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Pandemia, telas, crianças e home office: uma combinação que põe em xeque a proteção dos dados pessoais das crianças na quarentena

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Atualizado às 09:08

Texto de autoria de Ana Carolina Brochado Teixeira e Filipe Medon

Quem nunca deu o celular para o filho para conseguir trabalhar? Que atire a primeira pedra o pai ou a mãe que não fez isso pelo menos uma vez durante a quarentena, num ato de desespero (ou de comodidade) com as multitarefas que acabaram surgindo, de uma hora pra outra, na quarentena. No entanto, entregar um celular nas mãos de uma criança é um gesto com inúmeras implicações para a privacidade, segurança e proteção do próprio filho. Em tempos de coleta massiva de dados pessoais, como exercer uma parentalidade responsável?

Crianças conectadas na rede não são propriamente uma novidade da pandemia de Covid-191. Dados de pesquisa realizada pela TIC Kids Online Brasil divulgada em 2017 apontam uma tendência no crescimento de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos na rede, sobretudo por meio de smartphones. Apesar do aumento, apenas 49% dos entrevistados relataram que os pais possuem "muito conhecimento" sobre suas atividades online2. Ou seja, a maior parte dos genitores ou responsáveis não acompanha suficientemente a interação dos menores com a Internet.

Fato é que, se a quarentena não criou esse cenário, tem contribuído para intensificá-lo, pelas mais variadas razões. Com a suspensão das atividades escolares presenciais e de boa parte dos trabalhos, pais e filhos se viram obrigados a conviver 24h por dia, durante os sete dias da semana. Surge então um desafio: como preencher qualitativamente o tempo das crianças sem que isso afete, por exemplo, a produtividade de pais que estão trabalhando de casa em home office? É preciso ser muito criativo e ter muita disposição para acompanhar a energia de crianças confinadas há mais de um mês dentro de casa. Foi assim que muitos pais que vinham resistindo bravamente a deixar que seus filhos utilizassem smartphones e tablets passaram a entregá-los, sobretudo a crianças, numa tentativa desesperada de entretê-las enquanto tentam cumprir as demandas do trabalho, inclusive o doméstico.

Além disso, muitas escolas também têm disponibilizado atividades ou aulas remotas para as crianças, que passam a acessar com maior frequência o computador. Surge, também, a saudade dos amiguinhos do colégio. Logo, alguns pais autorizaram a utilização de aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp, a fim de permitir que as crianças interajam e, quem sabe, se distraiam em grupo, enquanto os pais tentam potencializar seu trabalho. Sem contar outros aplicativos que começam a entrar em cena, como é o caso do Instagram e do TikTok, que permitem a gravação de vídeos com filtros atrativos para as crianças. É difícil supervisionar. Mesmo as famílias mais abastadas, que tinham babás, se viram sozinhas de repente: é preciso encarar a parentalidade a toda prova e ainda concretizá-la de forma positiva.

Se há pouco mais de 20 anos as crianças se distrairiam com brinquedos analógicos, desenhos e filmes na televisão, hoje o cenário é distinto: grande parte dos pequenos, enquanto pessoas humanas em desenvolvimento, realizam a própria personalidade por meio da inserção num mundo cada vez mais digital. Ter uma conta no TikTok pode ser mais que uma distração: mas uma possibilidade de interação e inserção social. Escapar dessa sociabilidade pode ser também uma forma de excluir a criança - a depender do seu grupo de relacionamento -, o que torna mais difícil para que pais digam, no alto de sua autoridade, a tão temida frase: "não é não", depois de explicar, convencer, dialogar. E uma vez conquistado esse espaço, voltar atrás e retirar das crianças os smartphones e tablets parece ser uma missão impossível. Como será após o fim da pandemia?

As crianças conquistam suas próprias luas e, ingenuamente, bendizem a Covid-19: se não fosse o vírus, não estariam, tão cedo, com essa liberdade na Internet. Quando os pais se dão conta, os filhos estão colonizando as redes sociais, compartilhando vídeos, fotos e, mais silenciosamente, seus dados pessoais. Muitos, no entanto, não se dão conta da gravidade dessa exposição de dados pessoais e imagens das crianças nas redes e de uma atuação desacompanhada. Apesar de algumas plataformas, como YouTube e Netflix, oferecem modos de acesso exclusivos para menores, os riscos continuam sendo enormes.

Quem não se recorda dos trágicos e criminosos desafios da Baleia Azul e da Momo, que incentivavam crianças e adolescentes a cometerem suicídio? As redes sociais também são um espaço predatório para pedofilia e outros crimes: quantos casos não ocorrem todos os anos de crianças que são levadas por pedófilos a encontros e, até mesmo, são induzidas a enviar fotos que podem envolver nudez? Isso sem mencionar o cyberbullying e criminosos que buscam obter detalhes da vida daquela família para atentarem contra a sua segurança. Se a rede é um espaço pouco seguro, certamente as crianças são o elo mais frágil e a porta de entrada mais ampla para criminosos virtuais, que facilmente se fazem passar por outras crianças e ganham, pouco a pouco, a confiança dos menores desacompanhados na rede. Não se esqueça, ademais, o tema da Internet of Toys, isso é, dos brinquedos inteligentes, que captam dados para interagir com as crianças.

No que diz respeito aos dados pessoais, a Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD,apesar de ainda não estar vigente, destaca já no caput do artigo 14, que o tratamento deverá ser realizado no melhor interesse da criança e do adolescente, ressaltando no parágrafo primeiro do mesmo artigo que este tratamento deverá ser efetivado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal da criança. A lei ainda foi omissa neste parágrafo quanto aos adolescentes, deixando dúvidas "se o consentimento manifestado diretamente pelo mesmo e sem assistência ou representação deveria ser considerado plenamente válido, como hipótese de capacidade especial, ou se simplesmente o legislador teria optado por não tratar do tema, por já existir legislação geral sobre a matéria no Código Civil"3. Controverte-se a doutrina nesse ponto acerca da total prescindibilidade da participação parental nessas hipóteses4. O que será feito dos dados coletados dos menores? Poderão estes alimentar bancos de dada imensos (big data), a serem utilizados no futuro? Quais os critérios para essa utilização?

Outro risco apresentado pela doutrina está associado ao consumo5, já que muitos aplicativos infantis de celular acabam veiculando anúncios independentemente da idade do usuário, antes mesmo dos 12 anos, quando, em tese, as crianças começam a desenvolver suas defesas cognitivas, que as habilitam a compreender as intenções dos anunciantes de persuadi-las ao consumo6. Ignoram, assim, o disposto na Resolução nº. 163/2014 do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), "que determina ser considerado abusivo o direcionamento de publicidade à criança com intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço"7.

Se, por um lado, as plataformas e redes sociais não podem se omitir e devem criar mecanismos mais contundentes de verificação da idade mínima para navegar, por outro lado, aos pais incumbe o exercício de uma parentalidade responsável, que não pode ser reduzida a uma barganha emocional que chegue ao ponto de "negociar" com o filho: "se ficar quieto e me deixar trabalhar, pode usar o celular".

Dentre os deveres constitucionais de criação, assistência e, principalmente de educação (art. 229 CF), inclui-se também um dever de fiscalização e de vigilância dos pais, que "se traduz em controle dos atos dos filhos, para que eles possam, aos poucos, entender a necessidade de segurança e o comportamento necessário no ambiente virtual. Embora possa transparecer uma invasão da sua intimidade, entende-se ser papel dos pais o exercício dessa fiscalização, sob pena de, em última análise, deixar os filhos em abandono, em virtude do descumprimento do papel educacional dos pais"8. Direcionar os filhos, orientando-os na inserção com o ambiente digital revela a formação de uma autoridade parental "dialógica, pautada na orientação respeitosa, mas com a autoridade necessária"9.

Não quer isso dizer, contudo, que os pais possam devassar completamente a privacidade dos filhos, pois a eles é conferido algum espaço de autonomia, em respeito à própria dignidade humana, enquanto pessoas em desenvolvimento. Há, sim, "o dever de, juntos, resolverem os impasses advindos da educação e das dificuldades enfrentadas pelos filhos, seja no ambiente virtual ou não. Isto é educar sem invadir, cuidar para emancipar"10.

É assim que parte da doutrina tem aludido ao chamado "abandono digital", que, contraposto à "educação digital", revela-se na atitude de "pais que deixam o filho menor, ainda vulnerável aos perigos do ambiente virtual, navegar sozinho na Rede, independentemente de orientação e acompanhamento"11. Corre-se o risco até mesmo de as crianças desenvolverem síndromes psicológicas, associadas à intensa dependência dos aparelhos digitais.

Como se pode notar, a tarefa da parentalidade num universo digital não é das mais simples, sobretudo em tempos de confinamento social. No entanto, é preciso recordar que a educação digital não tira férias nem fica de quarentena. Ser pai e mãe é um dever que não admite intervalos: deve ser exercido em tempo integral. Por certo, a quarentena traz consigo árduos desafios, que, por outro lado, permitem lançar luzes para o fenômeno da maior interação de crianças e adolescentes com o ambiente virtual. Resta aos pais aproveitarem essa oportunidade de contato tão intenso e real com os filhos para, dialogicamente e respeitando a autonomia dos menores, desempenhar a difícil - mas tão recompensadora - missão de educar.

*Ana Carolina Brochado Teixeira é doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Especialista em Diritto Civile pela Università degli Studi di Camerino, Itália. Professora de Direito Civil do Centro Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Advogada.

*Filipe Medon é doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Substituto de Direito Civil na UFRJ e de cursos de pós-graduação do Instituto New Law e CEPED-UERJ. Advogado e pesquisador.

__________

1 Para uma análise sobre o sharentingem tempos de quarentena, permita-se a referência a: MEDON, Filipe. Big Little Brother Brasil: pais quarentenados, filhos expostos e vigiados. In: Jota, 14 abr. 2020. Disponível em: Acesso em 14 abr. 2020.

2 CETIC. Núcleo de informação e coordenação do Ponto BR. Pesquisa sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil - TIC Kids online Brasil 2017. São Paulo: Comitê gestor da Internet no Brasil, 2018. Disponível em: . Acesso em 29 abr. 2020.

3 TEPEDINO, Gustavo; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Consentimento e proteção de dados pessoais na LGPD. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 312.

4 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. A autoridade parental e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo:Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 526.

5 Ver mais em: ALMEIDA, Claudia Pontes. Youtubers mirins, novos influenciadores e protagonistas da publicidade dirigida ao público infantil: uma afronta ao Código de Defesa do Consumidor e às leis protetivas da infância. Revista Luso, n. 23. Set. 2016.

6 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. A autoridade parental e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo:Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 514.

7 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. A autoridade parental e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo:Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 514.

8 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 06.

9 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 06.

10 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 06.

11 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 08.