicas.

O dano moral cronologicamente transitou de valor social (antes da CR 1988) para norma constitucional, regra consumerista e civil. Seu aparente esmaecimento enquanto categoria jurídica autônoma de outros elementos da responsabilidade civil (ilícito, culpa, nexo causal), decorre mais da sua ascensão na estrutura das fontes normativas do que, inversamente, do seu ocaso.    

Encanta-me pensar o Direito organizado como sistema e como estrutura e neste momento, importa o viés estruturante do sistema.  Como tal, o sistema, unitário e nucleado na Constituição, as fontes normativas estruturam-se em valores (jurídicos), princípios e regras.

O dano moral não é princípio e foi estabilizado na base normativa constitucional e infraconstitucional como regra, passando-se o mesmo nas fontes infraconstitucionais.

Porém, a intensa dinâmica dos fatos e a resposta jurisdicional (estatal ou arbitral) produziu um sutil deslocamento do dano moral enquanto fonte regra para a fonte valor (valor jurídico), o que não somente explica como sobretudo justifica a explosão das novas hipóteses de danos, assentadas em situações jurídicas metaindividuais e existenciais não restritas ao quadro hipotético da regra que pretende contê-lo.  

Como explica o maestro PERLINGIERI8, individualizar o critério da noção de valor é de extrema dificuldade, talvez porque o enquadramento hierárquico das fontes normativas seja decorrente mais da ideologia do que da técnica, do modo de ver o mundo de quem é chamado a individuar e atuar o valor. O valor é uma resultante da natureza humana e da racionalidade histórica, cujos critérios devem ser sincreticamente observados.

O valor jurídico dano moral não é uma "super regra", mas ele tem a capacidade de dialogar mais facilmente com valores sociais, especialmente como a ética, que é a arte de bem viver em sociedade, e neste aspecto a responsabilidade civil é a resposta jurídica estruturada e sistematizada pelo legislador para o acolhimento da ética. Convém recordar que o legislador não é jurista, tendo ele a função de auscultar a sociedade para produzir regras conectadas com os valores sociais históricos, razão pela qual, na condição de valor jurídico, o dano moral pode produzir melhores leis e melhores sentenças.  

A guisa de conclusão, pode-se anotar que o dano moral não está esquecido ou empoeirado, mas sim diferente, pois este discreto deslocamento na estrutura das fontes normativas torna-o ainda mais aberto e dinâmico para a experiência fática.

*Paulo Nalin é professor associado de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná (graduação e pós-graduação). Advogado e árbitro.

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1 Observo que nesta coluna o último trabalho que tangencia o assunto do dano moral, na perspectiva do direito de família, é de autoria de Giuliano Máximo Martins, Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos e Michel Canuto de Sena.

2 Clayton REIS. Dano Moral. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. Clássico obrigatório da literatura brasileira, recentemente redesenhado.

3 José de Aguiar DIAS. Da Responsabilidade civil. São Paulo: Forense, 1987, p. 852.  

4 Carlos Eduardo PIANOVSKI RUZYK.

5 Grace Regina COSTA. Abandono afetivo: indenização por dano moral. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

6 Julia COSTA DE OLIVEIRA. O dano moral coletivo e o discurso de ódio: a responsabilidade civil pelo hate speech é solução ou excesso? NUNES DE SOUZA, Eduardo; GUIA SILV, Rodrigo (coord.). Controvérsias atuais em responsabilidade civil: estudos de direito civil constitucional. São Paulo: Almedina, 2018, p. 339-340.

7 Nelson ROSENVALD. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 260.

8 Pietro PERLINGIERI. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Nápoles: ESI, 1991, p. 164-166.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil